Beira 127

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ISSN 1982-5994

anos

UFPa • aNo XXX • N. 127 oUTUBro e NoVeMBro, 2015

Açaí protege contra danos causados por convulsões.

Páginas 12 e 13

Nazaré

Belém 400 anos

Praça Santuário

Comida de rua

Pesquisa revela história sobre as mudanças ocorridas no local.

Redes de fast food não ameaçam vendas de cachorro-quente nas esquinas.

Páginas 8 e 9

Páginas 16 e 17


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UniVeRSidAde FedeRAL dO PARÁ JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br direção: Prof. luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Alice Martins Morais, Brenda Maciel, Marcus Passos e Maria luisa Moraes (Bolsistas); Thais Braga (2.361-dRT/PA) e Walter Pinto (561dRT/PA) Fotografia: Adolfo lemos e Alexandre Moraes Fotografia da capa: Alexandre Moraes Ilustrações: CMP/Ascom Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: danilo Santos Atualização Beira On-line: Rafaela André Revisão: Elielson de Souza Nuayed e Júlia lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Secretaria: Silvana Vilhena Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares

Reitor: Carlos Edilson Maneschy Vice-Reitor: Horácio Schneider Pró-Reitor de Administração: Edson Ortiz de Matos Pró-Reitora de desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Edilziete Eduardo Pinheiro de Aragão Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Maria lúcia Harada Pró-Reitor de Extensão: Fernando Arthur de Freitas Neves Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitora de Planejamento: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Relações Internacionais: Flávio Augusto Sidrim Nassar Prefeito: Alemar dias Rodrigues Junior Assessoria de Comunicação Institucional - ASCOM/UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa, n.1 - Prédio da Reitoria - Térreo CEP: 66075-110 - Guamá - Belém - Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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epois de comprovar o efeito antioxidante do açaí, pesquisadores da Universidade Federal do Pará, agora, estão dedicados aos estudos que comprovem o efeito protetor da fruta contra as convulsões. Segundo a professora Maria Elena Crespo, as convulsões são características da epilepsia e de outros traumas cerebrais, como o AVC e as reações alérgicas. A pesquisa envolveu diversos laboratórios da UFPA e teve a parceria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Os resultados estão na reportagem “Açaí combate efeitos de convulsões”, assinada por Marcus Passos. Outubro já chegou e Belém prepara-se para viver mais um Círio de Nazaré. Nesse clima, o Beira do Rio traz as reportagens “O artesanato que vem de Abaeté”, fruto da pesquisa desenvolvida por Yngreth Moraes sobre a sustentabilidade dos brinquedos de miriti produzidos no município de Abaetetuba, e “Entre memórias, transformações e religiosidade”, escrita com base na pesquisa de Jeová Barros sobre a história da Praça Santuário, onde está localizada a Basílica de Nazaré. Ainda nesta edição: o artigo do professor Emmanuel Tourinho sobre a importância da Iniciação Científica para as universidades, as criações dos alunos de Engenharia da Computação e Engenharia em Telecomunicações para a disciplina Projetos de Engenharia III e informações sobre os projetos vinculados ao Programa Estudante Saudável, da Proex. Rosyane Rodrigues Editora

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Índice A Pesquisa e a Iniciação Científica na Formação Acadêmica .......4 Robótica, o conteúdo mais esperado ...................................5 O artesanato que vem de Abaeté .......................................6 Entre memória, transformações e religiosidade ......................8 Comunicação, meios e tecnologia ................................... 10 Açaí combate efeitos de convulsões .................................. 12 Assistência médica e nutricional ..................................... 14 O cachorro-quente nosso da esquina ................................. 16 Alianças e rupturas entre trono e altar .............................. 18 Com as pautas externas para o Beira do Rio, consegui aprimorar minhas técnicas fotográficas, quando me deparava com situações extremas e, por muitas vezes, críticas de iluminação. O contato diário com entrevistados me ajudou a entender o comportamento e as limitações de cada pessoa, quando posta em frente à câmara fotográfica. Toda essa experiência deu suporte para meus trabalhos autorais, na hora de materializar minhas ideias. Alexandre Moraes fotógrafo


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Fotos Alexandre Moraes

Opinião A Pesquisa e a Iniciação Científica na Formação Acadêmica

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treino em pesquisa é parte da formação esperada para todos os discentes na universidade. Na interação com o cotidiano da Ciência, o aluno familiariza-se com o conhecimento de ponta, aprende os métodos e a lógica da Ciência, exercita o pensamento crítico e pode alcançar uma compreensão mais clara da provisoriedade do conhecimento disponível. Esses repertórios, entre outros, serão essenciais para o seu futuro como cidadão e como profissional, em qualquer função que vier a exercer na sociedade, após graduar-se na universidade, seja uma função acadêmica, seja não acadêmica. Compreender, contribuir para o avanço e/ou apropriar-se continuamente dos resultados da pesquisa científica são requisitos para lidar, de modo eficiente, com os problemas e as exigências do mundo contemporâneo; em particular, são essenciais para o exercício de funções de liderança na sociedade. Para formar profissionais com esse perfil, a universidade oferece oportunidades variadas para a entrada no mundo da investigação científica. Seus grupos de pesquisa estão continuamente acolhendo interessados para o desenvolvimento de projetos inovadores – algumas vezes, com bolsas de Iniciação Científica, Mestrado e/ou Doutorado; seus programas de pós-graduação recebem visitas frequentes de investigadores de outras instituições brasileiras e estrangeiras, interessados no desenvolvimento de estudos em cooperação, com oportunidades de estágios para alunos e pesquisadores; e suas unidades acadêmicas e de gestão promovem regularmente treinamentos, conferências, cursos e oficinas que contribuem para um melhor aproveitamento dessas oportunidades. O Programa de Iniciação Científica (Pibic) é parte do sistema de formação para a pesquisa na universidade. Ele confere a esse processo uma dinâmica própria, organizando as atividades dos discentes e de seus supervisores em planos de trabalho bem definidos, integrados a projetos de investigação mais amplos. Cada plano de trabalho é desenvolvido por um aluno ao longo de doze meses, em um ciclo que se inicia sempre em agosto de um ano e encerra-se em julho do ano seguinte. Ao final desse ciclo, o aluno redige, sob

supervisão, um relatório final (preferencialmente, no formato de um artigo científico) e apresenta os resultados de seu estudo no Seminário de Iniciação Científica. No seminário, há sempre uma avaliação externa de alto nível, que contribui para o desenvolvimento contínuo do trabalho de pesquisa na instituição. Com essa dinâmica e organização, a Iniciação Científica é a atividade mais bem estruturada para treinar, de modo sistemático, o aluno de graduação no fazer científico. Além de importante para a formação na graduação, a Iniciação Científica é a base do sistema de pesquisa da universidade e nela são revelados e aprimorados os talentos de discentes que seguirão uma carreira acadêmica e/ou de pesquisa ingressando em cursos de pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado). Um pós-graduando que participou do Pibic cumpre, com maior desenvoltura, as atividades curriculares e mais prontamente conclui, com eficiência e presteza, o seu curso. Mas a Iniciação Científica, como outras ações de treino em pesquisa, é também dirigida àqueles que visam a uma carreira não acadêmica. Cada vez mais, o País precisa de profissionais bem formados em Ciência para atuar nos vários ambientes de produção, nos governos e nas organizações, em geral. Por reconhecer a importância estratégica do programa, a UFPA tem investido na expansão quantitativa e qualitativa do Pibic. O número de bolsas tem sido elevado todos os anos, ainda que o discente possa também participar do Pibic como voluntário. Anualmente, são promovidos cursos de redação científica e treinamentos para o uso do Portal de Periódicos Capes – um acervo extraordinário de quase quarenta mil revistas científicas à disposição de todos na universidade. O Seminário de Iniciação Científica e o treinamento para uso do Portal foram interiorizados e acontecem anualmente em todos os campi da UFPA. Nos últimos três anos, a UFPA tem ofertado o Estágio Pibic de Verão (EPV), uma oportunidade de estágio de trinta dias, em laboratórios das melhores instituições do País, propiciada aos discentes que se destacam no seminário. Muito ainda precisa ser realizado no Pibic da UFPA, em particular, para alcançar um contingente maior de discentes da graduação, mas as ações referidas já rendem muitos resultados importantes para a instituição. O número de bolsistas duplicou em seis anos; os avaliadores externos são unânimes em apontar o alto nível dos trabalhos apresentados no seminário; vários discentes têm conquistado prêmios em eventos nacionais e internacionais e a produção científica dos grupos de pesquisa da UFPA, a cada ano, alcança melhores indicadores. Os resultados principais, porém, são o horizonte de novas experiências aberto ao discente que ingressa na Iniciação Científica e as consequências disso para a sua visão de mundo e para a sua capacidade de intervir na sociedade, como cidadão e como profissional. Emmanuel Zagury Tourinho: Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. E-mail: tourinho@ufpa.br


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Engenharias

Robótica, o conteúdo mais esperado Alunos colocam em prática conceitos aprendidos ao longo dos cursos Brenda Maciel

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ncentivar os alunos dos cursos de Engenharia a participarem, de fato, da elaboração de um projeto de Engenharia e da construção de robôs eletrônicos. Esse é o objetivo da disciplina Projetos de Engenharia III, ofertada pelo Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Pará (ITEC/UFPA), no 5º semestre dos cursos de Engenharia da Computação e Engenharia de Telecomunicações. De acordo com o professor Marco José de Sousa, doutor em Engenharia de Telecomunicações, a disciplina é uma das mais aguardadas pelos universitários e também contribui para a melhor formação do profissional de Engenharia para o mercado de trabalho. O trabalho da disciplina consiste em orientar os alunos a aplicarem, na prática, os conceitos e os fundamentos de eletrônica, de computação, entre outros estudados ao longo das duas graduações. O professor Marco José, responsável pela disciplina no primei-

ro semestre de 2015, explica que o conceito – muitas vezes “duro” dos cursos de Engenharia - acaba sendo utilizado e buscado com mais afinco pelos estudantes. “Eles precisam usar tudo o que aprenderam no curso. Todos os fundamentos teóricos estudados por eles se misturam nessa disciplina. Conceitos como: circuitos, programação, engenharia de software, eletrônica analógica, sinais e sistema”, explica. Avaliações – Para a construção dos robôs, são necessárias cinco etapas. Na primeira delas, os alunos são guiados a fazer um relatório com a definição da estrutura, os materiais necessários, a arquitetura, os desenhos, os motores e as baterias do robô. Na segunda, traçam o projeto eletrônico do robô, definem sensores, analisam a autonomia, as técnicas de carga da bateria e os circuitos. Na terceira etapa, o grupo de alunos deve ter a parte preliminar de montagem, a estrutura do robô estável, as partes móveis (motores e rodas) estáveis, as

baterias montadas e estáveis, além de local para instalação de sensores. Na quarta etapa, o robô passará por um teste de pontuação preliminar. Além disso, deve obedecer aos limites de peso e tamanho definidos no plano da disciplina e precisa estar composto pelas partes física e mecânica pensadas para ele no projeto. Na quinta e última etapa, pretende-se unir as equipes e os respectivos robôs para a batalha. O torneio tem a tolerância de apenas uma derrota e a nota é dada pela colocação do robô. O professor Marco José estima que um robô construído na disciplina, com materiais de baixo custo e de fácil acesso, custe, em média, R$ 400,00. Na última turma, participaram da competição, com os próprios robôs, sete grupos de sete alunos cada um. Para o professor, o torneio de robôs, ao final da disciplina, tem a função de avaliar se os alunos realmente aprenderam todo o conteúdo visto no decorrer dos cursos. “Não tem como esconder se

prOJetO de eXtensãO Desde março de 2015, quando foi lançado o Projeto de Extensão “Robô na Escola”, coordenado pelo professor Marco José de Sousa, o assunto da robótica tem sido considerado uma ferramenta importante para estudantes de ensino médio das escolas públicas. O objetivo é familiarizar esses alunos com os conceitos disciplinares de Linguagem de Programação Básica, Eletrônica e Noções de Arquitetura Robótica. De acordo com o professor Marco José, tais conceitos são possíveis de se trabalhar no ensino médio, já que percorrem assuntos abordados nas disciplinas Física e Química. “Serão formadas equipes mistas, com alunos de ensino médio e superior, das Faculdades de Engenharia, para que sejam elaborados os projetos. Estamos preparando um material para facilitar o entendimento da robótica por eles”, pontuou. Saiba mais em: http://p3r3.com/. ACERVO dO PESQUISAdOR

aprendeu ou não. É preciso ter assimilado muito bem as partes que compõem a inteligência de uma máquina dessas, a linha de montagem e outras aplicações necessárias para o bom funcionamento do robô”, conta Marco José. Batalhas de Robôs – Anualmente, o ITEC promove o Torneio de Robôs, que tem o mesmo intuito que o torneio da disciplina Projetos de Engenharia III: fazer uma competição que revele qual grupo desenvolve um robô mais inteligente e ágil, porém sem a função de avaliação acadêmica individual. “Os robôs ficam em um tatame, com 1,5 m de lado, e a batalha inicia-se com cada um em uma diagonal oposta. Vence o melhor de três rodadas. Quem ganha não necessariamente é o mais forte, muitas vezes, é uma questão de habilidade. Já houve casos em que um robô menor, porém mais ágil, ganhou de um robô aparentemente mais resistente. O segredo é acertar o ponto fraco do outro”, explica o professor.


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Miriti

O artesanato que vem de Abaeté Pesquisa discute sustentabilidade na produção dos brinquedos Fotos Alexandre Moraes

O período do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, é o de maior venda dos brinquedos de miriti.

Maria Luisa Moraes

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m barquinho, uma cobra, uma berlinda com a Santinha de Nazaré, um casal dançando carimbó… criatividade não falta aos artesãos fabricantes dos brinquedos de miriti. Esses brinquedos são tradicionais na cultura paraense, especialmente na época do Círio de Nazaré, e encantam qualquer um que visite nosso Estado, fazendo com que os turistas não resistam a levar essa bela lembrança na volta para casa. A matéria-prima para a fabricação desse tipo de artesanato é a palmeira Mauritia flexuosa L. f., popularmente conhecida como miriti, bastante encontrada no município de Abaetetuba, principal produtor dos brinquedos.

Visando à sustentabilidade dessa atividade econômica e o impacto que ela tem sobre a cidade e seus habitantes, Yngreth Moraes realizou a Pesquisa Brinquedo de miriti e o desenvolvimento local no município de Abaetetuba/PA, defendida no Programa de Pós-Graduação em Gestão dos Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM/UFPA), orientada pelo professor Sérgio Cardoso de Moraes. Ao ser aprovada em um concurso em Abaetetuba, Yngreth teve a oportunidade de conhecer, de perto, a produção dos brinquedos e interessou-se, mais ainda, pelo assunto. Formada em Turismo, por ocasião do mestrado, ela resolveu unir as duas áreas de conhecimento – Turismo e Gestão dos Recursos Naturais - e usar o miriti como ob-

jeto de estudo. “Percebi que todo mundo conhecia Abaetetuba através dos brinquedos de miriti e fiz essa ligação”, explica a pesquisadora. Em razão da dificuldade de encontrar material bibliográfico sobre o assunto, Yngreth Moraes realizou sua pesquisa em associações, como a Associação dos Artesãos de Brinquedos e Artesanatos de Miriti de Abaetetuba (ASAMAB) e a Associação Arte Miriti de Abaetetuba (MIRITONG), e também entrevistas com artesãos independentes. De acordo com a pesquisadora, os artesãos associados à ASAMAB não têm o artesanato como principal fonte de renda, enquanto Seu Pirias, artesão independente, se dedica somente a essa atividade e consegue viver bem, sendo reconhecido, inclusive, fora do Estado.


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Ações propostas pelo Sebrae não foram bem recebidas A fama do município de Abaetetuba como “terra do miriti” também atraiu o interesse do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), outra fonte da pesquisa. Yngreth Moraes conta que o Sebrae chegou ao município com o intuito de fortalecer a atividade de produção dos artesanatos com a palmeira. As intervenções, no entanto, foram, em parte, rejeitadas pela ASAMAB. “O sonho do Sebrae em Abaetetuba era o brinquedo de miriti, porém a instituição encontrou muita resistência e teve pouco apoio dos associados. Foram ofertados

cursos, mas não passou disso. Então, esse sonho caiu por água abaixo, porque o que podia ser desenvolvido não foi adiante”, lamenta. Para a pesquisadora, isso acontece porque os artesãos não acreditam que apenas o trabalho com miriti possa gerar um “sustento”. Historicamente, a técnica é passada de pai para filho, todavia, hoje em dia, há quem tenha um discurso contrário. “Dentro da ASAMAB, o que se ouve é o seguinte: ‘Meu filho vai estudar, vai ser engenheiro, vai ser médico, vai ser professor, porque isso, sim, vai dar uma

vida para ele’. No entanto esses mesmos artesãos são filhos de alguém que passou esse saber para eles”, explica Yngreth. Mas há histórias diferentes, como a do Seu Pirias. “Ele também era da ASAMAB, quando percebeu que poderia fazer mais. Aproveitou as oportunidades dadas pelo Sebrae, saiu da associação e fez do artesanato uma profissão. Hoje, ele vive disso, é reconhecido nacional e internacionalmente por esses brinquedos”, conta a pesquisadora. Seu Pirias encara o ofício de maneira diferente. “Ele fez

um ‘puxadinho’ na garagem para fazer a oficina, a qual ele chama de ateliê. Ele diz que ‘Seu Pirias’ não é apelido, é nome artístico e ele não é artesão, ele é artista. É um olhar totalmente diferenciado”, avalia Yngreth Moraes. A professora acredita que é possível que o artesanato com miriti ganhe força na cidade e torce por isso, “Espero que tenha cada vez mais gente interessada para que isso alavanque”. Porém ela observa que não há uma continuidade na produção, “Há um boom, mas, depois, a produção cai”, lamenta.

Círio de Nazaré e Miriti Fest são as maiores vitrines Yngreth Moraes ressalta que as vendas ocorrem, principalmente, no período do Círio de Nazaré e do Miriti Fest, festividade tradicional que acontece, anualmente, em Abaetetuba. Fora esses eventos, segundo Yngreth, “ninguém sai de Belém para ir comprar brinquedo de miriti em Abaetetuba”, afirma. Mais do que o Miriti Fest, o Círio é o principal acontecimento que norteia a produção dos brinquedos. Yngreth conta que os artesãos se preparam o ano todo para a festa de Nossa Senhora de Nazaré. “Tudo tem que ser pensado, porque eles precisam do sol para secar o material, então não pode ser um período de chuva. Assim que o Círio termina, eles já começam a produzir para o ano seguinte”, conta a autora. O planejamento é necessário em razão do processo de produção, que é relativamente longo. A matéria-prima, a ‘braça’ da palmeira de miriti, é plantada e vendida por ribeirinhos aos artesãos. Após a secagem, a ‘braça’ é descascada e a fabricação dos brinquedos tem início. Depois de prontos, os brinquedos são trazidos para Belém, onde são vendidos em

feiras durante o ano e, principalmente, na época do Círio. Pesquisando a história do município, Yngreth Moraes descobriu que, há muitos anos, Abaetetuba foi a “Cidade da Cachaça”. A descoberta fez com que ela se preocupasse com o futuro da produção de brinquedos de miriti no município. Segundo a autora, o futuro dos brinquedos está ameaçado por dois fatores: a relativa falta de interesse dos artesãos em fomentar o artesanato e a sustentabilidade da atividade. Ouvindo vários artesãos, ela verificou que já há um déficit da matéria-prima. “Lembro de um deles dizer: ‘Professora, uma das nossas preocupações é que, daqui a pouco, não terá mais miriti suficiente”, relata Yngreth. O que ocorre é que as palmeiras são plantadas na região das ilhas e, em certas épocas do ano, os ribeirinhos optam pelo plantio de açaí, “porque tem investimento bancário e outros benefícios para a comunidade, e o miriti acaba ficando de lado”, esclarece. Apesar dessas dificuldades, a professora notou que a identificação dos brinquedos

como marca da cultura abaetetubense é forte. “Se você ouve alguém falar em brinquedo de miriti, imediatamente associa ao município de Abaetetuba. E isso se reflete nos habitantes da cidade, que demonstram orgulho dos brinquedos”, afirma. Yngreth Moraes acredi-

ta que quanto mais a imagem do brinquedo de miriti estiver ligada ao município, mais incentivo terá esse tipo de artesanato. “Isso é fundamental para não acontecer de outra localidade chegar e dizer ‘Eu produzo brinquedo de miriti’”, conclui.


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Entre memória, transformações e religiosidade Pesquisa descreve mudanças ocorridas no perímetro da Praça Santuário Alexandre Moraes

Marcus Passos

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m terreno com vegetação típica de floresta equatorial, composta por mata de terra firme, mata de igapó e áreas de campos, permeadas por trilhas que se estendiam até o igarapé Murutucu, nas proximidades da Estrada do Utinga. Nesse local, por volta de 1700, um caboclo erguera uma humilde palhoça, em homenagem à imagem de Nossa Senhora de Nazaré. A descrição acima retrata como era o perímetro da Praça Santuário e integra a Dissertação Do Largo de Nazaré à Praça Santuário: As transfor-

mações entre 1982 e 2015, do pesquisador Jeová Barros de Oliveira. A pesquisa foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, ITEC/UFPA, com orientação da professora Celma de Nazaré Chaves de Souza Pont Vidal. O objetivo foi justamente estudar as transformações ocorridas no antigo Largo de Nazaré até sua atual configuração e quais foram as condições históricas que favoreceram essa transformação. Além disso, entender como esse ambiente se tornou um lugar sagrado para os católicos. A configuração da atual Praça Santuário começou a ser

traçada em 1700, quando o caboclo Plácido José de Souza encontrou, às margens do igarapé Murutucu, uma pequena imagem da Virgem de Nazaré. Após isso, o “caboclo levou a Santa para o sítio que era dele e de sua mulher e lá construiu a primeira capela em devoção à imagem. Quando Plácido morreu, seu amigo Antônio Agostinho construiu uma ermida em outro lugar da praça, para continuar a devoção”, descreve o pesquisador Jeová Barros. O sítio onde Plácido morava era cortado pela Estrada do Utinga, uma trilha de chão que adentrava na floresta e multiplicava-se em diversos

ramais. Anos mais tarde, esse caminho foi chamado de Estrada do Maranhão, em referência ao lugar onde os viajantes bebiam água e se abasteciam antes de seguirem rumo à Província do Maranhão. Segundo o pesquisador, Antônio Agostinho pediu autorização do governo para roçar a área em frente à capela, transformando o espaço em um grande quadrilátero que abrangia toda a área da atual Praça Santuário e da Basílica. Futuramente, chamaram esse local de Arraial de Nazaré, decorrente do processo de urbanização e em referência ao nome da Santa.

Linha do tempo 1848- Sítio, baseado em Wallace

Ilustrações Jeová Barros

1900 a 1969 Largo


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Nazaré Local da festa e de partida e chegada do Círio Uma das configurações do antigo Largo de Nazaré, durante o final do século XIX e o início do século XX, revelava a presença de “um coreto central, chamado Pavilhão de Vesta, sustentado por várias colunas e com escadaria lateral, onde as bandas ficavam para tocar músicas. Nas extremidades da praça, foram erguidos quatro coretos, usados para a apresentação de danças, de pássaros juninos e para outros tipos de entretenimento ao público”, afirma Jeová Barros. Como a área de Nazaré atraía muitos romeiros por ser o ponto de partida e chegada do Círio e o lugar da festa mais popular da cidade, o Largo suburbano de Nazaré transformou-se em Largo urbano. Os governadores da época passaram a investir mais nesse perímetro. Com isso, ao longo da Estrada de Nazaré

(a antiga Estrada do Maranhão), foram surgindo, cada vez mais, casas particulares e edifícios públicos. Com a demolição do pavilhão circular e dos coretos de ferro, o espaço de Nazaré sofreu o total descarte de equipamentos existentes. Em 1970, a Praça Justo Chermont (antigo Largo de Nazaré) recebeu um projeto de revitalização idealizado pelo arquiteto Roberto La Roque Soares. O local ganhou áreas de gramado atravessadas por calçadas de passeios, que, durante a festividade do Círio, eram cobertas de madeira para a montagem das barracas de comida e de brinquedos. Durante toda a década de 1970, a praça permaneceu inalterada, sem melhorias públicas, até que, em 1981, o engenheiro Roberto Martins apresentou um projeto para

a ocupação do espaço. Conforme o pesquisador Jeová Barros, “o Padre Luciano Brambilla e o empresário Sahid Xerfan conversaram com o ex-deputado federal Jorge Arbage, que, por meio do ministro do Planejamento da época, Antônio Delfim Netto, conseguiu a verba necessária para a construção da praça”. Com a inauguração da nova praça em 1982, o espaço deixou de ser chamado de Praça Justo Chermont para virar o Conjunto Arquitetônico de Nazaré (CAN). A nova configuração do ambiente ganhou equipamentos destinados às celebrações litúrgicas e eucarísticas, um novo piso em mármore, um altar-monumento no centro, uma concha acústica para a realização de shows e foi cercada por uma grade de ferro, com um portão em cada uma das quatro laterais.

Hoje, a praça atende à comunidade católica De acordo com Jeová Barros, “durante a minha pesquisa, eu perguntei para o Padre Luciano Brambilla qual foi o motivo para cercar a praça. O padre me disse que foi para eliminar a sujeira e garantir a segurança das pessoas e dos lugares que foram construídos. Ele também lembrou que a ideia de construir um altar central para fazer a missa de encerramento do Círio na praça foi a solução encontrada para o problema da falta de espaço na Basílica, para acomodar os fiéis durante o Círio”. “A partir do momento que você tem um terreno livre e cons-

trói nesse espaço um altar para celebrar missa, esse ambiente passa a ser uma igreja. É um lugar sagrado e visto como um prolongamento da Basílica, ou seja, antigamente a praça era pública, era a Praça Justo Chermont, agora, a praça é pública, para um público específico: os católicos”, observa o pesquisador. Nesse sentido, notou-se que “a Igreja tomou posse de um território público para uso religioso. É uma igreja a céu aberto que é mal utilizada, pois sua utilização ocorre, sobretudo, durante as festividades da quadra nazarena e, às vezes, com a programação de louvores na

1970-1981 Praça Justo Chermont, baseado em La Rocque

quarta-feira. No restante do ano, espaços como a concha acústica não são aproveitados por grupos de músicas de paróquias ou por meio de um campeonato musical religioso, por exemplo”, questiona Jeová Barros. Por ser uma espécie de Praça-Igreja, o lugar foi rebatizado de Praça Santuário, uma referência ao novo título da Basílica, que, desde 2006, por meio do cardeal arcebispo Dom Orani Tempesta, foi elevada à condição de Santuário Mariano, tornando-se a Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré.

1982 - 2015 CAN e Praça Santuário


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Entrevista

Luiz Cláudio Martino

Comunicação, meios e tecnologia Sobre o que nós estamos falando? questiona Luiz Cláudio Martino Adolfo Lemos

Thais Braga

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professor Luiz Cláudio Martino, da Universidade de Brasília (UnB), esteve em Belém participando do Projeto “Diálogos”, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM/ UFPA). Na ocasião, conversou com estudantes, com profissionais e com o Jornal Beira do Rio sobre questões fundamentais para a área. Autor de diversos artigos científicos de cunho epistemológico - quiçá, o mais recorrente seja “De qual comunicação estamos falando?”, publicado em 2001, no livro Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências, pela Editora Vozes, Martino torna-se singular ao pensar a Comunicação com base na lógica da tecnologia, embora não a coloque como escatologia. “Os meios de comunicação, se não são tecnologias da comunicação, certamente, não serão vetores fortes de explicação nem matérias de pensamento”, afirma. História, Psicologia e Sociologia também são importantes para constituir a linha de pensamento do autor. Confira!

Epistemologias ou teorias da comunicação? A teoria é o estudo de um fenômeno. A Epistemologia é o estudo das teorias. Ao estudarmos as teorias, tentamos aproximar as que falam dos mesmos fenômenos. Significa pensar como as teorias podem ser classificadas ou aproximadas em um diálogo com base em um objeto de estudo - que não é exatamente empírico, mas sim uma construção do

empírico. Há teorias que se aproximam, não no sentido de serem iguais, mas no sentido de possuírem divergências interessantes – e, nisso, elas formam uma disciplina, porque a divergência delas, ou entre elas, faz-se de uma base comum, que é um recorte ou certa compreensão básica do que é a realidade.

Discussões atuais Hoje, na Comunicação, as discussões afastam-se um pouco das questões fundamentais sobre objeto de estudo e sobre especificidade do saber comunicacional. Essas questões estão sendo substituídas por uma crítica a esses fundamentos da Comunicação como

teoria, como Epistemologia, mas de uma maneira não muito produtiva, a meu ver. É uma crítica pouco fundada, pois não entende o porquê dessas questões. Geralmente, são tomadas como perguntas instrumentais, como perguntas balizadas por questões institucionais ou mesmo por políticas. As discussões não entram, propriamente, na


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questão epistemológica, mas procuram miná-la.

Saber comunicacional Nas Ciências Sociais, a totalidade é organizada por uma perspectiva, uma opção epistemológica (e não ontológica). A Sociologia, por exemplo, é uma visão sobre o homem, na qual o social passa a ser o vetor explicativo ou hierarquiza o restante da realidade humana ou da realidade concreta, empírica. Não se trata de desconhecer as outras dimensões fundamentais do homem (subjetividade, cultura, economia...), mas, justamente, pensá-las a partir do social. Este mesmo raciocínio pode ser repetido para cada disciplina: a Antropologia trata da cultura; a Psicologia, da subjetividade ou da consciência humana. No caso da Comunicação, trata-se de processos de comunicação singularizados na Modernidade pela intervenção da tecnologia. As tecnologias da Comunicação, dentro do contexto de uma sociedade complexa, assumem certas características que constituem o vetor explicativo ou que organizam as outras dimensões. Na verdade, a fronteira entre o mediático e o não mediático é de difícil precisão. Uma palestra, uma aula, são relações de comunicação interpessoais, contudo, amplamente atravessadas e instruídas pelos meios de comunicação (leitura, filmes...), tanto no pólo da emissão como no da recepção. Dessa maneira, nós temos um ponto de vista propriamente comunicacional.

Tecnologia A tecnologia é uma das características mais marcantes da Modernidade. Praticamente, não podemos pensar a Modernidade sem pensar o que é tecnologia, seja porque ela é vetor do crescimento econô-

mico, seja porque ela interfere na política, seja porque ela está na nossa vida nitidamente. Pensar a tecnologia, no plano da Comunicação, é pensar meios. Não no sentido estrito ou de uma tecnologia como determinante, mas uma tecnologia que nasce junto com essa sociedade, uma tecnologia que organiza essa sociedade por dentro - e não algo que se acrescenta do exterior. A tecnologia comporta lógicas culturais, sociais, mas não dispensa a sua própria lógica. Os meios de comunicação, se não são tecnologias da comunicação, certamente, não serão vetores fortes de explicação, nem matérias de pensamento.

ciência, que correspondem à parte do processo em que o objeto mental é alterado (forma-se outro conteúdo, mudamos de pensamento). Essas colocações pareceramme muito apropriadas para pensar o trabalho da televisão sobre a mente. A televisão era uma maneira de acoplar mente e aparelho técnico, de tal modo que a televisão substituía esses estados transitivos ou essa distração, cumprindo uma função do pensamento. A televisão, portanto, c ol oc a va - s e como uma técnica que estende/simula essa função mental. Isso me permitiu uma visão da televisão que não estava determinada por certo aparato específico da tecnologia, mas pelo acoplamento da mente com um aparato.

“A televisão é uma maneira de acoplar mente e aparelho técnico”

Meios de comunicação O livro Vendredi ou les Limbes du Pacifique, do filósofo Michel Tournier, fala sobre a história do Robinson Crusoé – o homem isolado do mundo. A obra traz várias questões sobre isolamento e sobre o que é o contato humano. Considerando algumas colocações do autor, comecei a pensar sobre a televisão, tomando o homem como um ser reativo. Passei a entender a TV como uma máquina de reação, pois substituía – ou simulava - funções mentais muito precisas. Quando estamos com outra pessoa, a nossa atenção está sendo negociada. Isso faz com que os processos mentais sejam guiados pelas influências da outra pessoa. É o que Nietzsche chama de distração ou ressentimento. Outros autores em Psicologia, como William James, chamam de estados transitivos da cons-

Influências A principal influência no meu trabalho foi Nietzsche. Eu era aluno de Psicologia, mas, ao mesmo tempo, estudava Filosofia. O que me influenciava era Filosofia Antiga (Platão, Aristóteles, os sofistas) e Nietzsche. Estudar um meio de comunicação, perguntar “o que é televisão?” era uma maneira de pensar filosoficamente um objeto não filosófico. Eu pensava elaborar um pensamento sobre a televisão, mas dentro da tradição filosófica. Isso foi um desafio muito grande, porque estava na contramão dos grandes estudos que tinha ao alcance - os quais tratavam os meios de comunicação dentro desse movimento instaurado pelos próprios meios de comunica-

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ção, que é a atualidade. Eu buscava, na verdade, uma forma de pensar a atualidade sem entrar na atualidade. O que me atraía na Filosofia antiga: um conhecimento que se pode discutir, independente da época. O que me atraía na televisão: uma tecnologia que constituía um pensamento de uma época. Esse contraste pareceu-me fundamental para constituir um ponto de vista que não era, como costumo dizer, de “dentro do caleidoscópio”, mas uma tentativa de olhar de fora. O conceito de meio aparece quando entendemos o que é tecnologia, quando adotamos um posicionamento que não embarca na atualidade, mas procura pensar - e não ser pensado por ela, um simples porta-voz ou uma de suas manifestações.

Desdobramentos A tese que defendi em 1997 está dividida em três partes: conhecimento, meio (tecnologia) e sociedade, que constituem um programa de pesquisa. Nos últimos 10 ou 15 anos, dediquei-me particularmente ao trabalho da Epistemologia, pois achava que era a parte mais fraca. A partir de 2011, retomei a questão do social e da tecnologia. Comecei a abrir diálogos, pois, uma vez colocada uma base epistemológica da comunicação, seria possível trabalhar a relação com outros conhecimentos. No início, Sociologia, Tecnologia e História foram os principais. No momento, terminei um artigo sobre a relação da Comunicação com o Marxismo (uma critica à noção horkheimeana de interdisciplinaridade). Sempre nesse movimento de tentar entender a relação com os outros conhecimentos - com as Ciências Sociais em primeiro lugar, mas também com a Arte, com a Religião etc.


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Pesquisa

Açaí combate efeitos de convulsões Consumo da fruta reduz estresse oxidativo e danos cerebrais Fotos Alexandre Moraes

No laboratório, Grabriela Arrifano e Rogério Monteiro, que integram o grupo de pesquisadores.

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número de estudos envolvendo as propriedades do açaí aumenta a cada ano. No meio acadêmico, seu potencial como um eficiente antioxidante já é conhecido. A novidade está no seu significativo efeito protetor contra as convulsões. As convulsões são caracterizadas por contrações musculares

involuntárias e/ou por alterações dos sentidos - ambos os fatos decorrentes de uma excitação exacerbada do cérebro. As crises convulsivas podem ser provocadas por diferentes situações (traumatismo craniano, temperatura corporal elevada, hiperglicemia etc.), mas quando essas crises continuam acontecendo de forma recorrente e espontânea, a pessoa torna-se epiléptica.

O estudo denominado “Propriedades anticonvulsivantes da Euterpe Oleracea (açaí) em camundongos” foi realizado por um grupo de pesquisadores de vários laboratórios da Universidade Federal do Pará (UFPA), em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A pesquisa também contou com o apoio das empresas Petruz Fruity e Amazon Dreams. O açaí

usado no estudo foi preparado de acordo com uma patente de propriedade da Amazon Dreams, empresa incubada pela UFPA. A pesquisa teve início com a linha de pesquisa sobre convulsões induzidas por pentilenotetrazol (PTZ), substância química usada para induzir convulsões em animais para que os pesquisadores possam estudar o efeito de fármacos anticonvulsivantes. Um grande número de evidências já sugeria que as crises convulsivas estavam relacionadas com uma situação de desequilíbrio denominada estresse oxidativo. “Nós tínhamos, de um lado, uma substância capaz de provocar o estresse oxidativo e, do outro, uma fruta com potente atividade antioxidante. Com isso, surgiu a pergunta: Será que o açaí teria um efeito anticonvulsivante através da prevenção do estresse oxidativo? A partir disso, nós começamos os experimentos para verificar essa hipótese”, revela o pesquisador Rogério Monteiro.

Pesquisadores utilizaram o açaí como adjuvante O modelo utilizado na pesquisa foi de crises convulsivas induzidas pelo agente químico pentilenotetrazol. A equipe ainda não realizou os testes no modelo de epilepsia, em que os animais apresentam crises convulsivas espontâneas. Porém o modelo adotado foi útil por ser a primeira etapa para a triagem de novos fármacos anticonvulsivantes. Segundo a professora Maria Elena Crespo, a diferença entre convulsão e epilepsia é que, na epilepsia, “a pessoa sofre convulsões sem uma origem clara para isso e elas são recor-

rentes e espontâneas. A epilepsia é uma doença crônica e, muitas vezes, refratária aos fármacos atualmente disponíveis, afetando cerca de 1% da população mundial. Sendo assim, nem toda crise convulsiva significa que o paciente é epilético”. Nesse sentido, a pesquisa estudou a aplicabilidade clínica do açaí entendendo o uso da fruta como adjuvante. Ao contrário dos fármacos anticonvulsivos que possuem efeitos secundários, os estudos realizados até hoje sugerem que o açaí não apresentaria efeitos adversos evidentes. “Estudos científicos

comprovam que o açaí não é tóxico nas quantidades testadas, semelhantes àquelas do consumo humano. É crescente a busca por produtos naturais que possam ser incorporados como adjuvantes frente a algum tipo de doença”, afirma a pesquisadora do estudo, Gabriela Arrifano. O açaí utilizado para realizar o experimento foi o açaí clarificado por um tratamento patenteado pela empresa Amazon Dreams. Ele foi escolhido por apresentar baixo teor de sólidos e gorduras e por ser concentrado em compostos fenólicos, necessários para a execução do efeito

antioxidante. Porém o sabor, a cor e o aroma desse tipo de açaí são os mesmos da polpa tradicional vendida nas ruas e nos estabelecimentos comerciais. Posteriormente, a equipe começou a fazer os testes nos animais. Foram utilizados 68 camundongos, separados entre quatro grupos experimentais: um grupo controle, que recebeu solução salina; um grupo que ingeriu somente açaí; um grupo administrado apenas com a droga pentilenotetrazol (PTZ) e outro grupo que recebeu tanto o açaí quanto a substância química.


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Estudo utilizou o açaí clarificado por tratamento patenteado pela empresa Amazon Dreams, incubada na UFPA.

Processo envolveu eletrocorticograma em camundongos Os camundongos receberam açaí por via oral durante quatro dias e antes da droga ser aplicada. Primeiramente, foram avaliadas as características comportamentais. “Os animais que receberam açaí antes do PTZ demoraram mais até apresentar a primeira crise e as crises foram mais curtas. Com isso, observamos que o açaí reduziu a duração das crises e o tempo de início da primeira crise”, afirma Rogério Monteiro. A etapa seguinte analisou o processo bioquímico de estresse oxidativo no cérebro

dos animais. Esse parâmetro avaliou o aumento da peroxidação lipídica, que consiste na identificação dos danos provocados pelo estresse oxidativo, ou seja, a equipe quantificou a taxa de peroxidação lipídica para saber se, ao induzir as convulsões nos camundongos por meio do PTZ, o estresse oxidativo estava causando danos na membrana das células. O resultado desse teste mostrou que as consequências do estresse oxidativo foram menores no cérebro dos animais que ingeriram açaí e receberam

a droga PTZ. “O grupo controle e o grupo que tomou apenas o açaí tinham níveis normais de peroxidação lipídica. No grupo que usava somente o PTZ, o nível de peroxidação lipídica era maior, indicando o dano causado ao tecido. Porém, quando os animais tinham consumido o açaí antes de receber o PTZ, percebemos que o dano nas membranas das células (e por isso, no tecido cerebral) foi significativamente menor, ou seja, mesmo que alguém tivesse convulsão, as consequências seriam menores do que em alguém

que não tomou açaí”, explica Gabriela Arrifano. Além da avaliação comportamental e bioquímica, a equipe também realizou um eletrocorticograma no cérebro dos animais. De forma semelhante àquela, quando se realiza um EEG (electroencefalograma) nos humanos, esse exame avalia as correntes elétricas que passam por uma parte superficial do cérebro. Na epilepsia, usa-se esse exame no diagnóstico das convulsões, pois elas provocam graves alterações do registro.

Resultados comprovam potência antioxidante da fruta Na pesquisa realizada, esse registro demonstrou que o tratamento com açaí foi capaz de reduzir significativamente as alterações elétricas provocadas pelas convulsões. A pesquisa sugeriu que o alto poder antioxidante do açaí poderia ser um dos principais responsáveis pelos efeitos protetores demonstrados contra as convulsões. Assim, para

apoiar essa hipótese, o poder antioxidante do açaí clarificado foi “desafiado” em um ensaio químico com componentes reativos. Com isso, no final do processo, ficou comprovada a potência antioxidante da fruta. Para o pesquisador Rogério Monteiro, “este trabalho é de grande contribuição para a sociedade. A epilepsia é

uma doença comum no mundo e, por meio desse estudo, as pessoas serão beneficiadas com o uso do açaí como adjuvante barato e de fácil acesso. Ter na Amazônia uma substância como essa representa um impacto enorme para a sociedade”. Nesse sentido, cabe também destacar a importância acadêmica do estudo. “Todo esse processo de pes-

quisa foi realizado integralmente pelos laboratórios da UFPA. Além disso, a pesquisa foi publicada em uma revista internacional reconhecida na nossa área, ou seja, somos capazes de fazer pesquisa de qualidade internacional e, ao mesmo tempo, formar alunos de alta capacidade intelectual”, enfatiza a professora Maria Elena Crespo.


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Extensão

Assistência médica e nutricional Alunos vulneráveis são atendidos no Hospital Barros Barreto Alice Martins Morais

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Professora Maria Auxiliadora com a atual equipe médica do Programa

om 58 anos de existência, a Universidade Federal do Pará (UFPA) tem como objetivo principal a produção, a socialização e a transformação do conhecimento na Amazônia para formar cidadãos capazes de contribuir com o mundo, mas também com a própria população ao seu redor, inclusive com os próprios ingressantes, que vêm de diversas origens. São negros, pardos, índios, brancos, estrangeiros. São mulheres, homens, transgêneros. Alguns com melhores condições econômicas e outros em condições vulneráveis. A UFPA trabalha criando condições igualitárias para aqueles que têm mais dificuldades. Nesse contexto, foram criados os programas e projetos de assistência e integração estudantil,

como o Projeto “Ações Integradas de Extensão à Saúde Estudantil”, coordenado pela professora Lúcia Helena Messias Sales. O projeto é desenvolvido nas dependências do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), com o apoio da Fundação de Amparo Desenvolvimento da Pesquisa (Fadesp) e está vinculado ao Programa Estudante Saudável (PES), coordenado pela Pró -Reitoria de Extensão, por meio da Diretoria de Assistência e Integração Estudantil (DAIE). Vinculado a ele e sob a coordenação da professora Maria Auxiliadora Menezes, está o Projeto “Assistência Clínica e Nutricional aos alunos em vulnerabilidade socioeconômica”, que, há dois anos, assiste alunos da Instituição, em situação de vulnerabilidade socioeconômica, identificando e acompanhando

seu estado de saúde nutricional e clínica. O projeto iniciou suas atividades em 2013, quando as professoras Maria Auxiliadora de Menezes (Nutricionista) e Lúcia Helena Messias Sales (Médica Pneumologista) eram membros da Coordenação Acadêmica do HUJBB. No começo, esses pacientes vinham por indicação das próprias integrantes do projeto, os quais, por sua vez, após terem sido consultados e terem aprovado a experiência, indicavam outros colegas e, assim por diante, colaboravam para que a ação ficasse conhecida em conversas de corredor. Atualmente, o projeto conta com cinco estagiários (sendo três remunerados e dois voluntários, ex-pacientes do projeto), um auxiliar administrativo, um médico clínico e um médico clínico/cardiologista. Fotos Alexandre Moraes


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Cinco mil procedimentos médicos em dois anos O projeto já atendeu 434 alunos, sendo 258 mulheres e 176 homens, oriundos de todos os campi da UFPA, todos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, totalizando cerca de 5.000 procedimentos clínicos. luciano Carvalho do Carmo, 38 anos, aluno do 6º semestre do curso de Graduação em Arquivologia, em Belém, é um dos assistidos pelo projeto. luciano foi até a Proex em busca de informações sobre a ação e já saiu de lá encaminhado. logo na primeira consulta, ficou constatado que ele estava com a gordura abdominal um pouco acima do recomendado. O paciente também apresentava uma respiração ruim e queixava-se de dores no peito. Após o diagnóstico, luciano do Carmo passou a ser acompanhado por uma nutricionista, um pneumologista e um cardiologista. Em apenas um mês, já tinha perdido 3 kg. Hoje, após cinco meses de acompanhamento, luciano revela que está se sentindo bem melhor, com resultados impactantes em sua vida acadêmica, pois sente-se mais disposto e com mais energia tanto para as aulas quanto para o estágio que realiza. Wanessa Costa de Oliveira, aluna do curso de Graduação em Nutrição, está entre os alunos atendidos e gostou tanto da expe-

Atendimento, exame, diagnóstico e acompanhamento são realizados por equipe do Programa no HUJBB.

riência que, atualmente, é uma das bolsistas que trabalham no projeto, pois se interessou em colaborar com a sua continuidade. Mas não foram apenas os estudantes que tiveram benefícios nesses dois anos de realização do projeto. Para a coordenadora Maria Auxiliadora Menezes, esta tem sido uma experiência enriquecedora por propiciar algo novo em sua vida profissional, o contato com as pessoas, pois, anteriormente, focava sua vida acadêmica em pesquisa experimental. Para as bolsistas Priscyla Souza de lima, Maria de Nazareth Carneiro e lorrany Miranda Mari-

nho, o projeto foi essencial para a formação e o aprimoramento de seus estudos, pois colocaram em prática o que já viram em teoria. Elas aprenderam não somente as técnicas da profissão mas também sentiram a importância do processo humanizador da área da saúde. Como resultado, já foram publicados três artigos e apresentados mais de 10 trabalhos científicos com base na experiência , inclusive, servindo de inspiração para outros projetos quando seus resultados são apresentados em eventos científicos pelo Brasil afora.

COmO ser atendidO Se você é um aluno da U F PA , e n c o n t r a - s e e m situação de vulnerabilidade socioeconômica e deseja ser atendido pelo projeto, vá até a Proex, no 2º andar da Reitoria, Programa Estudante Saudável (PES), na DAIE/Proex, e solicite um encaminhamento para consulta. Você deve ter em mãos os seguintes documentos: carteira de identidade e comprovante

de matrícula atualizado. Em seguida, envie um e-mail para proj.nutri @ hotmail.com para agendar a data e o horário do atendimento. No primeiro contato presencial, os profissionais da saúde irão verificar peso e altura do aluno e conversar sobre seus hábitos alimentares para identificar o seu estado de sobrepeso, obesidade ou desnutrição, por exemplo. A partir desse

diagnóstico, alguns exames serão requisitados. Eles serão realizados no laboratório do próprio HUJBB. Todos os pacientes assistidos pelo projeto são cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS). O acompanhamento é feito durante todo o tratamento, estando a equipe e o paciente, lado a lado, em um processo de paciência e cuidado.


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Belém 400 anos

O cachorro-quente nosso da esquina Pesquisa analisa sociabilidade em torno da comida de rua Fotos Adolfo Lemos

Em Belém, carros de cachorro-quente ainda fazem sucesso, apesar das redes de fast food instaladas na cidade.

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receita é simples: pegue um pão de chá e corte ao meio; adicione picadinho, tomate, cebola, cheiro verde e uma salada de repolho. Ao final, jogue batata palha por cima e os tradicionais ketchup e maionese. Pronto! Você acaba de fazer um cachorro-quente paraense. Uma comida bastante popular no Brasil inteiro, contudo aqui não se coloca a salsicha, como no restante do País. Em Belém, segundo a Secretaria de

Economia (SECON), existem cerca de 200 carrinhos de cachorro-quente. Foi com essa temática que o pesquisador Benedito Aldo Lisboa Ferreira produziu a Dissertação Comida de esquina: comensalidade em torno dos carros de cachorro-quente em Belém-PA, realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/IFCH, sob orientação dos professores Denise Machado Cardoso e Antonio Maurício Dias da Costa. O objetivo era compreender o funcionamento da comensalidade

nos carros de cachorro-quente e os motivos que levavam as pessoas a frequentarem esses estabelecimentos, mesmo com a instalação das redes de fast food em Belém. Para Aldo Lisboa, “a comensalidade está relacionada à partilha da refeição entre duas ou mais pessoas. É o ato de dividir o mesmo espaço, as mesmas expectativas. Não é apenas ingerir o alimento, mas também interagir com o que está ao seu redor”, ou seja, há um processo de sociabilidade, de relações entre as pessoas. Foram analisados dois carros de cachorro-quente, selecionados pelo maior tempo em funcionamento: O Paraense, situado na esquina da Travessa 14 de Março com a Avenida Magalhães Barata, tem 52 anos de tradição e é comandado pela 3ª geração da família. O segundo estabelecimento foi o Lanche do Mário, que fica na esquina da Trav.Vileta com a Avenida Almirante Barroso. Funciona há 40 anos no mesmo espaço e ainda está sob o comando de seu fundador, Seu Mário Gonçalves.

Frequência assídua torna o ambiente familiar Segundo o funcionário público Elielton Costa, o hábito de frequentar os carrinhos de cachorro-quente começou durante uma programação semanal entre amigos, com o objetivo de comer e conversar em alguns locais de Belém. Atualmente, ele e sua esposa passaram a frequentar, pelo menos, uma vez por semana, uma venda de cachorro-quente que se instalou perto da sua casa, o que acabou reforçando o velho hábito. A pesquisa utilizou como metodologia uma abordagem etnográfica envolvendo as relações entre os trabalhadores, os carros de cachorro-quente e os clientes. Foi identificado um forte vínculo de sociabilidade compreendendo, principalmente, os trabalhadores e clientes. Nesses estabelecimentos, existe

pessoalidade, algo comparado ao ambiente familiar, pois o consumidor tem contato direto com o cozinheiro (chapista), interferindo diretamente no que quer ou não comer. De acordo com Aldo Lisboa, “a sociabilidade que mais chamou sua atenção foi aquela entre clientes e trabalhadores. A proximidade entre essas duas categorias ultrapassa a relação do mercado convencional, no qual você paga pelo serviço, agradece e vai embora. Nos carros de cachorro-quente, ela vai além. Por mais que seja um ambiente informal, há uma relação pessoal, diferentemente das redes de fast food”. Outro ponto da pesquisa foi trabalhar com clientes assíduos. Nesse aspecto, foi possível iden-

tificar pessoas que frequentam, há 40 anos, um mesmo carro de cachorro-quente. São clientes que começaram a visitar os locais quando eram solteiros e, atualmente, encontram-se casados e com filhos, frequentando os mesmos estabelecimentos, criando, com o local, uma relação de fidelidade, um lugar de comensalidade na cidade de Belém. “Acredito que as pessoas que consomem lanche de esquina selecionam um local fixo para frequentarem. Isso possibilita uma relação de confiança entre o atendente e o cliente, de tal modo que é comum que o atendente já saiba qual é o lanche que você gosta. Ou seja, ele adapta o lanche à sugestão do cliente, estabelecendo uma amizade com você”, afirma Elielton Costa.


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Locais são frequentados por todas as classes sociais O perfil dos clientes analisados revela que não há uma condição socioeconômica específica para frequentar esses ambientes. Os dois carros de cachorro-quente são frequentados por pessoas de todas as classes sociais. Além disso, os consumidores que buscam esses espaços estão mais interessados nas relações sociais do que nos tratamentos formais de mercado. Eles querem experimentar o que a cidade tem de melhor. Aldo Lisboa explica que o Lanche do Mário e O Paraense representam “lugares de encontro com a cidade. São locais de pertencimento que têm uma relação com a identificação local. Quer dizer, eu me identifico com esse lugar e pertenço àquele estabelecimento. Pertencer não como um objeto, mas como parte de uma construção social e cultural, algo que

está inserido no cotidiano da cidade”. Ao frequentar esses estabelecimentos, o que “eu mais gosto é o sabor, o cheiro que é expelido pela chapa quente quando os lanches estão sendo feitos, contagiando os que ali esperam. Além disso, gosto do ambiente ‘livre’ que existe nesses espaços. Nós podemos ficar à vontade para comer o que quiser, não há ‘padrão’ tal como ocorre nos fast food”, explica o funcionário público Elielton Costa. Duas hipóteses foram levantadas a respeito da popularidade dos carros de cachorro-quente, em Belém. A primeira refere-se à escolha desses espaços de comensalidade como formas alternativas aos parâmetros de planejamento urbano contemporâneo e às relações de sociabilidades geradas nos locais. A segunda está relacionada à quebra da

arbitrariedade e de regras no momento de comer. As pessoas querem um local mais despojado e informal para se alimentar. “Os carros quebram a barreira da impessoalidade instituída nos centros urbanos”, diz o pesquisador. Comensalidade – Os espaços de venda de cachorro-quente também caminham no sentido contrário ao do atual debate sobre a crise nas relações de comensalidade. “Hoje, temos uma vida muito atribulada. Você não tem mais a comensalidade na vida familiar como se tinha antes. Mas, nos carros de cachorro-quente, apesar de ser um comércio de rua, ainda é possível quebrar as regras da impessoalidade e encontrar relações de sociabilidade”, afirma o pesquisador. Outra constatação refere-se à rua, discriminada por ser considerada insegura

e impessoal. Durante a pesquisa, observou-se que, nesses espaços, a rua é percebida como um lugar de interação social. Nos carros de cachorro-quente, existem relação, fidelidade e sabor. Sabor que, segundo o pesquisador, “é uma construção das relações sociais existentes no local”. Para Aldo Lisboa, “os olhares do mundo se voltam para a Amazônia como um potencial em várias áreas, inclusive a gastronômica, que é muito rica. A produção acadêmica envolvendo a cultura alimentar paraense ainda é insuficiente em relação à sua diversidade culinária. É preciso não somente explorar a gastronomia local como um produto de mercado, mas também enfatizar as relações que envolvem todo o seu processo cultural. Assim, espero que este trabalho tenha dado a sua contribuição”.


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Resenha Alianças e rupturas entre trono e altar Walter Pinto

Reprodução Adolfo Lemos

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urante todo o século XIX, a Igreja Católica no Brasil atravessou processos históricos que exigiram de seus bispos habilidade suficiente para ratificar o protagonismo da instituição frente à formação espiritual e moral da sociedade brasileira. Na Amazônia, a extensão territorial e a dificuldade de acesso ao interior já se constituíam um obstáculo natural à difusão do catolicismo. O número baixo de vocações e de seminários para formação de novos padres era outro problema a dificultar o trabalho evangelizador. No campo político, ideias iluministas chegaram à Amazônia contribuindo para convulsionar a sociedade paraense e estremecer os pilares, até então seguros, da Igreja. Vários clérigos deixaram-se arrastar por aquelas ideias, envolvendo-se diretamente em motins que tumultuaram o Período Regencial, entre os quais, a Cabanagem, no Pará, foi um dos mais importantes e sangrentos. Liberais e ilustrados, agora com mais espaço no interior da estrutura do Império brasileiro, pregavam pela modernização do Estado, que passava pela criação de uma ordem jurídica fatalmente contrária aos interesses da Igreja. Juntamente com a Maçonaria, eles não aceitavam a hegemonia religiosa em relação à expedição de documentos civis (casamento, certidão de nascimento, enterramentos, entre outros) e questionavam a Igreja como ato da criação divina. Em Romualdo, José e Antônio: Bispos na Amazônia do Oitocentos, o historiador Fernando Arthur de Freitas Neves, da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da UFPA, investiga, apoiado em considerável quantidade de fontes, a resistência eclesiástica à ideia de modernização do Estado, centrada na proposta de separação Igreja-Estado, por meio da proposta de laicização. Mais que isso, o autor busca perceber as alianças e as rupturas entre trono e altar, relação constitucional sedimentada no regime de Padroado, por meio do qual a Igreja delegou ao monarca a adminis-

tração e a organização da Igreja Católica, que incluía a construção e a reforma de templos e seminários e o pagamento de salário aos clérigos, entre outros deveres. Em contrapartida, a Igreja tornou-se a principal aliada na missão de “consolidação da identidade nacional e edificação da civilização”, em conformidade com “os costumes e sentimentos religiosos das autoridades e dos indivíduos”. Evidentemente, esta relação não tornava a Igreja submissa ao poder temporal nem fazia dos padres funcionários públicos. Mas, sem dúvida nenhuma, tornou mais difícil o controle hierárquico dos bispos sobre os párocos, na medida em que muitos optaram por priorizar os serviços do Estado do que a religião, com parte deles envolvendo-se diretamente na arena política, como o cônego Batista Campos, protagonista dos movimentos rebeldes do período regencial no Pará. Dos três bispos estudados por Fernando Arthur, dois deles, o cametaense Romualdo Coelho e o ultramontano José Afonso de Moraes Torres, tiveram que assumir cargos públicos por contingências de momento, para fazerem-se ouvir em defesa dos interesses da Igreja. O primeiro notabilizou-se como um conciliador

que se opôs ao incêndio de Belém pelos cabanos e negociador da adesão do Pará à independência. Mesmo tendo atuado antes do Ultramontanismo, o oitavo bispo do Grão Pará ligou-se àquele movimento por orquestrar o poder eclesiástico menos sensível ao poder do Estado. Dom Afonso é tido por Fernando Arthur como um bispo Ultramontano, embora a historiografia só tenha reconhecido D. Antônio de Macedo Costa como “portador desta insígnia”. O bispado de Dom Afonso começou no delicado momento de “pacificação” da Cabanagem e mobilizou-se pela revitalização da Igreja frente aos males da secularização, que, grosso modo, pode ser entendida como a perda de influência da Igreja sobre as variadas esferas da vida social. Quando D. Macedo Costa tomou posse no bispado, em 1860, a Igreja debatia-se em grande crise. Dele esperava-se que fosse fonte “para inspirar os homens no século da descrença provocada pelo avanço da modernização, percebido pelo século da indústria”. Apoiado nas teses do Concílio Vaticano e na infalibilidade do Papa, ele tomou para si a profilaxia do clero e da sociedade civil, punindo, com rigor, os homens de fé que flertavam com as ideias liberais e os maçons, posição que desembocará na Questão Religiosa. Combateu, ainda, a proposta de liberdade religiosa, temendo o avanço dos “biblistas”, os protestantes. Por suas ideias, foi preso. Mas a Igreja reconheceu-o como uma liderança, tornando-o Primaz do Brasil. O livro de Fernando Arthur, editado pela UFPA, com impressão e acabamento da Editora Açaí, é um trabalho de fôlego que traz ao leitor muito mais que as questões entre Igreja e Estado, ao descortinar também um pouco da vida no interior da Amazônia, com base na perspectiva dos relatórios de visitas dos bispos do século XIX. Serviço: Romualdo, José e Antônio: Bispos na Amazônia do Oitocentos, Fernando Arthur de Freitas Neves. Belém, Editora da UFPA, 2015.


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A Hist贸ria na Charge

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