6 minute read

Albertine

Next Article
Interfuit

Interfuit

É hora de abrir minha edição portuguesa do livro. Entre a folha de rosto e a homenagem a O Imaginário, de Sartre, a Polaroidde Daniel Boudinet, de 1979. Nas edições francesa e brasileira, a mesma imagem ocorre depois da homenagem (esse é o lugar original). Na primeira edição inglesa – surpreendentemente – a fotografia de Boudinet não é reproduzida. Quase todo o debate existente acerca dessa fotografia, no contexto da CC, decorre de sua flutuação ou ausência em diferentes edições. Como se trata da única foto colorida, jamais sendo mencionada pelo autor, é plausível que alguns editores tenham optado por economizar a impressão. Muitas justificativas quanto a sua necessidade e pertinência foram propostas. Há quem sustente que ela representa a "câmara clara", isto é, o jardim do reencontro; outro autor chama a atenção para o trecho do livro em que são mencionadas as pupilas azul-esverdeadas da mãe (96), cuja tonalidade as cortinas translúcidas da Polaroidduplicariam – o que não descarta necessariamente a opinião de quem considera que as mesmas cortinas remetem ao velamento do corpo da mãe, sua ausência, ou sua presença-ausência. Todas essas hipóteses concordam em um ponto: a fotografia de Boudinet é parte essencial do livro e jamais poderia ter sido suprimida. Eu mesmo a tomei, inicialmente, como o quarto já vazio, no qual a mãe habitara. Mas agora que reconhecemos o caráter simétrico do projeto, ou como definiu Geoffrey Batchen, sua "dinâmica binária", não resta dúvida que ela funciona como contraponto à

fotografia do Jardim de Inverno: essa é uma foto que se vê e da qual nada se diz; enquanto a outra, uma foto de que muito se fala mas nunca se vê (BATCHEN, 2009, p. 16-17).

Advertisement

Daniel Boudinet, Polaroid, 1979 (BARTHES, 1989).

Foi apenas na revisão do manuscrito que Barthes atribuiu à fotografia de Boudinet o título neutro de Polaroid(neutro por designar antes a técnica que o conteúdo). Incialmente pretendia chamá-la Rideau– cortina (NARBONI, 2020, p. 69), termo que nos remete também ao teatro. A foto de Boudinet é a imagem de Ф que desvela o drama que a fotografia encena, sendo ela mesma o próprio drama. Um convite a participarmos do jogo de aparecer/esconder que o livro dramatiza. Barthes não vê o que os olhos de Jerôme viram (o Imperador), mas vê o que os olhos do fotógrafo viram (Jerôme). Não o vê agora, mas em sua memória, pois recorda uma fotografia que viu outrora. O leitor, no entanto, só pode imaginá-la pois não é reproduzida no livro.

Ao legar o retrato do irmão do Imperador à nossa imaginação, Barthes procura partilhar o impartilhável: não a foto em si, mas seu espanto diante dela: "Vez por outra eu falava sobre esse espanto, mas, como ninguém parecia partilhá-lo nem sequer compreendê-lo (a vida é feita assim de pequenas solidões), esqueci-o" (15). Esse espanto original foi recalcado e seu interesse pela fotografia, nas obras anteriores a CC, priorizou o "cultural". Por força de sua própria insistência, o espanto retorna agora na forma de um desejo "ontológico" pela fotografia "em si" (15). As aspas em "ontológico" e "em si" foram postas pelo próprio Barthes, mas não correspondem a citações nem indicam ironia (como se o autor antecipasse as críticas que viria a receber). Cadava e Cortés-Rocca (2006) oferecem-nos a melhor justificativa para as aspas, itálicos e capitulares que ocorrem no livro em profusão: "não pode haver reflexão sobre fotografia que não comece com a revisão das palavras e conceitos com os quais falamos e pensamos as imagens." (6) Se a fotografia é o advento de si como outro, conforme a premissa benjaminiana, também as palavras que entram em seu mundo não permaneceriam idênticas a si mesmas. Elas ocorrem no texto como se tivessem sido fotografadas e isso que lemos entre aspas ou em itálico é apenas sua aparência fugidia ou provisória, uma espécie de eco do seu significado usual. O espanto, no entanto, não ocorre com aspas. O espanto é próprio e não alheio. As aspas por meio das quais Barthes fotografa as palavras são como as cortinas translúcidas de Boudinet que tanto escondem como revelam o ocultado. Depois da CCtornou-se praticamente impossível fotografar Roland Barthes – não porque viveu por pouco tempo após seu lançamento, mas porque não o ter fotografadotornou-se um motivo ensaístico-literário. O primeiro texto do gênero foi publicado por Hervé Guibert (2014), em 1982, incluído na coleção de narrativas e meditações A Imagem fantasma, escritas em resposta a CC(“A Fotografia, tão perto da morte quanto possível"). Um relato que me interessa particularmente foi fornecido pelo historiador da arte Hubert Damish.

Ele nos conta que, por ocasião de um congresso do qual ambos participavam, carregou mal o filme na câmara e fez Barthes posar em vão no intervalo de um congresso do qual ambos participavam em 1977 (DAMISH, 2007, p. 15-16). O constrangimento do alvo e o fracasso do operador servem de pretexto para uma reflexão sobre o punctum. Como especialista em história da perspectiva, Damisch, sabe que a noção de punctumque Barthes mobiliza em CCprovém dos tratados clássicos da pintura: o punto dell’ochio. Para um historiador da arte da Renascença, portanto, nada mais studium que o punctum para onde convergem as linhas que sustentam a construção perspectiva (DAMISH, 2007, p. 17). Barthes estaria operando mais uma inversão característica da CC: o ponto de fuga onde a perspectiva sustenta a inteligibilidade espacial do seu assunto torna-se a linha de fuga por meio da qual essa inteligibilidade escapa. Os historiadores designam a perspectiva clássica, que o punctumde Barthes subverte, de perspectiva albertiana, pois foi sistematizada por Leon Baptiste Alberti, no tratado Da Pintura, de 1435. Curiosamente, em CC, ela é chamada “albertiniana” (114). Damisch (2007) se pergunta se o engano é resultado de um ato falho ou de uma confusão proposital, pois a perspectiva “albertiniana” poderia ser a perspectiva de Albertine, principal personagem feminina da Recherche que Barthes relia no período (p. 17). Albertine é esse amor dificilmente correspondido ou nunca plenamente realizado. Desaparecida ou em fuga, depois de ter sido aprisionada por Marcel (nas grades da perspectiva, talvez), sucumbe em uma queda de cavalo. O último volume da obra, A fugitiva, é o livro do “luto” do narrador e uma reflexão acerca da morte de um de seus “eus” – aquele que amava Albertine. Nesse sentido, é também um livro sobre sua indiferença: à fuga e morte de Albertine sucedeu-se a morte daquele que a amava; um outro eu o sucederá. Hubert Damish não se arrepende do retrato malogrado de Barthes, apenas envergonha-se do erro. Mas arrepende-se de jamais ter perguntado ao colega se a substituição de Alberti por Albertine

fora acidental (inconsciente) ou proposital (DAMISH, 2007, p. 17). Em um livro como CC, em que o punctumse transforma em seu contrário, seria possível decidir entre essas duas alternativas? Olhemos de novo a Polaroid de Boudinet. Quem pode nos assegurar que não se trata mais uma vez de Albertine e não de Henriette, a mãe de Barthes? Em A Fugitiva, lemos:

Do meu quarto escuro, com um poder de evocação igual ao de outrora, mas que já não causava senão sofrimento, eu sentia que lá fora, na densidade do ar, o sol poente punha na verticalidade das casas e das igrejas um tom fulvo de ocre. E se, ao voltar, Françoise desarranjava involuntariamente as pregas das grandes cortinas, eu sufocava um grito ante o rasgão que acabava de fazer em mim aquele raio de sol antigo, que me fizera achar linda a fachada nova de Bricqueville l'Orgueilleuse, quando Albertine me disse: 'Ela foi restaurada' [...] Eu dizia a Françoise que cerrasse as cortinas, para não tornar a ver aquele raio de sol. Mas ele continuava a filtrar-se, igualmente corrosivo na memória: 'Não gosto, foi restaurada. Mas amanhã iremos a Saint-Martin-le-Vêtu, e depois de amanhã a...' Amanhã, depois de amanhã, era um futuro de vida em comum, talvez para sempre, que começava; meu coração atirou-se a ele, mas já não estava ali, Albertine morrera (PROUST, 1988, p, 61-62).

Com a morte de Albertine, nasce o escritor.

This article is from: