50 ANOS DA LUTA DOS QUEIXADAS

A GREVE DOS SETE ANOS PARALISAÇÃO DIVIDIU FAMÍLIAS E ATÉ HOJE MARCA A MEMÓRIA DO BAIRRO DE PERUS, NA ZONA NOROESTE DA CAPITAL PAULISTA por Alicia Batista, Beatriz Maciel,

Isabela Maximiano, Isabela Monteiro e Natália Bambini

Esposas dos operários paralisados realizam piquetes na cidade de Cajamar, no ano de 1962

EPOCA PARCERIAS NO ORIENTE

QUATRO ANOS APÓS MARIANA

DE ONDE VEM O ÓLEO?

OS RESULTADOS DA VIAGEM DO PRESIDENTE BOLSONARO PELA ÁSIA.

COMO VIVEM AS VÍTIMAS DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM DA SAMARCO

por Isabela Maximiano e Isabela Monteiro

por Beatriz Maciel e Natália Bambini

INVESTIGAÇÃO TRAZ RESPOSTAS SOBRE AS MANCHAS DE PETRÓLEO EM PRAIAS DO NORDESTE

12.11.19 EPOCA GLOBO.COM Nº 1101 R$ 16,00 CARGA TRIBUTÁRIA FEDERAL APROXIMADAMENTE 4,65% ISSN 14155494

por Alicia Batista 9771415549002

01101

EPOCA Expediente Trabalho de Conclusão de Curso produzido por alunas do 8ª Semestre como exigência parcial para a obtenção do título de Bacharel em Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi Reitor Prof. Paolo Tommasini Coordenadora do curso de Jornalismo Prof.ª Maria Cristina Almeida Coordenador Adjunto do curso de Jornalismo Prof. José Augusto Lobato Professora orientadora 8º semestre Profa. Nara Lya Cabral Scabin

Alicia Batista, 21 Editora-chefe, repórter e redação

Beatriz Maciel, 22 Diretora de arte, repórter e redação

Isabela Maximiano, 23 Diretora executiva, repórter e redação

Professor orientador 7º semestre Prof. Francisco Bicudo Agradecimentos A todos os que colaboraram para a produção dessa reportagem, em especial: Ao Museu Casa da Memória; Aos nossos professores orientadores, Francisco Bicudo e Nara Lya Cabral Scabin; À professora Carina Seles, que nos auxiliou com a diagramação; Ao Sidnei Cruz, entrevistado que nos ajudou com a sua experiência sobr e a greve e sindicato; E a José Soró, entrevistado que tanto acrescentou ao nosso trabalho, nos ensinou e ainda nos inspira.

Isabela Monteiro, 21 Repórter, redação e revisão

Natália Bambini, 21 Repórter, redação e fotografia

8.

CADERNOS DA MEMÓRIA GREVE DOS QUEIXADAS Operários de uma das maiores paralisações do país ainda influenciam o bairro de Perus

24.

RELAÇÕES EXTERIORES BOLSONARO NA ÁSIA Presidente faz visita ao Oriente Médio para atrair investimentos de países árabes Capa: Acervo Casa da Memória de Cajamar NATÁLIA BAMBINI

NATÁLIA BAMBINI

32.

LAMA DESTRUIDORA RECUPERAÇÃO DO DESASTRE DE MARIANA Vítimas do rompimento da barragem contam como estão quatro anos após tragédia

48.

DESASTRE AMBIENTAL MANCHAS DE ÓLEO NO NORDESTE BRASILEIRO Governo divulga respostas até então obtidas sobre o petróleo que percorre o litoral do país

sumário 12.11.19

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50 ANOS DA LUTA D QUEIXADAS GRUPO DE OPERÁRIOS DA FÁBRICA DE CIMENTO PORTLAND PERUS REALIZOU PARALISAÇÃO DE SETE ANOS DURANTE A DÉCADA DE 1960 por Alicia Batista, Beatriz Maciel, Isabela Maximiano, Isabela Monteiro e Natália Bambini

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os 70 anos, Sidnei Cruz, presidente do Sindicato do Cimento, Cal e Gesso de São Paulo, realiza viagens pela América Latina para estreitar laços com trabalhadores dos países vizinhos. Sua preocupação é motivada pelas mudanças que o sindicalismo vive no Brasil e a possibilidade do ressurgimento de leis que possam limitar o movimento trabalhista. “O duro é saber que vou viver muita coisa do que foi vivido naquela época, mesmo que de maneira diferente, com luva de pelica. Sob certo aspecto, parece que tudo o que a gente fez foi inútil”, afirmou.

Sua ligação com o movimento operário teve início ainda na infância, por influência de seu pai, Sebastião Cruz, um dos trabalhadores da fábrica de Cimento Portland Perus, que participou das principais greves dos chamados “Queixadas”. “Comecei a me familiarizar porque houve a greve de 1958 e meu pai era quem coordenava os piquetes, então eles se reuniam em casa”, contou Sidnei.

Os Queixadas, operários da fábrica localizada na zona noroeste de São Paulo, foram responsáveis por uma das greves mais longas da história brasileira, nos anos 1960. A inspiração para o apelido assumido pelo grupo veio de um tipo de porco do mato que, quando corre perigo, se une em bando e bate o queixo para resistir ao predador.

FOTO: ACERVO CASA DA MEMÓRIA DE CAJAMAR

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CADERNOS DA MEMÓRIA

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ACERVO CASA DA MEMÓRIA DE CAJAMAR

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Companhia de Cimento Portland Perus S.A foi fundada em 1926 por um grupo de brasileiros e canadenses como pioneira na produção da matéria-prima no Brasil. Com o material fabricado, foram construídos edifícios da cidade de São Paulo e do Distrito Federal. O historiador Elcio Siqueira, autor de pesquisas sobre a fábrica e as greves realizadas pelos funcionários, explica: “a Perus foi a usina que implantou efetivamente o ramo cimenteiro no Brasil e forneceu algo próximo a 50% ou mais do cimento consumido no país até meados da década de 1930. Depois disso, forneceu cimento para a Grande São Paulo em taxas de 50% a 30% até por volta de 1970”.

Com a chegada da cimenteira, houve uma movimentação em todo o bairro de Perus e em Cajamar, cidade que faz fronteira com São Paulo. Pessoas de diferentes regiões do país e até mesmo estrangeiros migraram a fim de trabalhar na indústria.

Assim aconteceu com o português Antônio Maria, que desembarcou em Cajamar no ano de 1939 para atuar na pedreira da

fábrica. Seu filho, Irineu Belchior, de 71 anos, conta que o trabalho nas pedreiras era manual e que seu pai “carregava por gôndola aquelas pedras, era um trabalho escravo mesmo”. De acordo com ele, os funcionários “dinamitavam as pedras e não tinha máquina, então eles carregavam na mão para levar para o britador”.

Houve também famílias que se dedicaram à produção do cimento por gerações. É o caso dos Paes: Arlindo, aposentado de 69 anos, conta que o pai, Orlando, foi funcionário da Perus durante 35 anos: “Ele veio do sul de Minas com a indicação do meu avô, que também trabalhou na fábrica”. Além de ajudante geral, Orlando desempenhou a função de britador.

No ano de 1951, a empresa se tornou propriedade de José João Abdalla, então Secretário do Trabalho do Governo do Estado de São Paulo, e passou a se chamar Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus.

O empresário adquiriu, no mesmo período, o Sítio Santa Fé e aproximadamente 60% do atual território da cidade de Cajamar, de acordo com Elcio Siqueira.

A fábrica de Perus foi pioneira na produção de cimento no Brasil, chegando a fornecer quase 50% do material utilizado no país até a década de 1930

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osé João Abdalla (1903-1978) foi uma presença marcante no imaginário paulista no século 20. Dono de empresas do ramo industrial, bancário e agropecuário, atuou também como médico, vereador e prefeito da cidade de Birigui, no interior de São Paulo. Na gestão de Ademar de Barros, nos anos de 1950 e 1951, foi secretário do Trabalho, e eleito deputado federal nas eleições dos anos de 1954, 1958 e 1962.

De acordo com Elcio Siqueira, “há poucos casos de personalidades tão estigmatizadas na história do Brasil como José João Abdalla”. Isso porque o ex-deputado ficou conhecido por gerir a fábrica de forma inadequada. Apelidado de “mau patrão” pelo jornal O Estado de São Paulo, Abdalla foi alvo de processos judiciais e estampava capas de noticiários da época, que denunciavam sua relação com os trabalhadores da Perus.

A reportagem tentou contato com herdeiros de Abdalla e representantes da família, mas não obteve resposta.

oi na conturbada gestão de Abdalla que F os Queixadas se organizaram. Durante 46 dias, os trabalhadores responsáveis

pela produção do cimento que alimentava grande parte dos canteiros de obra do país paralisaram suas atividades após rejeitarem o reajuste salarial oferecido pela em-

Sidnei Cruz, presidente do Sindicato do Cal, Gesso e Cimento de São Paulo

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presa. A intenção patronal era repassar o aumento dos salários para vender os sacos de cimento a um preço maior. Foi quando os operários decidiram reivindicar uma correção de 40% – 10% a mais em relação à proposta que havia sido dada no início.

Além disso, exigiam o retorno de Gino Rezaghi, funcionário que havia sido dispensado após afirmar publicamente que não votaria em J.J. Abdalla, que disputava a reeleição como deputado federal.

“A greve foi vitoriosa. Organizados e unidos, os trabalhadores superaram diversos obstáculos para integrá-la ativamente”, contou Sidnei. Para ele, a união que conduziu os operários a reconhecerem sua própria força foi o primeiro aprendizado da paralisação de 1958.

O ano seguinte também foi marcado por conquistas dos trabalhadores. No mês de agosto, 80 funcionários foram dispensados com nove anos de serviço, ou seja, faltando pouco para completar os dez que garantiriam estabilidade no emprego de acordo com a lei trabalhista da época.

Mas, após nova paralisação, os operários conseguiram a reintegração dos colegas que haviam sido demitidos.

Essa vitória marcou a formalização de princípios que fortaleceriam o sindicato, segundo o advogado Mário Carvalho de Jesus. Ele faleceu em 1995, mas deixou registros sobre a atuação dos Queixadas nos

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vários livros que escreveu sobre os mais de 30 anos em que assessorou os funcionários da fábrica de Perus.

Depois da conquista de 1959, os trabalhadores enviaram um ofício com reivindicações que seriam aceitas posteriormente. Entre elas, estava a exigência de que as demissões e admissões fossem feitas por meio do sindicato, o prêmio-produção – acréscimo ao salário quando a fabricação de cimento ultrapassava 450 mil sacos por mês – e o salário-família, recebido pelos trabalhadores casados com mulheres que cuidavam da casa.

“Os operários defendiam isso porque eles entendiam que a esposa também era explorada quando lavava roupa, fazia comida, então ela também estava trabalhando para a fábrica”, explicou Sidnei. Quatro anos depois, o benefício, inicialmente conquistado pelos Queixadas, foi convertido em lei proposta por Franco Montoro, então ministro do Trabalho. “Ele sempre foi muito ligado a esse sindicato. Quando jovem, ainda era vereador em São PauACERVO CASA DA MEMÓRIA DE CAJAMAR / 1962

lo, ele vinha para cá, participava muito.

Transformou o salário-família em lei depois”, disse o sindicalista.

Sidney Jard, especialista em Ciência Política e com pós-doutorado em Sociologia do Trabalho no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, salientou a influência dos movimentos trabalhistas do Brasil no século 20, como os Queixadas: “essas lutas, essa resistência cotidiana, não só nos momentos de greve ou manifestações, mas inclusive no chão de fábrica, foram o que deram base para que os trabalhadores conquistassem direitos básicos no Brasil”.

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ntes do início da maior paralisação realizada pelos Queixadas, no dia 10 de maio de 1962, os trabalhadores enviaram um ofício à direção da empresa, exigindo que suas reivindicações fossem cumpridas em até 48 horas. De acordo com Siqueira, entre os pedidos, constava o acordo coletivo, feito em 1961, sobre a verba da casa própria, férias vencidas,

Com o lema “FirmezaPermanente”, baseado na não-violência de Gandhi, os Queixadas realizaram manifestações no centro de São Paulo como forma de reivindicar seus direitos

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1962: Grevistas e familiares observam caminhão da Policía Militar transportar operários de volta à fábrica durante a operação “Fura-Greve”, na cidade de Cajamar

adicional de insalubridade e pagamento dos salários atrasados dos funcionários da Usina Miranda, também pertencente ao grupo Abdalla.

A pauta incluía o descontentamento de 3.500 funcionários das empresas Usina Miranda, de Pirajuí, Tecelagem Japy, de Jundiaí, Fábrica de Papel Carioca, de São Paulo, Perus e Copase (Companhia Paulista de Celulose), de Cajamar.

Sem uma resposta no tempo estimado, os trabalhadores da Perus encontraram a fábrica tomada por policiais. Com isso, em 14 de maio, as categorias iniciaram uma greve que duraria sete anos.

Trinta e dois dias após a decisão, Abdalla realizou um acordo com grande parte dos grevistas, deixando apenas os cimenteiros de fora. “Foi Abdalla quem começou a greve. Esta não foi uma paralisação normal. Foi uma tentativa de eliminar o grupo de operários mais insistentes das empresas de Abdalla antes que ‘contagiassem’ as outras”, explicou Siqueira.

Para Sidnei Cruz, a paralisação era diACERVO CASA DA MEMÓRIA DE CAJAMAR

NÃO FOI UMA PARALISAÇÃO NORMAL. FOI UMA TENTATIVA DE ELIMINAR O GRUPO DE OPERÁRIOS MAIS INSISTENTES DAS EMPRESAS ABDALLA

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ferente da greve de 1958 pela existência de uma divisão entre os operários: “Embora eles tivessem muita força, já não tinham a mesma de 1958 em termos de união”.

Sua constatação aponta para um fato que influenciaria decisivamente o futuro do movimento dos cimenteiros.

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em dias mais tarde, em 21 de agosto de 1962, foi realizada a operação “Fura-greve”, quando uma parcela dos funcionários retornou a fábrica. Levi Monteiro, de 90 anos, se aposentou na Perus como mestre de obras e fez parte desse grupo que voltou a trabalhar durante a paralisação. Com uma visão oposta à dos Queixadas, comentou que os apelidados de “pelegos” não viam motivos para permanecer em greve, pois, segundo ele, “o Abdalla pagava rigorosamente em dia, não perseguia empregado”. Ele, que trabalhou na fábrica por 18 anos, relatou que a greve foi iniciada principalmente “em solidariedade aos trabalhadores da Usina Miranda, porque pertencia aos mesmos patrões”.

Com o apoio da deputada estadual Conceição da Costa Neves e escolta da Polícia Militar, 100 operários voltaram aos serviços na fábrica, em 21 de agosto de 1962. No mesmo dia, novos funcionários, contratados para substituir os mais de mil que permaneceram em greve, deram início a jornada de trabalho.

Mario Bortoto, engenheiro químico de 57 anos, que levava “quentinhas” quando criança para o tio e o avô durante seus anos trabalhando na fábrica, relembrou o cenário da Perus fragmentada após a operação: "o bairro era dividido. Famílias inteiras eram pelegas. Famílias inteiras eram Queixadas”. Sua esposa, Regina, educadora de 57 anos, é neta de Queixadas e complementou que os comerciantes eram avisados sobre quem era grevista e se recusavam a vender seus produtos, pois os “donos de armazéns passaram a cortar os créditos e cadernetas de quem apoiasse a greve, para não ficarem ‘marcados’”.

A divisão entre “pelegos e Queixadas” também foi sentida em Cajamar. Luzia Cardoso, aposentada de 67 anos, filha de Queixada e moradora por 46 anos do Gato Preto – uma das vilas operárias da Perus –, recordou que aconteciam discussões entre

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as famílias que estavam em lados opostos.

Seu pai, Berto Leme, trabalhou como forneiro na fábrica de cimento durante 49 anos. De acordo com ela, que tinha dez anos na época, as crianças também vivenciavam a separação, dizendo “‘ah, sai para lá, você não vai brincar aqui não, porque você é pelego’, então eles tomavam as dores dos pais. ‘Não, você não vem aqui não, porque você é queixada’”.

Para Irineu Belchior, essa divisão se deu principalmente por se tratar de “uma comunidade muito próxima”, em que todos “viviam agregados em uma região, porque moravam nas casas da Perus”.

Do lado dos pelegos, também existiam dificuldades. Pressionados pelas famílias, dívidas e falta de recursos, “os fura-greve”, para Sidnei, tinham suas razões, mas ele acredita que essa atitude significou “se afastarem da única arma que o trabalhador tem até hoje, que é a união”.

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pós serem dispensados, estáveis e não estáveis prosseguiram com a greve.

Com o lema da “Firmeza-Permanente”,

baseado na não-violência de Gandhi, também aplicada por Martin Luther King, os Queixadas realizaram mobilizações pacíficas para mostrar a urgência de suas reivindicações. “Faziam greves de fome, faziam passeatas. Sempre que o Mário [Carvalho de Jesus, advogado do sindicato} sentia que a Justiça do Trabalho estava pendendo muito para o lado do Abdalla e que a gente corria um sério risco de perder tudo, ele chamava todo mundo e então íamos para a rua”, disse Sidnei.

Irineu Belchior também recordou a participação de seu pai em manifestações: “os grevistas ficavam 24 horas deitados no local, só tomavam água, porque era a forma de luta de Gandhi, a não-violência”.

Muitos protestos aconteceram no centro de São Paulo, como as greves de fome que foram realizadas no Natal e Ano Novo de 1962, no Largo de São Francisco, em frente à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

Não demorou para as dificuldades financeiras aumentarem. Arlindo relembrou que “diversas pessoas passaram fome

Além de passeatas, os apelidados de Queixadas também realizaram greves de fome

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AS FAMÍLIAS DOS GREVISTAS TAMBÉM RECEBIAM DOAÇÕES VINDAS DE INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS E ÓRGÃOS PÚBLICOS DE OUTRAS LOCALIDADES ARQUIVO PESSOAL

A aposentada Luzia Cardoso e seu pai, Berto Leme, Queixada, em foto de 1989

mesmo”. Segundo ele, sua família não vivenciou essa condição, mas “foi uma vida muito difícil”. Assim como os outros operários, seu pai buscou outras formas de emprego enquanto a situação não se resolvia. Na época, chegou a trabalhar como guarda noturno e ajudante de pedreiro.

Os filhos mais velhos também começaram a colaborar com a renda da casa, como o caso de “uma irmã que era costureira e ajudou muito. Depois a minha mãe passou a costurar também”.

Diante dessa situação, os Queixadas viram a necessidade de realizar atividades remuneradas para o sustento de suas famílias. Sidnei contou que os próprios grevistas auxiliavam uns aos outros, indicando para trabalhos e criando alternativas de renda. Foi o caso de seu pai, que montou uma fábrica de gaiolas “para que as pessoas tivessem condições de sobreviver à greve”. Sebastião Cruz, o “Tião Carpinteiro”, também trabalhou na construção de casas nesse período. Em um de seus serviços, o filho lembrou que “onde precisaria de cinco, seis trabalhadores, ele levou mais de

trinta”. O sindicalista comentou que “era até bonito, porque tinha apontador um, apontador dois, ele inventava. Fazia isso para o pessoal conseguir sobreviver”.

As famílias dos grevistas também recebiam doações vindas de instituições religiosas, como a Cáritas, da Igreja Católica, e órgãos públicos de outras localidades.

Luzia Cardoso recordou de momentos em que buscou alimentos que eram distribuídos: “Quando chegava, a notícia se espalhava e a gente ia buscar, mas não era o suficiente, porque era dividido para muita gente”. Ela ainda comentou que aconteciam discussões quando algumas pessoas ficavam sem receber.

Também a gestão de Antonio Garrido, primeiro prefeito da cidade de Cajamar, recebeu ofícios acompanhados de donativos vindos de outros municípios direcionados aos grevistas e seus familiares. Ele, que era funcionário da Perus e diretor do sindicato, foi eleito em 1959, tendo como vice Mário Carvalho de Jesus. Os Queixadas também elegeram cinco vereadores para a Câmara Municipal.

ACERVO CASA DA MEMÓRIA DE CAJAMAR

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advogado Mário Carvalho de Jesus foi uma personalidade à parte entre as lideranças da paralisação. Sidnei Cruz, que conviveu e esteve com ele durante anos à frente do Sindicato dos Queixadas, o descreve como “o espírito. Era ele mesmo a ‘liga’ que permitia que não se dissolvesse a união e vontade de lutar por justiça”.

Nascido em Araguari, Minas Gerais, se formou em Direito na USP, esteve envolvido desde jovem com movimentos sociais e chegou a ingressar na Juventude Universitária Católica (JUC). No final da década de 1940, viajou para a França, onde conheceu Padre Lebret, precursor do movimento Economia e Humanismo, que o influenciou na implantação da “Firmeza-Permanente”, como explicou o historiador Elcio Siqueira.

Mário atuou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo entre os anos 1950 e 1953, onde conheceu João Breno, que posteriormente se tornaria presidente do Sindicato do Cimento, Cal e Gesso, e também foi uma figura de destaque durante a greve dos sete anos. Em 1954, Má-

rio Carvalho de Jesus foi contratado como advogado dos operários da Perus.

Sua influência e a do sindicato na vida dos trabalhadores se estenderam até depois do fechamento da fábrica de cimento, em 1987. Luzia Cardoso recordou uma ação de despejo dada aos moradores do bairro Gato Preto – propriedade da família Abdalla – no ano de 1982. Ela enfatizou o “empenho” do advogado e também do sindicato, que conseguiu, na Justiça, suspender a ordem, o que permitiu às famílias ficarem no local. Contou ainda que “o Dr. Mário sempre dava aquele respaldo para a gente: ‘Unidos somos mais fortes’”.

Ela e sua família permaneceram na vila operária até o ano de 1997.

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nquanto os Queixadas esperavam pela decisão da Justiça do Trabalho, o Brasil assistia à supressão das garantias democráticas pelo Regime Militar, o que dificultava ainda mais a vitória dos grevistas. "Houve uma resistência por sete anos.

Ao longo desse tempo, os Queixadas se mantiveram organizados, mesmo não es-

Grevistas recebem o pagamento da greve dos sete anos em frente ao sindicato, em Perus, sob luz de velas

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HOUVE UMA RESISTÊNCIA POR SETE ANOS. OS QUEIXADAS SE MANTIVERAM ORGANIZADOS, MESMO NÃO ESTANDO MAIS TRABALHANDO NO MESMO LOCAL ARQUIVO PESSOAL

O pagamento só veio de fato em novembro de 1975, quando os Queixadas receberam mais de 18 milhões de cruzeiros referente aos salários do tempo em que estiveram em greve. Nesse momento, os bens de J.J. Abdalla estavam confiscados pela União, que ficou responsável pelo ressarcimento dos trabalhadores.

Na mesma época, o sindicato estava sob uma intervenção da Delegacia do Trabalho desde 1973. Ainda assim, os grevistas permaneceram unidos e decidiram que 10% da quantia recebida seria doada aos trabalhadores que não haviam sido contemplados pela decisão da Justiça.

P José de Souza "Soró" é atuante do Movimento pela Reapropriação da Fábrica e participa das ações sociais do coletivo Comunidade Cultural Quilombaque, no bairro de Perus

tando mais trabalhando no mesmo local”, ressaltou Sidnei.

O sindicalista também destacou a maneira como os grevistas lidavam com a repressão. Quando foram enviados “brucutus” (veículo blindado que despejava jatos de água ou areia para dispersar manifestações públicas), “eles [Queixadas] deitavam no chão, em frente dos carros. Um enfrentamento não-violento muito forte”. Segundo ele, Mário Carvalho de Jesus, que chegou a ser preso pelos militares, se viu no encargo de usar sua inteligência ao máximo e agrupou diversas instituições – da Igreja Católica a protestantes – para blindar os trabalhadores dos efeitos repressivos da ditadura, o que fez com que “eles [repressores] fossem recuando aos poucos”.

A grande paralisação chegou ao fim em janeiro de 1969, após a deliberação judicial. Foi decidido que 501 Queixadas estáveis poderiam retornar ao trabalho e receber a indenização. No entanto, apenas 309 voltariam às atividades. Já aos trabalhadores restantes – não estáveis –, foram negados os direitos.

assados 50 anos desde o fim da paralisação, a memória dos Queixadas continua exercendo uma forte influência no bairro de Perus. Com o encerramento das atividades da fábrica, em março de 1987, o lugar ficou marcado como local de organização operária e conscientização de uma população que aprendeu a dialogar, transformar e crescer.

Os trabalhadores iniciaram na década de 1990 uma movimentação em prol da utilização do espaço da fábrica como um centro de cultura e memória do trabalhador, com atividades culturais, esportivas e de lazer voltadas à comunidade local.

Regina Bortoto, que faz parte do Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus, contou que os Queixadas trouxeram o projeto com uma proposta didática, a fim de explicar à população a importância da reivindicação: “Isso me encanta, essa ação do movimento que é permanentemente pedagógico”.

José de Souza Queiroz, conhecido como Soró, educador e consultor em desenvolvimento humano de 55 anos, é integrante do movimento e ativo nas causas sociais do bairro dentro da Comunidade Cultural Quilombaque, da qual faz parte. Ele, que nasceu no estado do Mato Grosso do Sul e se mudou para Perus em 1977, contou que

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se encantou com a história dos Queixadas.

O legado dos operários inspirou ainda o caráter social de diversos coletivos que existem na região. Soró explicou que a Comunidade Quilombaque, que realiza atividades culturais para o público local, optou “pelo caminho da arte e cultura” trabalhando com o resgate da memória dos Queixadas.

A organização, que posteriormente “agregou a história negra e a indígena, sempre trabalhando com a ancestral memória”, executa trilhas pelo território de Perus, Jaraguá e também do Parque Anhanguera. Uma delas é a “Trilha da Memória Queixada”, que consiste em um passeio pelo ambiente da fábrica onde os participantes escutam a história da Companhia e dos grevistas. Soró explicou que o objetivo é “quebrar a questão da baixa autoestima da periferia, gerar e ampliar território de linguagem, gerar espaços de exercício de encontro e convivência”.

O Movimento pela Reapropriação foi NATÁLIA BAMBINI

caracterizado por Regina como um “grande guarda-chuva”, que agrega diversos grupos sociais do bairro, que se unem “no princípio da Firmeza-Permanente”, iniciado pelos Queixadas.

José Soró recordou que, no início dos anos 1990, a secretária da Cultura, Marilena Chauí, prometeu que viabilizaria o tombamento da “luta dos Queixadas”, pois considerava fundamental. No mesmo período, ela criou um grupo que trabalhou um ano no registro da memória oral dos operários da cimenteira.

Pouco tempo depois, no ano de 1992, a então prefeita Luiza Erundina decretou o tombamento de todo o perímetro da Fábrica de Cimento de Perus e também do prédio do sindicato como patrimônio histórico da cidade, por meio do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp.

Em 2004, durante o governo de Marta Suplicy, foi realizada uma revisão no pro-

A fábrica de Perus agora se encontra em situação de degradação pela ação do tempo

CADERNOS DA MEMÓRIA

O Movimento pela Reapropriação da Fábrica quer utilizar o espaço para a construção de um centro cultural

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cesso, que reduziu a área a ser preservada.

Segundo Mario Bortoto, o acordo previa a restauração da fábrica, por responsabilidade do proprietário, o que não aconteceu.

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tualmente o espaço da Perus, que se encontra em estado de degradação pela ação do tempo, pertence ao empresário Antonio João Abdalla Filho, sobrinho de J.J. Abdalla. Dando continuidade ao objetivo de criar o Centro de Lazer, Cultura e Memória do Trabalhador, o movimento está em diálogo com o escritório de arquitetura Kruchin, contratado pelo proprietário do terreno para a elaboração de um projeto conjunto.

Regina explicou que o escritório orientou a organização a dialogar com a comunidade sobre o que é esperado do espaço onde funcionava a fábrica de cimento: “A ideia é ampliar isso, por esse motivo realizamos esse inventário participativo onde discutimos a importância do território”.

De acordo com a educadora, o movimento hoje não pensa somente na Fábrica, mas em todo o território como patrimônio fundamental de memória.

Cada coletivo visualiza potenciais diferentes para os espaços dentro da Perus. O Grupo Pandora de Teatro, por exemplo,

defende que o subsolo, onde parte do pó de cimento era armazenado, pode se tornar um lugar para a realização de espetáculos. Já as crianças desejam um cinema no bairro, bem como um lugar para praticar esportes. Com isso, Regina explicou que a “tarefa para o movimento é fazer esse levantamento de acordo com o que caberia em cada espaço”.

A partir do projeto disponibilizado no site do escritório Kruchin, a nova estrutura seria dividida em espaços culturais, comerciais e museográfico, com cinema, teatro e exposições. A reportagem tentou contato com o Antonio Abdalla e com representantes do escritório de arquitetura para obter mais detalhes sobre a planta, mas não obteve resposta.

Enquanto a situação do patrimônio da fábrica de cimento não é definida, os diversos coletivos participantes do movimento dão continuidade às ações culturais que têm encabeçado no bairro de Perus.

Como José Soró destacou: “além de resgatar a história em si, temos essa finalidade política e pedagógica que é mexer com o imaginário das pessoas”. O objetivo mais importante, para ele, é a transformação do sujeito, para que esse sujeito transformado possa construir uma nova sociedade.____