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A garota do banco de trás 1st Edition

Mary C. Müller

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A

garota no banco de trás

Copyright © Mary C. Müller, 2020

Edição: Gabriela Colicigno

Revisão: Sol Coelho

Capa: Camila Abdanur

Produção do e-book: André Caniato

Uma versão anterior deste conto foi publicada na coletânea

Nós estamos aqui (2014), da Editora Draco, com o título de 102 A.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Müller, Mary C

A garota do banco de trás / Mary C Müller – São Paulo : Agência Magh, 2020

15 p

ISBN 978-65-990014-2-0

1. Contos brasileiros. 2. Amor - Ficção I. Título

CDD B869.8 20-2012

Índice para catálogo sistemático: 1- Contos brasileiros

Todos os direitos desta edição reservados à Agência Magh.

A Agência Magh é uma agência literária que trabalha com autores brasileiros de fantasia, ficção científica e terror. Nosso trabalho é encontrar as melhores histórias e ajudar seus autores a mostrá-las para todo mundo. Magh vem do Proto Indo-Europeu e significa “ter poder, ser capaz”. Além disso, também deu origem às palavras magia e máquina.

São Paulo - SP www.agenciamagh.com.br contato@agenciamagh.com.br [2020]

SUMÁRIO

Créditos

A garota no banco de trás Sobre a autora

Ah, o 102A!

Com suas poltronas desgastadas, o pior motorista da cidade e janelas tão imundas.

Aquele velho ônibus e seus passageiros haviam sido minha única constante naquele ano escolar, e, finalmente, estava quase na hora de dizer adeus. No ano seguinte, já estaria morando muito longe dali, algo que me enchia de esperança, mas também de medo.

Subi no ônibus e nem me dei ao trabalho de cumprimentar o motorista. Ele nunca respondia mesmo. A cobradora estava quase dormindo e pegou minha ficha amarelinha sem prestar atenção em mim. Às vezes eu me perguntava se os dois se lembravam de nós, os passageiros recorrentes. Havia, além de mim, a mulher da pet shop, o moço do mercadinho, com seu uniforme verde, a garota dos tênis maravilhosos, a senhorinha que só vestia cinza e bege… e ela.

Era impossível não se lembrar dela. A garota que subia no ônibus na altura do Bairro das Nações.

Assim que me sentei no lugar de sempre, o motorista deu partida e o pequeno ônibus azul iniciou a descida pela Estrada da Rainha. Se o vidro não fosse tão imundo, eu até apreciaria a vista do mar lá de cima.

A ida pra escola era tranquila, já que pegava o busão no ponto inicial. Não precisava entrar em batalhas para conseguir um assento ou viajar de pé. Eu lia ou escutava música — não conseguia fazer os dois ao mesmo tempo — e, às vezes, até dormia com a cabeça encostada na janela. Sentava sempre o mesmo lugar. Um lugarzinho discreto de onde eu podia olhar para trás e espiá-la.

Ela também sentava sempre no mesmo lugar. Num canto, lá atrás, onde os cinco assentos ficavam grudados um no outro.

Eu não sabia o nome dela e chutava que tínhamos a mesma idade. O uniforme do colégio estadual denunciava onde ela estudava. Por um ano inteiro pegamos aquele mesmo ônibus, todo dia, salvo pequenas exceções, quando uma ou outra faltava. E, por um ano inteiro, eu nutri uma paixão digna de pena por ela.

Eu sempre fui meio desleixada, mas naquele ano eu tentei colocar um mínimo de esforço no visual antes de sair de casa. Até prendia o cabelo de vez em quando e escolhia melhor os acessórios, além de vestir peças de uniforme sempre impecáveis — nada de roupas amassadas ou camiseta manchada de café. Como não tinha coragem de falar com ela, precisava tentar mostrar um pouquinho de mim como dava — nos bottons da mochila, pulseiras, calçados e jaquetas. Eu a imaginava como sendo uma pessoa divertida, um pouco desbocada e ousada. Um tiquinho misteriosa, talvez, por causa dos batons escuros.

Depois de algumas curvas e pontos estávamos no bairro dela. O ônibus costumava encher logo em seguidas, numa área mais central da cidade. Fiquei nervosa, temendo que ela faltasse, visto que era a última semana de aula e muita gente nem ia pra escola por simplesmente já ter passado de ano, ou quando nem aula mais teria direito. Eu não teria muitas outras oportunidades de vê-la. Mas não. Lá estava ela, subindo no mesmo ponto de sempre.

Suspirei, peguei meu celular e fingi usar a câmera frontal pra ajeitar meu cabelo, um truque recorrente.

Ela foi pro assento habitual, abriu a mochila e pegou seu Kindle de capinha roxa. Os cabelos cacheados, presos para trás com uma faixa, óculos

de armação branca e, — eu não conseguia ver dali, mas sabia que ela usava sempre — o hidratante com glitter, que fazia a pele escura dela brilhar.

Tinha certeza que naquele ano inteiro a garota nem sequer tinha reparado na minha existência. Ainda que eu fosse mais corajosa e sentasse mais perto, acho que não faria diferença. Ninguém se interessava muito pela garota acima do peso. Às vezes que eu mal acreditava já ter beijado alguém. Mas, também, o Bruno beijava qualquer coisa que se mexesse, não era um parâmetro muito bom.

Para mim, a Kindle (eu não fazia ideia do nome dela, então dei esse apelido na minha cabeça) era o contrário de “qualquer coisa que se mexa”. Era especial. Uma anja brilhosa e cheirosa no meio do busão lotado e sujo.

Todo dia eu fantasiava que ela perguntava meu nome. Ou se apresentava. Ou me chamava para sair, assim logo de cara, bem corajosa. Ficava imaginando mil maneiras de falar com ela, sem nunca ter coragem de colocar nada em prática. Criei vários cenários na minha mente, um mais fantasioso que o outro. E, depois do ano inteirinho passar, era hora de me conformar e aceitar que nada aconteceria entre a gente, por culpa da minha timidez horrível.

A última semana de aula.

Minhas chances estavam acabando.

Era difícil demais.

Soltei o ar dos pulmões e torci a boca. Um senhor, fedendo a cigarros, sentou do meu lado e eu me afastei o máximo que pude quando ele abriu as pernas, como se os dois assentos pertencessem a ele. O resto do trajeto até a escola seguia o mesmo. O ônibus fazendo uma tour gigantesca pela cidade. Eu, ouvindo música britânica triste no celular. E muitos sacolejos, freadas bruscas, suspiros e lamentações.

Eu era, naquele ônibus, a raiz quadrada de mim mesma. Uma versão piorada do saco de introversão. A proximidade com a menina que gostava era como uma antena que ampliava minha falta de pertencimento.

Acho que era por isso que estava tão esperançosa com a minha ida pra faculdade. Uma cidade nova, uma etapa nova, uma nova oportunidade para ser uma nova eu. Me reinventar, tentar conhecer gente, quem sabe até fazer

uns amigos de verdade além da Carol. Desenvolver minha auto estima, desenvolver alguma habilidade social… talvez eu estivesse viajando e nada fosse mudar. E, talvez, eu realmente tivesse chances de ser um pouco mais normal. Eu não queria me sentir daquele jeito, isolada, para sempre. Era horrível.

A Carol sempre me falava que eu deveria fazer um curso de teatro, para lidar com a minha insegurança social. Talvez ela tivesse razão, e eu inclusive já tinha colocado aquilo num planner… para o ano seguinte, é claro.

Minha condução se aproximou da escola e eu saltei pela porta de trás, só para passar perto da Kindle. O sol refletiu nela, fazendo o glitter do hidratante brilhar. Tentei espiar a página do livro, mas sem chances de conseguir adivinhar o que ela lia. Ta aí uma desvantagem (para mim) do leitor digital. Não dá para saber o que as pessoas estão lendo!. Algumas vezes ela levava um livro físico e era possível ter um vislumbre da personalidade dela. Geralmente fantasia, ficção científica e clássicos nacionais. Logo, ela poderia ser muito legal.

Ou muito, muito insuportável.

Eu torcia para a primeira opção.

Quando cheguei, o pátio da escola estava movimentado, cheio de alunos sem uniforme, despreocupados e contentes com o fim do ano letivo. Por todos os lados imperava um aroma de esperança pelo futuro e eu me identificava com o sentimento daqueles desconhecidos.

Encontrei a Carol no banco do pátio, em frente à papelaria. Ela estava rindo de algo no celular, com certeza algum meme das centenas páginas de memes que ela seguia.

— Ah, Bianca! — ela exclamou ao me ver. — Criou coragem de falar com sua crush?

Sentei ao lado dela bufando.

— Claro que não.

— Não faz muita diferença mesmo, né? Digo, você vai mudar pra longe daqui ano que vem, não é como se fosse uma ótima ideia começar um relacionamento agora.

Eu revirei os olhos e ela nem notou, já que mal tirava os olhos do celular. Carol não entendia meu drama com a Kindle. Ela era o oposto de mim e tinha zero vergonha ou medo de chegar em quem tinha interesse.

— Não é como se eu pretendesse casar com ela, Carol.

— Você não me parece o tipo de garota que se contenta só com uns beijos.

— O que eu pareço então? Nem eu sei o tipo de garota que eu sou! Quem sabe eu não te surpreendo?

Ela deu uma risada e olhou em meus olhos pela primeira vez naquela conversa.

Carol tinha um rosto alegre. Ela parecia um girassol. Essa é a melhor forma que tenho para descrever minha melhor amiga. Uma florzinha feliz que seguia a luz onde quer que ela fosse. Um dia eu contei essa analogia para ela, e a garota riu tanto que nunca mais repeti isso em voz alta.

Ela guardou o celular e me abraçou, apoiando a cabeça em meu ombro.

— Vou sentir sua falta, sabia?

— Eu definitivamente não sentirei a sua.

Nos empurramos de brincadeira e fomos em direção a sala de aula. Fui olhando para meus pés, pensando que não fariam mais aquele percurso muitas vezes. Aquela sensação de alívio misturada com saudade. Tudo mudaria para sempre.

— Você acha que vamos continuar amigas? — eu perguntei, sem pensar muito.

— É óbvio que sim. Sabe, existe essa coisa mágica chamada internet onde pessoas que moram longe podem conversar entre si. É incríveeeeel.

— Você nunca me leva a sério.

— Claro que não, só fala bobagens.

Eu nem sei a respeito do que foi a aula naquele dia. Minha mente divagou o tempo inteiro e eu não conseguia tirar a garota do ônibus da minha cabeça. Em determinado momento, a professora começou a falar sobre universidade e vida adulta e disse algo do tipo “perseverança”, “não desistir”, “dificuldades”, essas coisas um tanto clichês. Se eu não tinha coragem de

falar com uma menina, como teria coragem de enviar um currículo ou participar de uma entrevista de emprego?

Folheei meu caderno atrás de páginas em branco. A maioria das folhas já estava cheia de anotações das aulas ou rabiscadas e desenhadas. Eram anotações para jogos e personagens que eu gostaria de criar. Desde muito novinha fui apaixonada por videogames e havia decidido pela profissão de designer de jogos. Por isso que ia para tão longe de casa; não existia aquele curso em muitos lugares do país.

Acabei achando uma folha em branco lá no final do caderno. Escolhi uma caneta de ponta fina no meu estojo e comecei a escrever. Uma carta. Uma carta extensa sobre a primeira vez que a tinha visto e sobre o tanto que eu era apaixonada por ela, o quanto ela era linda e tudo mais. Uma breguice só.

Reli aquilo tudo com as bochechas queimando de vergonha da minha própria existência, amassei depressa e joguei no lixo. Procurei outra folha limpa e escrevi mais um pouco. Dessa vez, de forma menos apaixonada, para não parecer uma stalker louca. Um simples pedido para conhecê-la melhor e meu arroba nas redes sociais. Concisa. Simples.

Minha vó uma vez me disse que algumas coisas ficam mais claras quando colocadas no papel. Ela me ensinou a resolver as brigas com meus pais daquela forma. Com cartas que expressassem meus sentimentos. Estar apaixonada não era briga nenhuma, mas se não tinha coragem de conversar com a Kindle, então que tirasse coragem para pelo menos entregar a carta a ela. Aí ela poderia decidir se queria ou não sair comigo, e eu não precisaria nem ouvir o “não”. Um plano perfeito! Ainda assim covarde, porém perfeito.

A aula passou voando e tomei a difícil decisão de ir almoçar com a Carol ao invés de ir para casa de ônibus. Afinal, eu não podia resumir minha vida em um crush e a Carol era importante para mim. Eu já estava com saudades dela por antecipação.

Fomos no shopping perto da escola e escolhemos um fast-food na praça de alimentação. Se era pra comer na rua, eu é que não ia comer feijão com arroz! De comida saudável, já bastava a lá de casa.

— Sabe o que é pior? — falei, colocando uma batata na boca enquanto procurávamos um lugar pra sentar. Estava tudo lotado. — A gente tá aqui

falando de se mudar e tal e nem sabemos se fomos aprovadas.

— É claro que fomos — Carol respondeu.

— É, você deve ter sido mesmo, suas notas sempre foram ótimas e acertou um monte de questão no Enem.

— Ué, você também acertou.

— Não tanto quanto você.

— Mas é o suficiente, oras. Bia, vê se pára de ficar pensando besteira. Imagina nós duas, daqui dez anos, de biquini, tirando férias na praia, em Miami. Você, empresária no ramo de games, e eu, rica, riquíssima depois de casar com o cara certo, a primeira CEO mulher de alguma multinacional!

— É pra ser otimista e não sonhar com um universo alternativo, Carol. Eu, no máximo, sonho que em dez anos possa comprar qualquer jogo que eu quiser com meu salário. Ah, e usar meias lindas.

Achamos um lugar perto da escada rolante e corremos até lá antes que fosse ocupado.

— Eu não entendo você, Bia. Por que você não se deixa levar pela fantasia? É bom sonhar alto.

Me acomodei na cadeira e tomei um longo gole do refrigerante gelado.

— É muito simples, Carol. Quanto menor minha expectativa, menor será minha queda quando meus planos derem errado.

— Credo, achei que você sairia da escola com aquela vibe nova da esperança etecetera.

— A gente ainda não saiu da escola. Ainda faltam quatro dias.

— Aí a borboleta sai do casulo?

— Aí a borboleta entra no casulo. É um processo, você sabe. Carol, riu.

— Agora me conta, o que era aquilo que você tanto escrevia hoje na aula? Não é como se a Renata estivesse passando matéria.

Senti meu rosto corar e tentei disfarçar mordendo o sanduíche, mas eu não teria escapatória. Era impossível desviar de assuntos com a Carol.

— Eu escrevi uma carta.

— Para a você do futuro?

— Quem me dera. Uma carta para a Kindle.

— Ai, que brega, espero que seja para jogar fora.

— Não, né, a ideia é justamente entregar pra ela.

Carol estendeu a mão e eu encarei bem fundo nos olhos dela, sentindo zero vontade de deixá-la ler a carta.

— Que foi, tá com vergonha? — ela perguntou, devolvendo meu olhar e mexendo os dedos, insistindo.

— Te deixo ler a versão revisada.

— Sei.

Ela ficou séria por um tempo e então começou a rir e não tive como não acompanhá-la. Paramos de dar risada e senti um aperto no peito da nostalgia precipitada. Parecia até que tinha engolido uma banda emo inteirinha que pogava no estômago.

— Você não precisa dessas coisas de cartinha, Bia. Poderia confiar mais no seu sorriso bonito e no quão legal você é.

Senti um calorão subir desde os meus dedos do pé até os fios dos cabelos e cobri a boca num gesto automático. Ao ver minha reação, Carol continuou a sorrir.

Eu era excessivamente consciente da minha cicatriz de lábio leporino e sempre tive dificuldades em relação a isso. Até evitava de sorrir em fotos pra não chamar atenção pra minha boca.

Mudei de assunto.

— A carta é só uma desculpa pra chegar nela, sabe, um conversation starter.

— Um o que? — Carol nunca tinha sido muito boa em inglês.

— Um jeito de começar uma conversa.

— Você sempre pode começar com “qual seu Pokémon favorito?”, ou “que livro é esse que você tá lendo?”.

— Ou, quem sabe, eu dou a carta e saio correndo, de preferência no ponto da escola. Não me atrapalha, Carol, já foi difícil bolar esse plano.

— Você quem, sabe, chuchu.

Terminamos de comer e ficamos passeando pelas lojinhas por um tempo antes de ir embora. Era bom poder deixar as preocupações de lado e só viver o momento, sem ficar me perguntando se minha nota seria suficiente

para entrar na faculdade que eu queria ou se daria conta de todos os novos desafios que do ano seguinte.

Cheguei em casa ainda cedo e encontrei minha mãe tomando sol no quintal, de biquíni. Era um hábito dela desde que me lembro por gente.

— Bia! Finalmente! Coloca um biquíni e vem tomar um sol comigo. Um pouco de vitamina D te cairia bem, colocaria um pouco de vida nesse seu rosto de defunto.

— Obrigada, mãe, mas prefiro comer uma bacia de sapos. Por que você não vai tomar sol na praia? Nunca entendi a necessidade de tomar sol no quintal.

— Na praia eu teria que lidar com areia, pessoas, cheiro de peixe… Pra quê tudo isso se posso ficar do lado da minha geladeira e banheiro?

— Você tem razão, mãe. — Como eu poderia argumentar com isso, né?

Ela se ajeitou na cadeira, bebeu um pouco de seu drink e tirou os óculos de sol.

— Como está a Carol? A Silvana vai ficar arrasada quando você se mudar, minha filha. Só você sossega o facho daquela garota.

Decidi que aquela conversa havia chegado ao fim, respondi que “A Carol tá ótima” e fui para o meu quarto. Estava tudo caótico por ali. Eu nem sabia se ia passar na prova, mas já tinha começado uma limpa nos meus pertences. Separando roupas para doação e jogando fora papéis velhos… Era incrível a quantidade de coisa inútil que eu tinha acumulado só no último ano.

Abri a mochila para ver o que mais de lixo encontraria ali dentro e lá estava a carta que escrevi para Kindle mais cedo. O passeio com Carol tinha sido tão bom que até tinha me esquecido daquilo. Sentei à escrivaninha e reli a carta algumas vezes. Peguei uma folha nova e passei a limpo, fazendo uma versão melhorada. Guardei com cuidado no bolso da frente da mochila e prometi para mim mesma que a entregaria no dia seguinte.

Não entreguei.

Nem na quarta-feira.

Muito menos na quinta-feira.

E aí chegou a sexta. O último dia de aula.

Eu entrei no ônibus nervosa, batendo os dentes como se estivesse com frio. Estava sem o uniforme e vestia uma calça jeans com minha camiseta “make emo great again” que provavelmente havia sido uma péssima escolha de outfit para chegar na crush. Bom, não havia mais volta.

Quando o ônibus parou no ponto da Kindle, meu coração quase saltou da boca e saiu correndo. Houve um momento de segundos infinitos em que ninguém passou pela porta e consegui sentir minhas esperanças sendo trucidadas. Ah, não, ela não iria para a aula no último dia?

Foi então que ouvi uma voz gritar um “Até logo!” e ela finalmente entrou. Usava um vestido que parecia uma camiseta mega comprida e estava tão linda que demorei pra perceber que meu olhar fixo não era nem um pouco discreto.

Fiz questão de fechar minha boca e me voltar para frente. Tive até que esconder um sorriso.

Apalpei minha mochila e encontrei a carta. Tudo em ordem. Eu daria para ela na volta, sem falta.

Muitos alunos faltaram naquele último de “aula.” Não teve aula nenhuma. Só algumas palestras dos professores, bate-papos e um intervalo que durou o triplo do tempo.

Os minutos finais foram apenas um discurso da professora sobre mercado de trabalho e nosso futuro dali pra frente. Foi bem bonitinho, mas meu coração estava disparado demais para dar atenção. Eu nunca na minha vida tinha desejado tanto estar no transporte público. Meu nervosismo estava tão aparente que Carol percebeu na saída.

— Você deveria estar feliz, Bia — disse ela. — Todo mundo tá feliz, ninguém aguentava mais o ensino médio.

— Eu to feliz — respondi. — Só tô nervosa também.

— Ah, relaxa, vai dar tudo certo.

— Não to falando da vida, do futuro, de pagar contas, Carol. To falando da Kindle.

— Ué, e tá nervosa por isso pra quê?

Enfiei a mão no bolso da mochila e mostrei para ela a folha dobrada.

— E isso é?

— A carta. A CARTA, para a Kindle com o meu contatinho.

Óbvio que ela riu.

— Ai, amiga, ainda essa ideia?

— Ah, me deixa.

— Vai lá entregar sua cartinha de amor — ela debochou. — Depois me fala como foi.

Carol mandou um beijinho e virou na esquina enquanto eu fui em frente até o ponto. Andei com pressa, para ter certeza de que não perderia o ônibus e a oportunidade. No afobamento, acabei esbarrando em pessoas e atravessando um sinal vermelho, desatenta, a passos largos.

Ficava o tempo todo colocando a mão no bolso para garantir que a carta ainda estava lá, com medo que ela caísse, dando uma importância exagerada a um pedaço de papel.

Percebi que não me importava mais tanto assim com a rejeição. Claro que seria terrível e eu choraria embaixo da coberta por uma semana se ela me dissesse não, mas naquele momento, o mais importante era ter a coragem. Era fazer aquilo para não me arrepender de não ter feito. Viver com vergonha era uma coisa, viver arrependida seria totalmente mais grave.

Parei rapidamente numa vitrine para me olhar num espelho e dar uma ajeitada no cabelo. Meu rosto marcado por espinhas e a cicatriz. Talvez ela não se importasse tanto assim com aparências. Talvez ela só gostasse de meninos. Talvez ela só gostasse de bolo. Não importava mais. Minha mente estava decidida. E com a carta em mãos, não corria o risco de engasgar ou gaguejar. Pá pum. Entregar a carta e fim.

Fiquei batucando os pés no chão enquanto esperava, até que finalmente o ônibus apareceu na esquina. Já fiquei à frente e assim que ele parou, saltei para dentro depressa, me espremendo entre as pessoas e me sentindo uma sardinha enlatada.

O ônibus da volta era sempre lotado e sempre viajava em pé até perto de casa, que era quando os assentos esvaziavam. Fui andando até a traseira do ônibus, tropeçando nos pés dos passageiros e xingando mentalmente os estudantes que não tiravam a mochila das costas.

Lá dentro estava particularmente fedorento, numa mistura de cigarro, suor e desodorante vencido. Olhei em volta e encontrei a Kindle no fundo, sentada. Seria bem difícil chegar nela atravessando o mar de sovacos erguidos, mas precisava tentar. Dei um passo de cada vez, desviando de mais passageiros e me sentindo em um filme de fantasia aventuresco, numa missão para alcançar um objetivo maior.

A cada sacolejada, tentava me segurar na barra de ferro, desajeitada, e, quando o ônibus parou de repente num dos pontos, quase caí de cara na lixeirinha amarela. Me recompus e olhei para o fundão. Para meu completo choque, Kindle não estava mais lá.

Fiquei encarando o assento dela ser ocupado por outra pessoa, me dando conta de que ela havia saltado do ônibus em algum momento. Tentei olhar para a janela, meu coração lá na garganta, mas nenhum sinal dela.

— Não acredito! — soltei em voz alta.

Uma mulher me olhou esquisito, mas logo voltou seu olhar para o nada.

Apertei a carta no bolso, nervosa, sem acreditar na minha falta de sorte. Peguei o papel nas mãos e encarei meu garrancho com minha arroba.

O ônibus parou novamente e uma porção de gente desceu, abrindo um pouco de espaço para respirar, mas ainda sem vagar espaços em que eu pudesse me sentar.

Tudo aquilo para nada. Tinha me esforçado tanto e criado tanta coragem para quê? Para a garota saltar mais cedo do ônibus. Era bem o tipo de coisa que acontecia comigo, mesmo. Eu deveria ter imaginado que algo de muito errado ocorreria.

Senti meu rosto aquecer com a decepção e disse a mim mesma que não iria chorar no ônibus. Era apenas o fim de algo que nem havia começado.

Suspirei alto, decepcionada comigo mesma. Eu deveria ter criado coragem antes e não justamente no último dia de aula. Que servisse de lição para eu não deixar as coisas para depois.

Aproveitei que o ônibus havia esvaziado mais um pouco para me afastar da muvuca e ficar bem lá atrás, de pé em frente à saída, olhando pela janela, vendo a cidade passar. O caminho de volta era longo, passando por uma porção de bairros, em curvas e mais curvas. E logo em breve seria o ponto

em que Kindle costumava descer. O pensamento me fez torcer a boca e senti um repuxar amargo no estômago. Eu só queria chegar em casa logo e gritar no travesseiro.

O ônibus parou novamente e me virei para trás para dar lugar aos passageiros que desceriam.

Dei de cara com ela. Com a garota do Kindle de capa roxa.

Ela estava bem ali, parada atrás de mim.

Como eu a havia perdido mais cedo?

Senti meu corpo inteiro tremer e então ela disse “oi”. A voz dela era ainda mais tímida que a minha.

Era como se eu pudesse morrer naquele mesmo instante, de tão intensas que ficaram as batidas em meu peito. Abri a boca para falar “oi” de volta, e naquele momento, o ônibus voltou a andar.

No susto, me agarrei depressa no metal, deixando escapar a cartinha que segurava. Ela caiu na escada e a porta do ônibus a varreu para fora.

Encarei a cena incrédula. Era impossível o dia ficar pior que aquilo. Me virei para trás novamente e a garota permanecia ali. Olhando para mim. O olhar nervoso refletia o meu.

— Camiseta legal — disse ela e eu quase morri.

Meses e meses naquele ônibus e agora eu estava lá, cara a cara com ela. Falando com ela, quer dizer, mais ou menos. Ela era alta. Algo que eu nunca tinha notado até então. Nenhuma de nós duas disse nada por um tempo. Assim que o silêncio estava se tornando constrangedor, ela se equilibrou para tirar a mochila das costas e pegou uma capinha de CD do bolso da frente. Os lábios dela pressionados demonstravam o esforço que ela parecia fazer para interagir comigo. Eu assistia tudo ansiosa com o coração pulando batida atrás de batida. Será que minha onda de azar havia finalmente chegado ao fim?

— Sei que é um pouco antiquado… e esquisito também, já que nem te conheço — disse a Kindle. A voz baixa. — Mas te fiz uma playlist… gravei num CD já que não tinha como te enviar de outra forma.

Ela me entregou o CD e acho que levei alguns segundos para deixar de ser palerma e pegar das mãos dela.

A capinha era daquelas de papelão e havia algo escrito com canetinha colorida. “Mixtape para a Menina de Mochila Azul”. Encarei as palavras uma por uma com a mente meio enevoada, embasbacada com o que estava acontecendo. Eu certamente havia batido a cabeça na lixeirinha e estava delirando.

Ergui meus olhos, nervosíssima.

— Eu tinha feito algo pra você também, mas caiu para fora do ônibus falei, sem saber muito bem de onde vinham as palavras.

Ela sorriu em resposta e nos afastamos da porta quando duas senhoras puxaram a cordinha para descerem do ônibus.

— Não tem problema — Kindle respondeu, e me dei conta que eu não sabia o nome dela.

Olhei para o CD e sorri com o “mochila azul”.

— É Bianca. Meu nome, digo. Bianca.

— Melania — ela respondeu. Mas me chame só de Mel, não gosto de Melania.

— Ok — respondi, sem saber como agir naquela situação.

— Olha, eu já tenho que descer… mas sei lá, queria saber se você quem sabe não quer fazer algo amanhã? Tomar um sorvete, talvez.

— Eu gosto de sorvete.

Ela sorriu.

— Me manda uma mensagem no número que salvei num arquivo aí no CD.

— Espera.

Me apressei em pegar uma caneta, já que o ponto dela era o próximo.

— Posso?

Ela entendeu o que eu quis dizer e estendeu a mão. Escrevi meu número na pele dela.

— É que meu computador não roda CD. Mas eu tenho um radinho em casa.

Mel deu uma risada sem graça que eu achei a coisa mais fofa do mundo.

O ônibus parou, ela saltou, e fiquei olhando até que desaparecesse de vista, sem acreditar na minha própria vida.

Vinte minutos depois eu estava saltando do ônibus, ainda agarrando o CD com as mãos trêmulas. Meus dedos que haviam encostado nela pareciam anestesiados. Até as minhas pernas, que sempre foram fortes, pareciam fracas e bambas. Eu me sentia pronta para dar entrada na UPA.

Andei devagar até em casa. Não havia mais pressa. Meu pequeno coração estava aquecido e eu me agarrava àquela playlist, que ouvi assim que cheguei no meu quarto. Ou ela tinha adivinhado o tipo de música que eu gostava, ou o gosto musical dela era igual ao meu. Vi aquilo como um sinal do universo.

Aquele dia mudou tudo para mim. Algo tão simples, tão singelo, alterou tanto o rumo da minha vida.

Não havia sido apenas o dia em que conheci Mel oficialmente. Mas também o dia que aprendi a esperar e a ter esperança. O dia que mudou minha forma de olhar para mim mesma.

Eu não era tão azarada assim.

Foi a última vez que vi a garota do banco de trás. Dali pra frente, ela passou a ser a garota do meu lado.

MARY C. MÜLLER nasceu em Blumenau. Seu livro Antes de tudo acabar (Outro Planeta, 2017) teve mais de dois milhões de leitores no Wattpad antes de encontrar uma editora. Ela também tem contos publicados nas coletâneas O outro lado da cidade (Aquário Editorial, 2015), Nós estamos aqui (Editora Draco, 2014) e na quarta edição da Revista Trasgo. Também é designer gráfica especializada em projetos editoriais. Vive em Belo Horizonte com seu marido, o filho e uma gata caolha que se acha a dona do mundo.

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