Territórios da Cultura

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DiáriodoNordeste |

FORTALEZA, CEARÁ Segunda-feira, 25 de abril de 2016

Caderno3 diariodonordeste.com.br/caderno3

C No Mucuripe,

grupo percussivo Quebra-mola dialoga com o Oxente Break FOTO: FABIANE DE PAULA

Nos morros e becos dos bairros da periferia, artistas e grupos independentes produzem cultura para superar estigmas, criar novas oportunidades de sobrevivência e reconectar-se à cidade BEATRIZ JUCÁ Repórter

E

ngana-se quem pensa que, nas margens da cidade, dominam as ausências. É verdade que, ali, até mesmo a desestrutura do chão, de asfalto ou de pedra, estampa certo sentimento de falta – de planejamento, de políticas públicas e culturais, do Estado. Já faz tempo que as ruas vêm sendo transformadas em becos pelo crescimento desordenado ou que o acesso ao mais básico direito precede de luta. Na periferia, comunidades inteiras se veem apartadas da cidade pelo estigma da violência, que existe, mas jamais poderia ser capaz de definir um território. Essa compreensão – e a necessidade de afirmar-se para além dos estigmas – é combustível para uma produção cultural que, aos poucos, começa a se revelar também para o restante da cidade. São grupos que se apropriam da música, da literatura, do teatro, da dança e de uma infinitude de linguagens artísticas para afirmar-se socialmente, conectar-se ao bairro, reforçar identidade, encontrar novas oportunidades para sobreviver. Eles lutam, na maioria das vezes sem qualquer apoio, para criar – ainda que de forma desarticulada – territórios da cultura.

E assim, onde a cidade normalmente só consegue enxergar medo e ausência, se desdobram iniciativas capazes de revelar uma nova Fortaleza – de guetos que fervilham pela produção cultural, de artistas tão conscientes do próprio trabalho a ponto de recusarem o rótulo de “meninos da periferia”. Eles sabem: a cultura das comunidades é uma forma de resistir à invisibilidade, mas é também espaço para revelar a própria diversidade.

Plural A periferia do rap, do hip hop e do grafite é a mesma do teatro, da cultura popular, do rock, da poesia. E é neste universo plural da cultura produzida nas margens de Fortaleza que o Caderno 3 mergulha nesta série, publicada de hoje (25) a quinta-feira (28). Nesta edição, um convite para que o leitor conheça o Grande Mucuripe por meio do rap e da percussão. Lá, a música constrói pontes para o trânsito dos moradores pela comunidade e para aproximar, dali, o restante da cidade. Amanhã, o teatro levado às ruas do Pirambu busca ocupar o bairro e fortalecer-lhe a identidade. Na quarta (27), um espaço para olhar o Bom Jardim pelo viés do rock underground. A série se encerra na quinta

(28), com a atual tentativa do Conjunto Ceará para retomar a tradição da articulação cultural – uma busca de coletivos locais para integrar diferentes linguagens em programação unificada no Polo de Lazer. Na trajetória dos grupos dessas quatro regiões da cidade, existe, em comum, a forte tentativa de consolidar territórios de criatividade, lugares onde as pessoas não apenas consomem cultura, mas se apropriam dela, seja para relacionar-se com a comunidade, para tentar transformar a realidade local ou como fonte de renda e, consequentemente, de sobrevivência. “Ninguém acontece só, tem que ser em galera”, defende o músico Cícero Alexandre, do Bom Jardim. Daí a necessidade de criar e de fortalecer espaços de encontro, de troca e de produção cultural independentes. “Nós somos porta-voz dessas comunidades que sofrem muito preconceito social e racial, que são questões que não podem ser deixadas de lembrar”, explica o percursionista Júnior Brasil, que mantém o projeto social “Quebra-mola”, no Morro Santa Terezinha. Essa assumida responsabilidade dos grupos com a promoção da cultura nas periferias levanta ainda um debate sobre questões que precisam ser leva-

das em consideração na elaboração da política cultural da cidade. Para eles, é preciso estimular a produção local, multiplicar os espaços de fruição, ampliar a circulação dos grupos dentro de Fortaleza.

Público É necessário, acima de tudo, reconhecer os moradores das comunidades da periferia efetivamente como público, aposta Liana Cavalcante, integrante do grupo de teatro Teruá, no Pirambu. A batalha diária dos grupos independentes, ela define, é fortalecer territórios culturais que até já existem, mas que ainda atuam sem apoio e de forma fragmentada. “É sempre uma dificuldade convencer o Poder Público da importância de investir nesses territórios e tratar as comunidades como público, mesmo porque dificilmente as pessoas daqui vão para o Dragão do Mar consumir cultura”, explica Liana. Leia mais na página 6


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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SEGUNDA-FEIRA, 25 DE ABRIL DE 2016

CONTINUAÇÃO DA CAPA

Quando o rap ofereceu passaporte livre no Grande Mucuripe, Erivan decidiu ser ponte para o resto da cidade BEATRIZ JUCÁ Repórter

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rivan Barbosa Sales, conhecido como Erivan Produtos do Morro, anda pelas ladeiras do Grande Mucuripe com passos de inquietação. Por trás dos óculos escuros que lhe cobrem parte do rosto (e que ele se recusa a retirar), existe um olhar atento para a realidade que o rodeia – das promessas de obras que escuta desde a infância e que nunca foram concretizadas às pessoas que, naquelas ladeiras, se transformaram em personagens ao cruzar o imaginário popular do bairro. É do que vê nessas andanças que Erivan tira inspiração para produzir rap – o mesmo que abraçou como profissão para seguir um caminho contrário à violência que, durante a década de 1990, chegou a lhe tirar o direito básico de ir e vir pela região. É que o comando das gangues dava ordens para restringir o espaço, e nem mesmo os moradores poderiam transitar de uma comunidade a outra sem correr riscos. Quando a dependência química levou dezenas de jovens da região a venderem ventiladores e ferros de engomar de madrugada e outros tantos a perderem a vida por dívida ao tráfico, Erivan sentiu medo de morrer junto. Compôs raps com as mazelas que via e ilustrou a capa do seu primeiro disco solo, “A vida é muito boa, meu chapa”, com o cemitério do bairro – destino que julgava certo para si e para os seus antes de mergulhar na música. “Foi uma época muito embaçada, morreu um monte de amigo, e eu achava que ia morrer também”, lembra. Mas bem antes do primeiro disco, Erivan já havia descoberto que a música pode ser um valioso instrumento para conhecer e até mesmo transformar o bairro. Foi por meio dela que o menino que chegou do Interior se sentindo perdido encontrou o lugar no qual decidiu fincar raízes. “Conheci aqui os amigos Lenny e Igor, e começamos a cantar. Formamos o nosso primeiro grupo, Detetives do Sucesso. A gente começou a se apresentar nas escolas, nos espaços do bairro, e foi aí que comecei a me relacionar mesmo com este lugar”, conta Erivan.

Por conhecer cada pedaço de chão do bairro, Erivan se irrita quando alguém confunde o nome da comunidade onde mora. “Não gosto de dar mérito a bairro trocado”, avisa. Mas, aos olhos de uma cidade que tem dificuldade de conhecer a si mesma, esta talvez não seja uma tarefa tão simples. Localizado na zona leste da cidade, o Grande Mucuripe inclui oficialmente bairros como Mucuripe e Vicente Pinzón, que, juntos, abrigam 59.265 pessoas, segundo dados do Mapeamento Socioeconômico de Fortaleza. Dentro desses bairros, estão comunidades de personalidade forte, mas que findam confundidas pela proximidade geográfica. Assim, não é difícil ouvir de quem é de fora do bairro que uma melhoria do Santa Terezinha está no Castelo Encantado, por exemplo.

Hiphop “Quando cheguei aqui, já tinha o grupo Conscientes do Sistema no Santa Terezinha. Eu comecei no rap porque escutei cearenses cantando. Naquele tempo, eu cantava funk. Mas ouvindo o Conscientes do Sistema, achei mais massa o rap. Eles não eram do meu

C Erivan mantém um estúdio de gravação no Castelo Encantado

FOTOS: FABIANE DE PAULA

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Quemédaqui equer fazermúsica, vem trocarumaideia. Quemnãoé equer conhecerobairro,me liga.Virei passaporte pratrazer aspessoas” ERIVAN PRODUTOS DOMORRO Rapper

bairro. O hip hop rolava no Santa Terezinha, no Centro Comunitário. Depois é que a gente trouxe essa parada para o Castelo”, conta Erivan. Diante das dificuldades de trabalhar com banda de rap, ele decidiu seguir carreira solo. Comprou um computador e um microfone e começou a gravar os próprios trabalhos. “Eu não conseguia pagar estúdio caro, então mesmo com qualidade ruim, continuei com a minha carreira solo. Achei mais fácil fazer toda a minha produção e apresentar isso pronto para os músicos que tocariam comigo”. Com o tempo, Erivan conseguiu formar o próprio estúdio e comprar equipamentos melhores. Por enxergar na música uma alternativa de melho-

Novos espaços pra cultura afro

C Júnior Brasil mantém o projeto Quebra-mola, no Santa Terezinha

rar a vida, decidiu levar suas composições para além do Castelo Encantado. “Antes eu falava mais de crimes, porque era o que eu via. Mas vi que tinha que descer do morro e ganhar o mundo com a minha música. Pra isso, não podia só falar do Castelo Encantado. Comecei a ter cuidado com as minhas letras, diminuir os palavrões e mudar. Hoje, já tô colocando ideias mais positivas, pro cara levantar sua cabeça”, explica. A mudança dá o tom do segundo disco de Erivan, “Rap Nacional”, lançado em 2012. Com a ampliação de seu trabalho, ganhou a Mostra Petrúcio Maia, gravou um clipe na Finlândia, tornou-se referência do Castelo Encantado. Hoje, grava no estúdio dele músicos de fora e de dentro do bairro.

Um encontro alicerça a história do projeto Quebra-Mola, grupo que há 17 anos convida jovens dos bairros Varjota e Vicente Pinzón para subir o morro e, no Mirante do Santa Terezinha, fazer da música instrumento de autoconhecimento e de trabalho. Quando a vontade de reconectar-se às origens de Júnior Brasilcruzoucom a carênciacultural do Grande Mucuripe, firmou-se uma parceria inspirada na riqueza criativa do gueto. “O que me motiva é a periferia, é o gueto. A gente que se movimenta sabe que os guetos da cidade têm muitos valores: dentro da arte, do esporte, da cultura. Mas, infelizmente, não há uma abertura de portas para ele”, lamenta o músico. Depois de trabalhar por anos emSalvadorcomogrupoTimbalada, Júnior decidiu voltar para Fortaleza e desenvolver um projeto que pudesse transformar o bairro e fortalecer a cultura afro. “Pramim,oguetodoSantaTerezinha, é tudo. É um elemento de meditação, de criação. Eu sou

“Virei uma pessoa conhecida aqui. Quem é daqui e quer fazer música, vem trocar uma ideia. Quem não é e quer conhecer o bairro, me liga. Virei passaporte pra trazer as pessoas ao bairro”, orgulha-se. Hoje, o Castelo Encantado é um fervoroso núcleo de rap de Fortaleza. A luta agora, diz Erivan, é buscar que o mercado cultural os valorize como profissional de fato. “A gente tá cansado de ser tratado como os meninos do hip hop. A gente é músico, é rapper. Existe a cultura, mas parece que

ainda não levam a gente muito a sério”, desabafa. Enquanto isso, o bairro segue como inspiração criativa, seja pelo mar, próximo dali, ou pelos personagens. “Sobrevivo do rap e quem diz que não tem futuro pode vir pra ver. Tem muita gente que não acredita, mas aqui tem um núcleo forte. Se eu sair do morro, não tem sentido. Aqui, faço o Produtos do Morro. Recebo galera e nunca ninguém foi roubado. Os caras já sabem que tô aqui pra levar uma mensagem boa do bairro”, diz Erivan.

compositor e, quando quero criar, venho pra cá e olho esse mar vermelho, este contraste da comunidadecoma burguesia do outro lado. A gente vê um choque, mas isso pra mim vem com outra sensibilidade, e é isso que me faz florescer a criação”, diz.

Com dreads coloridos no cabelo,omúsicofalacomempolgação das dezenas de garotos que abraçaram o projeto. São eles também grandes responsáveis pela continuidade do QuebraMola. Hoje, participantes que deixaram a comunidade para morar em cidades do interior já lideram grupos que Júnior chama de “rebatedores”, uma ampliação do trabalho do Santa Terezinha para o Ceará. O projeto cresceu sem amarras e dialoga com as mais diversas linguagens. Não é raro ver, no morro, a percussão unir-se ao rap e ao break. Recentemente, o rapper e dançarino Lenny, do Oxente Break (um grupo do Grande Mucuripe), compôs em parceria com o Quebra-mola. Ali, um objetivo é abraçado por todos. “A gente leva, pela cultura, informação das dificuldades do bairro, como a falta de espaço cultural que a gente pode trabalhar. Aqui no Mucuripe muita gente tem a capacidade de fazer acontecer. A galera ta lutando por espaço”, resume Lenny.

Méritos E lá em cima do mirante, de onde se vê um mar de telhados avermelhados,reverberao batuque. Em dia de ensaio, de longe já é possível ouvir o som da percussão do Quebra-mola. “Hoje, a gente atende 178 jovens emais um público flutuante, que vem e sódepoisvoltaaaparecer.Oprojeto cresceu pela vontade do jovem daqui receber arte e cultura. Hoje, com 17 anos, temos conquistado grandes méritos”, comemora Júnior. O projeto ensina percussão aos jovens do bairro e se sustenta com o cachê das apresentações dos grupos criados dentro dele, remuneração dividida entreosintegranteseasustentabilidade do projeto.


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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - TERÇA-FEIRA, 26 DE ABRIL DE 2016

Integrantes do grupo Teruá saem em cortejo nas ruas do Pirambu, unindo música, cultura popular e teatro nos espetáculos FOTOS: FABIANE DE PAULA

O palco do Teruá é a praça, a calçada, a garagem de casa. Nas ruas do Pirambu, o grupo teatral luta pela necessidade de reconhecer a periferia como público BEATRIZ JUCÁ Repórter

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á faz tempo que as apresentações de coco e maneiro pau desapareceram das areias da praia que banha o bairro Pirambu, na zona oeste de Fortaleza. Primeiro foi a criminalidade que começou a se espalhar na região, depois, a televisão – ambas prendendo gente em casa e tirando das ruas manifestações culturais que, até então, eram tradição. Até mesmo os numerosos grupos de boi que existiam ali se amiudaram e, hoje, apenas três ainda resistem no bairro. Construído pela ocupação de migrantes que fugiam da seca no interior do Ceará, o Pirambu cresceu praticamente sem planejamento, de costas para o mar. Daquele povo que ocupoulhe o espaço, porém, o bairro herdou ricas manifestações populares. É essa memória produtiva e o potencial criativo do lugar que motiva, ali, as atividades dos sete integrantes do grupo de teatro Teruá. “A gente pesquisa a fundo as culturas populares e defende a ocupação do espaço público. Esta relação com a comunidade, com o território onde se está presente, é importante na nossa produção”, define a integrante do grupo Liana Cavalcante. O Teruá foi formado em 2009 para desenvolver, no Bom Jardim, ações que promovessem o diálogo entre o teatro, a música e a cultura popular. Eventualmente, os integrantes deixaram o bairro para uma temporada no Interior e, quando retornaram à Fortaleza, decidiram levar o trabalho ao Pirambu, sob influência de Liana. “Eu já andava no Pirambu porque minha mãe mora aqui próximo e gostava muito. Mas eu notava que as pessoas, em

geral, tinham uma ideia errada do bairro. Achavam que, ao chegar, ia ter muita morte, muita bala. E eu vinha a pé do Centro pra cá e nunca tive problema”, conta Liana.

Eita Em 2013, o Teruá escolheu o Pirambu como território para se estabelecer. Lá, criou o Eita – Espaço Interativo de Trabalhos Artísticos, que abre seu portão de ferro e oferece o piso vermelho para promover encontros no bairro. “Aqui, tem sempre um fluxo intenso de amigos, de artistas, de pessoas que querem conhecer ou nos ajudar”, conta Liana. Assim, não é raro armar cenário na garagem do lugar com uma cortina escura presa

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Sedesenvolvermos umespaço deacesso à culturaaqui, vamos poderlevar issopara outroslugares.Nossa ideiaé fortalecer territóriosculturais” LIANACAVALCANTE IntegrantedogrupoTeruá

com fitinhas vermelhas para levar teatro à vizinhança. Também não é difícil que os sete integrantes levem seus espetáculos para o calçadão do Vila do Mar ou para a Praça do Chafariz (atual Praça Nossa Senhora das Graças). O fato é que o Pirambu é um celeiro produtivo que pouco entra na programação cultural oficial da cidade. Lá, grupos de teatro, de bois, de música e de grafite resistem, embora – sem recursos e sem apoio

– enfrentem dificuldades para continuar. “A gente tem uma dificuldade de articulação com outros grupos culturais. Sabemos que eles existem, mas enfrentam dificuldades para dar continuidade. Se para por um tempo, tudo se desarticula”, lamenta Liana. A batalha que a cidade precisa assumir, ela defende, é a de fortalecer os territórios culturais distantes do eixo de programação já estabelecido, atualmente concentrado no Centro e na Praia de Iracema. “O Pirambu tem uma atuação cultural marcante, porém não valorizada. Dificilmente os recursos públicos chegam a atividades da periferia. A gente faz muita coisa no bairro, mas tem sempre dificuldade de fazer o Poder Público compreender a importância disso”, reclama Liana. Para ela, é preciso que os moradores das periferias sejam tratados efetivamente como público. “Aqui, tem pessoas que só vão ter oportunidade de consumir cultura se você trouxer até elas. Muitos sentem que a programação no eixo é para os intelectuais. Quando você faz um espetáculo na rua, eles já sentem que é pra eles”, aponta. E é justamente a interação com esse público nas ruas do bairro que motivam o Teruá. “O Pirambu está presente na maneira que a gente escolhe para trabalhar. Estamos sempre com a preocupação de ocupar as praças, de fazer cortejos pela comunidade. Aprendemos a circular no bairro com tranquilidade. A gente acha que, se desenvolvermos um espaço de acesso à cultura aqui, vamos poder levar isso para outros lugares. Nossa ideia é fortalecer territórios culturais”, finaliza Liana.

C Liana

Cavalcante e o marido Gleilton Silva emprestam a própria casa para criar espaço interativo no bairro


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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - QUARTA-FEIRA, 27 DE ABRIL DE 2016

Do Bom Jardim, a banda The Good Garden tira inspiração para produzir música. Ao bairro, devolve o que recebe por meio do esforço para criar, na periferia, uma cena de rock underground

BEATRIZ JUCÁ Repórter

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a rua Nova Conquista, pouca gente há de notar o portão de ferro que toma toda a fachada do número 1066. Espremido entre casas residenciais bem mais largas, o portão se abre para um pequeno corredor de paredes acinzentadas. Do lado direito, um surpreendente contraste. O ambiente agora é uma charmosa toca de chão quadriculado, baixa iluminação e paredes desenhadas – um espaço criado no bairro Bom Jardim para o rock underground fazer barulho (e se espalhar) na periferia de Fortaleza. A Toca Good Garden materializa a luta dos músicos Georgiano de Castro, Wellington Ancelmo e Cícero Alexandre para criar uma cena de rock sustentável no bairro. Lá, em um dos bairros mais violentos de Fortaleza e um dos que apresentam menor índice de desenvolvimento humano, eles conseguiram unir forças de diferentes bandas para resistir. No rock, encontraram liberdade e, por meio da música, têm levado à cidade um novo olhar sobre o Bom Jardim. O fato é que as bandas de rock têm se multiplicado ali, nos últimos anos. A identificação do bairro com o gênero musical parece vir de uma característica comum a ambos: resistir. “As primeiras bandas de rock, criadas aqui no início dos anos 1990, e mesmo as de hoje estão

AlexanC Cícero dre

, Wellington Ancelmo e Georgiano de Castro formam o The Good Garden

FOTO: THIAGO GADELHA

aí trabalhando, e o nome que mais pesa para isso é resistir, sobreviver. Esse foi o gênero que abraçamos pra trabalhar. Isto não foi uma coisa pensada, mas, se você for analisar, o rock advém geralmente de locais que não são financeiramente bem vistos. O Bom Jardim é a nossa experiência de Fortaleza com o rock’n roll”, diz o músico Cícero Alexandre.

Sustentabilidade Influenciada pelo punk, a banda The Good Garden foi criada há mais de uma década já na perspectiva da sustentabilidade. A ideia era manter um trabalho autoral, mas também produzir a si mesmo. Como não havia uma cena musical no bairro, decidiram se fortalecer criando uma cooperativa underground. Hoje, a Toca Good Garden é um espaço criado não apenas para a apresentação das bandas do bairro, mas da cidade e mesmo do

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OBom Jardimé capaz desintetizarideias e produzir.Acultura trazmuitacoisa boa, inclusivea quebrade estereótiposque o bairrotem” CÍCEROALEXANDRE Músico

País. “Faz dez anos que a The Good Garden trabalha aqui com eventos, como banda e como produção”, pontua Wellington. Antes de conseguirem ter o próprio espaço, os músicos do Good Garden utilizavam o palco do Centro Cultural Bom Jardim para se apresentar. Quando conseguiam promover eventos maiores, negociavam com o Bom Mix, um bar famoso na região. “Você hoje não consegue sobreviver se não for sustentável”, acredita Cícero. Com esse pensamento, passaram a produzir fanzines, souvenirs, música, histórias em quadrinhos, audiovisual. Os músicos do The Good Garden assumiram a responsabilidade de sobreviver e tentar circular, mas também de dar ao Bom Jardim status de referência quando o assunto é rock. Tanto que quando grupos de outros estados vêm se apresentar nos espaços culturais mais conhecidos da cidade, não é raro irem até a Toca. No ano passado, foram pelo menos 126 shows realizados no lugar. “De 15 em 15 dias, a gente movimenta o bairro com o rock. Há 23 anos, quando a gente criou a primeira banda, a gente já tinha a consciência, até por influencia do punk rock, que ninguém acontece só. As coisas só acontecem em galera. A gente é música, é rock. Mas tem que ser também teatro, literatura, tem que todo mundo acontecer”, acredita Georgiano.

A relação do The Good Garden com o bairro vai além do sentimento de pertencimento dos integrantes. O cotidiano e os personagens do Bom Jardim estão presentes nas músicas da banda, mas um propósito maior os une: desenvolver um movimento cultural que revele uma comunidade viva. “A gente cresceu dentro dos movimentos populares e sabe a importância que tem você lutar por cada centímetro de asfalto, por uma praça, por uma escola. E o nosso movimento artístico vem disso: fazer essa representação de que a comunidade está viva e que aqui não é só violência”, define Georgiano. Cícero Alexandre recusa o sentimento bairrista porque tem consciência do que o The Good Garden vem deixando para o bairro ao longo da última década, principalmente na influência para o surgimento de novas bandas de rock. “Neste tempo, a gente conseguiu influenciar três gerações de bandas de rock. A gente vai assistir as bandas novas e tem muita gente que diz: ‘Tô tocando hoje por causa da The Good Garden’”, comemora. Wellington ressalta que, embora a atuação da banda historicamente esteja voltada para desenvolver uma cena no Bom Jardim, o The Good Garden não deixa de levar o seu trabalho para outros lugares. “A gente se mostra como Bom Jardim, mas não deixamos de circular”, explica.

Para Georgiano, por meio do rock, o Bom Jardim começa a ser visto do jeito que ele é. “Tenho que defender o lugar onde eu moro. O Estado não consegue abraçar tudo, então você tem que realizar, ajudar também”, defende. Cícero conta que se doar ao bairro foi uma forma que a banda encontrou para mostrar que o bairro produz cultura. “O Bom Jardim é capaz de sintetizar ideias e produzir. A cultura traz muita coisa boa, inclusive a quebra de estereótipos que o bairro tem”, finaliza o músico.


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