CRIMES IMPOSSÍVEIS Os crimes de “quarto fechado”, quebra-cabeças da literatura policial
Prefácio Braulio Tavares
CRIMES IMPOSSÍVEIS é uma publicação exclusiva da Bandeirola Editora, com direitos protegidos para © Bandeirola Ilustração de capa deste excerto: @instanapontadolapis CRIMES IMPOSSÍVEIS está em Financiamento Coletivo até junho/2021 Conheça, apoie, divulgue: www.catarse.me/crimes_impossiveis http://catarse.me/crimes_impossiveis BIBLIOTECA PESSOAL de BRAULIO TAVARES
CRIMES IMPOSSÍVEIS
SELEcAO DE
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DO (1919) * tados. Dawes, O ROMNEY ROUBA cuida dos necessi ela? e distribui a quem vel arquitetado por rouba dos ricos Four-Square Jane er o roubo impossí conseguirá esclarec da Scotland Yard, Austin Freeman NIO (1909) * R. dor A ADAGA DE ALUMÍ el. Só mesmo o metódico, observa insolúv crime. ato esse ar Um assassin yke para desvend e detalhista Dr. Thornd L. Frank Baum
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Davisson Post * Melville é possível DOOMDORF (1914) comete u o crime. Isso só O MISTÉRIO DE deles culpados, mas nenhum investiga os acontecimentos. Muitos se dizem que Tio Abner na narrativa em e Leblanc (1922) * Mauric e suas fortes paixões. PRAIA NA s A MORTE enfrenta duas mulhere Ladrão de Casaca, Arsène Lupin, o e Jacques Futrell história de CELA 13 (1905) * poderia faltar: a O PROBLEMA DA . nte fechado” não de vigilância coletivo narrativas de “ambie al e um sistema Esse clássico das engenhosidade individu um duelo entre a Conan Doyle * (1892) DA FAIXA MALHA k Holmes. A AVENTURA DA das melhores aventuras de Sherloc Stoner. uma zada Srta. Helen Essa é considerada para proteger a aterrori E só mesmo ele SSA TA DE UMA CONDE NA HISTÓRIA SECRE an Le Fanu UMA PASSAGEM morta. * Sherid NA IRLANDA (1838) apenas com a sorte para não ser conta esse relato. em perigo e que para acompanhar Uma jovem órfã de nervos de aço Você vai precisar Allan Poe E (1841) * Edgar MORGU RUA S NA crimes OS ASSASSINATO clássicos, um dos mais enigmáticos ia. antolog nesta Clássico dos não poderia faltar de quarto fechado
Locked-Room Mystery
BRAULIO TAVARES
Seleção * Tradução * Prefácio
Bandeirola
G. K. Chesterton LIVRO (1933) *
que o cercam. A MALDIÇÃO DO atenção em todos 809-05-3 o que vê e preste ISBN: 978-65-86 Não confie em tudo do Padre Brown. Só poderia ser coisa
Bandeirola
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Bandeirola
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a é aquela montada livro Uma biblioteca pessoal s de cada momento. Às livro, ao sabor dos interesse em cantos, e mesmo cabe vezes, de tão pequena de um mundo. A biblioteca assim equivale a um interesses pessoais, paixões leitor representa seus des. e, claro, suas dificulda Braulio a biblioteca pessoal de e É fácil imaginar que que o ajudaram a compor Tavares tenha os livros faces: poeta, escritor, anaprofundar as suas diversas e roteirista. tradutor a, tologista, cordelist antologista o que a bibliotec sua E foi consultando a dos conselecionou os autores teve a ideia do tema e fade “quarto fechado” que tos pioneiros dos crimes IMPOSSÍVEIS. E isso é uma zem parte do livro CRIMES quem biblioteca nas mãos de prova do poder de uma suas preciosidades. r consulta e la sabe apreciááreas a que se as todas em se Braulio Tavares destacas e ina de prêmios nacionai dedica, seja na conquist DA clássico A ESPINHA DORSAL ternacionais, como no imento por MUNDO FANMEMÓRIA, seja no reconhec Bandeirola. os pela TASMO, ambos publicad de liescritor rgo, dramatu É ainda aclamado como de sucessos. tor composi e teratura infantil l no blog regularidade invejáve a, Braulio publica, com a respeito de literatur Mundo Fantasmo, artigos geral. popular e cultura em música, cinema, poesia
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Foto: Maria Flor Brazil
da Quebra-cabeças
BRAULIO TAVARES
não u nesta antologia as Braulio Tavares capricho inédita nas prateleir apenas instigante como VEIS reúne contos dos nacionais: CRIMES IMPOSSÍ a Era de até a década de 1930, mestres do século 19 podemos assim, E, sca. Ouro da literatura detetive de um dos conceilvimento desenvo o o acompanhar conto e do romance policial: tos mais curiosos do “quarto fechado”. crime impossível ou de tema entre os pioneiros do Os contos, selecionados -cabeças” da literatura conhecido como o “quebra uma Jane, uare Four-Sq tam policial, nos apresen suas que facilmente engana o vigarista de sucesso tendo como adversário vítimas e a polícia, mesmo Yard. e Dawes, da Scotland Chefe Superintendent detede clássicos, dois dos E nessa mesma seleção metódidores os observa tives científicos da ficção, k Holmes. Thorndyke Sherloc cos Dr. Thorndyke e com o método que utiliza prefere a ciência e expõe ora, o Sherlock todos , rigor e detalhe. E Sherlock o na deduções se baseand sabem que elabora suas ma. um toque de melodra ciência, mas não sem desque Abner é o Tio Agora, digno de respeito em que os assassinos el venda um crime impossív am nenhum crime. confessos não cometer se não fosse Dupin, de falar io Nem seria necessár nunca da ficção literária sem ele o primeiro detetive e”. ter sido chamado de “detetiv Arsène Lupin, o gentlePor aqui também circulam s S. F. X. Van Dusen, man cambrioleur; e Augustuuma situação impossíem colocado por seus amigos diria, de Mágico de Oz, quem , vel de escapar. O autor sem escrúpulos, Sr. Marston cria um oportunista realizar seus desejos. que não vê limites para que alguns personagens Mas esses são apenas tações interpre e com ótimas circulam destemidos VEIS. nesses CRIMES IMPOSSÍ
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B I B L I O T E C A
P E S S O A L
“Foi naquele tempo, num daqueles anos vazios, quando a névoa não tinha mais fim e os ventos não paravam seu lamento, que, dentro do grande bonde vermelho -- trovão escandaloso --, esteve junto a mim o amigo da Morte, e não
fiquei sabendo.”
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CRIMES IMP
Bandeirola
BRAULIO TAVARES Seleção * Tradução * Apresentação
OSSÍVEIS Crimes de “quarto fechado” EDGAR WALLACE R. AUSTIN FREEMAN L. FRANK BAUM MELVILLE DAVISSON POST MAURICE LEBLANC JACQUES FUTRELLE ARTHUR CONAN DOYLE SHERIDAN LE FANU EDGAR ALLAN POE G. K. CHESTERTON
A humana loucura imaginou crimes atrozes, depois de Caim, mas nenhuma mente humana jamais foi tão tortuosa para imaginar um crime num quarto fechado. Umberto Eco, Baudolino, cap. 25
SUMÁRIO Prefácio - Braulio Tavares.............................................................9 Edgar Wallace.................................................................... 21 O ROMNEY ROUBADO (1919).................................................. 23 R. Austin Freeman............................................................. 36 A ADAGA DE ALUMÍNIO (1909)................................................ 38 L. Frank Baum.................................................................... 68 O SUICÍDIO DE KIAROS (1897)................................................. 69 Melville Davisson Post.................................................... 84 O MISTÉRIO DE DOOMDORF (1914)....................................... 86 Maurice Leblanc..............................................................102 A MORTE NA PRAIA (1922).....................................................104 Jacques Futrelle...............................................................130 O PROBLEMA DA CELA 13 (1905).........................................132 Arthur Conan Doyle.......................................................175 A AVENTURA DA FAIXA MALHADA (1892)..........................178 Sheridan Le Fanu............................................................208 UMA PASSAGEM NA HISTÓRIA SECRETA DE UMA CONDESSA NA IRLANDA (1838)...........................210 Edgar Allan Poe...............................................................252 OS ASSASSINATOS NA RUA MORGUE (1841)....................254 G. K. Chesterton..............................................................296 A MALDIÇÃO DO LIVRO (1933)..............................................298
Harry Clarke, Public domain, Wikimedia Commons
O irlandês Harry Clarke (1889-1931) ilustrou a edição de 1919 do livro Tales of Mystery and Imagination, de Edgar Allan Poe.
CRIMES IMPOSSÍVEIS Os crimes de “quarto fechado”, quebra-cabeças da literatura policial
Braulio Tavares Esta antologia reúne contos da primeira fase da literatura detetivesca, desde os mestres isolados do século 19 até a década de 1930, considerada por muitos a Era de Ouro desse tipo de narrativa. Entre o conto de Sheridan Le Fanu (1838) e o de G. K. Chesterton (1933)1 vemos o desenvolvimento de um dos conceitos mais curiosos da narrativa policial — o crime impossível, ou de “quarto fechado”.
O crime impossível talvez seja o tipo mais rebuscado de puzzle ou quebra-cabeça dedutivo na literatura policial. É aquele caso em que o crime cometido não é apenas misterioso, mas tem aparência sobrenatural, como se as leis da física tivessem sido violentadas. Cabe ao detetive explicar a mecânica que possibilitou essa aparente violação das leis naturais. É o mistério policial em que mais importante do que o whodunit (quem matou) ou o whydunit (por que matou) é o howdunit (como matou). A revelação da identidade do criminoso é menos extraordinária do que a revelação do método utilizado para praticar o “crime que não poderia ser cometido”. 1 O nosso recorte histórico adiou a inclusão de contos de alguns dos grandes mestres desse subgênero, como John Dickson Carr, Clayton Rawson, Edward D. Hoch, Bill Pronzini, Ellery Queen e outros. Nossa intenção é de que eles apareçam num volume futuro desta série. 9
O BURACO NEGRO O crime de quarto fechado é aquele em que uma pessoa é encontrada morta dentro de um quarto trancado por dentro e do qual o criminoso, pela lógica, não poderia ter saído. Ele equivale de certo modo ao buraco negro das histórias de ficção científica. É um horizonte de eventos do qual é impossível escapar, e ainda assim alguém escapa. Contra todas as leis físicas, contra todas as restrições impostas pelas descobertas da Ciência, alguém escapa. Se na ficção científica essas leis, na história narrada, são violadas (porque as naves entram e saem de buracos negros ou buracos de minhoca como se cruzassem o Canal da Mancha a passeio), na ficção policial a realidade predomina. Nenhuma lei natural é desobedecida. Tudo que acontece ali (a entrada do criminoso, o crime, a fuga do criminoso) tem uma explicação material, por mais rebuscada que seja, por mais improvável que aquilo pareça na vida real. Nesse sentido, o crime de quarto fechado costuma ser a mais lógica das narrativas (em termos de coerência interna) e a mais ilógica (em termos de aplicabilidade à vida real).
Existe em muitas dessas histórias um clima claustrofóbico, uma sensação de presença de forças malignas de poder irresistível. Isso se torna mais pungente quando vemos essas situações descritas do ponto de vista das vítimas, como ocorre em algumas das histórias aqui incluídas. É um limiar do terror: saber-se num quarto totalmente trancado e protegido, e ao mesmo tempo saber que isso não evitou a morte de outras pessoas. Do ponto de vista da vítima, o quarto fechado por dentro é uma alegoria da morte, aquele espaço de onde nunca mais se pode sair. Do ponto de vista do criminoso, ele é uma alegoria da prisão: aquele cubículo onde ele será preso (caso seja desmascarado) e de onde nunca mais sairá. 10
Isto dá a um texto precursor como O Problema da Cela 13 uma dimensão múltipla: é uma história de crime impossível, mas o seu protagonista é ao mesmo tempo o criminoso (porque lhe cabe arquitetar a própria fuga) e o detetive (porque é isso que o Professor Van Dusen é). Esta é a história de uma vítima que não morreu, um criminoso que não cometeu crime algum, e um detetive a quem cabe ludibriar a polícia. Um problema teórico em estado puro, sem contaminação de nenhum crime real. Em The Mystery to a Solution (1994), uma profunda análise dos contos policiais de Jorge Luis Borges e de Edgar Allan Poe (e suas insuspeitadas ressonâncias em outras áreas da literatura e da História), Robert Irwin compara o tema do “quarto fechado” ao do labirinto clássico. Teseu se equipara ao criminoso: ele precisa entrar naquele edifício, matar alguém que o ameaça, e sair de volta incólume. Ele usa essa analogia para dissecar o mais interessante conto de quarto fechado de Borges: História de Abenjacan, el-Bokhari, Morto em Seu Labirinto (em O Aleph, 1948).
OS PRECURSORES BÍBLICOS Um dos passatempos compulsórios da crítica literária é a busca de antecedentes. No caso do crime de quarto fechado, há pelo menos um que é encontrado na Bíblia, e é mencionado no conto O Mistério de Doomdorf, aqui incluído. Está no terceiro capítulo do Livro dos Juízes, citado por Bronson, o velho pregador amalucado. O trecho conta como Aod, filho de Gera, era capaz de usar com a mesma habilidade tanto a mão direita quanto a esquerda. Ele vai visitar Eglon, rei de Moab, levando presentes; e leva uma adaga escondida nas vestes. O rei era “em extremo gordo”, e Aod pede para falar-lhe em particular. 19 E voltando de Galgala, onde estavam os ídolos, disse ao rei: Tenho que dizer-te, ó rei, uma palavra em segredo. E ele lhe mandou que se calasse; e tendo saído para fora todos os 11
que o rodeavam, 20 entrou Aod a ele; e estando o rei só sentado no seu quarto de verão, lhe disse: Tenho que dizer-te uma palavra da parte de Deus. O rei se levantou logo do seu trono. 21 E Aod estendendo a sua mão esquerda, tirou a adaga do lado direito e lha cravou no ventre, 22 com tanta força, que os copos entraram com a folha pela ferida, e ficou apertada na muita gordura. E não tirou a adaga; mas como a cravou, assim a deixou no corpo; e logo os excrementos do ventre saíram pelas suas vias naturais. 23 Aod porém tendo muito bem fechado e segurado com o ferrolho as portas do quarto, 24 saiu por um postigo. E entrando os criados do rei viram fechadas as portas do quarto e disseram: Talvez esteja aliviando o ventre no seu quarto de verão. ( Juízes, 3: 19-24)
Temos aqui uma narrativa de rara eficácia, como tantas na Bíblia. O “herói” ambidestro, o que sugere ao mesmo tempo habilidade guerreira e duplicidade (traição); o rei, excessivamente gordo, incapaz de defender a si mesmo; o ferimento brutal; o cuidado do assassino em aferrolhar tudo por dentro; a fuga por um postigo, que não iludiria uma polícia moderna, mas na época pode ter provocado uma breve perplexidade; e a ironia final dos criados que visualizam o rei “aliviando o ventre”, sem saber quanto estão certos. Há um exemplo um pouco menos canônico, citado pelo scholar borgeano Donald Yates, que inclusive traduziu contos de Borges para o Ellery Queen’s Mystery Magazine. Ele recorda, em An Essay on Locked Rooms (em The Mystery Writer’s Art), um episódio dos Evangelhos Apócrifos, a chamada Histórias de Bel e o Dragão, um complemento, não oficializado, ao Livro de Daniel.
O profeta bíblico Daniel tem algo de detetive, pois por mais de uma vez decifrou sonhos ou inscrições misteriosas. 12
Escravizado na corte do rei persa Ciro, Daniel é admirado pelo rei, que de vez em quando o chama para discussões. Bel é a estátua de um Deus que (o rei acredita) é um ser vivo, pois alimenta-se durante a noite, após ser trancado numa câmara a que ninguém tem acesso. Daniel desconfia daquilo e espalha cinzas no piso do aposento. Depois, a porta é selada. Na manhã seguinte, descobrem-se na cinza os rastros de idas e vindas dos sacerdotes, que tinham acesso por uma passagem secreta e vinham durante a noite encenar a “refeição” do ídolo. A fuga do assassino pelo postigo, nos Juízes, pode inclusive ter permanecido como um eco na memória de Edgar Allan Poe, para dar escapatória ao seu criminoso da Rua Morgue. As cinzas que denunciam as pegadas dos sacerdotes se transformariam, nos howdunits modernos, nos campos nevados ou na areia intacta da praia, onde jaz misteriosamente um cadáver estrangulado ou apunhalado. Em todo caso, esses episódios nos mostram, como muitas histórias da literatura oral do Oriente e do Ocidente, que certos traços do raciocínio humano sempre existiram, pelo menos nas pessoas inteligentes.
UMA LITERATURA CEREBRAL Na narrativa detetivesca clássica, um mistério surge no terço inicial da história, e espera-se que esse mistério seja resolvido no final. É esta a essência da narrativa detetivesca, e todo o restante é complemento. O que não impede que esse complemento possa também ser de boa qualidade literária; mas estará sempre em segundo plano. É do Mistério que se trata; é em busca desse Mistério (e de sua solução) que o leitor familiarizado com o gênero abre um livro, e todo o restante é lucro, é o que hoje chamamos de “faixa bônus”. O mistério de quarto-fechado envolve um problema aparentemente insolúvel, que em geral consiste num assassinato — mas não obrigatoriamente. 13
Pode se tratar de um roubo, um desaparecimento, qualquer tipo de acontecimento impossível que envolva um paradoxo do espaço físico. Comentando a obra de Edgar Allan Poe, Jorge Luis Borges dizia: Poe não queria que o gênero policial fosse algo realista; queria que fosse um gênero intelectual, um gênero fantástico, se vocês assim preferirem, mas um gênero fantástico, fruto da inteligência, não apenas da imaginação. (em Cinco Visões Pessoais, Editora da UnB, 1987, 2ª. ed.)
Esta curta definição, para mim, situa bem o gênero da narrativa detetivesca. Não faz parte do fantástico sobrenatural, porque nela nada ocorre que viole as leis naturais ou que requeira a interferência de um mundo espiritual de qualquer natureza. Mas também não se situa no plano do realismo, da novela mimética, do retrato da vida como ela é. É uma narrativa que não esconde sua natureza artificial. G. K. Chesterton lembrava às vezes, em seus artigos e prefácios, que o romance policial pertence ao universo do tale, não da novel. É uma distinção em língua inglesa que em nossa língua precisa de uma adaptação. Podemos dizer que para ele o romance policial está mais próximo do conto popular e tradicional, onde o que importa é contar uma história, do que do grande romance dos últimos dois séculos, em que se pretende produzir uma impressão de realidade visual, psicológica, social etc. A maior parte dos críticos, quando chega a essa encruzilhada, compara uma aventura de Sherlock Holmes com o Crime e Castigo de Dostoiévski. São duas formas de literatura divergentes, que procuram produzir impressões diferentes, estimular o leitor de maneira diferente, e nenhuma das duas deveria servir de modelo para a outra, a não ser como uma referência distante, como um universo vizinho no qual sempre se pode aprender alguma coisa. 14
O enredo de crime impossível é um dos subgêneros literários em que se verifica com mais clareza a presença do que eu chamo de o “Protocolo da Resposta”. Existem alguns tipos de literatura nos quais certas dúvidas ou certas situações enigmáticas são propostas, e o leitor experiente sabe que serão respondidas no final. Muitas histórias de ficção científica hard (que envolvem problemas de física, astronavegação etc.) também se baseiam nisso: num problema que será resolvido, ou num mistério que será esclarecido no final. Por outro lado, grande parte da literatura mainstream e mesmo da literatura fantástica se baseia no efeito oposto, o “Protocolo da Pergunta”. A história propõe um mistério, mas não o soluciona. O livro termina e as questões principais ficam sem resposta. O que aconteceu, afinal? Qual a explicação para os fatos, sejam eles banais ou bizarros? O livro não a fornece. É uma narrativa em aberto, e sua função não é fornecer uma resposta, mas propor uma pergunta.
ESTA SELEÇÃO Cobrindo uma época “vintage” do gênero, esta antologia também não apresenta contos de autores do Brasil, onde a literatura policial teve surtos breves, mas nas últimas décadas tem crescido em qualidade e em popularidade. Contos de “crime impossível” são certamente raros; talvez possam ser garimpados na obra de nomes como Luiz Lopes Coelho, Carlos Orsi, Victor Giudice, e outros. Dois exemplos que me ocorrem na área do romance são o subplot de Ariano Suassuna no Romance da Pedra do Reino (1971), com o assassinato de D. Pedro Sebastião Garcia-Barreto num torreão inacessível, trancado por dentro e vigiado por fora (no Folheto 51, O Crime Indecifrável); e o romance recente de Marcelo Ferroni, Das Paredes, Meu Amor, os Escravos nos Contemplam (Companhia das Letras, 2014), em que um crime de 15
quarto fechado é cometido, investigado e solucionado ao longo de uma noite de tensão e medo. A seleção dos contos de CRIMES IMPOSSÍVEIS tem a intenção de enfeixar num mesmo volume algumas narrativas historicamente importantes, porque pioneiras e criadoras de parâmetros, e outras que já se situam no plano da variante, da adaptação, da derivação, da reflexão metalinguística. Os textos do século 19 mostram a cristalização gradual do gênero, à medida que certos elementos vão se impondo como estruturalmente essenciais. Um texto precursor como o de Le Fanu tem vítima e assassino, mas falta-lhe o detetive. O clássico Assassinato na Rua Morgue (1841), de Poe, mesmo considerado fundador, tem detetive e vítima, mas não tem criminoso, já que tudo gira em torno de uma espécie de acidente, uma tragédia imprevista. O elemento “quarto fechado” não resulta de um planejamento maquiavélico, e sim de um improviso meio casual. É preciso esperar por Conan Doyle no conto (e por Israel Zangwill no romance, com The Big Bow Mystery, 1892) para que a tríade criminoso/vítima/detetive surja com a solidez que se tornaria fundamental ao gênero. É notável a semelhança da relação vítima/criminoso do conto de Doyle (1892) com o de Le Fanu (1838), a quem ele aparentemente deve tanto quanto a Poe, neste exemplo específico. L. Frank Baum, mais conhecido como autor de O Mágico de Oz, não é certamente um nome que o leitor espere encontrar numa antologia com esse tema. Sua história curta, de estilo preciso, adota o ponto de vista do criminoso e já demonstra familiaridade com um dos gimmicks básicos do crime de quarto fechado: o emprego de um meio mecânico para conduzir a chave de volta para dentro do quarto, depois de trancá-lo por fora. Truque que seria aperfeiçoado por muitos, inclusive pelo infatigável Edgar Wallace, em romances como A Pista da Vela 16
Dobrada (1918) e A Pista do Alfinete Novo (1923), livros citados indiretamente por Ariano Suassuna no episódio referido anteriormente, atestando o enorme sucesso do escritor inglês no Brasil a partir da década de 1930, principalmente na famosa Coleção Amarela da Editora Globo gaúcha. O conto de Wallace aqui escolhido, no entanto, aborda um ângulo diferente e desafiador: como fazer um objeto de grandes dimensões desaparecer de um aposento vigiado.
O crime de quarto fechado pode envolver assassinatos, roubos ou desaparecimentos “impossíveis”. Pode ser decifrado com o rigor científico do Dr. Thorndyke, de R. Austin Freeman, um discípulo confesso de Conan Doyle, e também pela intuição e finura psicológica de Arsène Lupin, no conto de Leblanc. Neste, o estilo do folhetim de aventuras casa-se perfeitamente com a leitura do crime feita pelo detetive, onde pesa mais o conhecimento da psicologia feminina do que do funcionamento das armas. Como já foi dito, um conto de estrutura tão artificial quanto o mistério de crime impossível precisa muito mais de coerência interna do que de verossimilhança externa. O que confere peso e plausibilidade à solução é o modo como ela brota do ambiente cultural descrito, dos personagens que ali evoluem, do seu modo de ver o mundo, de interpretar a violência e a morte. Se em Leblanc tudo gira plausivelmente em torno da paixão sexual e do ciúme, em Melville Davisson Post é o sentimento religioso arraigado que impregna toda a narrativa e ratifica as circunstâncias de uma morte que parece ter sido decidida por uma justiça divina. A década de 1930 revelou uma série de obras com tramas tão complexas e engenhosamente executadas que Howard Haycraft, em 1941, aconselhou: “Evitem o mistério de quarto fechado. Hoje, somente um gênio pode trazer para ele algum 17
interesse ou novidade”. Como sempre acontece nesses casos, a previsão foi várias vezes desmentida. O gênero, no entanto, já tinha maturidade suficiente para refletir sobre si mesmo, como ocorre no conto de G. K. Chesterton, que encerra o volume. Chesterton criou alguns clássicos de crime impossível na narrativa curta, como O Oráculo do Cão, A Adaga com Asas, O Homem Invisível e outros. O conto aqui incluído é por um lado uma sátira, e por outro faz uma reflexão sobre a verdadeira essência do conto detetivesco, que é (entre outras coisas) uma parábola sobre a arte de ver. Tudo pode ser visto de mais de uma maneira. O detetive é aquela pessoa que consegue ver da única maneira que faz caírem todas as fichas, e se torna assim o único a interpretar corretamente todos os fatos. Isso nos permite imaginar uma divisão das histórias de crime impossível em dois tipos de solução: as soluções mecânicas e as soluções psicológicas. O primeiro tipo envolve todos os truques físicos que o assassino usa para abrir e fechar passagens sem deixar sinais, repor a chave no quarto trancado, instalar algum mecanismo que tranque o quarto por dentro, fazer sumir a arma do crime etc. O segundo tipo, mais sutil, envolve todas aquelas explicações que dependem de um erro de interpretação: alguém viu (mas não percebeu) a passagem do assassino, alguém julgou fechada uma porta que estava aberta (ou vice-versa), alguém imaginou ter visto viva uma pessoa que já estava morta (ou vice-versa)... Em cima de um erro de percepção (ou de interpretação) desse tipo constrói-se todo o edifício da “impossibilidade” que cabe ao detetive derrubar, apontando o elo frágil na cadeia de raciocínio.
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ALGUMAS OBRAS CONSULTADAS Para a seleção dos contos desta antologia e a preparação dos textos complementares, foram muito úteis os títulos abaixo, que recomendamos ao leitor. ADEY, Robert. Locked Room Murders and Other Impossible Crimes. Minneapolis and San Francisco: Crossover Press, 1991 ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros. O Mundo Emocionante do Romance Policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979 DEANDREA, William L. Encyclopedia Mysteriosa. New York: Prentice Hall, 1997 GREEN, Richard Lancelyn (org.); DOYLE, Conan. The Uncollected Sherlock Holmes. London: Penguin, 1983 GREENE, Douglas G.; ROBERT, Adey (org.). Death Locked In:___. An Anthology of Locked Room Stories. New York: International Polygonics, 1987 HAYCRAFT, Howard (org.). The Art of the Mystery Story: A Collection of Critical Essays. New York: Carroll & Graf, 1974 HAYCRAFT, Howard (org.). Murder for Pleasure: The Life and Times of the Detective Story. New York: Carroll & Graf, 1984 (primeira edição: 1941) IRWIN, John T. The Mystery to a Solution — Poe, Borges and the Analytic Detective Story. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1994 NEVINS JR., Francis M. (org.). The Mystery Writer’s Art. Bowling Green: Bowling Green University Popular Press, 1970 PAES, José Paulo (org.). Maravilhas do Conto Policial. São Paulo: Cultrix, 1963 (3ª. edição) QUEEN, Ellery (org.). 101 Years’ Entertainment: The Great Detective Stories, 1841-1941. New York: Garden City, 1945 SYMONS, Julian. Bloody Murder — From the Detective Story to the Crime Novel. Londres: Penguin, 1972 19