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12 – BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010

Entrevista

"O Brasil está na vanguarda da pesquisa em Museologia"

JORNAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ • ANO XXIV • N. 83 • Maio, 2010

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Beira do Rio – Por que os museus ainda amedrontam tanto o público comum? T. S. – Os museus precisam falar a linguagem da sociedade em que eles Beira do Rio – Quais são as áreas de se inserem. Eles podem conter bens de atuação do museólogo? valor fantástico, mas se utilizarem uma T. S. – Praticamente, em todas as áreas linguagem de aproximação que não esdo campo da cultura, teja sintonizada com os das ciências e das artes. códigos culturais daquePrimordialmente, em la sociedade onde estão museus, centros cultuinseridos, as pessoas não rais e áreas patrimoniais, se sentem representadas, mas ele atua também em não entendem o que está institutos de pesquisa que ali. Então, é fundamental trabalham com cultura e que os museus de todos patrimônio; em universios tipos saibam adequar dades, na área acadêmica; suas linguagens às realiem empresas, fazendo dades culturais e sociais consultoria para a gestão dos grupos sociais em de certas coleções; em que estão inseridos e É fundamental aos quais estão servindo institutos de conservação; nas mídias, existem ou devem servir, já que essa relação vários museólogos, por o museu é uma agência comunicacional de representação social exemplo, trabalhando na Rede Globo, pesquisando cultural a serviço da ser adequada às esociedade. indumentária, mobiliEntão, na ário, temas históricos verdade, as pessoas não sociedades alvo para novelas de época. têm medo dos museus.

Beira do Rio – De que maneira o museólogo pode contribuir para diminuir essa distância? T. S. – Fazem parte da formação do museólogo as teorias e as metodologias de comunicação e análise do discurso. Eles não só trabalham isso teoricamente, como também fazem um conjunto de práticas, aprendendo a definir discursos e narrativas que sejam adequadas às sociedades. Eles aprendem a usar as linguagens de comunicação de maneira adequada para museus, a trabalhar com as linguagens auxiliares da exposição, como marketing. Aprendem a fazer o uso adequado à museologia das linguagens visuais.

Beira do Rio – O dia 18 de maio é dedicado à comemoração internacioBeira do Rio – Podemos dizer que nal do Dia dos Museus. Temos o que visitar museus é como a leitura: um comemorar nacionalmente? hábito que precisa ser T. S. – Estamos entrando incentivado. Precisana segunda década do mos desenvolver uma século XXI com uma cultura de visitação? museologia brasileira T. S. – Eu sempre digo sólida, muito bem amque não há idade para parada em metodologias começarmos a visitar e teorias apropriadas. museus. É um equívoTeoricamente, o Brasil é co pensar que a criança um dos países que estão muito pequena, que não na vanguarda das pesquilê, não vá entender. Ela sas. Nós temos um lugar pode não entender alguns sólido no âmbito dos conteúdos cognitivos, estudos internacionais Museu é um mas ela estará exposda Teoria da Museolota a um ambiente com gia. Contribuímos para nome dado a um conjunto de formas o crescimento e a consoorganizadas e isso será um conjunto de lidação da Museologia apreendido pela criança. como campo disciplinar. representações É muito comum, em Do ponto de vista prooutros países, as famífissional, nós temos 14 sociais lias levarem bebês aos escolas de graduação, um museus. Há determicurso de Mestrado em nados museus que são Museologia e Patrimôpreparados e o discurso é feito também nio, o primeiro do Brasil e da América do para essa criança. Em países como o Sul. Temos uma estrutura que permitirá, nosso, onde ainda temos problema com no próximo decênio, o desenvolvimento a alfabetização, isso é contornado por de uma formação sólida e a pluralizaexposições exploratórias, que trabalham ção dos profissionais. Este ano, vamos com todos os sentidos e não apenas com comemorar o convite feito ao Conselho a leitura. A narrativa da Museologia não Internacional dos Museus para a reaé uma narrativa só da escrita, é visual, lização da próxima Conferência Geral perceptual, e isso pode estar oferecido no Brasil, em 2013 e que foi aceito, em para qualquer pessoa, de qualquer idade votação, por representantes de mais de e meio social. 160 países.

Aprender Geografia fora da sala de aula

Mitos reforçam a cultura local

Dissertação investiga em que medida as narrativas orais influenciam o cotidiano e as relações sociais no município de Santa Bárbara. Solidão, identidade, trabalho e lazer estão entre os temas das histórias contadas. Pág. 9

Novo modelo didático inclui trabalho de campo com visita e observação de pontos turísticos de Belém. Pág. 5

Tatiane Vidal

Beira do Rio – Com as novas mídias, estamos vivendo um tempo em que as visitas deixarão de ser contemplativas? T. S. – Isso também tem a ver com a organização das narrativas. Os museus muito pequenos não estão obrigados a comprar e a manter novas tecnologias que extrapolam as suas possibilidades reais. É possível fazer tudo isso com um custo muito baixo e, aqui, entra o knowhow do museólogo, que deve conseguir fazer essas narrativas de maneira plural e inclusiva, mesmo sem o implemento de aparatos sofisticados. Mas só a incorporação das novas tecnologias não garante a relação positiva com a sociedade. Você pode ter um museu pleno de equipamentos sofisticadíssimos e, ainda assim, não conseguir estabelecer narrativas que sejam inclusivas. Precisa haver, por parte do profissional, um compromisso ético com a inclusão social e comunicacional.

Amazônia

História

Diários são fontes de pesquisa

Pág.11

Memória

O legado de Pasquale Di Paolo

Seres encantados que protegem a floresta e as águas estão presentes no imaginário dos moradores Pág. 4

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Extensão

Entrevista A professora Tereza Scheiner conversa sobre a importância da qualificação e o mercado de trabalho para os museólogos. Pág. 12

Urbanização

Projeto ensina História do Brasil por meio da música Samba e Hip Hop são alguns dos ritmos ouvidos nas oficinas do Projeto "História em Cantos". Alunos do

ensino médio da Escola de Aplicação analisam letra, melodia e contexto histórico das canções. Pág. 3

Mudanças na paisagem do Icuí-Guajará

Pág. 8

Lilian Brito

Há um campo vasto de atuação. O que entendemos como museu é um conjunto de representações sociais muito mais amplo, então, para a Museologia, jardins zoológicos e botânicos, planetários, aquários, parques nacionais e estaduais são museus. Existem os museus virtuais/ digitais que também podem ser criados, elaborados e trabalhados por museólogos, enfim, é um campo vasto. E há, ainda, a atuação junto aos serviços nacionais e internacionais de segurança do patrimônio, para evitar a evasão de bens culturais dos países. E, nos últimos anos, museólogos têm se envolvido, cada vez mais, em trabalhos de desenvolvimento sustentável, planejamento ambiental. Esse é um campo da museologia brasileira que está em expansão.

Às vezes, elas não os frequentam porque eles não dizem que estão lá e o que há para ser visto e, quando chegam a entrar, percebem que a linguagem não lhes diz nada. Não é o que está ali, é o modo de dizer. É fundamental essa relação comunicacional ser adequada às sociedades alvo.

Didática

dida no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa de Comportamento UFPA. Típica dessa idade, a brincadeira de faz de conta imita os papéis sociais e está diretamente relacionada com o contexto cultural em que as crianças estão inseridas."Vendedor", "comidinha" e "mamãe e filhinho" estão entre os enredos mais frequentes. Págs. 6 e 7

Karol Khaled

A Universidade Federal do Pará criou, em 2009, o primeiro curso de graduação em Museologia da Região Norte. O objetivo é suprir a carência de profissionais qualificados nessa área. De acordo com o Ministério da Cultura, no Brasil, existem dois mil museus responsáveis pela geração de 17 mil postos de trabalho. Mais de 80% dos profissionais que atuam nesses estabelecimentos, porém, não têm formação específica na área. A professora Tereza Scheiner, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da UNIRIO/MAST, esteve em Belém a convite da coordenação do bacharelado em Museologia. Em entrevista ao Jornal Beira do Rio, Tereza Scheiner falou sobre o campo de atuação profícuo para os profissionais que estarão formados nos próximos anos e sobre o que temos para comemorar no próximo dia 18, Dia Internacional dos Museus.

e 2003 a 2006, a professora Sônia Regina dos Santos Teixeira acompanhou alunos da Educação Infantil da Unidade Pedagógica da Ilha do Combu. As crianças, com faixa etária entre três e seis anos, também foram observadas em seus momentos de lazer. Os resultados da pesquisa foram apresentados na tese de doutorado defen-

Karol Khaled

Tereza Scheiner: "profissional precisa ter compromisso com a inclusão social"

Rosyane Rodrigues

Beira do Rio – Somente na Região Norte, há mais de 122 museus e apenas 28 profissionais em atuação. Qual o impacto que o primeiro curso de graduação em Museologia, da região, trará para o mercado? Tereza Scheiner – É um fato muito importante a nova Escola de Museologia da UFPA, que ofertará 30 vagas por ano. A proposta é que todos esses egressos, efetivamente, trabalhem no campo da Museologia, desenvolvendo atividades em museus e em instituições similares. O museólogo atua não apenas em museus, mas também em outras instituições do campo cultural e patrimonial, utilizando a metodologia da Museologia. Eu tenho certeza de que, em médio prazo, 2015 ou 2020, vocês já estarão sentindo esse impacto na prática, com a inclusão e o aporte de profissionais especializados e o desenvolvimento progressivo de técnicas, procedimentos e ações adequados a cada museu desses.

Fotos Karol Khaled

Pesquisadores brasileiros têm contribuído com o crescimento e a consolidação da disciplina.

Brincadeira é coisa séria

Coluna do Reitor Carlos Maneschy discute os reflexos do ENEM na Universidade Federal do Pará. Pág. 2

Opinião Jane Beltrão e Carlos Caroso falam sobre a 27ª Reunião Brasileira de Antropologia Pág.2

Estudantes da Escola de Aplicação em aula de História da Música

Bairro tem cenário urbano e rural


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BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010 –

História

Coluna do REITOR Carlos Maneschy

seleção tem requerido escalas sempre crescentes de tempo institucional, recursos materiais e de pessoal envolvido, cabe perguntar, então, se outro formato de ingresso não deve ser tentado. De início, vale a indagação: às universidades deve recair a tarefa de executar seus vestibulares? Não seria mais apropriado entregá-la à agência oficial com esse fim, concentrando maior atenção em melhor definir, em sintonia com a rede de educação básica, o perfil esperado dos que se preparam ao ensino superior, permitindo, assim, que uma intervenção qualificada seja produzida no ensino médio? No bojo dessas reflexões, insere-se a oportunidade de discutir o ENEM como instrumento de seleção para ingresso nas universidades públicas. Esse exame teve uma nova concepção proposta pelo MEC, com objetivo de substituir o vestibular por um modelo de avaliação que estimule a análise e o tratamento de fenômenos e problemas a partir de interpretação envolvendo mais conteúdo e menos memorização, com claros avanços pedagógicos. Para o Ministério da Educação, o ENEM, se adotado conjuntamente pelas IFES, pode promover a unificação da seleção de vagas em todo o país (nascendo daí a ideia do Sistema de Seleção Unificada-SISU), permitindo que candidatos de qualquer nível social e região possam concorrer a vagas em

qualquer instituição de sua escolha, num verdadeiro movimento de democratização do acesso, com impacto direto na mobilidade estudantil. Outro aspecto positivo da adoção dessa medida está na oportunidade de se ter um instrumento estratégico e poderoso de avaliação nacional do ensino médio, com clara capacidade de aferir objetivamente as assimetrias educacionais e, portanto, de servir como elemento de base para propostas de reformulação da educação no Brasil. Se, em tese, a proposta apresenta indiscutíveis vantagens, na prática, a experiência do ano passado revelou dificuldades e dúvidas a serem respondidas na próxima edição do exame. Dentre elas, duas se sobressaem: 1) a preocupação legítima nas regiões de mais baixos indicadores sociais de que as vagas em suas universidades sejam ocupadas por alunos das regiões mais desenvolvidas, caracterizando um processo predatório de migração; 2) a possibilidade de não se respeitar as especificidades regionais nos conteúdos da avaliação. Quanto ao primeiro questionamento, os resultados recentes apontam para a sua pertinência apenas para os cursos de extrema demanda, mais particularmente para os de Medicina, o que, em um primeiro momento, exigiria regras de acesso diferenciadas, caso alguma forma de restrição a esses cursos fosse desejada, naturalmente

OPINIÃO

Jane Felipe Beltrão¹ / Carlos Caroso²

obedecidas as restrições legais. Como resposta parcial à segunda preocupação, considerando que exames nacionais não podem mesmo valorizar temas de características regionais, mencione-se o esforço do MEC em selecionar e capacitar examinadores de todas as regiões para tratar apropriadamente desse tópico já na próxima oferta do certame. A UFPA decidiu adotar o ENEM como parte integrante do Processo Seletivo de 2011, combinado equitativamente com uma etapa realizada na própria Instituição e que irá conter tópicos de abordagem regional. Essa decisão seguiu o rumo da prudência esperada diante do registro de tantas manifestações que aconselhavam certa distância de passos mais ousados. O resultado dessa primeira experiência vai tornar possível a separação entre verdades e mitos. Os dados coletados permitirão uma valiosa aferição da qualidade do ensino médio no Pará, podendo medir o grau de competitividade nacional de nossos alunos. No desdobramento dessa iniciativa, pode-se começar, em conjunto com o sistema de educação básica, o levantamento e encaminhamento de ações corretivas para que os concluintes do ensino médio sejam mais bem preparados a utilizar o ambiente universitário como meio de realização de suas expectativas de melhor futuro e desenvolvimento humano.

jane@ufpa.br

A favor do Brasil plural e dos saberes tradicionais

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m 1966, quando os antropólogos abrigaram, no Simpósio sobre a Biota Amazônica, a VII Reunião Brasileira de Antropologia, em Belém, durante os anos de chumbo, jamais imaginaram que 44 anos se passariam até que a cidade, via Universidade Federal do Pará, abrigasse a 27a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA). Os antropólogos presentes à Biota tampouco podiam pensar a vertiginosa expansão da Associação a ponto das projeções estimarem a presença, na Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto, de cerca de 3.000 participantes. Fundada em 1955, durante a 2ª RBA que ocorreu em Salvador-Bahia, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) é uma das mais antigas e respeitadas associações científicas no campo das Ciências Humanas. Em pouco mais de meio século de existência, a ABA congrega especialistas em Antropologia e procura promover o desenvolvimento do campo disciplinar

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Rua Augusto Corrêa n.1 - Belém/PA beiradorio@ufpa.br - www.ufpa.br Tel. (91) 3201-7577

por meio do intercâmbio de ideias, do debate acadêmico e da defesa de interesses comuns, desempenhando papel ativo na condução de questões relacionadas às políticas públicas referentes à educação, à saúde, aos problemas fundiários, ao indigenismo, às questões étnicas e culturais, à temática de gênero e diversidade sexual, à ação social, à ética profissional e à promoção dos direitos humanos e da igualdade jurídica, entre as muitas demandas da sociedade civil. Evidentemente que, atuando em tantas frentes politico-acadêmicas, a reunião, a realizar-se entre 1º e 4 de agosto, será marcada pela discussão das questões candentes pela conquista de um Brasil plural que chame a si o respeito aos conhecimentos e saberes tradicionais, tão caros aos povos na Amazônia, especialmente, pela riqueza que imprime ao quotidiano e pelo respeito à diversidade. Estarão em Belém destacadas lideranças acadêmicas que atuam em ins-

Das gavetas para a Academia

reitor@ufpa.br

O ENEM e seus reflexos na UFPA

s vestibulares das universidades públicas têm efeitos de significativa repercussão social, em decorrência do papel transformador que essas instituições representam nos destinos dos que conseguem acesso por entre os estreitos caminhos às vagas no ensino superior. Com tal importância, incorporam-se ao imaginário e ao sentimento dos muitos milhões de candidatos, com a natural e larga extensão aos familiares e pessoas próximas. Portanto, a extrema observância aos cuidados para que esses certames selecionem os alunos mais bem preparados, com procedimentos que apresentem como preliminar a concessão de igual oportunidade a todos, deve direcionar os movimentos dos responsáveis pela execução de cada etapa dos exames. Com uma trajetória marcada pelo traço distinto que confere a cada instituição toda a responsabilidade pela seleção dos que nela vão ingressar, o vestibular construiu imagem positiva e muito bem assimilada pela sociedade. Mesmo os atropelos observados em situações excepcionais não tiveram a dimensão de invalidar o êxito dessa experiência de longos anos. Tanto sucesso, entretanto, tem sido alcançado como consequência de um enorme esforço que, hoje, já exige recursos nos limites impostos às universidades. Considerando que o aperfeiçoamento contínuo dos exames de

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tituições públicas e privadas no ensino, na pesquisa e na prestação de serviços, pois as Reuniões da ABA são o evento maior do campo e se constituem em encontro científico e profissional especial, envolvendo significativo número de antropólogos brasileiros e estrangeiros, que dialogam por meio de conferências, mesas redondas, grupos de trabalho, fóruns especiais, oficinas, minicursos, concursos e premiações que, na 27ª edição, se desdobrarão no debate dos subtemas: Pluralismo no Brasil Contemporâneo; Conhecimentos e saberes tradicionais; e Direitos à diversidade, cuidadosamente propostos para apresentar aos interessados o melhor da produção em Ciência e Tecnologia e Inovação na Antropologia, que resulta do crescente esforço de transversalização do conhecimento científico. A parceria UFPA/ABA indica o crescimento dos estudos antropológicos e o reconhecimento do trabalho dos antropólogos, na região, que não se circunscrevem à UFPA, mas estão

no Museu Paraense Emílio Goeldi – instituição centenária no abrigo de antropólogos – e nas demais instituições, reconhecendo o recente esforço da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e da UFPA em abrir portas aos estudos antropológicos ao propor e manter programas de pósgraduação em Antropologia que, por certo, formam/formarão profissionais de qualidade para o encaminhamento das soluções possíveis de promover o etnodesenvolvimento, proposta socialmente justa e ambientalmente reponsável, requerido pelos que, aqui, vivem e pelejam pela autonomia e pelo pluralismo inscrito na Constituição de 88. 1. Secretária Geral da Associação Brasileira de Antropologia. Docente da UFPA e Pesquisadora do CNPq. 2. Presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Docente da UFBA e Pesquisador do CNPq.

Reitor: Carlos Edilson Maneschy; Vice-Reitor: Horácio Schneider; Pró-Reitor de Administração: Edson Ortiz de Matos; Pró-Reitor de Planejamento: Erick Nelo Pedreira; Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Marlene Rodrigues Medeiros Freitas; Pró-Reitor de Extensão: Fernando Arthur de Freitas Neves; Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Emmanuel Zagury Tourinho; Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: João Cauby de Almeida Júnior; Pró-Reitor de Relações Internacionais: Flávio Augusto Sidrim Nassar; Prefeito do Campus: Alemar Dias Rodrigues Júnior. Assessoria de Comunicação Institucional JORNAL BEIRA DO RIO Coordenação: Ana Carolina Pimenta Edição: Rosyane Rodrigues; Reportagem: Abílio Dantas/Glauce Monteiro (1.869-DRT/PA)/ Igor de Souza/Jéssica Souza (1.807-DRT/PA)/Killzy Lucena/ Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE)/Raphael Freire/ Walter Pinto (561-DRT/PA)/ Yuri Rebêlo; Fotografia: Alexandre Moraes/Karol Khaled; Secretaria: Silvana Vilhena/Carlos Junior/ Felipe Acosta; Beira On-Line: Leandro Machado/ Leandro Gomes; Revisão: Júlia Lopes/Karen Correia; Arte e Diagramação: Rafaela André/Omar Fonseca; Impressão: Gráfica UFPA.

Diários íntimos são fontes ainda pouco exploradas nas Ciências Humanas Walter Pinto

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a obra A apologia da história ou o ofício do historiador, Marc Bloch (1886-1944), um dos maiores historiadores do século XX, ensina que fonte histórica é tudo aquilo que fala sobre o Homem. Para o medievalista francês fuzilado pelos nazistas por sua militância na resistência francesa, qualquer reflexão produzida pelo homem interessa a mais pessoas do que a ele próprio. Neste sentido, os diários íntimos escritos ao longo dos séculos – a prática cultural de escrever sobre si – se justificam como fonte privilegiada para o estudo não somente da história como também das demais ciências centradas no homem. A história dos diários íntimos remonta ao século XVI e está vinculada às transformações ocorridas no início da Idade Moderna, com ênfase no surgimento da imprensa e, consequentemente, ampliação do universo alfabetizado. Relevante papel desempenharam as novas religiões protestantes advindas com a Reforma. Para além do incentivo à leitura da Bíblia, elas estimularam a devoção interior por meio do exame de consciência. Essas experiências possibilitaram o isolamento e a busca do homem em se conhecer. Neste contexto, estabeleceu-se uma literatura autógrafa favorecida pela leitura individual e pela escrita de si. Os diários íntimos surgem, então, como verdadeiros confidentes de seus autores. No século XIX, aquela forma de literatura autógrafa atingiu grande profusão, notadamente durante o Romantismo, época de acentuado desejo pelo autoconhecimento humano. Em Um toque de voyeurismo: o diário íntimo de Couto de Magalhães (1880-1887), o historiador Márcio Couto Henrique, professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal do Pará, ao analisar o diário de um controverso herói da Guerra do Paraguai, discute sobre causas e fina-

Fotos Wagner Meier

Mácio Ferreira

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Tese de Doutorado em Ciências Sociais (Antropologia) deu origem ao livro Um Toque de Voyeurismo lidades da escrita de diários íntimos. Uma das justificativas mais recorrentes é a da construção da imagem que se pretende deixar para os pósteros, perspectiva que coloca ombreados literatos, como o francês Rosseau, a quem se atribui a noção da verdade existente na confissão sincera, e o brasileiro Gilberto Freyre, um dos introdutores dos diários na pesquisa científica brasileira. Outra justificativa muito empregada é a do autoaperfeiçoamento, a escrita como exercício para correção de procedimentos. Entre os cultores mais notáveis desta forma de terapia está Bronislaw Malinowski, que, meditando sobre o significado de seu polêmico diário, concluiu pela possibilidade de ajudá-lo no controle de seus apetites sensuais e na eliminação da lascívia que o atormentavam no trabalho de campo. Enfrentar a solidão, reter experiências vividas para torná-las acessíveis a qualquer

momento estão entre as muitas finalidades apontadas pelos escritores de si. Márcio Couto revela que, apesar da esfera de intimidade a que estão circunscritos, os diários esboçam um desejo de comunicação. "Penso que é possível aos historiadores fazerem uma leitura desses registros sem agredir a privacidade do autor”, revela. "O grande desafio é fugir de abordagem que valorize as excentricidades ou que trate os temas de forma jocosa. No final das contas, o que o autor revela sobre seu tempo e lugar é mais importante do que o que revela sobre si". Essas informações constituem o que o historiador chama de dimensão social dos diários, conceito em que inclui a linguagem, que se constitui em código sobre valores, como certo ou errado, moral ou imoral, em determinado tempo. Dizem respeito às relações sociais e, como tal, são de interesse das Ciências Humanas.

n Couto de Magalhães e as suas imagens opostas Em Um toque de Voyeurismo (Eduerj, 2009), versão modificada de sua Tese de Doutorado em Ciências Sociais, orientada pela professora Jane Felipe Beltrão, Márcio Couto apresenta os resultados das análises do diário do general Couto de Magalhães (1837-1898), escrito entre os anos de 1880 e 1887. Mineiro, bacharel em Direito, presidente da Província do Pará aos 27 anos, e das Províncias de Goiás, Mato Grosso e São Paulo, o general procurou, em público, construir a imagem de um homem forte, um soldado condecorado pelos serviços na Guerra do Paraguai. Não por acaso, optou por ser retratado nas telas com o uniforme de general, para reforçar a imagem pública que construiu de si.

A imagem que sobressai de seu diário íntimo, no entanto, é completamente diferente da construída para o público externo: um homem frágil, hipocondríaco ao extremo, ansioso, com medo da velhice e da pobreza. Há, também, registro de sonhos homossexuais com índios, negros e brancos, detalhadamente escritos em nheengatu – língua geral amazônica, utilizada pelos jesuítas para comunicação com os índios – para dificultar o acesso de possíveis curiosos. Nas mãos de um escritor sensacionalista, o lado onírico do general seria um veio fácil de explorar. Mas, "nas cuidadosas mãos" do historiador Márcio Couto, no dizer de Sérgio Carrara, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),

o que importou foi trabalhar a tensão do diálogo entre as anotações íntimas do general e as questões da sua época. Era um tempo “supostamente marcado pelos rigores da ciência médica, que defendia o ideal de família higiênica e burguesa, com o homem chefe de família vivendo no mesmo lar com sua mulher e filhos”. Couto de Magalhães estava, porém, na contramão: teve várias mulheres, três filhos, mas nunca coabitou com nenhuma delas. “Seu diário falava das mulheres e do casamento sempre em tom de desprezo. Um dos filhos dele viveu na Ilha do Marajó, fruto de relação com uma mulher paraense. São estas questões que discuto em meu livro”, explica o historiador.

n Diários livres do fogo e do lixo Segundo Márcio Couto, “mesmo com a ampliação da noção de fonte histórica a partir da chamada Nova História, os historiadores ainda não atentaram para a riqueza dos diários como fonte de pesquisa. Em parte, por conta da dificuldade em lidar com um tipo de fonte tão específica, que pelo fato de ser escrita de forma espontânea, na esfera da intimidade e em primeira pessoa, possui um ‘efeito-verdade’ que a muitos assusta”. Em quatro anos de pesquisa, o historiador da UFPA não encontrou um único livro escrito a partir de um diário íntimo específico. No máximo, encontrou coletâneas de artigos tratando de diversos diários e cartas. Demonstrando preocupação com o destino dado aos diários – o lixo ou o fogo –, Márcio Couto está engajado num movimento voltado à criação de arquivos para guarda de diários íntimos. Ao mesmo tempo, pretende sensibilizar os historiadores e demais cientistas para a importância da escrita de si na pesquisa em Ciências Humanas.“Tenho uma coleção composta por 15 diários íntimos, que me foram doados por pessoas comuns que aceitaram, de bom grado, a ideia de ver seus escritos íntimos sendo devassados em pesquisas acadêmicas”, conta o pesquisador. “Meu propósito é criar, na UFPA, um arquivo de guarda de diários, cartas, memórias pessoais, confissões e todo tipo de escrita de si, tornando-os disponíveis para a pesquisa”. Em breve, devem surgir as primeiras monografias de conclusão do curso tratando de diários íntimos escritos por pessoas comuns de Belém, ponto inicial para futuras pesquisas nesse novo campo de estudo.


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Educação

Arte

Killzy Lucena

N

o início de nossas vidas, somos educados por nossos pais. Na escola, o aprendizado caracteriza-se por nossa capacidade de leitura, interpretação e resolução de operações matemáticas. Mas as imagens que ilustram os diversos conteúdos são relegadas a um segundo plano e, se fossem aproveitadas a contento, fariam o aprendizado render mais e melhor. Possibilitar que isso aconteça é o objetivo do Projeto "Arte Saber: a alfabetização visual como construção da educação patrimonial/ambiental", o qual irá capacitar professores e graduandos para trabalharem o potencial da imagem em sala de aula. O Projeto, que acontece na Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará, é coordenado pela professora de Educação Artística Júnia de Barros Braga Vasconcelos, e teve início em abril deste ano, com palestras sobre educação ambiental, patrimonial e visual, além de oficinas de fotografia e intertextualidade. No campo educacional, a imagem se configura, hoje, como um recurso fundamental para auxiliar o processo de ensino-aprendizagem, seja em forma de cartazes, mapas, ilustrações de textos, filmes, entre outros. Muitos professores, porém, acabam por explorá-la de forma insi-

Fotos Karol Khaled

Proposta incentiva uso da imagem como recurso didático

Cantando e aprendendo História

Projeto da UFPA ensina a história recente do País por meio da música Glauce Monteiro

A

Mais do que ilustrar o conteúdo, a imagem pode ser um elemento rico para análise estética e semântica piente, desperdiçando suas múltiplas possibilidades. Um dos objetivos do Projeto é construir metodologias que permitam que o professor compreenda a imagem como um elemento

complexo e rico, usado não só para ilustrar o conteúdo, mas também para enriquecê-lo a partir das possibilidades estéticas, semânticas e históricas. Mas para entender a importância da valorização e compreensão da

imagem, Júnia Vasconcelos, especialista em Arte Educação e mestre em História e Teoria da Arte, considera importante conceituar o que é alfabetização visual, educação patrimonial e educação ambiental.

n Revalorização da disciplina

n Novos tempos e linguagens

De acordo com a professora, assim como é importante que um aluno aprenda a dominar os códigos da linguagem e os matemáticos, é fundamental que ele também seja ensinado a decodificar os códigos visuais para entender melhor o mundo ao seu redor. “Expressar-se diante de uma imagem é algo difícil atualmente, pois as pessoas não conseguem falar de elementos básicos, como cor, forma, textura, que não são colocados aleatoriamente numa tela ou numa fotografia. Esses elementos têm um propósito, mas este não é compreendido”, avalia Júnia Vasconcelos. A professora diz que, historicamente, no Brasil, a Arte era vista como uma disciplina “menor”, em que o aluno poderia pintar, desenhar e expressar sua criatividade, mas sem muita fundamentação. Hoje, esta disciplina é considerada pela Lei de Diretrizes Básicas como área do conhecimento, possuindo códigos e conteúdos próprios, buscando a formação de um sujeito criativo, mas também crítico a respeito do mundo e da nossa cultura. Tal reestruturação faz com que alunos e professores tenham uma visão menos discriminatória do ensino de Arte. “A Arte é uma das disciplinas que mais interage com as outras, por envolver diferentes formas de linguagens (visual, musical e corporal), o que ajuda alunos e colegas professores a serem mais simpáticos com o nosso Projeto”, conta.

Para Júnia Vasconcelos, atualmente, a escola trava uma luta meio injusta com o que se oferece fora dos seus muros. “Os alunos têm acesso a todo tipo de imagem, com destaque para a televisão, a internet e o videogame. Fica complicado o professor competir com isso usando o velho método do 'cuspe e giz’, hoje conhecido como ‘pincel e quadro branco’. Que alternativas a escola vai utilizar no século XXI, em plena Era da Imagem? Temos de tomar posse dos recursos da contemporaneidade e conectá-los ao universo escolar. Trazer para a sala de aula um episódio de desenho animado que fale sobre a importância de reciclarmos nosso lixo pode reforçar nossas aulas de Educação Ambiental, dando mais sentido ao estudo de um texto e abrindo possibilidades para outras ações críticas e criativas por parte dos alunos. Se nós, adultos, aprendemos melhor quando temos o suporte da imagem, imagine a criança que ainda precisa de suportes concretos para reforçar o aprendizado!", analisa. Apesar de acontecer na Escola de Aplicação da UFPA, para professores atuantes ou em formação, a participação no Arte Saber é aberta a professores da rede pública e privada que se interessem pelas áreas de educação visual, patrimonial e ambiental. Nos meses de maio e junho, serão realizadas oficinas para que se entenda como se criam imagens e

De posse da alfabetização visual, o passo seguinte é trabalhar a educação ambiental e patrimonial para que se possa compreender e valorizar o mundo em que vivemos a partir do que está mais próximo de nós: nossa casa, nosso bairro, nossa escola, nossa cultura, nosso patrimônio histórico e nossas reservas ambientais. Ao falar de patrimônio, logo nos remetemos aos museus e prédios históricos, mas o Projeto trabalha o ponto de vista cultural, entendo patrimônio como um bem que deve ser percebido e valorizado. Júnia Vasconcelos explica que, nesse enfoque, o objeto de estudo (uma dança, um museu, um espaço verde) é tratado como um fenômeno. “Os alunos precisam vivenciar o conhecimento como fenômeno, o qual não está contido em uma só disciplina, mas perpassa por todas elas. Isso reforça a necessidade de trabalharmos de maneira integrada com profissionais das várias disciplinas, que juntos articulem ações que favoreçam a construção do conhecimento. Observando o fenômeno de maneira direta, a partir de uma abordagem crítica, o aluno conseguirá aprender mais e melhor, e este é um dos nossos objetivos, propor ações interdisciplinares que permitam vivências em diferentes espaços, possibilitando que esse aluno amplie seus conceitos de preservação", pondera a professora.

lém de tocar as pessoas, a música é uma fonte histórica inesgotável. Nas composições estão registrados acontecimentos, movimentos políticos, situações econômicas, tendências comportamentais, ideologias e percepções do passado, do presente e expectativas de futuro de toda uma geração. Por esse motivo, os movimentos, os gêneros e os estilos musicais das décadas de 20 a 90 fazem parte do currículo do ensino médio e são cobrados em processos seletivos de ingresso nas universidades, inclusive na Universidade Federal do Pará. O Projeto “A História em Cantos: música popular brasileira no ensino da História", desenvolvido na Escola de Aplicação da UFPA, por meio do Programa de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM), realiza oficinas que buscam novas alternativas para ensinar esse conteúdo aos estudantes do ensino médio. Cleodir da Conceição Moraes, coordenador do Projeto e professor de

Karol Khaled

Professores recebem alfabetização visual

Desde os sambas dos anos 20 até o manguebeat, oficinas levam letra e melodia para dentro da sala de aula História da Escola de Aplicação, conta que as atividades começaram como uma experiência pedagógica ainda em 2007. "O uso da música surgiu pela

observação e pela convivência com os alunos. Percebi que muitos tinham ou tocavam instrumentos, quase todos utilizavam aparelhos eletrônicos e

passavam parte do tempo, mesmo na escola, ouvindo canções. A proximidade com o gênero musical foi a inspiração", lembra.

n Melodia é apenas um dos componentes musicais O professor explica que a música possui dois elementos estruturais: a letra e a melodia, que é a música propriamente dita, e que ambos devem ser levados em conta ao analisarmos uma canção. "A letra e todas as suas nuances compõem a parte poética, com suas figuras de linguagem, organização textual e escolha de vocabulário. E temos, ainda, uma parte propriamente musical que se refere ao timbre, ao ritmo, aos instrumentos musicais utilizados e também ao tipo de mídia em que foi divulgada a música", detalha Cleodir Moraes. Para trabalhar a música de

forma global, foram criadas oficinas que acontecem ao longo do ano letivo. Em cada oficina, são apresentados dois gêneros, estilos ou movimentos musicais de um dado período. Assim, em 2010, em março e abril, o tema foi Samba e Bossa Nova. De maio a junho, o debate será sobre a Tropicália e a Música Engajada. Já em agosto e setembro, a oficina tratará do Rock e do Hip Hop. A oficina também se divide em dois momentos. Às quartasfeiras, são realizadas aulas de História da Música e às sextas-feiras, aulas de Música com os professores Cristina Owtake e Marcelino Moreno, do curso de Licenciatura em Música da

UFPA. A ideia é incentivar a formação de uma Banda da Escola de Aplicação da UFPA. "Além de mostrarmos imagens de festivais, de bandas de Rock, de intérpretes e de compositores, também fazemos as escutas musicais, sempre com a versão original da canção, porque cada releitura é, na verdade, uma nova produção e essa nova versão pode até negar o sentido da versão inicial", defende Cleodir Moraes. "Trabalhamos com vários gêneros desde as décadas de 20 e 30, como o Samba, até os anos 90, com o Rock, o Manguebeat e, regionalmente, com o Brega e o Carimbó".

Paralelamente ao trabalho de ensino, também foi desenvolvida uma pesquisa voltada para a análise bibliográfica da documentação fonográfica e impressa, disponíveis nas bibliotecas de Belém. "Bolsistas da Faculdade de História e da Escola de Aplicação da Universidade analisaram como foi a repercussão dos chamados grandes gêneros em Belém, nas décadas de 60 e 70; como os artistas locais reagiram a eles e se posicionavam diante das polêmicas; como recebiam novas tendências e se organizavam em associações, clubes e realizavam eventos, como shows, saraus e festivais de música", revela.

n A música como prática social e representação cultural

Júnia: "estamos na Era da Imagem" como elas podem ser usadas em sala de aula. A partir de agosto, a metodologia criada com os participantes será aplicada em salas de aulas do ensino fundamental. De acordo com Júnia Vasconcelos, o Projeto culminará com uma mostra do que foi produzido e o lançamento de um CD-ROM interativo, com metodologias, imagens e artigos resultantes das experiências desenvolvidas. Maiores informações no blog www.projetoartesaber.blogspot.com.

As músicas são uma fonte histórica importante para compreender a história recente do Brasil. “Os movimentos culturais que se desenvolvem aqui ou em qualquer lugar estão intimamente relacionados com as histórias políticas, econômicas e sociais desse país. Não há como separar o nível econômico do social, o social do cultural, o cultural do político e vice-versa. Fazemos uma fragmentação didática e podemos, no momento da pesquisa ou do ensino, dar ênfase a um deles, mas, mesmo assim, sem nos desvencilharmos dos outros”, lembra Cleodir Moraes. “Se ensino as mudanças políticas do país dividindo-as por Governo Presidencial, o conteúdo pode não despertar tanto o interesse dos alunos ou eles podem não compreender efetivamente a cadeia de acontecimentos. Então, na contramão desse modelo, mostramos como o cultural

está não apenas refletindo, mas também influenciando esses processos de mudança”, explica o coordenador do Projeto. Como prática social e objeto carregado de significados, explica Cleodir Moraes, a canção popular não é um mero reflexo, fiel ou distorcido, da realidade que visa representar, mas traz em si o conjunto de tensões políticas e estéticas que forjam essa mesma realidade. O professor conta que a produção intelectual nas universidades brasileiras exerceu forte influência sobre os movimentos culturais. Isso porque os grupos de músicos, compositores e intérpretes, em muitos momentos, eram majoritariamente universitários, “eles eram considerados intérpretes da ideia de nação brasileira e o seu pensamento repercute no campo cultural, mais especificamente, como Música Engajada, preocupada em promover a transformação social com

caráter nacionalista defendendo, por isso, os ritmos, os instrumentos e as temáticas regional e nacional. Na música Disparada, no Festival da Canção de 1967, foi utilizada uma carcaça de boi como instrumento de percussão”. Conflito – O caráter nacionalista, da Música Engajada faz com que ela entre em confronto com aqueles que irão filiar-se à Tropicália, movimento musical que se declara aberto a todas as influências, nacionais ou não. "Quando os tropicalistas começam a utilizar instrumentos eletrônicos na música popular, como no Samba, eles entram em conflito com os adeptos da Música Engajada, que viam nisso uma adesão ao imperialismo norte-americano. Os tropicalistas, por sua vez, passam a adotar a língua estrangeira, os instrumentos, os temas e até personificar a indumentária de

grupos musicais americanos e europeus, como os Beatles”, conta o historiador. Esse conflito é apenas estético e cultural? “Não”, responde Cleodir Moraes. Para entender as opções estéticas de um dado estilo ou movimento musical, é necessário estudar os elementos ideológicos de compositores e intérpretes que o compõem, levar em consideração suas origens sociais, suas relações com as instituições públicas ou privadas de fomento cultural, com a indústria fonográfica e com o público receptor dessa produção musical. “Assim, é possível, por exemplo, compreender por que Caetano Veloso foi estrondosamente vaiado nas eliminatórias do III Festival Internacional da Canção, em São Paulo, em 1968, quando interpretava a música "É proibido proibir", com uma roupagem tropicalista", afirma o pesquisador.


4 – BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010

BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010 –

Memória

Amazônia

Pasquale Di Paolo deixa legado para comprometidos com as lutas sociais Acervo Pessoal

Q

uando a história de um lugar é contada, a versão das elites e autoridades oficiais tende a ser aquela que se impõe como a mais verdadeira. Desta forma, situações e personagens importantes para o entendimento das particularidades de dado local e contexto histórico correm o risco de ficarem à margem da memória coletiva. A história da Amazônia, quando for passada a limpo, deverá conter o nome de um homem que contribuiu para o desenvolvimento de vários setores desta região, da atuação acadêmica na Universidade Federal do Pará (UFPA) à garantia de direitos fundamentais. Seu nome é Pasquale Di Paolo. Nascido na pequena cidade italiana de San Martino in Pensilis, o professor Pasquale Di Paolo percorreu uma trajetória digna das histórias do cinema, na qual a preocupação com a educação e a justiça é evidente em todos os momentos, até a ocasião de sua morte em 1987. Ainda jovem, Pasquale Di Paolo tornou-se padre. Movido por uma imensa vontade de conhecer o Brasil e a Amazônia, aceitou a missão de vir atuar na periferia da cidade de Porto Velho. A população do lugar, especialmente os mais pobres, vivia em condições muito precárias. Em meio à função de religioso, engajouse na abertura e melhoria de ruas para

n Espaço para pesquisa científica

Legado de Pasquale Di Paolo inclui obras sobre a Amazônia promover condições de habitação e de vida mais dignas. Providenciou, inclusive, a criação de uma biblioteca na comunidade em que residia. Sua vivência em Rondônia, no entanto, esbarrou em interesses maiores que motivaram sua saída do Estado e, posteriormente, da própria Igreja. Em matéria publicada no Jornal Tribuna da Imprensa, em 5 de dezembro de 1974, o jornalista Genival Rabelo fala sobre o padre que conhecera em Brasília, na ocasião

em que este procurara por Jerônimo Santana, então deputado por Rondônia, para fazer “graves denúncias de abuso do poder econômico no setor da mineração da cassiterita, bem como de atividades irregulares de grileiros que feriam interesses e até mesmo direitos adquiridos de velhos colonos". Na entrevista dada ao jornalista, a qual tinha como tema principal a situação política da Itália, Pasquale Di Paolo preferiu não ser identificado.

n Questões políticas provocam saída da Igreja Não se pode afirmar a motivação da Igreja, o certo é que Pasquale Di Paolo foi intimado a sair de Rondônia, sendo sugerida sua transferência para outro local que não fosse o Brasil. Apesar da pressão, ele não aceitou e desligou-se de seu cargo religioso. Não queria, de forma alguma, afastar-se da Amazônia. E por meio de contatos com amigos, mudou-se, então, para Belém. No intuito de conhecer melhor essa cidade, acrescentou mais uma experiência enriquecedora em sua vida, a de pesquisador da Umbanda e da Cabanagem, temáticas significativas para o contexto local. Na busca pela sobrevivência, agora, sem vínculo direto com a Igreja, Pasquale Di Paolo procurou

todo tipo de emprego, inclusive o de garçom. Mas foi na área educacional que teve a primeira oportunidade, ensinando Espanhol em colégios de Belém. Em 1977, após revalidar, no Brasil, seus diplomas de Teologia e Filosofia e concluir o curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará, foi convidado para atuar como professor colaborador na cadeira de Ciência Política, na própria UFPA, onde, após aprovação em concurso, tornou-se professor efetivo. Como pesquisador, sua maior preocupação foi entender a imensa complexidade da cultura belenense, paraense e amazônica. Tanto que o tema Umbanda, objeto de sua dissertação de mestrado, chegou-lhe

pela própria população da cidade, que sempre o convidava para visitar terreiros. Durante essa pesquisa, identificou a presença de mais de mil terreiros de umbanda em Belém. Na mesma época, os documentos oficiais reconheciam a existência de apenas sete. O interesse pela história da Cabanagem também veio naturalmente. Pasquale Di Paolo entendeu que o fenômeno exerceu uma importância enorme na formação do povo paraense. O seu livro Cabanagem: a revolução Popular da Amazônia, premiado em 1985 pelo Conselho de Cultura do Estado, é uma obra pioneira no que diz respeito ao trato desse movimento como uma Revolução.

Obras Livros abordam questões sociais, políticas e história regional e nacional brasileira. • Umbanda e Integração Social (1979) •Espanhol para o vestibular (1981)

•CADERNOS Cepas 1 (1981) •CADERNOS Cepas 2 (1982) •CADERNOS Cepas 3 (1983) •Cabanagem: a revolução popular da Amazônia (1985) •Palavra Nua, Parole Nuda. (de

poesia, escrito em português e em italiano) (1986) •Mediação política e integração humana: um estudo sociológico do poder (1987) •A mediação política em Belém do Pará. (publicado após sua morte) (1988)

O processo de ensino, estudo e pesquisa de Pasquale Di Paolo, do qual surgiram todos os seus trabalhos, é algo que deve ser destacado, pois possui um fator que o diferencia de outras metodologias: o constante debate de ideias. Desde o ano de 1980, o professor construiu, com estudantes e colegas, um lugar onde esse diálogo era possível e realizou uma série de atividades que tinham a educação como principal objetivo. Esse espaço chamava-se Centro de Estudo, Pesquisa e Assessoria Social (Cepas). No Cepas, vários temas eram discutidos, tendo como foco principal a promoção de pesquisa científica sobre a realidade social com contato direto com a realidade humana, suas particularidades e seus principais problemas, sem perder de vista o papel da educação e do conhecimento como princípios agentes para a conquista da cidadania. Segundo a professora e viúva do pesquisador, Darcy Flexa Di Paolo, o Cepas surgiu a partir da ideia de se unir o conhecimento do ensino superior com a vontade de melhorar a vida nas comunidades, especificamente de Belém. Por isso, além da pesquisa e do estudo, das atividades abertas a todos, o Cepas procurava manter contatos com moradores e lideranças de diversos bairros, no intuito de contribuir para a conquista de melhores condições de vida para todos. Daí vem a expressão "Assessoria Social", presente na sigla. Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento passaram pelo Cepas: psicólogos, administradores, sociólogos e historiadores. Esse caráter multidisciplinar ficava explícito na sessão conhecida como Seminário Interdisciplinar, que ocorria aos sábados. Nesses momentos, um tema principal era escolhido, um palestrante era convidado para fazer uma explanação geral e os participantes expunham suas dúvidas e posicionamentos. Muitas pesquisas de Pasquale Di Paolo se desenvolveram nesses momentos. Uma das atividades foi a pesquisa referente a eleições. Será que a população entende qual é a função dos políticos? Quais os principais motivos que levam a população a votar em tais políticos? Questionários foram preenchidos e foram estatísticas levantadas. Depois de um tempo, os políticos locais começaram a procurar o Cepas para saberem suas posições nas disputas eleitorais. O Centro tornou-se, então, pioneiro no nesse tipo de enquetes e pesquisas. O professor Pasquale Di Paolo morreu em agosto de 1987, mas sua passagem por Belém do Pará, mesmo curta, foi significativa, especialmente quando consideramos o legado deixado em seus livros e o seu exemplo como profissional.

Mito e cultura no labirinto das águas

Dissertação traz à tona narrativas sobre encantamentos em Santa Bárbara Jéssica Souza

E

ra uma... foi uma vez... que eu ia pra beira do igarapé, eu, minha mãe e um rapaz. Nós fomos pescar siri. Quando a gente chegou na beira desse igarapé, era umas cinco horas da tarde, a gente já tinha meia saca de siri, de tanto que a gente gostava de pescar. E a minha mãe disse: "Não, umbora mais adiante um pouco". Choveu, deu aquela chuva. Então, a maré tava muito alta. E aí, apareceu... vinha assim, cortando água... pra mim era dois 'tubarão'. E eu disse: "Mãe, olhe, dê uma olhada, vem dois tubarão ali". Aí ela me disse: "Meu Deus do céu, é a Cobra Grande". Eu achava que era dois tubarão, era a presa da cobra. Quando ela levantou a cabeça, nós vimos que era realmente a Cobra Grande, a coisa mais horrorosa do mundo, eu nunca tinha visto. Essa história foi contada por uma moradora do município de Santa Bárbara, na Região Metropolitana de Belém, um pedacinho da Amazônia no coração da cidade, onde o imaginário coletivo ainda é ricamente povoado por mitos e encantamentos. O narrar é rico, na verdade, em todo espaço onde existe o elemento humano. Onde há vida humana, há o contar, que cria e recria histórias,

Tatiane Vidal

De San Martino in Pensilis a Belém do Pará

Abílio Dantas

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A presença excessiva de rios e igarapés instiga o imaginário popular em Santa Bárbara na forma oral, escrita e/ou visual. A oralidade, porém, é uma das formas mais antigas de narrar e, mesmo diante das novas tecnologias, se mantém forte na tradição cultural de muitos grupos sociais. Investigar a influência das narrativas orais no cotidiano dos mo-

radores de Santa Bárbara, observando o caráter ordenador, de controle social, presente nessas narrativas, foi o objetivo da Dissertação "Narrativa Oral em Santa Bárbara do Pará: mito e cultura no labirinto das águas" de Tatiane Vidal Mesquita, defendida recentemente na Universidade Fede-

n Histórias orientam contato com a natureza No caso da história sobre a Cobra Grande, por exemplo, narrada por uma comerciante do município, percebe-se que, apesar de já possuírem o suficiente para alimentar a família ("a gente já tinha meia saca de siri"), o gosto pela pesca fez com que eles fossem mais adiante, buscando o prazer da diversão. Explica, então, a pesquisadora: "na cultura local, é comum as pessoas falarem de seres encantados que protegem seus espaços. No caso dos rios e igarapés, temos, principalmente, a Mãe-d'Água, o Boto e a Cobra Grande. Por isso surgem, no imaginário coletivo, os lugares proibidos para a pesca. Se os pescadores buscam o suficiente para garantir a subsistência, o equilíbrio se mantém, mas ir além do permitido

resulta em punição". Os mitos e as histórias transmitidas oralmente, conforme avaliou Tatiane Vidal, retratam diversas temas, como solidão, identidade, vivência familiar, experiências compartilhadas com o grupo social (trabalho, lazer, religião), e, também, os problemas sociais. "As narrativas são definidoras de ações, que orientam o homem no seu contato com a Natureza e com a sua comunidade. Cada vez que alguém pede permissão aos seres mitológicos para entrar na água ou na mata, movese a cultura, reforçam-se as tradições", continua a pesquisadora. Assim, acontece em Santa Bárbara, onde a presença excessiva de rios e igarapés forma caminhos de água, que se cruzam em vários lugares desenhando um verda-

deiro labirinto, fato que instiga, ainda mais, o imaginário popular. "A imagem da Cobra Grande, na narrativa em questão, mostra uma cobra com dentes imensos, surgindo na água como 'dois tubarões'. Na reinvenção da memória, a Cobra é 'a coisa mais horrorosa do mundo', que demarca seu território e expulsa aqueles que desafiam seu poder", diz a professora. Dessa forma, as vozes inseridas no contexto de Santa Bárbara são, por metonímia, as vozes de cada região amazônica. O trabalho busca voltar um olhar científico para o 'homem comum', a partir do entendimento de que as narrativas orais não acontecem apenas num invólucro de encantamento, mas também atreladas ao contexto existencial de cada narrador.

n Mitos explicam aspectos da vida cotidiana No cotidiano do que não se pode explicar racionalmente, a vida é explicada por meio do mito, com recorrência à memória. "A palavra ‘criação’, presente nas narrativas mitológicas, nos aproxima da arte, representa e justifica realidades, em que o aspecto simbólico, muitas vezes, prevalece", afirma a pesquisadora Tatiane Vidal. Como diria Fernando Pessoa, o "mito é o nada que é tudo". Um tudo que resume a luta da humanidade contra o esquecimento, e lutar contra o esquecimento é marcar uma identidade. Os temas que podem surgir a partir daí se referem ao aspecto

popular da vida humana. De acordo com a pesquisadora, a importância acadêmica da pesquisa reside justamente no estudo dessa Literatura Oral, enquanto arte de exprimir cultura em palavras, imagens e sons. Para basear sua pesquisa, Tatiane Vidal realizou entrevistas, in loco, com os moradores de Santa Bárbara. "O ir ao encontro do 'outro' faz com que mergulhemos no entendimento antropológico da própria vida humana, nesses arredores", recorda. A relação dialógica entre pesquisador e entrevistado, ressalta

Tatiane Vidal, fez do trabalho um encontro de vozes, em que o entrevistado deixa de ser informante e passa a ser narrador. Outro ponto importante é o sentido de devolução social, ou seja, o retorno para a comunidade das informações que ela mesma prestou. "Esse retorno pode acontecer sob a forma de exposição oral e/ou doação dos documentos confeccionados para escolas e bibliotecas locais. Logo, temos um compromisso com o contexto social". Leia, na edição On Line, algumas narrativas registradas pela pesquisadora.

ral do Pará, sob orientação do professor José Guilherme Fernandes. Uma das constatações da pesquisa é que o espaço amazônico é determinante na configuração da sociedade local, que apresenta padrões, tabus e regras de conduta, os quais passam de geração a geração, por meio da oralidade.

Onde o urbano e o rural se confundem A narrativa oral gera padrões sociais, que operam, na sociedade, formas de ocupar e utilizar o espaço, e o espaço amazônico é formado basicamente de floresta e água, sendo que a parte floresta só é abundante, em diversidade de fauna e flora, devido às águas que compõem este exuberante cenário: águas dos rios, dos furos, dos igarapés, das chuvas, da lama dos mangues e até do próprio ar que apresenta umidade relativa elevada, chegando a 85% em Santa Bárbara. O m unicípio de Santa Bárbara, criado pela Lei nº 5.693, de setembro de 1991, sancionada pelo governo de Jáder Barbalho (Publicada no Diário Oficial de 20 de dezembro de 1991, edição de número 27.122, p.7), foi desmembrado do município de Benevides. Como ocorre nas várias cidades da região amazônica, nesse município, fica difícil separar os limites do rural e do urbano. Esses dois aspectos se misturam num intercâmbio muito forte, criando mais uma nova forma de apresentação do espaço social. Fonte: Dissertação "Narrativa Oral em Santa Bárbara do Pará: mito e cultura no labirinto das águas" - Tatiane Vidal (2009).


8 – BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010

BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010 –

Didática

Urbanização

Mudanças na paisagem do Icuí-Guajará

Geografia fora da sala de aula

Observação in loco dá novo sentido aos conteúdos ministrados

Fotos Lilian Brito

n Analisando a cartografia

Trabalho de campo: com os dados coletados, os alunos finalizaram a carta-imagem do bairro Igor de Souza

I

magine uma paisagem composta por sítios e granjas, onde pessoas cultivam produtos agrícolas e praticam a criação de animais (avicultura, piscicultura, e outros) enquanto crianças vivem a sua infância brincando às margens de um rio. Agora, imagine que, do outro lado da rua dessa mesma paisagem, exista uma área comercial e um condomínio fechado de grande porte, aos moldes dos existentes nas grandes cidades. Rural versus Urbano: esse é o cenário encontrado no bairro Icuí-Guajará, do município de Ananindeua, pelo Projeto "Instrumentalização para a leitura

e representação cartográfica do espaço urbano - Icuí-Guajará", da Escola de Aplicação, da Universidade Federal do Pará. Aprovado no início de 2008 pelo Programa de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM), da Diretoria de Projetos Educacionais da UFPA (DIPRO), o Projeto propicia uma maior interação entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes da geografia escolar referentes à análise das transformações ocorridas na organização do espaço urbano. Dessa forma, os alunos envolvidos desenvolvem o aprendizado de habilidades e competências para a leitura, o mapeamento e a representação de fenômenos

e processos geográficos ocorridos, neste caso, no bairro IcuíGuajará. Ao todo, o Projeto envolveu, em sua primeira fase, dez alunos do 1º ano do ensino médio da Escola de Aplicação e dois bolsistas da graduação do curso de Geografia, da UFPA. Para a diretora da Escola de Aplicação e uma das coordenadoras do Projeto, Lilian Simone Amorim Brito, o objetivo do Projeto está em pleno acordo com o objetivo principal do PAPIM: "promover uma integração entre a educação básica e o ensino superior, ou seja, aplicar, na prática, os conhecimentos obtidos na graduação com alunos da educação básica".

n Bairro apresenta paisagens urbanas e rurais Desde a década de 60, o processo de expansão urbana da cidade de Belém se dirigiu para o sentido da Av. Augusto Montenegro e rumo à BR-316, formando o que hoje conhecemos como a Região Metropolitana de Belém, abarcando os municípios de Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara, além dos Distritos de Icoaraci, Outeiro e Mosqueiro. Entre os municípios citados, Ananindeua foi o que passou por transformações mais intensas na reorganização do seu espaço, seja pela proximidade com a capital do Estado, seja pela descentralização da cadeia produtiva e mobilidade populacional.

Tais transformações são evidenciadas a partir da constituição dos vários bairros do município, os quais crescem cada vez mais. Para a coordenadora Lilian Brito, uma das hipóteses que explica a expansão de Belém para as áreas localizadas no município de Ananindeua é a chamada "antecipação espacial", fenômeno caracterizado pelo investimento de empresas mobiliárias e industriais em espaços que, supostamente, não dariam grandes retornos financeiros, mas, na verdade, tornam-se bastante valorizados a partir do incremento da infraestrutura e da ação do Estado, que estimula a ida de pessoas para locais onde a concentração popu-

lacional é menor. Entre as áreas de Ananindeua, o bairro Icuí-Guajará foi o escolhido como local de estudo no Projeto da Escola de Aplicação justamente por estar em pleno processo de urbanização, mas manter resquícios de uma organização espacial tipicamente rural. "O Icuí-Guajará é uma área detentora de uma diversidade no uso do solo. Lá, encontramos madeireiras, olarias, sítios de grande e pequeno porte, granjas, e o interessante é notar que tudo isso está ao lado de condomínios fechados, loteamentos privados e conjuntos habitacionais regulamentados pelo Estado”, analisa Lilian Brito.

Para observar e entender toda essa dinâmica socioespacial do bairro, os alunos da Escola de Aplicação tiveram que passar por duas oficinas de instrumentalização teórica ministradas pelos bolsistas do curso de graduação em Geografia da UFPA, Marcos Quintairos e Rodrigo Souza de Oliveira. A primeira oficina enfocou o ensino das bases da cartografia e componentes necessários para a produção de mapas e croquis, tais como legendas, escala, orientação espacial, entre outros elementos. Logo após essa oficina, os alunos saíram para o reconhecimento do bairro Icuí-Guajará, onde puderam fazer os primeiros levantamentos de dados geográficos com a utilização de GPS (Sistema de Posicionamento Global, em inglês), de registros fotográficos das diversas formas e padrões de ocupação e uso do solo expressos na paisagem urbana e do manuseio de mapa e croqui da área de estudo. Em seguida, uma segunda oficina teórica foi necessária para ensinar aos alunos a utilização de softwares voltados para confecção de cartas geográficas, mapas e análises de fotos aéreas, como o “ArcView” e o “ArcGIS”. No segundo trabalho em campo, os alunos puderam conferir os pontos de GPS levantados na primeira visitação, perceber as transformações ocorridas na organização socioespacial do bairro no intervalo de um mês, decorrido entre cada trabalho de campo, e perceber, de forma mais evidente, a organização espacial de algumas áreas que não haviam sido visitadas na primeira ida ao bairro, bem como classificar as áreas por tipologias de paisagens. Transformações – "Durante o intervalo de um trabalho de campo para o outro, as transformações socioespaciais que ocorreram no bairro foram imensas. Então, os alunos puderam perceber, na prática, como a dinâmica da organização da sociedade se materializa nesse espaço, destacando os elementos da geografia, como as transformações da paisagem, as formas de reorganização do espaço, entre outros elementos trabalhados, tanto na graduação como na educação básica", observa a coordenadora Lilian Brito. Munidos de novos dados da área de estudo, os alunos puderam finalizar a carta-imagem de uso e ocupação do solo do bairro Icuí-Guajará na primeira fase do Projeto. Na segunda fase, iniciada este ano, a parte prática da cartografia cede lugar para as entrevistas com moradores, no intuito de confrontar as informações deles com as de alguns órgãos estaduais e municipais. Assim, pretende-se aprofundar a análise das razões que provocam as transformações socioespaciais do bairro. “Os alunos envolvidos criam o hábito de desenvolver pesquisa na educação básica e na graduação", conclui a coordenadora Lilian Brito.

Yuri Rebêlo

P

aisagem s.f. 1. extensão de território que o olhar alcança num lance; vista, panorama (do alto, essa p. é mais bonita) 2. conjunto de componentes naturais ou não de um espaço externo que pode ser apreendido pelo olhar 3. espaço geográfico de um determinado tipo (p. costeira; p. campestre). No dicioná-

rio, a definição da palavra paisagem pode parecer simples, mas, como interpretar corretamente o que nos é transmitido por meio dela? Como ler as entrelinhas de uma imagem? É isso que a Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará (UFPA) está tentando ensinar aos seus alunos com o Projeto “A percepção da dinâmica da paisagem no ensino da Geografia da 8ª série do ensino fundamental”. O Projeto, aprovado no Programa de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica (PAPIM) pelo segundo ano consecutivo, tem como proposta tornar o ensino da Geografia mais interessante. “Nós estamos tentando dar uma importância cada vez maior para o ensino da Geografia, porque, dentro dos muros da Universidade, a disciplina, notoriamente, demonstra vários avanços”, conta o professor Mauro Pantoja de Moraes, da Escola de Aplicação,

EM DIA

Acervo Pesquisador

Alunos do ensino médio analisam uso e ocupação do solo em Ananindeua

Prêmio O Beira do Rio recebeu o Prêmio “Destaque Andifes de Jornalismo”. A premiação é concedida, anualmente, pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior e reconhece os melhores periódicos produzidos pelas assessorias de comunicação das instituições nacionais. Os vencedores da 5ª edição foram a Universidade Federal do Pará (UFPA) – 1º lugar, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – 2º lugar, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – 3º lugar. Alunos da Escola de Aplicação em visita à Casa das Onze Janelas

De acordo com o professor, o ensino da Geografia tem sofrido modificações ao longo dos últimos 30 anos, e uma das funções do Projeto é levar essas mudanças para fora da Universidade. “A Geografia passa a ser importante dentro da Academia, visto que começa a ter uma perspectiva de produzir conhecimento, de semear entre os alunos outros entendimentos sobre a compreensão do espaço geográ-

fico. Não faz mais sentido estudar Geografia decorando, memorizando e descrevendo os conteúdos. É necessário interpretar, entender os diversos elementos que agem na produção do espaço, a partir, por exemplo, da real observação da paisagem, do movimento, da construção. Procurar entender o que há por trás de cada paisagem que nos é apresentada”, explica Mauro Pantoja de Moares.

n Nova metodologia inclui trabalho de campo Com o intuito de motivar essa melhor compreensão das paisagens e despertar nos estudantes o interesse pela disciplina, os professores Mauro Pantoja de Moraes, Edna Lima, João Márcio Palheta, entre outros, esforçaram-se em criar uma forma de tornar o ensino da Geografia mais interessante utilizando uma didática diferente. A metodologia utilizada consiste em cinco etapas. Primeira, os alunos fazem exposição sobre o que a paisagem significa para cada um; em seguida, eles leem textos e livros com conceitos sobre paisagem; o

próximo passo é debater os textos lidos; o quarto momento é o trabalho de campo, os alunos são motivados a analisar, na prática, tudo aquilo que eles pensaram, leram e debateram em sala de aula, visitando e observando os pontos turísticos de Belém. O último passo é um seminário, para o qual os alunos trazem as suas conclusões e visões renovadas acerca do assunto, tudo demonstrado com ajuda de maquetes construídas por eles mesmos. Durante o trabalho de campo, os alunos tiram fotos, fazem desenhos, analisam e (re)interpretam os

conceitos sobre a paisagem, comparando e levando essas conclusões para um novo e grande debate em sala de aula. Essa etapa, segundo o professor Mauro Pantoja de Moraes, foi a que trouxe os resultados mais prazerosos, “eles organizaram as falas, quase todos se manifestaram, fizeram seleção e exposição das fotos. Tiveram a compreensão de que as paisagens se modificam, possuem diversos conteúdos, sofrem movimentos; descobriram que elas nem sempre foram da mesma forma, com a mesma organização, com a mesma função”.

n Plantar, cuidar e regar as primeiras sementes Dentro dessa dinâmica, um aspecto que não pode ser ignorado é justamente a perspectiva inicial dos adolescentes, visto que, apesar de imaturos, todos têm ideias formadas que podem contribuir, de forma bastante positiva, para o entendimento de novos conceitos. “Nosso papel, aqui, é plantar, cuidar e regar as primeiras sementinhas de um futuro professor, de um futuro profissional, enfim, um verdadeiro cidadão”, conta Mauro Pantoja de Moraes. Em 2009, a professora Edna Lima era a coordenadora e o professor Mauro Pantoja de Moraes era o vice-coordenador. Nesta edição,

os pesquisadores trocaram de posições. Além disso, ano passado, o público era formado por alunos da 6ª série. Este ano, o trabalho será desenvolvido com turmas da 8ª série. Um problema sempre presente é a logística, que impede a participação de todas. “Não dá para trabalhar com todo mundo. A escola não tem ônibus próprio, por isso precisamos do apoio da Universidade e dos pais dos alunos”, afirma o coordenador. Por conta disso, a aprovação do Projeto no PAPIM, pelo segundo ano consecutivo, é muito positiva, por proporcionar essa oportunidade

de ensinar Geografia num contexto mais dinâmico. O próximo passo é começar a tratar outros conceitos da Geografia, como região, território, lugar, rural, urbano, criando, assim, uma forma de prender a atenção e despertar o interesse dos alunos pela disciplina. Além disso, a esperança é que os professores da Escola de Aplicação possam dialogar mais com os professores da Universidade, e até mesmo com os de outras instituições, pois a escola, como o próprio nome inspira, pode e deve ser um espaço de novas experimentações que envolvam o processo de ensino e aprendizagem.

Sociolinguística Estão abertas as inscrições para o I Congresso Internacional de Dialetologia e Sociolinguística, que acontecerá de 17 a 21 de outubro de 2010, na Universidade Federal do Maranhão. Mais informações no endereço http://congressocids. blogspot.com/

Simpósio No período de 16 a 18 de junho, será realizado o VI Simpósio Brasileiro de Sistemas de Informação (SBSI 2010), no Campus Universitário de Marabá. Nesta edição, o evento terá como tema “Amazônia Legal: Desafios para o Desenvolvimento Sustentável apoiado em TI”. Mais informações no site http://www.sbsi2010.com.br/chamada.html

Convênio A UFPA e o Tribunal de Justiça do Estado firmaram convênio para a criação de duas novas varas judiciais exclusivamente voltadas ao público maior de 60 anos. O atendimento já está disponível à comunidade e ocorre em prédio anexo ao Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA (ICJ), no Campus Profissional. Será aceita qualquer ação judicial ingressada por uma pessoa com mais de 60 anos, desde que a causa não ultrapasse o orçamento máximo de 60 salários mínimos.

Estatística O Instituto de Ciências Naturais realiza, no período de 24 a 28 de maio, a XVI Semana de Estatística. Esta edição do evento comemora os 25 anos do curso. Para maiores informações, acesse http://www.ufpa. br/semest ou entre em contato pelo telefone 3201-7413.

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6 – BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010

BEIRA DO RIO – Universidade Federal do Pará – Maio, 2010 –

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Infância

Brincadeiras de faz de conta revelam cotidiano de crianças ribeirinhas Pesquisa realizada na Ilha do Combu preenche lacuna sobre infância na Amazônia, tema ainda pouco explorado na Academia

Fotos Acervo Pesquisador

n Igarapé e terreiros são espaços preferidos da criançada

"Vendedor", "mamãe-filhinho", "passear de canoa": peculiaridades da cultura local atuando na composição das brincadeiras de faz de conta Raphael Freire

P

aulo: "Papai, ontem eu vi uma [mucura] lá na mangueira". Lucas: "Por que tu não me disse filho? Vou ver lá no terreiro"[...] "Não achei nada lá no terreiro. Vou procurar lá na mata". Esse diálogo é de duas crianças de cinco anos que estão brincando de caçar, uma brincadeira de faz de conta presente no cotidiano das crianças da Ilha do Combu. Esse tipo de brincadeira é objeto de estudo da tese de doutorado intitulada "A construção de significados nas brincadeiras de faz de conta por crianças de uma turma de educação infantil da Amazônia", da professora Sônia Regina dos Santos Teixeira, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. O mundo dos adultos constitui o principal conteúdo das brincadeiras de crianças do pré-escolar, entre três e seis anos. Nessa fase, os desejos

e as necessidades da criança estão relacionados, principalmente, às interações com os adultos, suas atividades e funções, que acabam por se transformar em argumento das brincadeiras de faz de conta. Quem nunca brincou de "casinha" ou "comidinha"? De construir uma casa ou de médico? De acordo com o estudo, essas brincadeiras contribuem, fundamentalmente, para o processo de desenvolvimento cultural e da subjetividade do sujeito na idade pré-escolar. "Isso ocorre porque, ao brincar de faz de conta, a criança lida diretamente com os significados presentes em seu contexto sóciocultural e os recria no plano imaginário. O que, segundo Vygotsky, um dos autores que fundamenta o estudo, é de grande importância para o desenvolvimento infantil”, explica a professora. Significado – No processo que envolve a brincadeira de faz de conta, a criança é vista como um sujeito

ativo, que constrói significados sobre o mundo, sobre si, sobre o outro e sobre sua relação com o outro. Nessa perspectiva, a criança é coconstrutora da sua cultura. “Tradicionalmente, a relação criança-cultura tem sido concebida de modo unidirecional. A cultura é vista como algo externo e independente da criança. Esta, por sua vez, é um receptor passivo. Considero essa ideia equivocada na medida em que a criança é um participante ativo do seu processo de constituição cultural. Numa perspectiva bidirecional de cultura, ao brincar, a criança desempenha um papel dialético no seu contexto social: é construída pelos significados partilhados no seu grupo cultural e é construtora, visto que, recombina os significados e cria situações ficcionais que são virtuais, não correspondendo a cópias literais dos significados partilhados”, explica Sônia Regina Teixeira. Partindo dessa ideia, a tese orientada pelo professor José Moy-

sés Alves teve como objetivo analisar as interações discursivas que se processam durante as brincadeiras de faz de conta de crianças de uma turma de educação infantil ribeirinha da Amazônia, para compreender como os significados construídos são ressignificados pelas crianças e tornam -se constitutivos das subjetividades infantis. A pesquisa foi realizada nas turmas de Educação Infantil dos anos de 2003 a 2006, da "Unidade Pedagógica da Ilha do Combu”. Inicialmente, foram acompanhadas as crianças da turma de 2003, constituída por 11 meninas e dois meninos, com idades de quatro a cinco anos, e a professora. Além do ambiente escolar, essas crianças também foram observadas em casa, onde 13 adultos e outras crianças brincavam com as crianças-alvo. Num segundo momento, foram observadas 5 crianças, sendo 31 meninos e 20 meninas, com idades entre quatro e cinco anos, das turmas de 2004, 2005 e 2006.

n Crianças reproduzem atividades realizadas por adultos A pesquisa foi iniciada em 2003, com visitas da pesquisadora às residências e salas de aula das crianças-alvo, com o objetivo de identificar aspectos do ambiente físico e social da comunidade da Ilha do Combu, as principais atividades econômicas dos adultos e as peculiaridades das brincadeiras de faz de conta das crianças. Para registro dos diálogos, Sônia Regina Teixeira fotografou, filmou e gravou, em áudio, o comportamento das crianças quando em exercício das brincadeiras, resultando em 78 horas de gravação. "A brincadeira de faz de conta é uma atividade típica das crianças nessa faixa etária, no entanto a forma e o conteúdo da brincadeira estão relacionados diretamente com a cultura do grupo social de que a criança participa”, afirma Sônia Teixeira. Mas, então, como seria essa cultura em que as crianças da Ilha do Combu vivem? Por exemplo, que peculiaridades esse espaço apresenta que tornam as brincadeiras diferentes daquelas das crianças que vivem no centro ? Da mesma forma que a maioria

das comunidades rurais da Amazônia, a dinâmica do trabalho dos ribeirinhos da Ilha do Combu é marcada pela estreita relação do homem com a natureza, especialmente com o rio e a floresta. As águas constituem os espaços da pesca, são geradoras de renda, com o transporte de produtos para Belém e vice-versa. Da floresta, os moradores extraem diversos frutos, como o açaí, principal atividade econômica da Ilha, o cupuaçu, o taperebá, entre outros. As atividades das crianças ribeirinhas da Ilha do Combu estão profundamente relacionadas com aquelas desenvolvidas pelos adultos, especialmente por seus pais. Elas participam de todos os momentos da vida da comunidade, no trabalho, em casa, no lazer e nas atividades religiosas, ajudam na seleção dos frutos, interessam-se, particularmente, pela confecção e manutenção dos instrumentos de pesca. Convivência - A casa constitui o principal espaço de convivência para as crianças da Ilha. Excetuando o compromisso com a escola, a participação nas cerimônias religiosas e o acompanhamento

Durante o período de observação e coleta de dados para a construção da tese, diversos episódios de brincadeiras de faz de conta foram presenciados e registrados pela autora. Nessas brincadeiras, o tema mais frequente foi o das atividades domésticas, como as brincadeiras de mamãe-filhinho, fazer comidinhas, lavar louças ou levar a criança ao médico. Nessas brincadeiras, podem ser percebidas peculiaridades da cultura local atuando na composição dos episódios. Nas brincadeiras de lavar louças, por exemplo, as crianças apanhavam água no rio ou levavam os objetos que representavam as louças para serem lavadas diretamente no próprio rio. Em situações em que as crianças brincavam de médico, elas faziam de conta que estavam se dirigindo ao posto de atendimento do Projeto Família Saudável, localizado próximo à escola. Ao levarem seus filhos ao médico, as duas crianças que faziam o papel de

mãe passavam antes pela escola para ver seus outros filhos, comportamento habitual de algumas mães da comunidade. Outro tema frequente nas brincadeiras foi o das profissões. As crianças representam o papel de coletor de açaí, ajudante de coletor, vendedor, pescador e barqueiro. O transporte foi outro tema presente nas brincadeiras. Em um dos episódios, um menino de cinco anos brincava, sozinho. de conduzir uma balsa, utilizando uma tampa de isopor para representar a balsa e um banco de madeira, o rebocador. Outros tema, como aventura, jogos e animais, foram registrados com menor frequência. Os principais espaços utilizados pelas crianças ribeirinhas para a realização dessas brincadeiras são o Rio Guamá, o Igarapé do Combu e os terreiros da Ilha. No rio e no igarapé, elas organizavam brincadeiras, como brincar de pescar, pegar caranguejo, passear de canoa, jogar bola e nadar.

Faz de conta: tampa de isopor e banco de madeira representam a balsa Os materiais mais utilizados foram os naturais, que podiam ser encontrados com facilidade nos terreiros de suas casas, nas matas, no rio e nos igarapés. Folhas, flores, frutos verdes (principal-

mente açaí, jambo e cacau), vassoura, barquinha de açaí, terra e água foram os mais usados pelas crianças. Gravetos, tábuas, bancos e mesas também estavam presentes nas brincadeiras.

n Isolamento geográfico impõe limite para a sociabilidade O isolamento geográfico impõe alguns limites para a interação social dos moradores da Ilha do Combu e isso reflete, também, na atividade de brincar. Algumas crianças ficam impossibilitadas de interagir com outras crianças da vizinhança, brincando apenas com seus irmãos. A dificuldade de interação era ainda maior para aquelas que não possuíam irmãos e brincavam sozinhas, solicitando, algumas vezes, a participação dos seus familiares adultos. Nesse sentido, a escola constitui um lugar de encontro, onde as crianças podem interagir entre si e contar com a presença da professora, profissional responsável pela mediação quando surgirem, nas brincadeiras de faz de conta, noções de gênero, afetividade, desenvolvimento de ética, entre outros temas. Como esse profissional da educação deveria

intervir quando essas questões surgissem nas brincadeiras? Durante a pesquisa, em uma das brincadeiras de assar peixe, as três meninas que estavam brincando não deixaram o menino brincar com elas, pois, segundo o trio de meninas, "assar peixe é coisa de mulher". Nesse momento, fez-se necessária a presença da professora para esclarecer algumas questões (veja o diálogo completo no boxe). Segundo Sônia Regina Teixeira, as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aprovadas em novembro de 2009, reconhecendo a importância da brincadeira para o processo de constituição cultural da criança, postulam que as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores a brincadeira e as interações

criança-criança e adulto-criança. “Na instituição de Educação Infantil, a criança tem a possibilidade de interagir com parceiros da mesma idade e com adultos, daí a necessidade e a importância que as brincadeiras de faz de conta sejam estimuladas e praticadas nas creches e pré-escolas, tendo como mediador o professor ou a professora”, diz a autora. De acordo com a pesquisadora, as crianças gostam que os adultos brinquem com elas de faz de conta. Durante as ocorrências de brincadeiras observadas com as crianças da Ilha, em 30% delas, as crianças chamavam um adulto para ajudar a solucionar um conflito, ajudar a esclarecer um significado ou colaborar na construção de um enredo da brincadeira. "Os pais e os professores deveriam refletir sobre isso. É falsa a ideia difundida de que a criança

não gosta de brincar com adultos. A criança não quer apenas o brinquedo comprado pelos pais nem somente a brincadeira propiciada pelo professor ou professora. Ela quer, mesmo, é estar perto dos adultos, fazer parte do mundo deles. Por isso tenta apossarse de seus objetos e imitá-los em suas ações”, esclarece Sônia Teixeira. “Infelizmente, ainda conhecemos muito pouco sobre as crianças da Amazônia. Podemos dizer que elas ainda são 'invisíveis'. Pouco se sabe sobre como elas pensam, como aprendem, como se constituem como pessoa. Precisamos conhecer essas crianças reais, concretas, que crescem entre o rio, os peixes e as árvores. O objetivo do estudo também é dar visibilidade às crianças da Ilha do Combu, revelar o seu jeito amazônico de ser e estar no mundo”, conclui a professora.

levanta e fala): "Porque elas não querem me deixar brincar. Dizem que é coisa de mulher." Professora (aproxima-se do gr upo e fala): "Meninas, o que é isso? Vocês não querem deixar ele brincar porque assar peixe é coisa de mulher?" Carol: "Também professora, ele bagunça a brincadeira da gente." Professora: "Olha, prestem bem atenção. Lembrem lá da casa de vocês. Quem é que assa peixe lá, é o papai ou a mamãe?" Carol e Alice: "Mamãe."

João e Mariana: "Papai." Alice (irmã de João): "Mentiroso. Quem assa peixe lá em casa é a mamãe. O papai vai buscar açaí." Professora: "Vocês estão vendo. Está empatado. E é isso mesmo, qualquer pessoa pode assar um peixe, independente de ser homem ou mulher. Depende da necessidade e da fome. (Risos). Acho bom vocês aceitarem o João. Ele quer tanto brincar com vocês. Além do mais, ele pode pescar mais peixes pra vocês e tratar. Não é, João? Ele é um garoto esperto (...)"

Brincando de assar peixe

Conflitos e enredos das brincadeiras são mediados pela professora em algumas atividades diárias de seus pais, a criança passa a maior parte de seu tempo brincando. Brinca de faz de conta, corre nos terreiros e nas pontes, sobe em árvores, empina papagaio, nada no rio ou no igarapé, passeia de canoa, joga bola. Desse modo, de acordo com a pesquisa, ao brincar, a criança imita os papéis sociais presentes nas atividades de seu grupo cultural, mas, ao mesmo

tempo, os reinterpreta de acordo com os significados pessoais que ela venha atribuir às suas ações. "Tanto os significados coletivos quanto os pessoais vão sendo, continuamente, reconstruídos e redefinidos. Neste sentido, a compreensão dos textos criados pelas crianças em suas brincadeiras requer a elucidação do contexto cultural em que eles são produzidos", ressalta a pesquisadora.

Mariana, Alice e Carol fizeram um “fogo” com pedras e pedaços de madeira para brincarem de assar peixe. Colocaram no "fogo" algumas raízes de árvores, colhidas no terreiro da escola. João se aproxima para brincar também. Carol: "Já vem esse moleque bagunçar nossa brincadeira." Mariana: "É mesmo. Fora daqui. Isso é brincadeira de mulher." João: "Eu quero brincar." Alice: "Tu não sabes que estamos brincando de comidinha? Isso é brincadeira de mulher." João: "Estou vendo vocês

assarem peixe." Alice: "Pois é. Brincadeira de mulher." J o ã o : " E u q u e ro b r i n c a r. " (tenta derrubar as raízes que representam os peixes que estão sendo assados). A l i c e : " Vo u c h a m a r a professora." Alice: "Professora, esse moleque está bagunçando a nossa brincadeira. Ele quer jogar fora nossos peixes." Professora: "João, por que você quer jogar fora os peixes delas?" João (Abaixa a cabeça. Depois,


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