S A N D R A . A B R A N O
MORTES NEM UM POUCO NATURAIS
Aquele que lĂŞ sabe ficar sozinho. Aquele que escreve sabe ficar sozinho. Num mundo em que ninguĂŠm quer ficar sozinho, este gesto adquire um valor imenso. Alejandro Zambra
ANTECEDENTES
Vila Maria — 1976 Meu irmão Francisco apareceu na paróquia, esgotado, desesperado. Cuidei dele como pude, dei-lhe roupas limpas. Conseguiu por milagre fugir do cerco. Ele nem ao menos sabia se os outros tiveram a mesma sorte. Estava marcado. Sem escapatória. Na época eu era próximo do delegado Vantuir. Muito católico, fazia questão que eu rezasse em sua residência uma vez por mês, sempre na primeira sexta-feira. Pedi ajuda e ele conversou com Francisco. Depois me disse que havia um homem que poderia salvar meu irmão. E o homem veio. Estatura acima da média, barba por fazer, cabelo comprido como era a moda na época, voz poderosa e anasalada. Não sorria nem me ameVESTÍGIOS
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drontava. Disse que o delegado pediu, e ele ajudaria. Eu ficaria lhe devendo uma. Meu irmão foi embora com ele sem nada perguntar. Abraçou-me na despedida, um abraço de menino. O homem retornou uns dez dias depois. Disse que Francisco estava bem. Ajudou-o a conseguir documentos falsos e levou-o pessoalmente à fronteira. Disse também que meu irmão enviaria cartões-postais do exterior quando estivesse instalado. Ele quis se confessar, e quem sou eu para estranhar esse desejo. Não posso relatar o que ouvi em confissão, porém, antes de começar, contou que certa vez sentiu-se ligado a uma terrorista, uma mulher perigosa e sua prisioneira. Ela era inteligente, determinada e destemida; como não se apaixonar. Recebeu ordens de matá-la. Um agente nunca matava sozinho um prisioneiro. Dois a quatro atiravam ao mesmo tempo. Todos tinham de atirar. Se um não atirasse, morria. Ele atirou. Com os outros, mas atirou. Aquele fato lhe pesava e queria confessar não a morte dessa mulher, essa ele carregaria como sua. Confessaria as outras. Matar era seu dever na época. Por um bom tempo, não mais o vi. Do meu irmão, cartões-postais enviados da Bolívia, do Peru, do México e dos Estados Unidos. Neles, apenas Obrigado e Saudades. Três ou quatro anos se passaram. Certo dia, o homem voltou dizendo que havia chegado o momento de eu lhe retribuir o favor. Afirmou que corria perigo e não havia nada que alguém pudesse fazer para mudar seu destino. Contou que seu maior medo não era morrer, mas ter o corpo abandonado, indigente. Ele me pediu que tivesse a alma encomendada. Cremado. Queria garantir que fosse cremado. Como eu posso ajudar? Eu repetia a cada pausa do homem, não para oferecer apoio, mas registrando minha limitação, pequenez e covardia. 8
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O homem disse que não pediria muito. Pousou a mão em meu ombro, talvez para me tranquilizar. Senti o gesto como se depositasse um peso, o maior do mundo, maior que a minha dívida com ele. O homem disse que eu deveria apenas reconhecer seu corpo, indicar quem ele era para a polícia. Eu iria entender, depois. E quem é você? perguntei. E soube que ele era um sargento do Exército, José de Sousa Amaral, conhecido como sargento Amaral e também como Ivan. Orientou-me a contar quase toda a verdade: que o conheci na paróquia e, de tempos em tempos, aparecia na igreja. “Não conte a ninguém que eu me confessei. Jamais conte isso. Diga que eu estive hoje aqui e assisti à missa pela memória de minha mãe, Maria Aparecida.” Pediu que rezasse pelos que foram mortos por ele. “Reze também pelos que deixei vivos, padre.” E o homem foi embora deixando um tanto de dinheiro para as despesas da missa. Eu fiquei sem entender nada e estava muito amedrontado. Então, celebrei a missa do dia. A paróquia da Vila Maria foi construída na encosta de um morro, de modo que a cruz estilizada da fachada fosse vista por um longo trecho plano da avenida que nela terminava. Os degraus da escadaria da igreja levavam a uma construção em forma de gruta, durante toda a noite iluminada com lâmpadas dirigidas às imagens. Noite terminada, antes de o movimento da avenida se intensificar, diariamente eu seguia até a gruta para apagar as luzes e ficava por ali alguns minutos agradecendo por mais uma alvorada. Na manhã seguinte ao dia em que o sargento Amaral me procurou, refiz o caminho até a gruta, naquele momento esquecido da conversa que tivemos. O sol nascia e a avenida ainda estava calma, com raros veículos indo em direção à Vila Maria Alta e VESTÍGIOS
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dela descendo. Um carro me chamou a atenção pela freada brusca. Vi a porta dele se abrir e, com o veículo ainda em movimento, de lá ser jogado um homem. O carro fez uma manobra violenta e seguiu pela pista oposta a toda a velocidade. Desci correndo a escadaria da igreja em direção ao homem caído no asfalto. Ao me aproximar, entendi. Fiquei diante dele não sei por quanto tempo, paralisado, braços abertos, olhos para o céu que se iluminava, descrente da cena que nunca mais poderia esquecer. Era o sargento estendido no asfalto. Eu reconheci seu corpo esguio, reconheci suas roupas, as mesmas que usava em nosso encontro no dia anterior. O que mais eu poderia enxergar naquela cena infernal? Vi o sargento Amaral morto. Chegaram as primeiras pessoas e fecharam um círculo em torno dele. Colocaram jornais para cobri-lo. Foi rápido. A polícia, o delegado Vantuir, a retirada do corpo. Meu nome como testemunha dos fatos, dos improváveis fatos descritos no boletim de ocorrência: atropelamento seguido de fuga. Ainda pude escutar os cochichos dos policiais na cena, “cabeça e maxilar arrebentados pelo que pareciam ser golpes de machado”. Uma morte dessas deixa vestígios.
Brasília — 1977 Mais um general presidente, desta vez um dos líderes da ala militar moderada, sucedeu a um considerado de linha-dura e iniciou-se um período de abertura política, lenta e gradual. Bem lenta e bem gradual. Setores importantes do poder discordavam dessa mudança de rumo. A comunidade de informações era um desses setores. Os que sempre foram cães de guarda ameaçavam voltar-se contra seus donos. Uma temeridade. Um perigo. 10
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oOo O ministro-chefe da Casa Civil retornou a seu gabinete no quarto andar do Palácio do Planalto após uma reunião sigilosa convocada pelo Presidente, na qual também estava presente o chefe do Serviço Nacional de Informações. Dona Cidinha bem pensou repassar com ele a agenda do dia, porém, o semblante carregado indicava que o melhor era lhe levar uma jarra com água gelada. Ela fez para Heitor, chefe de gabinete, um sinal de preocupação a fim de alertá-lo do clima antes que ele entrasse na sala. O terno sóbrio e alinhado do ministro-chefe da Casa Civil não escondia a postura de quem sempre vestiu farda. O ambiente do escritório combinava com a sobriedade do ocupante. Lambris de madeira em tom mais escuro do que o da longa escrivaninha e dos armários. Papéis em branco organizados no canto esquerdo e, ao centro, caneta em pé no suporte caprichado ao lado de papeizinhos para anotações rápidas junto ao calendário, aos óculos e à agenda. Algumas pastas de arquivo no canto direito. Maleta tipo zero zero sete com segredo apoiada em um armário baixo atrás da poltrona giratória e reclinável, naquele momento vazia porque o ministro enchia o copo com a água gelada trazida por dona Cidinha. Logo ao entrar na sala Heitor foi informado que no início da manhã do dia seguinte, feriado de Nossa Senhora Aparecida, o ministro do Exército seria demitido pelo Presidente. Ao ouvir a notícia, o chefe de gabinete deixou-se sentar na poltrona em frente à escrivaninha, bloco e caneta soltos no colo, postura de corpo abandonada, diferente de seu costume sempre a postos às necessidades do ministro-chefe. VESTÍGIOS
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A situação foi classificada como perigosíssima tanto pelo superior quanto pelo subordinado. A demissão não era esperada e nem foi uma completa surpresa. Algo assim contraditório combinava com a independência, que até parecia desfeita, de algumas atitudes do ministro do Exército às solicitações do Presidente. O ministro do Exército resistiria à demissão como digno representante da linha-dura dos militares, além de pretendente à próxima sucessão presidencial. Cuidado redobrado. Era o que achava o ministro da Casa Civil, ainda mais sabendo que durante o feriado o Alto Comando do Exército chegaria a Brasília para uma reunião. O demitido tentaria cooptá-los, tentaria ali, na chegada dos militares ao aeroporto, articular um golpe. E o lado estrategista do ministro-chefe se fez presente quando ele solicitou ao chefe de gabinete que enviasse assessores do Planalto para receber os generais do Alto Comando. E mais: — Use de influência para chegar aos responsáveis pelos depósitos de armamentos, que devem permanecer fechados durante o feriado — foi a ordem. — Mais alguma orientação? — perguntou o chefe de gabinete, agora calmo ao perceber a agilidade com que o ministro barrava os possíveis passos do general ministro do Exército em direção a um golpe. Perigoso o futuro ex-ministro era, mas quem poderia frente à agilidade ardilosa do ministro-chefe? — Sim — respondeu o ministro. — Temos homens infiltrados no serviço secreto do Exército? — Sem dúvida — respondeu o chefe de gabinete. — Alerte-os. oOo
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Como sempre, o feriado dedicado a Nossa Senhora Aparecida foi marcado por procissões e missas em todo o Brasil. Caravanas não paravam de chegar à Basílica de Aparecida, em São Paulo, onde missas aconteciam sem intervalos desde a alvorada. Milhares de fiéis prestavam homenagens e cumpriam promessas à Santa Padroeira. Grupos de moçambiques, congadas, guardas de Nossa Senhora e as Congregações de Maria seguiam em cortejo cantando as ladainhas e os versos de improviso. Fé. Já Brasília mantinha-se, como em qualquer outro feriado, vazia em seu centro de poder. A Esplanada dos Ministérios, a Câmara dos Deputados e o Senado contavam apenas com a presença das equipes de segurança. Seus ocupantes eleitos ou indicados, para lá não foram durante os últimos dias, encompridando em seus estados de origem a semana que culminaria no feriado. Brasília estava às moscas. Menos o aeroporto, onde certo frisson agitava o desembarque de passageiros. Ali, o ministro do Exército há pouco demitido, o homem da linha-dura, tentava convencer os generais que chegavam ao Distrito Federal a acompanhá-lo ao Ministério do Exército para esboçar uma reação a sua demissão. Situação constrangedora. Como bem tinha previsto o ministro-chefe da Casa Civil, a hierarquia falou mais alto e os generais se dirigiram ao Palácio do Planalto em companhia dos assessores que foram recepcioná-los. O ministro demitido viu ruírem suas esperanças de dar a volta por cima. Seguiu para o Comando Militar do Planalto, dirigiu-se ao último andar do prédio, sede do serviço secreto do Exército para despedir-se daqueles que considerava seus subordinados mais fiéis. VESTÍGIOS
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— General, estávamos esperando pelo senhor — assim foi recebido. A agitação tomava conta do lugar. — Não podemos permitir a desestabilização. O ex-ministro do Exército reencontrou seus homens de confiança, os agentes do serviço secreto do Exército diligentemente se preparando para a resistência. Seus escudeiros na cruzada anticomunista aguardavam as ordens. — Trezentos coquetéis molotovs estão prontos — ficou sabendo o general — e são suficientes para um ataque ao Palácio do Planalto. Comovido, dirigiu-se a seus homens, agora paralisados ao escutá-lo em um discurso que não parecia o que antecede a uma batalha. E se disse vítima das maldosas e cotidianas campanhas de descrédito. — Querem nos apresentar como bestiais torturadores. Querem nos desmoralizar perante a nação, mas tenho certeza de que ainda seremos reconhecidos pela árdua missão que tivemos de cumprir, a despeito das incompreensões, das calúnias e da perfídia. Foi ovacionado. Naquele momento, o general tinha outra certeza. Sem o apoio do Estado-maior, sem o apoio de outros generais, a batalha estava perdida. Fazia gestos para acalmar os homens inflamados e armados. Não via outra saída senão afirmar: — Não é agora. Devemos aguardar. Peço que aguardem. Não estamos capitulando, que fique bem claro. Devemos aguardar, é o que peço a vocês. O general telefonou, então, para o Palácio do Planalto a fim de negociar os termos de sua rendição. Não reparou que num canto, em local discreto, outra chamada telefônica era realizada, esta para o quarto andar do Planalto. 14
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REGISTROS DO AGENTE MÁRIO Caderno de 1976
Era de conhecimento do Comando que o comitê central de um dos mais antigos grupos de esquerda clandestino se reuniria dali a três meses. As malhas do Serviço de cada estado se entrelaçaram para obter informações, mesmo que fossem migalhas, para articular a grande Tocaia, assim em maiúscula porque era nome da investigação. Eu, um peão nesse jogo, tinha a missão de fazer contato e aproximação com um militante suspeito de pertencer ao grupo de organização do encontro. Cheguei cedo à Liberdade, rua da Glória, no ponto mais distante do metrô há um ano inaugurado no bairro. Então, aguardei no boteco da esquina o homem descer do terceiro andar do pequeno prédio em que alugava uma quitinete. Eu tinha a informação de que ele tomava ali o café da manhã sentado na última banqueta do balcão, encostado à parede, próximo ao banheiro. Observei o local. Deixei uma banqueta vazia e sentei na seguinte. 32
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E foi assim por algumas manhãs. No primeiro dia eu me mantive calado, algo tímido, lendo um jornal enquanto tomava o café com leite e comia devagar o pãozinho com manteiga. Antes de ir embora, tirei um livro de Karl Marx para guardar o periódico na bolsa de couro, que carregava com a alça atravessada no corpo. Sabia que o homem vigiado me observava nesse gesto. Em poucos dias eu havia feito a aproximação em meio a cumprimentos rápidos e assuntos genéricos. O homem era curioso, fazia perguntas corriqueiras que o ajudavam a formar uma ideia de quem eu era. Então, passei a fazer pequenas confidências. Nasci em Ribeirão Preto, mentia. Estudo Economia, contava. Moro em uma pensão na rua Pires da Mota e essa era uma informação sob controle: eu havia andado pela região para me familiarizar e até mostrei interesse na vaga em uma pensão, exatamente na rua em que disse morar. Conheci o quarto, sentei na cama disponível entre outras três já alugadas. Aproxime a mentira da verdade, era um dos pontos chave de meu treinamento como agente. Dê importância aos detalhes na caracterização de seu personagem, e me esmerei em realizar a orientação porque acreditava na eficiência do método. No boteco, comíamos pão com manteiga e tomávamos café com leite. O homem vigiado conversava sem nunca falar de si e nem da conjuntura política ou do seu trabalho. Eu não fazia perguntas. Simpático, oferecia cigarro. O homem retribuía a gentileza às vezes pagando o café. Quando o militante seguia seu caminho, outro agente o acompanhava a distância. Eu partia, então, para a Cidade Universitária. Gostava de caminhar da Liberdade à Praça da República onde pegava o ônibus para a USP. Eu tinha tempo para andar o longo trajeto. A VESTÍGIOS
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condução seguia lentamente pelo congestionamento da rua da Consolação e da avenida Rebouças até entrar no campus da universidade. Almoçava no bandejão do CrUSP. Alguns centavos por uma comida que rendia: a refeição ficaria em meu estômago por muitas horas na luta pela digestão. Depois do almoço, eu ia até a Faculdade de Economia e ali continuava a segunda jornada de meu trabalho como agente.
O encontro com o oficial do Serviço estava marcado há uma semana. Em época de grande caçada, a orientação era não ir pessoalmente ao Comando. Um descuido, uma falta de atenção, uma pequena quebra de segurança e toda a investigação corria risco de ser comprometida. E não se brincava com esses homens, nem de um lado, nem do outro. Minhas conversas com o homem vigiado continuavam cuidadosamente pensadas. Contei a ele que participava das assembleias estudantis e também das reuniões do centro acadêmico. Um estudante independente como outro qualquer sendo ganho para o movimento. Era essa a impressão a passar. E foi isso que relatei ao oficial de contato. Agilizar a entrada na organização, foi a ordem que recebi. Pensei, então, em forjar que estava sendo assediado por uma das tendências do movimento estudantil. Eu esperava que, com isso, o militante ultrapassasse a barreira da segurança interna e me cooptasse para a sua própria organização. Coloquei o plano em ação. Uma manhã, conversando com o homem vigiado no boteco de sempre, tomei o cuidado em deixar visíveis algumas folhas mimeografadas, com as facilmente identificáveis letras impressas em azul saindo das páginas de meu 34
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caderno pousado no balcão. O documento era uma avaliação de conjuntura, emitida pela ala estudantil de uma organização de esquerda. Fui ao banheiro e deixei o material à vista, com a certeza de que o homem iria verificar o conteúdo. Surtiu efeito. Ele disse que era conhecido como Coutinho. Finalmente o homem vigiado identificou-se, antes de pagar a conta e ir embora do bar, despedindo-se. A essa altura eu já havia me apresentado como Mário, meu nome verdadeiro, que constava em minha matrícula na Universidade de São Paulo. Nessa história, eu não poderia usar um codinome porque o homem confirmaria as informações que eu havia lhe passado. Azar meu. Agora precisaria redobrar o cuidado. Teria de me mudar para a pensão da Pires da Mota. A aproximação total da mentira com a verdade.
Não foi difícil ganhar a confiança de Coutinho, iniciando a fase de infiltração. Os cafés da manhã ligeiros foram complementados por longas conversas regadas à cerveja e rabos de galo ao cair da tarde ou fim da noite. Coutinho encontrou o que achava ser um interlocutor, um quase discípulo, já que eu não perdia a oportunidade de mostrar admiração pelo recém instituído mestre. Em pouco tempo, ele via em mim um protegido. O experiente militante, no entanto, não se descuidou da segurança. Não podia dar-se a esse luxo. Soube que ele se informou com a facção estudantil de sua organização e confirmou que eu estudava na Faculdade de Economia e era base de apoio de uma das tendências de esquerda lá atuantes. Eu sentia que estava sendo VESTÍGIOS
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seguido, não com o profissionalismo que eu conhecia, no esquema AB-C (dois em uma calçada e outro na calçada oposta, alternando as posições). Apenas o próprio Coutinho, mantendo distância, checando as informações que eu lhe dera. Tudo certo, ele deve ter pensado ao decidir me convidar para as reuniões de formação do partido. Esse tipo de reunião não era nada demais. Todos os participantes eram conhecidos em suas áreas e atuantes nos movimentos sociais. Eu precisava mais que isso, precisava chegar ao trabalho clandestino da organização. E rápido. Essa era a ordem. Eu fazia o que podia. Tentei me destacar nas reuniões. Fiz intervenções ponderadas, inteligentes. Fui disponível, batalhador. C O N F I D E N C I A L Relatório 033/76 Folha 1/1 Agente 0165
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Missão Tocaia
Investigado: Coutinho, também conhecido pelos codinomes Roque e Alencar Ref.: Participação em reunião com militantes da organização investigada. Considerações: Na última semana do mês de junho, fui convidado a participar de uma reunião da organização investigada para discutir análise de conjuntura com militantes do movimento estudantil e do sindical. Não havia clandestinos entre eles, a não ser o investigado Coutinho. Na reunião, compareceram sete pessoas identificadas como: Lígia e Roseli (movimento estudantil, USP); Beto, Edu e Toninho (metalúrgicos, Guarulhos); Alice e Dirceu (bancários, São Paulo). Discutimos documentos anteriormente distribuídos e anexados ao presente relatório. Comentou-se artigo de jornal, também anexado a este relatório. Foi comunicado que o jornal da organização estava sendo impresso e em breve seria distribuído entre os militantes e simpatizantes. Informações relevantes: Os bancários se articulam para a campanha salarial de setembro. Os metalúrgicos presentes, região de Guarulhos, avaliam o movimento sindical na região como desarticulado, ao contrário do que ocorre em São Bernardo.
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C O N F I D E N C I A L Relatório 037/76 Folha 1/2 Agente 0165
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Missão Tocaia
Investigado: Coutinho, codinomes Roque e Alencar Ref.: Entrega do jornal da organização. Considerações: Distribuição de jornal clandestino Informações relevantes: Na última terça-feira, o investigado solicitou que eu o acompanhasse à gráfica para pegar a nova edição do jornal da organização. Prontamente aceitei por ser essa uma ótima chance para obter informações e aumentar o laço de confiança. O militante Coutinho confidenciou padecer de problemas na coluna e assim não poderia carregar os jornais para os locais de entrega, além de não possuir carteira de habilitação. O vigiado compareceu ao encontro no local de sempre: lanchonete na frente do prédio em que mora. Seguimos a pé até uma rua próxima em que estava estacionado um automóvel corcel azul quatro portas, carro que dirigi até o bairro da Lapa, onde se localizava a gráfica. De lá fomos à Cidade Universitária, faculdades de Ciências Sociais e Psicologia, instaladas em local conhecido como barracões. Lígia e Roseli (citadas no relatório 033/76) nos aguardavam e com elas deixamos cerca de duzentos exemplares a serem distribuídos aos outros militantes da facção que providenciariam a venda dos jornais aos estudantes. Seguimos para Guarulhos, nas proximidades do sindicato dos metalúrgicos, onde Toninho (citado no relatório 033/76) aguardava. Folha 2/2 No retorno a São Paulo, passamos pela Vila Maria. Tomamos um café em uma padaria da avenida principal. Fiquei preocupado porque a minha residência familiar é em bairro da região e eu poderia ser reconhecido por parente ou amigo que estivesse nas imediações. Nada disso ocorreu e seguimos para a Sociedade Paulista de Trote, onde nos aguardava um jovem de cerca de 20 anos. Coutinho e ele se cumprimentaram sem dizer seus nomes. Com o rapaz foram deixados aproximadamente 50 jornais. Não foi possível descobrir onde atua o militante. Descrição física: altura média não maior que um metro e setenta, mulato, vestindo calça jeans, camiseta e tênis, usava óculos e bolsa de couro. Guardou os jornais em uma sacola de feira e seguiu seu caminho. VESTÍGIOS
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Retornamos ao bairro da Lapa nas proximidades do Mercado Municipal e lá deixamos o corcel azul estacionado com o restante dos jornais. Percebi que o militante Coutinho passou a chave do carro discretamente e sem contato verbal para uma mulher de 28 a 35 anos, cabelos crespos e escuros, altura um metro e sessenta, identificada posteriormente como Maria. Voltamos para o bairro da Liberdade de ônibus.
A memória me prega peças, principalmente em cenas em que a nebulosidade parece favorável, mas recordei que o cerco durou quatro dias e mobilizou mais de cinquenta agentes de informação. Tudo na mais absoluta surdina, disso eu me lembrava. O cerco e a captura do comitê central era uma operação conjunta entre os vários organismos que compunham o Serviço de Informações. O oficial de operações não escondia a ansiedade no encontro em que orientou os agentes para a ação. A reunião do comitê central começaria no dia 12 de dezembro em uma casa, na cidade de São Paulo. O oficial afirmou que ainda não tinham o endereço. Esperavam o alcagueta ser transferido do Rio de Janeiro para São Paulo, mas devíamos estar preparados. Para o oficial de operações, a certeza do encontro era absoluta. A informação veio de dentro. Tudo começou a ser articulado com a prisão de um dos membros da organização, ocorrida há alguns meses. Ele acabou entregando todo o ouro e tornou-se um dos cachorros da matilha. Assim eram chamados os que mudavam de lado à custa de tortura, às vezes por dinheiro, às vezes por medo ou chantagem e se tornavam dedos-duros, infiltrados nas organizações de esquerda investigadas. O alcagueta era conhecido pela alcunha de Rui. Militantes suspeitos de integrarem cargos relevantes na organização clandestina passaram a ser localizados e especialmente 38
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vigiados para checagem e complementação das informações. Nada de prisões, apenas vigilância e infiltração. E assim foi. A mim coube Coutinho e com ele convivi por cerca de três meses.
Na data do encontro que reuniria a cúpula dirigente da organização de esquerda, Rui chegou à rodoviária de São Paulo vindo do Rio de Janeiro e era seguido de perto pelo pessoal do Serviço. Foi uma coisa de cinema. A postos trinta e cinco carros descaracterizados e com agentes prontos para despistar qualquer suspeita. Assim que desceu do ônibus, Rui foi abordado pelo militante que o levaria ao local do encontro. Até então, os órgãos de segurança não sabiam o endereço do tão bem guardado local. Para descobrir, precisávamos seguir o carro em que estavam o motorista, militante identificado como Antônio, e o Rui. A reunião do comitê central duraria quatro dias, e a longa tocaia começou. Essa foi uma das ações em que participei como agente infiltrado. Eu me considerava um agente da nova geração, treinado na teoria e na prática. Lutava contra inimigos do Estado. Acreditava no que fazia para alcançar alguns objetivos, acreditava em seguir ordens para alcançar objetivos maiores. Coutinho seria preso e se tivesse sorte não seria morto. Esse era o jogo. Fiz o que devia. Infiltrei-me como pude, obtive informações num jogo estabelecido. Era guerra, e eu era um soldado assim como Coutinho. Inimigos. Eu me mantive por perto durante os quatro dias, em vigília. Cheguei a sentir um tremor quando o corcel que algumas vezes havia dirigido saiu da casa em que se realizava o encontro. Antônio guiava o carro e, a seu lado, Maria, a mulher que vira pegar a chave disfarçadamente passada por Coutinho há tão pouco tempo. VESTÍGIOS
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Acabou a reunião, entendi. Vai começar. Era noite. O corcel foi seguido sem alarde. Não interceptamos o carro, os agentes seguiam o veículo com cuidado. Em uma avenida movimentada, os dois dirigentes do comitê central que estavam escondidos no banco traseiro desceram do automóvel e caminharam em direções opostas. Duas viagens foram feitas e da mesma forma: em locais diferentes e movimentados, desciam dois homens pela porta traseira do veículo e seguiam sozinhos, cada um em uma direção. Todos foram presos apenas depois que o corcel se distanciou, voltando para o local da reunião. Os que ainda estavam na casa não poderiam suspeitar das prisões. Antônio bem que se esforçou e dirigiu o corcel com cuidado rigoroso, utilizando diferentes rotas, dando voltas, retornando sem aviso, verificando o retrovisor a cada instante. Ele não percebeu nada de estranho. Nós estávamos preparados para tudo. Na terceira e última saída da casa do encontro, o dia já dava sinais de amanhecer. No banco traseiro do carro, seguiam Coutinho e Rui, o dedo-duro. O corcel passou a ser seguido ostensivamente. Os agentes não se preocupavam mais em manter a discrição. Sabiam que essa era a última viagem. Os militantes tentaram despistar e seguiram pelo Alto de Pinheiros, pegaram a Pedroso de Morais, atravessaram a rua Teodoro Sampaio e viraram à direita na avenida Rebouças. Devem ter respirado aliviados acreditando que haviam escapado. Antônio parou o corcel bruscamente gritando para que Rui e Coutinho saíssem do carro. Corram-corram-corram. O motorista gritava enquanto partia em disparada tentando ele também escapar. O carro foi interceptado em um cruzamento da avenida Faria Lima. 40
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Presos, o motorista e a mulher, Maria, ainda ouviram a comunicação feita pelo rádio: Tudo limpo, pode tocar a operação. Era a senha para que a casa do encontro fosse invadida. Rajadas violentas de metralhadora arrancariam até mesmo parte do estuque. Aos dois militantes que ainda lá estavam, a surpresa sem chance de defesa. Não valeria a pena prender os que restaram. Militantes e dirigentes de convicção, nada falariam por mais intenso que fosse o interrogatório. Que servissem de exemplo e marcassem o episódio com sangue. Na rua, a confusão de agentes ainda era grande. Eu soube que deixaram Coutinho e Rui, o delator, escaparem sem perseguição. Assim foi acertado com o alcaguete. Informação e contrainformação era o que aprendíamos nos treinamentos. Nunca saberiam com certeza de onde partiu a delação. Revivi o olhar de Maria em mim enquanto a levavam algemada. Ela me reconheceu?
Um dia depois das prisões, pela manhã bem cedo, eu já estava no ônibus que me levaria da Vila Maria Alta ao bairro da Liberdade, igual a tantos outros dias, como se ainda tivesse um encontro marcado com Coutinho no boteco da esquina da rua da Glória. Eu não tinha ilusões em encontrar novamente Coutinho. Penso agora que na época tudo isso parecia certo, mas, o certo muda de tempos em tempos. E assim é a vida. Naquela manhã de dezembro, eu estava no ônibus que me levaria à quitinete do Coutinho. Minhas ordens eram para revistar o local e por ali ficar não menos de duas semanas. Era improvável que alguém aparecesse, tamanho alarde feito na imprensa com a queda do comitê. Notícias de interesse eram autorizadas VESTÍGIOS
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e até estimuladas pela censura da época. E eu pensava: quem seria louco de aparecer no apartamento de um dos membros do comitê? Quem sabe? Eram seis e quinze da manhã e o dia ainda clareava quando o ônibus parou no ponto próximo à igreja da Candelária. Regina subiu, como sempre, e sorriu ao me avistar. Eu me levantei do assento cedendo o lugar para ela. Regina sentou-se, arrumou o cabelo longo e cheiroso deixando-o cair sobre a barra do banco em que eu me apoiava. Nunca soube se foi o perfume ou o contato sedoso dos cabelos dela em minhas mãos, mas senti os olhos embaçarem por um momento, breve momento. Ela comentou que não me via há tempos. É por que mudei para a rua da Glória, na Liberdade. Ontem visitei meus pais e acabei dormindo por aqui, expliquei. E ela surpreendeu-se: rua da Glória? É perto do cursinho. E sorriu. Ela sempre sorria para mim. E convidei. Quer conhecer o apartamento? Ela respondeu, ainda entre sorrisos: Pode ser. Saio do cursinho ao meio-dia.
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