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ISSN 1982-5994 UFPA • ANo XXXII • N. 142 • ABriL e Maio de 2018

Aprendendo a ouvir Nesta edição • Risco ambiental em Barcarena • Índios nos livros didáticos • Entrevista com Norval Baitello Jr.

Pesquisa analisa reabilitação verbal de usuários de implante coclear. Páginas 8 e 9


UNiVeRsidade FedeRaL do PaRÁ JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Armando Ribeiro, Nicole França e Renan Monteiro (Bolsistas); Thais Braga (2.361-DRT/PA) e Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes e Nayana Batista (bolsista) Fotografia da capa: Alexandre de Moraes Ilustrações: Walter Pinto Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed, José dos Anjos Oliveira e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Abril e Maio de 2018

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Rômulo Simões Angélica Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitor de Relações Internacionais: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Karla Andreza Duarte Pinheiro de Miranda Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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rimeiro, o silêncio; depois, o som; depois, o som com significado. Talvez pudéssemos resumir, assim, a vida de quem recebe o implante coclear, tecnologia inovadora que vem transformando a vida de um número cada vez maior de pacientes com surdez profunda. A pesquisadora Fabiane da Silva Pereira defendeu tese no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC/NTPC/UFPA), na qual avalia o processo de reabilitação verbal de crianças que receberam o implante. A pesquisa indica que esses pacientes devem ser inseridos em programas multidisciplinares para que possam usufruir dos benefícios do aparelho e, quanto mais cedo isso acontecer, melhor. Em fevereiro, os noticiários foram invadidos por más notícias vindas de Barcarena (PA). Mais uma vez, uma das empresas instaladas naquela localidade era responsável pela contaminação ambiental na região. Os pesquisadores do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da UFPA (Laquanam) vêm realizando estudos e propondo soluções para aquele Polo Industrial desde 2007. Saiba dos detalhes na reportagem de Walter Pinto. Leia também: Em Abaetetuba, o miriti é a alternativa para a entressafra do açaí; Pobreza e falta de informação estão por trás dos casos de exploração sexual de crianças e adolescentes no Marajó; Grupo de pesquisadores analisa a representação indígena nos livros didáticos. Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição Etnodesenvolvimento e impactos transformativos ....................4 Alternativa para o inverno ...............................................5 O “uivo” das balseiras ....................................................6 Portas abertas para um novo mundo ..................................8 “Educação não é mercado” ............................................ 10 Cadê o índio que estava aqui? ......................................... 12 O poder que vem das redes ............................................ 13 Das filhas da chiquita ao direito de ser .............................. 14 Barcarena sob risco permanente ..................................... 16 O marketing da Amazônia .............................................. 18 Mocajuba(PA) Foto Alexandre de Moraes


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Opinião ACERVO PESSOAL

Etnodesenvolvimento e impactos transformativos

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os meses de julho e setembro de 2017, o curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento foi duplamente avaliado, obtendo nota 4, e reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC). Para o momento, reflito os significados dessa fase para nós que fazemos educação diferenciada em condições nem tão diferentes, ou seja, os desafios e os impactos do ensino universitário que objetiva a inclusão de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. O curso de Etnodesenvolvimento é uma das ações de políticas afirmativas da Universidade Federal do Pará (UFPA). Criado em 2009, em resposta à demanda por ensino superior público, de qualidade e diferenciado, atende ao pleito de sujeitos coletivos de direito para a gestão e a autonomia de seus territórios. O curso nasce e mantém-se no diálogo com os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais e seus movimentos organizados, fazendo jus ao princípio da interculturalidade, e organiza-se pedagógica e metodologicamente pela alternância educacional, sendo realizado em janeiro e fevereiro, julho e agosto, no tempo universidade (TU), em que a UFPA tem a oportunidade de compartilhar conhecimentos com os discentes indígenas, quilombolas e tradicionais. Nos demais meses, no tempo comunidade (TC), há a possibilidade de os docentes vivenciarem e dialogarem diretamente com os

ALEXANDRE DE MORAES

povos e as comunidades em seus lugares de vida. A relação entre a interculturalidade e a pedagogia da alternância, somada à atuação de profissionais comprometidos científica e politicamente, proporciona a revisão constante do conhecimento científico, uma das premissas básicas da ciência, mas, acima de tudo, uma mudança epistemológica em relação aos saberes ancestrais de povos e comunidades que produzem conhecimento e têm demandado a dialogicidade na Universidade. Importante mencionar que, nesse processo de TU e TC, a universidade se faz presente nas comunidades em outro papel. Como dizem por lá: “é a primeira vez que a gente tem um(a) professor(a) da universidade que não vem fazer pesquisa ou trazer alunos para estagiar” ou “é a primeira vez que a gente tem alguém da universidade aqui”. E o “aqui” é em muitos lugares ao mesmo tempo. Vejamos: estamos realizando a formação da quarta turma do curso, sendo três no Campus de Altamira e uma flexibilizada no Campus de Soure, com entrada pelo Processo Seletivo Especial (PSE) de 45 sujeitos em cada turma. São indígenas que vivem em área urbana e aldeias, quilombolas, agricultoras/es familiares, pescadoras/es tradicionais, mulheres do movimento negro, ribeirinhas/os e extrativistas, da região do Xingu, da Transamazônica, do Tapajós, dos campos e das flores-

tas do Marajó, da região tocantina e do nordeste paraense, abrangendo diretamente mais de 45 comunidades, distribuídas por quase todo o Estado do Pará. Territórios múltiplos e diversos que a UFPA “alcança” por meio dos sujeitos coletivos que acessaram o ensino superior no curso de Etnodesenvolvimento. Hoje, passados oito anos de funcionamento do curso, com a primeira turma formada e a segunda aguardando a formatura, podemos identificar alguns de seus impactos. As comunidades fortaleceram suas organizações e as lutas de seus grupos de pertença; estão atuando na docência e gestão das escolas indígenas, quilombolas e do campo, assim como na gestão de órgãos governamentais e não governamentais de educação escolar indígena, educação do campo e de defesa dos direitos humanos; criaram disciplinas específicas nos currículos da Educação Básica de seus municípios, como a de Educação Quilombola, em Salvaterra/PA; acessaram programas de pós-graduação, além da inserção da área do curso em concursos públicos. Por sua vez, a entrada e a permanência de sujeitos étnica e culturalmente diferenciados têm provocado transformações na UFPA, como a diversificação do PSE, para atender às diversas políticas e aos seus públicos; a revisão dos universalismos burocráticos instituídos e a construção da diferença em suas políticas de ensino, pesquisa e extensão, entre outras. Em tempos de crise política e perseguição aos direitos humanos, o reconhecimento de um curso voltado para a diversidade é uma grande vitória. Mas a luta continua, sempre! Francilene de Aguiar Parente - Professora do curso de Etnodesenvolvimento da UFPA e coordenadora nos períodos de 2009-2011 e 2015-2017, integrante do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia e Patrimônio e vice-coordenadora do Grupo de Estudos Afro-Brasileiro e Indígena (GEABI)/ UFPA. faparente@ufpa.br


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Agricultura

Alternativa para o inverno Em Abaetetuba, fruto do miriti é fonte de renda na entressafra do açaí ACERVO DA PESQUISA

Nicole França

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município de Abaetetuba é reconhecido como um dos maiores produtores de açaí no Pará. Entretanto, durante o inverno amazônico, quando o produto se encontra fora de safra, a população abaetetubense busca um substituto, o miriti. A dissertação Miriti: o açaí do inverno? Extrativismo, comercialização e consumo de frutos de Mauritia flexuosa L.f. no estuário amazônico, defendida por Fagner Freires de Sousa, no Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/ INEAF/UFPA), mostra como isso acontece. A pesquisa, orientada pelo professor Flávio Bezerra Barros, foi realizada em duas comunidades da ilha de Sirituba, em Abaetetuba, com o intuito de analisar o potencial do extrativismo do fruto de miriti, praticado por famílias ribeirinhas. Durante a pesquisa de campo, Fagner Freires acompanhou todas as atividades referentes ao extrativismo, ao beneficiamento e à comercialização do miriti. “O miriti se mostra importante para a população local não só no campo simbólico e cultural, revelado pela relação que é estabelecida entre os extrativistas e as

palmeiras, que recebem nomes de pessoas importantes da família e são ‘respeitadas’, garantindo a conservação da biodiversidade na várzea, como também no campo econômico e social, uma vez que o extrativismo do miriti, durante o inverno, além de ser fonte de alimento, é a principal fonte de renda de mais de 85% das famílias ribeirinhas que praticam essa atividade”, afirmou o pesquisador. As atividades relacionadas ao extrativismo do miriti são realizadas por homens, mulheres e crianças maiores de seis anos. As tarefas que

requerem grande esforço físico são divididas de acordo com o gênero e a idade. O fruto do miriti é utilizado na alimentação diária da população de Sirituba, sobressaindo o consumo do fruto como mingau e como substituto do açaí. “Rotineiramente, também se consome o fruto in natura ou ‘mole’, após ser submetido a tratamento térmico para amolecimento da polpa”, explica Fagner Freires. O mingau também é comercializado por vendedores naturais da região das ilhas, de onde vem o costume passado de geração em geração.

Pesquisa foi realizada em duas comunidades na ilha de Sirituba, em Abaetetuba (PA).

Relação de reciprocidade garante preservação da palmeira De acordo com Fagner Freires, a relação entre os ribeirinhos e a palmeira do miriti é uma relação de reciprocidade. É comum as pessoas dizerem que o miriti é uma palmeira santa, e é essa relação que garante a conservação da palmeira nas florestas de várzea da região, uma vez que a reciprocidade requer a retribuição pelo que a palmeira lhes dá; assim, elas são mantidas mesmo diante da pressão pelo

aumento da produção do fruto. O mercado extrativista de Abaetetuba é concentrado no açaí, mas, durante o inverno, o miriti representa 80% da renda mensal dos extrativistas-beneficiadores de Sirituba. O fruto também gera certa autonomia aos ribeirinhos. Segundo Fagner, a comercialização do miriti promove uma movimentação estimada em R$ 172 mil. O pesquisador constatou que os extrativistas que comer-

cializam somente a “massa” (polpa in natura do fruto) para clientes fixos conseguem, em média, uma renda mensal de R$ 1.179,97, enquanto os que comercializam na feira conseguem entre R$ 540,00 e R$ 748,03 por mês. “A renda média total da safra do miriti varia entre R$ 2.160,00 e R$ 4.719,88, por família. Tais valores aproximam-se dos registrados na comercialização do açaí em ilhas do estuário amazônico que apresentam sis-

temas com manejo moderado”, esclareceu Fagner. “Normalmente, os circuitos de comercialização se formam a partir de relações sociais estabelecidas entre os diversos atores que os compõem e contam com a influência de laços de amizade e parentesco. Dessa forma, predominam os laços sociais e os valores éticos que possibilitam firmar e manter prósperas as trocas comerciais”, conclui.


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Infância

O “uivo” das balseiras Artigo revela a exploração sexual na região do Marajó Armando Ribeiro

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uando as embarc a ç õ e s p a ssa m devagar, as meninas, geralmente em grupo, pegam suas canoas e remam atrás. Ao se aproximarem da balsa, elas ‘uivam’ para alertar os homens da embarcação e lançam uma corda para que eles possam ajudá-las a subir”. A declaração de Diego Alex de Matos Martins, mestrando em Segurança Pública (PPGSP/

IFCH/UFPA) e membro do time Enactus UFPA, revela a prostituição de crianças que vivem às margens dos rios da região do Marajó, chamadas pelos próprios ribeirinhos de “balseiras”. Para entender como ocorre esse processo, o pesquisador, em parceria com Monique Loma Alves da Silva, especialista em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins, escreveu o artigo Apuração dos casos

de violência sexual: garantia ou violação de direitos de crianças e adolescentes?, que recebeu o Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos. “A premiação foi no Rio de Janeiro e nosso principal objetivo era levantar essa discussão nacionalmente. Queríamos que as pessoas enxergassem a necessidade de políticas públicas especiais para a região”, conta Monique Loma. Os autores realizaram um estudo sobre os dados

socioeconômicos da região, disponibilizados no Pacto pelo Pará de Redução da Pobreza e no Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Pará (Idesp). Monique Loma diz que o contato com as crianças e seus familiares veio de seu trabalho como assistente social na região, enquanto Diego Martins é servidor da Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes do Tribunal de Justiça do Pará e avalia mais a ação estatal nesses casos.

Troca sexual por pacotes de leite ou óleo diesel No artigo, os autores relacionam a vulnerabilidade econômica e social da população do arquipélago com a exploração sexual. Segundo a assistente social, na época do levantamento dos dados, cerca de 60% da região ainda pertencia à área rural, com o comércio pouco desenvolvido. “Na maioria dos casos, as ‘balseiras’ vão até as embarcações para vender produtos agrícolas de suas famílias. Lá, elas recebem todo tipo de propos-

ta. Algumas relataram fazer a troca sexual por pacotes de biscoitos, de leite ou de óleo diesel. Como muitas áreas não têm energia elétrica, as famílias precisam do combustível para o motor que faz funcionar os eletrodomésticos”, explica Monique Loma. A pesquisadora ainda enfatiza que 37,3% da comunidade da ilha vive na extrema pobreza, com R$70 por mês. Para ela, esse fato vai determinar a relação entre a fa-

mília e a realidade das “balseiras”. “Essa exploração já foi enraizada na região, é cultural. Quando conversei com as mães, percebi que, em alguns casos, vai passando de geração para geração. Ouvi relatos de meninas que diziam ‘minha avó era ‘balseira’, minha mãe também foi e eu sou. É assim que ajudo minha família’”, relata Monique. As famílias, explica Monique Loma, não veem aquilo como explo-


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ração sexual, “é uma oportunidade para eles, além de gerar renda, os pais olham para a prática como uma chance de as meninas se casarem com algum ‘marinheiro’ e ter em uma chance melhor na cidade”. A pesquisadora afirma que isso vai influenciar diretamente as poucas denúncias que são registradas. “Quando contamos à família o que está acontecendo, o que essa atitude gera, percebemos que eles não tinham noção sobre a legislação ou sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Jamais poderiam fazer uma ocorrência, pelo simples

fato de aquilo ser o cotidiano deles, não um crime”, revela a assistente social. Monique se deu conta do quanto a situação é delicada ao perceber que as meninas já naturalizaram esse comportamento. “Foi uma surpresa ver que, para elas, aquilo era brincadeira. Algumas afirmaram estar procurando o príncipe encantado. A naturalidade com que elas falavam de tudo foi um choque. Como eu poderia falar de violência sexual, de exploração, se elas nunca tinham ouvido esses termos?”, questiona.

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Para a pesquisadora, o caso das “balseiras” se difere, pois, aqui, o crime é realizado por pessoas desconhecidas da vítima, enquanto, na maioria dos casos, o abusador é alguém próximo da família, fala sobre carinho e de tudo ser uma brincadeira secreta. Segundo ela, essa atitude é chamada de “síndrome do segredo”, que precisa ser quebrada para que o crime seja apurado. “Esses abusos e explorações têm uma repercussão social. Existe uma relação de poder e credibilidade entre o depoimento da vítima e do criminoso”, compara.

Atendimento pode promover a revitimização Para Diego Martins, o olhar, nesses casos, quase sempre é de punição, limitando-se a punir o acusado com uma pena alta e esquecendo que a vítima é um sujeito ativo e de direitos. “Quando os casos chegam às delegacias, o abuso já ocorreu e as ações, a partir disso, serão de colocar as crianças para depor para acusar e reviver tudo aquilo. O Estado não costuma atuar na origem desses casos, como a pobreza, a falta de escolaridade, a necessidade de sobrevivência”, avalia. O pesquisador ressalta que as “balseiras” ainda são vítimas de danos secundários realizados pelo Estado. A vitimização primária se refere àquela causada pelo abusador, enquanto a secundária, explica

Diego Martins, é o agravamento dos resultados da violência sexual, também conhecido pelo processo de revitimização, motivado pela exposição e agressão emocional da criança ou do adolescente. O estudo procura entender como ocorre a atuação policial nesses casos e em que medida ela gera a revitimização. “A abordagem policial é muito difícil nessas situações, não é algo comum para eles. Muitas vezes, eles não tratam a vítima adequadamente, fazem perguntas constrangedoras sobre o crime, não se atentam às condições econômicas, de educação e cultura que geraram aquela violência. E isso acaba por violar, ainda mais, a integridade psicológica dessas

crianças, que, após esse contato e tendo noção do que passaram, acabam desenvolvendo dificuldades de relacionamentos familiares e sociais”, informa. Monique Loma destaca a atuação do Estado em relação às vítimas. Após as áreas vulneráveis serem identificadas, a assistência social atua em duas vertentes: a primeira é a de prevenção, em que são realizadas ações e palestras sobre os tipos de violência infantil e a importância da escolaridade. Já a segunda seria após o crime ter ocorrido. Nela se dá o atendimento psicossocial da criança e dos familiares, com a intenção de incluir essas pessoas em programas e serviços que as tirem desse ciclo de risco social.

PRiNCiPais sitUaçÕes de VioLação de diReitos eM 2011 Afuá: Abuso e exploração sexual, tráfico de drogas e tráfico de pessoas (adolescentes). Bagre: Abuso sexual. Breves: Abuso e exploração sexual, pedofilia,

abuso sexual contra mulher e pessoa com deficiência, violência psicológica intrafamiliar contra a mulher, violência psicológica contra a criança na escola, violência contra pessoas idosas e violência contra criança e adolescente.

Cachoeira do Arari: Violência doméstica e

sexual.

Fonte: SEAS/2012

Melgaço: Abuso e exploração sexual. Muaná: Abuso sexual, tráfico de drogas. Salvaterra: Violência física e atos infracionais cometidos por adolescentes. Santa Cruz do Arari: Abuso sexual e tráfico de

drogas.

São Sebastião da Boa Vista: Abuso sexual, gravidez precoce e violência intrafamiliar. Soure: Violência e abuso sexual e violência intrafa-

miliar.


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Surdez

Portas abertas para um novo mundo Reabilitação verbal é essencial para pacientes com implante coclear FOTOS ALEXANDRE DE MORAES

De acordo com a pesquisa, quanto mais cedo a criança receber o implante coclear, melhor será seu desempenho como ouvinte e falante.

Nicole França

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om o avanço da tecnologia e o desenvolvimento das pesquisas, o implante coclear (IC) para pessoas com surdez profunda está se tornando cada vez mais acessível. No entanto, apesar de ser uma tecnologia inovadora, o implante não garante a restauração completa da audição. Além disso, o fato de uma pessoa que realizou o implante estar escutando um som não significa que ela o compreende e sabe como atuar diante dele. Dessa forma, é necessária uma reabilitação específica para que os indivíduos que usufruem do IC possam se adequar a esse novo mundo ao qual estão sendo apresentados: o mundo do som.

Pensando nisso, a pesquisadora Fabiane da Silva Pereira elaborou a tese Contribuições da análise do comportamento para reabilitação verbal de crianças usuárias de implante coclear, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC/NTPC/ UFPA) e teve como orientador o professor Grauben José Alves de Assis. Em sua tese, Fabiane Pereira avaliou o desempenho de crianças com implante coclear como ouvintes e falantes. Durante a pesquisa, Fabiane verificou as dificuldades que se sucedem ao implante coclear e a necessidade de um programa de reabilitação verbal nos hospitais que oferecem o IC, uma vez que, sem a reabilitação, a criança perceberá os

sons, mas não saberá interpretá-los. “Desde o mestrado, eu venho estudando como o som vai ganhar um sentido para essas crianças. O nosso objetivo é criar um programa de reabilitação verbal para que os usuários de implante coclear possam usufruir o máximo possível do aparelho”, afirmou a psicóloga. A pesquisa é experimental e tem como objetivo analisar o comportamento linguístico de crianças com surdez profunda que utilizam o implante coclear. Para isso, foram verificados os efeitos do procedimento de Instrução com Múltiplos Exemplares (MEI) e os repertórios de naming. Também foi utilizada a metodologia de linha de base múltipla, na qual é realizada uma análise do antes e do depois da aplicação do procedimento.

o QUe É o iMPLaNte CoCLeaR ? O implante coclear é um dispositivo eletrônico que tem o objetivo de substituir as funções das células do ouvido interno de pessoas com surdez profunda. É um equipamento implantado cirurgicamente na orelha, o qual tem a função de estimular o nervo auditivo e recriar as sensações sonoras. Fonte: https://www. direitodeouvir.com.br/ blog/implante-coclear


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Metodologia apresentou 100% de aproveitamento O procedimento de Instrução com Múltiplos Exemplares (MEI) é uma estratégia de ensino que tem como objetivo facilitar a aprendizagem e instruir o indivíduo. Nele, são apresentados para o paciente um número grande de estímulos ou um número grande de tarefas com apenas um estímulo. No caso da pesquisa, foi realizado um estudo múltiplo de tarefas, no qual a criança usuária de implante coclear foi apresentada a um único estímulo. “Eu, primeiro, mostrava, por exemplo, a figura de uma bola e a criança devia agir como ouvinte e como falante, ou seja, ela tinha que apontar para a bola quando eu perguntasse onde está a bola, repetir ‘bola’ se eu pedisse, ela tinha que selecionar, entre várias figuras, a figura correspondente à bola. Então, nesse processo, a criança tinha várias tarefas para serem realizadas”, esclareceu Fabiane. Segundo a pesquisadora, os estudos feitos indicam que o procedimento MEI é eficiente para o ensino e tem produzido bons resultados. “No início do estudo, as crianças tinham um desempenho muito abaixo do esperado, elas não conseguiam dar nome para as coisas. Com o procedimento e mantendo a

motivação da criança, no final do estudo, já era possível observar um desempenho de 100% de acerto, ou seja, de 10 tentativas, ela acertava as 10. Na nossa avaliação, com esse desempenho, nós alcançamos o nosso objetivo. Tivemos sucesso em todas as crianças”, explica Fabiane. O naming é um fenômeno da aprendizagem que descreve o desenvolvimento da linguagem de crianças muito pequenas. Dessa forma, o naming também se configura como a habilidade das crianças de agir como ouvintes e falantes diante das relações e estímulos do mundo. Em vista disso, o naming é um estágio que, quando alcançado, a criança poderá aprender a ler e a desenvolver alguns aspectos mais complexos da linguagem. Fabiane Pereira ressalta que, durante os procedimentos, é muito importante o uso de um reforço, algo que motive a criança a participar, “eu precisei usar motivadores eficazes. Fiz um levantamento inicial para saber o que despertava a atenção de cada criança para que ela se engajasse na tarefa e voltasse no outro dia, até concluirmos”. De acordo com Fabiane, o fator de engajamento variava de adesivos a salgadinhos.

Processo exige persistência dos envolvidos De acordo com a pesquisa, o desenvolvimento verbal das crianças com implante coclear é indispensável. Elas devem ser inseridas em programas com fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, além de contar com ferramentas que contribuam para que a reabilitação aconteça. Entre essas ferramentas, está a música. Fabiane Pereira também declara que, quanto mais cedo a criança receber o implante coclear, melhor será o seu desempenho como ouvinte e falante. A reabilitação verbal foi fundamental para a inserção de Marcus Vinícius

Ferreira no mundo dos sons. Marcus nasceu surdo e realizou o implante coclear em 2010, quando tinha dois anos e oito meses. Ele já fazia reabilitação antes mesmo do implante, pois usava um aparelho de amplificação sonora. Após o implante, a reabilitação tornou-se mais eficaz. “No primeiro momento após o implante, ele ficou só captando as informações, mas não falava nada. Com a fonoaudióloga duas vezes por semana e em casa, nós fomos ensinando. Comprei material e brinquedos educativos para estimular. Foi um trabalho repetitivo e muito difícil. A fala não foi

um milagre, foi um trabalho de formiguinha”, lembra Fabiana Ferreira, mãe de Marcus. Para Fabiana, com a reabilitação, tudo foi ensinado e aprendido no tempo certo. Hoje, Marcus tem uma boa conversação, consegue cantar e leva uma vida normal. “Ele interage com todo mundo. Sempre que tem uma oportunidade, ele puxa assunto. Viajando, então, a pessoa conta a vida dela todinha para ele. Acredito que, sem o implante, a interação no dia a dia seria muito mais difícil e a vida seria mais complicada. Com o implante, é vida normal!”, afirma.

HosPitaL BettiNa FeRRo oFeReCe a CiRURGia Desde 2010, o hospital já realizou mais de cem procedimentos, sendo o único hospital da Região Norte do Brasil a oferecer a cirurgia. O HUBFS efetua uma seleção de pacientes para a realização da cirurgia, os quais devem atender a vários critérios nas áreas de Otorrinolaringologia, Fonoaudiologia, Psicologia e Serviço Social. O procedimento é integralmente ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, os candidatos devem ser referenciados por uma unidade de saúde do Pará ou de outro Estado brasileiro. Serviço: O Hospital Bettina Ferro fica no Campus Universitário Guamá, com acesso pela Avenida Perimetral, portão IV da UFPA, Terra Firme, Belém (PA). Mais informações: (91) 3201-7819. Fonte: http://www.bettina.ufpa.br/


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Entrevista

Norval Baitello Jr

“Educação não é mercado” Para Baitello, apenas o ensino público e gratuito transformará a sociedade ALEXANDRE DE MORAES

Thais Braga

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comunicação, tão desenvolvida tecnologicamente, distanciou as pessoas em vez de aproximá-las. Porque, afinal, tornou-se uma telecomunicação. Encontram-se, cada vez menos, as pessoas. Há menos olhos nos olhos”, afirma o doutor em Comunicação, professor Norval Baitello Junior, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que esteve, em agosto de 2017, em Belém para participar de atividades na Faculdade de Comunicação (Facom) e no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM). Conhecido pelo livro A maçã, a serpente e o holograma (Ed.Paulus, 2010), no qual apresenta uma teoria da mídia, Baitello tece importante interlocução com a obra do pensador Vilém Flusser, além de contribuir com estudos na área de semiótica. Com o Jornal Beira do Rio, refletiu sobre o tempo e sobre a ecologia da comunicação, bem como defendeu o ensino público gratuito.

Conceitos irmãos Comunicação e tempo são conceitos irmãos. A comunicação pressupõe o tempo e, da mesma forma, cria o tempo, uma vez que toda comunicação visa à sincronização social. Se você está aqui, nesta hora, e eu não estou, não haverá comunicação. Para romper essa condição espacial e responder ao nível de complexidade das sociedades modernas, a comunicação desenvolveu ferramentas de sincronização. O tempo é, portanto, matéria-prima da comunicação. O tempo social é um produto da comunicação. As narrativas são parte importante na construção do tempo, desde as narrativas orais até as narrativas registradas em suportes digitais e/ou eletrônico–escritas, criptográficas, televisivas.


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Vilém Flusser Flusser é um pensador brasileiro. A parte mais importante da sua produção intelectual foi desenvolvida no Brasil. Vejo-o como um profeta das novidades que aconteceram depois de sua morte, há 26 anos. Recentemente, Flusser vem sendo lido no mundo todo. Nós conseguimos levar para São Paulo, em parceria com a Universidade das Artes de Berlim, os arquivos digitalizados com a obra que o autor reuniu a vida toda, por meio do Projeto de Pesquisa Constituição do Arquivo_Vilém_Flusser_São_Paulo. Até então, os brasileiros que quisessem pesquisar Flusser precisavam ir para a Alemanha.

Comunicação As ciências da Comunicação são um jovem saber em expansão acelerada tanto no aspecto teórico-metodológico quanto na área mercadológica, isto é, a comunicação como um negócio. Flusser não é o único, evidentemente. Há outros autores importantes escrevendo sobre a Comunicação – na área da Medicina, da Psicologia, da Biologia, entre outras. Os primeiros escritos de Flusser abordaram uma arqueologia da Comunicação. Por exemplo, o autor tem escritos sobre a peleologia, ou seja, a ciência do Pelé. Por isso os textos de Flusser são, em certa medida, divertidos.

Ecologia da Comunicação Quando falamos de ecologia, falamos de ambiente. Não necessariamente um ambiente natural, que envolve a biosfera, e sim, um ambiente social. Na Comunicação, dependendo das condições, o ambiente sofre impactos negativos ou positivos. Precisamos, cada vez mais, adotar posturas ecológicas. Saber, por exemplo, quais os benefícios e os danos

que o uso de um aparelho celular pode causar numa criança, ou quais os benefícios e os danos que essa onda de youtubers pode causar nos adolescentes. Essa ciência que calcula ou que tenta prever os possíveis impactos em determinado ambiente é uma ciência que está para ser feita.

Alteridade A comunicação, tão desenvolvida tecnologicamente, distanciou as pessoas em vez de aproximá-las, porque, afinal, tornou-se uma telecomunicação. Encontram-se, cada vez menos, as pessoas. Há menos olhos nos olhos. É muito mais fácil e cômodo, hoje em dia, enviar um whatsapp. Esse distanciamento criou uma cultura do isolamento. Isso representa o grande risco de a comunicação não contribuir para a alteridade. O recente fenômeno do ódio nas redes sociais evidencia uma dificuldade em lidar com a diferença. Cada vez mais, as pessoas querem “mais do mesmo”, em vez de buscar enriquecimento com as dessemelhanças. Até na natureza, isso é péssimo, porque não contribui para a biodiversidade. Criados pela comunicação, os ambientes sociais também necessitam fornecer condições para que o um seja capaz de lidar com o outro. Quando isso não ocorre, as pessoas simplesmente desistem, eliminam o outro. A comunicação é fundamental para gerar diversidade. Quando há incomunicação, é preciso entender os porquês; impor limites, acordos e negociações para reestabelecer a convivência.

Amazônia A Ecologia da Comunicação poderia ajudar os estudos desenvolvidos na Amazônia, sobretudo em comunidades mais afastadas, analisando impactos dos meios digitais

nesses ambientes. Porém já há estudos que utilizam a ecologia da comunicação, só não empregam o mesmo nome. A única coisa que não se pode perder de vista é a noção de cenário. Nas disciplinas da Ecologia, são feitos cenários para 2050: o que acontecerá, no futuro, se continuarmos a utilizar o petróleo do jeito que utilizamos hoje. Isso, nós da comunicação, precisamos aprender com eles e desenvolver uma genealogia e uma futurologia.

Flusser e Warburg Nesse livro, publicado pela primeira vez em 2010, trato um pouco da obra de Vilém Flusser, no entanto falo, também, sobre um pensador alemão que existiu no começo do século XX e foi totalmente esquecido: Aby Warburg. Ele foi um pensador da imagem, foi a pessoa que melhor entendeu a questão da visualidade e suas transformações ao longo da história da humanidade. Warburg é o inspirador da teoria sobre o impacto, segundo a qual toda imagem gera um grande impacto, uma vez que somos animais que têm o sentido da visão como sentido de alerta. Tudo o que vemos nos chama atenção. A explosão da visualidade no mundo contemporâneo, de forma que não conseguimos estar em um lugar sequer em que a imagem não chegue até nós, causa impacto nesta e nas futuras gerações. Aby Warburg ensina-nos a lidar com os ambientes que as imagens criaram ao longo do tempo. Chamo de imagem tudo o que é visual, inclusive a escrita. Se vamos perder a alfabetização ou se vamos perder a capacidade de ler, por exemplo, são aspectos com os quais precisamos lidar. Na Europa, isso já acontece. Na Alemanha, há pessoas que concluíram sua escolaridade e não cultivam o hábito de ler. Só leem o jornal diário, normalmente com informações

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superficiais. O Bild é um jornal alemão que possui tiragem diária de sete milhões de exemplares e suas matérias são de quatro linhas – algo semelhante a um tuíte – e muitas imagens. Quando a matéria se apresenta com dez linhas, as pessoas só leem até a quarta. Isso vem sendo chamado de neoanalfabetismo. Entretanto esse jornal tem mercado – e o mercado é que possibilita sua existência. Precisamos saber o que o mercado nos oferece e entender se realmente queremos aquilo ou precisamos do que nos é ofertado. O sistema capitalista está aí não por nossa vontade. Quando fizermos valer a nossa vontade, vamos mudá-lo ou aperfeiçoá-lo para algo que nos leve mais em conta, ou transformá-lo em alguma outra coisa que seja mais benéfica para a humanidade. Do jeito como se encontra, o mercado está levando à destruição do planeta, não só à destruição física, mas também à destruição cultural, espiritual – sobretudo das novas gerações.

Crise nas universidades Venho de uma universidade confessional, porém, no começo da minha carreira, trabalhei no ensino público superior, no qual fui cassado por ter militância política. Sou um defensor ferrenho do ensino público e gratuito, porque somente esta forma de ensino – democrática e de livre acesso a todos – pode transformar a sociedade. Educação não é mercado, não é negócio. Educação é função do Estado. Há, hoje, grandes indústrias universitárias a preços acessíveis, porém me pergunto se há qualificação de verdade – que integre ensino, pesquisa e extensão – ou apenas formação para o mercado. Queremos indivíduos preparados para a vida, para construir um planeta melhor, que se entendam melhor e sejam mais felizes.


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História

Cadê o índio que estava aqui? Projeto discute representação indígena nos livros didáticos Renan Monteiro

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m setembro de 1969, período de Ditadura Militar, ocorria a implantação do ensino da disciplina “Educação Moral e Cívica” no currículo escolar, estabelecida por meio do Decreto-lei nº 869. Essa tentativa de apropriação da educação formal para impor os preceitos do regime foi uma experiência negativa e pode ser pensada como exemplo de parcialidade na educação. Falando especificamente do ensino da História na

atualidade, existem pesquisas nas universidades brasileiras analisando a educação formal no Brasil e problematizando-a em diversos aspectos. Na Universidade Federal do Pará, uma pesquisa com esse viés crítico foi coordenada pelo professor Mauro Cezar Coelho, intitulada As representações sobre índio e nacionalidade nos livros didáticos consumidos na Região Norte. Vinculado aos Programas de Pós-Graduação em História Social (PPGHIST/IFCH/ UFPA) e Currículo e Gestão de Escola Básica, do recém-criado

Núcleo de Educação Básica, o projeto teve como objetivo estudar a maneira como os povos indígenas são situados no ensino de História com base no estudo da literatura didática, considerando os livros didáticos aprovados pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e incorporados pelas escolas paraenses. “A narrativa histórica nos livros didáticos tem a pretensão de dar conta da nossa identidade, de apresentar a maneira como o Brasil se reconhece e é reconhecido. Então, analisar como qualquer

uma das personagens que constituíram a nação vem sendo representada nesses livros nos permite perceber de que maneira o Brasil é visto por meio da literatura didática”, explica o professor. A pesquisa se ocupou com livros didáticos produzidos desde 1996 até a última edição consumida do PNLD de 2011. Teoricamente, esses livros chegam a todas as escolas brasileiras. Analisá-los é ter a dimensão do que é ensinado nas escolas e do conhecimento formal a que boa parte desses estudantes tem acesso.

Após a Independência, índios desaparecem das narrativas De maneira geral, a pesquisa permitiu perceber como a história do Brasil é situada nesses livros didáticos. Verificou-se a abordagem sobre os índios antes da chegada dos europeus até a Independência. Desde os processos de Independência na América e, especialmente, no Brasil, os povos indígenas vão desaparecendo da narrativa didática e

perdem importância histórica. Ao analisar a forma como os índios são retratados nesses períodos, foram observadas duas perspectivas. Antes da chegada dos europeus, os índios são descritos como fora do tempo, sem uma trajetória histórica. Quando é analisada a narrativa durante a experiência da Colonização, os índios são percebidos em perspectivas NAYANA BATISTA

históricas, no entanto estão sempre respondendo a uma motivação europeia. “Antes da conquista, a narrativa pode estar se referindo a um índio no século VIII, X ou XIII e será o mesmo índio. Já na experiência da Colonização, o índio é tratado em perspectiva histórica, porém apenas reage às motivações dos povos europeus. É o europeu que modifica o território, submete e explora a natureza; suas ações têm desdobramento e história; e as dos índios, não”, ressalta Mauro Cezar Coelho. Outro aspecto percebido foi a generalização do termo “índio”. Sem levar em conta as especificidades de cada povo, eles são nominados pelo coletivo: “indígenas”, “nativos” e “povos”. Em contrapartida, os agentes europeus são identificados por seus nomes. De acordo com a pesquisa, vem se consolidando um roteiro único de eventos na História do Brasil, no qual uma série de agentes e espaços não tem lugar. São protagonistas da

narrativa o europeu, como personagem, e o Centro-Sul do Brasil, como região. A Cabanagem ou a economia gomífera, por exemplo, eventos estruturantes para a Região Norte, ocupam um espaço ínfimo. Desde a publicação da Lei 10.639/2003, que instituiu a inserção no currículo oficial da Rede de Ensino os conteúdos da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, há uma preocupação das editoras em incorporar outros agentes. “Infelizmente, esse aumento do espaço não tem significado uma mudança decisiva na maneira como os povos indígenas vêm sendo representados por essa literatura didática”, avalia o professor. De acordo com Mauro Coelho, o mérito da pesquisa é fazer com que as crianças, nos diversos rincões do Brasil, se reconheçam na narrativa dos livros didáticos. “Nosso objetivo é oferecer uma crítica construtiva e indicar que esse currículo precisa ser problematizado, revisto e criticado”, finaliza.


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Internet

O poder que vem das redes A mobilização popular durante a elaboração do Código Florestal REPRODUÇÃO

Armando Ribeiro

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internet produz cada vez mais plataformas capazes de gerar interação entre os cidadãos, e as redes sociais vêm se consolidando como um palco de debate em que milhões de pessoas podem atuar. Para entender a força dessas novas mídias e o papel delas na promoção de transformações sociais, o jornalista Alexandre Gibson Junior escreveu a dissertação As redes sociais on-line como arenas de embate e o papel da campanha ‘Veta, Dilma!’ no processo de elaboração do novo Código Florestal Brasileiro, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU/ NAEA/UFPA). A pesquisa, orientada pelo professor Silvio Lima Figueiredo, baseou-se nos debates sociais ocorridos durante a elaboração do novo Código Florestal Brasileiro (CFB) e na contribuição dos movimentos “Floresta Faz a Diferença” e “Veta, Dilma!”, ambos com grande popularidade nas redes sociais, para as discussões que estavam ocorrendo. “Chamou atenção a forma como

a internet tratou do assunto, que não estava sendo abordado nas mídias tradicionais, como a televisão. Com a repercussão no facebook, o assunto ganhou visibilidade. Procurei entender se nesse movimento ocorreu algum debate e se ele aproximou as pessoas do assunto”, explica Alexandre Gibson. A reformulação do CFB foi construída pela bancada ruralista e pretendia amenizar as leis ambientais. Durante o processo de elaboração, surgiram várias manifestações de Organizações Não Governamentais contrárias à proposta. “Foram realizadas assembleias públicas para ajudar na elaboração do projeto de lei. Analisei todas elas e percebi que a participação popular foi focada, ou seja, era composta, em sua maioria, por pessoas ligadas aos ruralistas. Quando a proposta foi para votação, as ONGs defenderam a necessidade de um debate mais amplo”, conta o autor. A pesquisa ocorreu no período de 26 de abril de 2012, primeiro dia após a aprovação do Código Florestal na Câmara dos Deputados, até o dia 25 de maio de 2012, dia em que a então presidente Dilma Roussef

vetou 12 artigos do novo Código Florestal. Durante esse período, os movimentos sociais criaram diversas estratégias de mobilização pela internet, como páginas no facebook, divulgação da hashtag “Veta, Dilma!”, que chegou a ser o assunto mais comentado do twitter por dias e contou com o apoio e a participação de celebridades.

Analisar essas publicações e como o público interagiu com elas foi a principal base do estudo. “O trabalho utilizou para avaliação a Análise de Conteúdo, que permitiu traçar um perfil do movimento e de seus participantes. Foram analisados 98 posts e 2.848 comentários das páginas no facebook ‘Floresta Faz a Diferença’ e ‘Veta, Dilma!’”, explica o jornalista.

Posts participativos foram os mais compartilhados Os 98 posts foram divididos em cinco categorias: Informativa, Acusativa, Panfletária, Participativa e Propagandista. Dessas, a categoria mais compartilhada foi a Participativa (63%), que mostrava as campanhas realizadas fora da rede, como passeatas, eventos e fotos de artistas em apoio. A análise dos comentários foi dividida em dois pontos principais, contra e a favor do veto. “Os argumentos de quem era contra tiveram um caráter amedrontador, como ‘se

não aprovar, o Brasil vai passar fome’. Já quem defendia o veto falava em preservar a natureza do desmatamento com discursos alarmistas sobre a perda da Amazônia e a devastação total da floresta”, revela Alexandre Gibson. Para o pesquisador, o papel das redes sociais não foi influenciar a reformulação do código, mas chamar atenção da sociedade para o que estava acontecendo e provocando destaque em outras mídias. “No

final, prevaleceram os interesses econômicos. As conquistas foram pontuais, com vetos parciais apesar de toda a repercussão. Esse caso exemplifica o atual papel da internet, de falar sobre questões que, muitas vezes, não são abordadas pelas mídias tradicionais, ampliar debates e trazer novas referências. Isso ocorreu no caso do CFB e continua ocorrendo com as reformas da Previdência e Trabalhista”, afirma. Alexandre ressalta o potencial dessa nova mídia. “A

grande questão é que as mídias tradicionais foram apropriadas pelo capital e perderam grande parte desse papel. Elas trabalham olhando para o que pode ou não afetar seu público. Já na internet, hoje, não há esse controle. Lá podem surgir diversos movimentos que vêm pressionar o debate, levantar bandeiras que não teriam espaço em outro lugar”, afirma.

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Diversidade

Das filhas da chiquita ao direito de ser Pesquisa faz análise da trajetória do Movimento LGBT no Pará Renan Monteiro

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a noite do segundo sábado de outubro, véspera do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, ocorre a Transladação, um dos eventos mais tradicionais que antecedem a grande procissão. A Transladação faz o percurso do Colégio Gentil até a Catedral da Sé, no bairro Cidade Velha. Após a passagem dos romeiros, acontece, no Bar do Parque, na Praça da República, a Festa da Chiquita. Tombada, desde 2004, como Patrimônio Cultural Brasileiro e parte do Círio de Nazaré pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural (IPHAN) e também reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (Unesco), a

Festa da Chiquita teve início na década de 1970, marcada pela irreverência. Para os estudiosos, sua principal característica é ser reconhecida como o embrião do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBT) em Belém. Em 2016, foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS/ICSA/UFPA) a dissertação Para além das plumas e paetês: a atuação do Movimento LGBT de Belém-PA no enfrentamento à LGBTfobia. Esta pesquisa mostrou como a Festa da Chiquita criou a base para o ativismo em prol das causas LGBTs. Elton Santa Brígida do Rozário teve como desafio analisar o processo histórico dos movimentos de defesa da livre orientação sexual

e de gênero, procurando analisar também ações governamentais, como a implementação de políticas públicas de combate à LGBTfobia no Brasil e em Belém, e apontar os avanços, as conquistas e os desafios na busca por direitos. O estudo foi orientado pela professora Sandra Helena Ribeiro Cruz. O procedimento metodológico dividiu-se em pesquisa documental e de campo. Ocorreu o mapeamento dos movimentos LGBT do Pará e a participação nas atividades como encontros, seminários e reuniões. Alguns grupos mapeados foram o Grupo de Homossexuais do Pará (GHP), o Grupo de Resistência de Travestis e Transexuais da Amazônia (GRETTA), o Grupo Pela Livre Orientação Sexual (APOLO) e Orquídeas.

Primeira década do século XXI foi de conquistas A pesquisa observou como as lutas sociais LGBT, em âmbito nacional, e a implementação de políticas públicas estão relacionadas com o processo de redemocratização brasileira. Nesse momento histórico (pós-ditadura), os movimentos tiveram o fortalecimento das conferências e dos conselhos para a construção de pautas em comum e obtiveram maior interlocução com o governo, nas esfera municipal, estadual e federal. No movimento LGBT do Pará, houve dois momentos de grande relevância em termos de organização e de ressignificação de suas identidades políticas no final do século XX: a manifestação cultural, política e social Festa da Chiquita, em período anterior a 1988, e a realização do Congresso da Cidade (1997-2004), projeto da gestão do ex-prefeito Edmilson Rodrigues, o qual promovia o diálogo com a população belenense, incluindo os movimentos sociais. “A partir da primeira década do século XXI, grandes conquistas

foram alcançadas pelos movimentos LGBT, em âmbito nacional e local. Houve ações, programas e projetos governamentais de combate à LGBTfobia, no entanto a década de 2010 também acumula retrocessos históricos’’, avalia Elton Santa Brígida do Rozário. Brasil sem Homofobia – Uma grande conquista foi o plano de 2004 a 2007, da Secretaria Especial em Direitos Humanos, que, por meio do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), criou o Programa Brasil sem Homofobia, propondo uma articulação entre as áreas de saúde, educação, segurança, justiça e cultura. Todavia a pesquisa indica que o fortalecimento do Programa dá-se quase somente entre as instituições não governamentais e os movimentos sociais. No Pará, em 2008, houve um avanço com a criação do Conselho da Diversidade Sexual do Estado do Pará (CEDS). O Conselho é formado

por 12 membros titulares, com representantes do poder público e do movimento LGBT. Elton observa que, “na lógica da construção das políticas públicas LGBT na sociedade paraense, o CEDS foi um avanço histórico, mas, a permanência e o amadurecimento dele são um desafio para o movimento”. De acordo com a pesquisa, as conferências LGBT realizadas de 2008 a 2016 e as Paradas do Orgulho na cidade tornaram-se referências para a construção de políticas públicas de enfrentamento à discriminação e estratégias de organização do movimento no Pará. “A partir das conferências, o movimento construiu mecanismos de crítica aos Poderes Executivo e Legislativo e ficou unificado. Já as paradas são um símbolo central da histórica luta do movimento LGBT e da manifestação identitária”, afirma Elton do Rozário. A legislação em prol de pessoas LGBT no Pará e no Brasil é composta por políticas estratégicas


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que podem ser modificadas conforme as mudanças dos governos. Neste sentido, o pesquisador faz um alerta: “não existe nenhuma lei que

garanta o enfrentamento à LGBTfobia, assim como um marco legal que defina a criminalização dos violadores dos sujeitos LGBT”. Em 2015, houve o arqui-

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vamento do Projeto de Lei 122/2006, cujo objetivo é criminalizar a violência (física ou psíquica) por orientação sexual e identidade de gênero.

Para Elton do Rozário, a sexualidade humana e a concepção binária de gênero (masculino e feminino) refletem uma construção social e histórica, tendo como referência as normas de relações heterossexuais. Instituições sociais, como família, igreja, escola e trabalho, normalizam posições que as pessoas podem ou não ocupar, surgindo uma espécie de cartilha normativa, com deveres e “bons costumes” cercados por dogmas intolerantes com aqueles que divergem desses padrões. Lyah Santos Corrêa é uma mulher trans de 36 anos. Para ela, falar de LGBTfobia é uma questão muito complexa, pois existem as especificidades e os estigmas para cada indivíduo. “No meu caso, por ser uma mulher trans, a questão se localiza no gênero e não meramente na orientação sexual. Posso dizer que essa relação com o meio social foi muito perversa, tanto que passei a minha infância e adolescência ‘debaixo da mesa’. A minha transição de gênero começou na vida adulta, quando eu estava na universidade e me aproximei de grupos LGBTI+”, revela a psicóloga. Em 2016, foi assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff o Decreto nº 8.727, que permite o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais em toda a administração pública federal. Hoje, uma das principais pautas do movimento das pessoas Trans é desburocratizar o registro do nome civil. “Percebemos que nem o nome social está dando conta. Nós queremos os nossos nomes em documentos como a própria carteira de identidade, passaportes e título de eleitor, o que significa o reconhecimento de nossas existências enquanto pessoas cidadãs”, afirma Lyah. Formada em Psicologia pela UFPA, Lyah Corrêa participou do Orquídeas (2007-2009), um dos primeiros movimentos em defesa da diversidade sexual dentro da Universidade. Atualmente, a psicóloga não participa assiduamente de nenhum coletivo, mas reitera a importância da participação, principalmente para os/as mais novos(as). Elton do Rozário ressalta o protagonismo LGBT na conquista de direitos destacando a relação de diálogo e pressão dos movimentos com o Estado: “Os movimentos estão nas ruas, nas paradas e nas campanhas educativas na busca por uma sociedade mais justa. As atuais políticas públicas e sociais não foram alcançadas por iniciativas estatais, mas por inúmeras lutas”.

ALI FARID / FREEIMAGES

Padrão normativo não permite divergência

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Meio ambiente

Barcarena sob risco permanente Laquanam busca soluções para minimizar danos às comunidades Walter Pinto

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o final de fevereiro deste ano, o município de Barcarena, na Região Metropolitana de Belém, voltou ao noticiário em razão de mais um caso de contaminação ambiental protagonizado por uma das empresas do Polo Industrial, em que são realizados os processos de industrialização, beneficiamento e exportação de caulim, alumina e alumínio, entre outros produtos. Desta vez, as imagens assustaram não só os moradores das comunidades diretamente afetadas – Bom futuro, Vila Nova e Burajuba – mas também o público que viu as imagens na televisão e nas redes sociais mostrando a enorme área alagada por lama vermelha proveniente do processo de obtenção da alumina. Nos últimos dez anos, Barcarena vem registrando a média de um caso de contaminação ambiental por ano. Muitos dos problemas ambientais em Barcarena poderiam

ter sido evitados se as indústrias que atuam com processamento de minérios facilitassem o acesso dos pesquisadores do Laboratório de Química Analítica e Ambiental da UFPA, o Laquanam, que vem realizando pesquisas e propondo soluções naquele Polo Industrial desde 2007, tendo acumulado, durante décadas, bastante experiência, apesar da política de má vontade em relação ao laboratório da UFPA. Naquele ano, uma bacia, da multinacional francesa Imerys Rio Capim Caulim, rompeu-se e deixou vazar milhares de litros de rejeitos ácidos nos rios Curuperê, Dendê, Pará e em outros rios, oriundos do processamento do caulim, a matéria-prima empregada na fabricação de pigmento, utilizada em diversos produtos, como tintas, cerâmicas, porcelana, cosméticos, plásticos, borracha, entre outros. Dois anos depois, houve um transbordamento de efluente de lama vermelha de uma barragem da Hydro Alunorte. A pluma de contaminação se distribuiu

pelo rio e, por refluxo de maré, atingiu Abaetetuba, chegando até a região das ilhas. De acordo com a coordenadora do Laquanam, professora Simone de Fátima Pereira, as indústrias não fazem nenhum tipo de tratamento avançado para a retirada dos metais empregados no processamento da bauxita e do caulim, por exemplo, a osmose reversa. O que fazem é o tratamento de efluente para a correção de pH e turbidez. A Hydro usa ácido clorídrico para neutralizar a soda cáustica; e a Imerys RCC, hidróxido de sódio para neutralizar o ácido sulfúrico. “Como a Hydro produz rejeito alcalino e a Imerys, rejeito ácido, propus que usassem uma bacia única, porque ácido sulfúrico com soda cáustica se neutralizam, evitando, assim, pelo menos que a população e a biota sofressem com os danos causados pelo lançamento de efluentes altamente corrosivos no meio ambiente”, explica Simone Pereira.

Empresas operam com bacias sem tratamento Segundo a professora Simone Pereira, cada empresa continua usando suas bacias sem o devido tratamento. A Hydro, que operava com uma grande bacia de 2,2 quilômetros de comprimento por 1,2 quilômetro de largura, construiu uma segunda, também de grandes dimensões. Vazamentos ou transbordamentos, em escala menor, continuaram acontecendo. Em fevereiro passado, um novo vazamento ocorreu causando pânico entre moradores das comunidades próximas aos Depósitos de Resíduos Sólidos (DRS), como são chamadas as bacias construídas para receber os rejeitos do processamento da bauxita. Após a denúncia de moradores, uma comissão parlamentar da Câmara Federal esteve em Barcarena para tomar ciência do ocorrido. A

professora Simone acompanhou a comissão. Coube ao Instituto Evandro Chagas atestar a contaminação. Após a intensa pressão causada pela divulgação na imprensa e nas redes sociais, o Tribunal de Justiça do Pará determinou que a Hydro Alunorte reduzisse sua produção em 50%, além de embargar uma das bacias da empresa. Em caso de descumprimento, a empresa teria que arcar com multa diária de R$ 1 milhão. Durante a visita à área afetada, a coordenadora do Laquanam constatou na bacia DRS2, que não deveria estar em operação, o depósito indevido de lama vermelha, feito pela Hydro. Segundo a pesquisadora, a empresa não possui estudo e relatório de impacto ambiental específico para a sua construção. “A empresa desmatou a área onde ins-

talou a bacia, próximo à nascente do rio São Francisco, desconsiderando o fato de que ali é uma área de proteção ambiental”, afirma. Simone Pereira também fez parte de uma comissão de órgãos públicos que se reuniu com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade. “O secretário foi taxativo em nos dizer que a empresa não precisava daqueles estudos, pois tinha licença expedida na década de 1980 para construir duas bacias. Ora, naquela época, nem existia Lei Ambiental no Brasil. Com a evolução das leis ambientais e com a expansão da empresa, o papel das autoridades era submeter a empresa à nova ordem ambiental”, diz a pesquisadora. A atuação negligente do Estado também tem contribuído para tornar Barcarena uma autêntica bomba-relógio.


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IGOR BRANDÃO / AG. PARÁ

Pesquisas atestam contaminação em água e cabelo Entre os anos de 2012 e 2014, o Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam) realizou um estudo dos níveis de metais em água de consumo em localidades do município de Barcarena, cujos resultados registraram a contaminação por elementos tóxicos, como chumbo, alumínio, cádmio e bário, em média muito acima das permitidas pela Portaria nº 2.914/2011, do Ministério da Saúde. Por solicitação do Ministério Público Federal, o Laquanam realizou análise em 118 amostras de água de consumo de 26 localidades, incluindo Barcarena, Vila do

Conde e Vila dos Cabanos, onde o adensamento populacional é maior. A presença de metais tóxicos como o chumbo, encontrado na água de consumo de 24 das 26 localidades de Barcarena, aponta para o risco de graves doenças, podendo afetar as funções cerebrais, o sangue, os rins, o sistema digestivo e o reprodutor, além de causar câncer. “Os moradores de Barcarena estão tomando água contaminada há bastante tempo. É preciso que se tome alguma providência para mudar o quadro de risco a que esta população está sendo submetida por consumir água imprópria”, alerta Simone Pereira.

Igualmente perigoso para a saúde humana foi o resultado da pesquisa do laboratório para avaliar a presença de metais tóxicos em cabelo de 90 moradores de 14 comunidades do entorno do Polo Industrial de Barcarena. A população avaliada apresentou níveis de alumínios (cromo, ferro, manganês, níquel, chumbo, estrôncio e zinco) superiores aos encontrados em uma população não exposta. Da população avaliada, 80% dos indivíduos apresentaram níveis de chumbo acima de 10 mg/g. O chumbo esteve em níveis médios três vezes acima do controle.

governamentais e às empresas privadas. A coordenadora do Laquanam, p ro f e s s o r a S i m o n e Pe r e i r a , é g ra d u a d a e m E n ge n h a r i a Química (1982) e Licenciada em Química (1987) pela UFPA. Possui Especialização em Educação e Problemas Regionais (1989), pela UFPA, e Doutorado em Química, pela UFBA (1997). Atualmente, é professora titular do Instituto

de Ciências Exatas e Naturais da UFPA. Tem experiência na área da Química, com ênfase em Química Analítica e Química Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: poluição por metais tóxicos nos recursos hídricos da Amazônia; impactos ambientais causados por indústrias e mineradoras na Amazônia; presença dos elementos danosos à saúde de indivíduos na região amazônica, outros temas.

saiBa Mais O Laboratório de Química Analítica e Ambiental da UFPA foi criado em 2000. Seu objetivo é o desenvolvimento de pesquisa na área de química analítica e ambiental, a for mação de recursos humanos em níveis de graduação e de pós-graduação, além de sugerir, por meio de estudos científicos, alternativas para os problemas ambientais da Amazônia com os órgãos

Bacias para depósito de resíduos sólidos representam ameaça às comunidades próximas ao Polo Industrial de Barcarena.


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Resenha O marketing da Amazônia Walter Pinto

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té que ponto a Amazônia pode ser também uma construção do marketing publicitário e como este se apropriou dos elementos imaginários, naturais, culturais e sociais formadores da região para, por meio de uma linguagem especial, dada pela publicidade, instituir a Amazônia como marca, de nível global? Estas são duas das muitas questões analisadas no livro Marca Amazônia: o marketing da floresta, um denso e bem referenciado estudo originado da tese de doutorado do jornalista e publicitário Otacílio Amaral Filho, professor e pesquisador pertencente à Faculdade de Comunicação e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, da UFPA. Antes de tudo, convém definir o que se entende por marca, uma parte constituinte do marketing estratégico. “Significa não apenas um nome diferenciado ou um símbolo, como um logotipo, marca registrada ou embalagem conhecida para identificar os bens ou serviços de uma empresa. Ao longo do tempo, a marca agrega referências positivas determinadas pelo uso de seus

produtos, que lhes dão personalidade, capital e valor de mercadoria. A marca faz com que o consumidor distinga os produtos e se mantenha fiel no momento da compra”, como explica o autor. Aplicado a produtos industrializados voltados ao mercado, o significado de marca é mais facilmente entendido do que quando aplicado à região, a um espaço geográfico delimitado, como a Amazônia. A Marca AMAZÔNIA, assim, em caixa alta, como grafa o autor, não define um produto específico, mas um símbolo que agrega aos produtos elementos de alto valor mercadológico, entre os quais o desenvolvimento sustentável e a responsabilidade social. A narrativa midiática trata a Marca Amazônia como uma proposição em que a mídia se apodera do imaginário social e transforma-o em apelo para os seus anúncios. Ao contrário da delimitação física, a Marca Amazônia, como diz Luiz Aragón, professor e pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, na contracapa do livro, “não tem fronteiras; é o valor simbólico que ela representa o que aqui importa”. Para ele, “agregar o termo Amazônia é agregar valor ALEXANDRE DE MORAES

econômico aos produtos e serviços e uma forma de fidelizar aqueles consumidores que se identificam com o símbolo que a Amazônia representa: biodiversidade, desenvolvimento sustentável, meio ambiente, ecologia, índios, populações tradicionais, floresta, oxigênio, preservação, enfim, tudo aquilo que a mídia e o discurso político, certo ou errado, têm sido capazes de construir. A Marca Amazônia é, portanto, mais uma forma de invenção da Amazônia”. A Amazônia, há muito, está vinculada a um discurso planetário próprio da globalização. Em 2003, por exemplo, a revista Isto É publicou reportagem em que repercutiu pesquisa mundial entre consumidores sobre as marcas mais frescas em suas memórias. As respostas apontaram como as três principais a Coca-Cola, a Microsoft e a...Amazônia! A região nomeia uma infinidade de produtos e serviços em diferentes partes do globo. Não por acaso, a maior empresa norte-americana de vendas on-line do mundo escolheu a região para nominar-se. A Amazon. com é uma empresa transnacional de comércio eletrônico dos Estados Unidos, com sede em Seattle. O uso da Marca Amazônia possui diferentes significados de acordo com a estratégia de marketing empregada. O marketing social, por exemplo, busca agregar às empresas uma imagem positiva por meio de uma postura de responsabilidade social associada a ações afirmativas em comunidades e populações tradicionais. Em que pesem os avanços, o autor conclui que a proposição social não se concretiza, haja vista as populações continuarem a desempenhar papéis secundários, como coletores e fornecedores de matéria-prima às empresas.

“Na verdade – diz o autor –, a publicidade de marca omite os processos objetivos e a história social dos sujeitos e dos objetos para, por meio de uma instância social imaginária, impor melhor a ordem real de produção e exploração social.” Na outra ponta, o consumidor é induzido a pensar que, ao comprar um produto com a Marca Amazônia, está colaborando para o desenvolvimento dos moradores e das populações tradicionais da região. É o peso da marca agindo sobre o mercado. O livro de Otacílio Amaral perpassa por diversas formas de produtos amazônicos, para além dos industrializados, como as festas culturais. É o caso, entre outros, do Sairé, em Santarém, e do Boi de Parintins, no Amazonas, que foram perdendo o caráter ritualístico em favor de uma nova formatação como produtos simbólicos, no âmbito da mídia, cuja publicização lota os lugares de apresentação e insere-os num circulo vicioso nos moldes do calendário comercial, fomentado pela produção e pelo patrocínio da cultura. A minuciosa pesquisa desenvolvida pelo autor apoiou-se em uma grande quantidade de referências e conceitos. Ele próprio alude ao “uso exaustivo de conceitos” (pág. 217). Se a leitura exige do leitor atenção redobrada, ela também sistematiza o pensamento canônico sobre marketing, publicidade, propaganda, símbolos, produtos, mercado, Amazônia, populações tradicionais, entre outros temas, e oferece-se como fonte preciosa de referência para os estudiosos do marketing na região. Serviço – Marca Amazônia: o marketing da floresta. Otacílio Amaral Filho. Editora CRV. 254 páginas. À venda na Livraria da UFPA.


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A Histรณria na Charge

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