Fronteiras Finais

FRONTEIRAS FINAIS ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO O PLANETA DOS MACACOS SOLARIS

ESTAGIO

001

A ODISSEIA

10 — 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO — 28 NOV 2018 09 — O PLANETA DOS MACACOS — 10 DEZ 2018 08 — SOLARIS — 15 JAN 2019

CINESESC — R. AUGUSTA, 2075 — WWW.SESCSP.ORG.BR/FRONTEIRAS

ATRAVÉS DO PORTAL DAS ESTRELAS

A VINDA DO FOGUETE SIGNIFICOU O FIM DE UM MILHÃO DE ANOS DE ISOLAMENTO. A INFÂNCIA DA NOSSA RAÇA CHEGOU AO FIM, E A HISTÓRIA COMO A CONHECEMOS COMEÇOU. - ARTHUR C. CLARKE A Exploração do Espaço (1952)

D

écadas antes do início da corrida espacial,

ano a chegada da Apollo 11 ao nosso satélite natural.

multidões de pessoas comuns dentro de uma

Em O Planeta dos Macacos, assistimos à jornada dis-

sala escura já haviam visitado mundos distan-

tópica de um astronauta obrigado a confrontar novas

tes, graças à fusão entre arte e ciência que conven-

formulações de humanidade. Por fim, viajamos a uma

cionamos chamar de cinema.

estação espacial orbitando um planeta distante, Sola-

Desde a infância dessa nova linguagem, o Cosmos, infinito em extensão e possibilidades, já servia

ris, onde testemunhamos o despreparo de um homem diante dos grandes mistérios do universo.

de inspiração para histórias que arrebatariam a ima-

Num momento em que a era espacial volta com

ginação do público ao redor do planeta. Histórias de

força ao imaginário pop, olhar para o céu por meio

encantamento e espanto, de espetáculos visuais e

da tela do CineSesc é uma forma de celebrar os fil-

de grandes ideias, feitas do mais puro rigor científico

mes que, de diferentes formas, comentaram sobre

ou da mais livre poesia da imaginação.

os nossos medos e esperanças dentro e fora deste

O ciclo Fronteiras Finais apresenta, entre novem-

“pálido ponto azul”.

bro de 2018 e julho de 2019 — quando a primeira

Entre pequenos passos e grandes saltos, segui-

caminhada humana na Lua completa 50 anos — al-

mos em busca de novas fronteiras — dentro e fora

gumas dessas histórias siderais.

da sala de cinema. A contagem regressiva começou.

Três filmes compõem o primeiro módulo dessa missão, começando por 2001: Uma Odisseia no Espa-

Acompanhe a programação no site

ço, o quinquagenário clássico que precedeu em um

www.sescsp.org.br/fronteiras

FRONTEIRAS FINAIS

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

O PLANETA DOS MACACOS

SOLARIS

TEXTO POR: ANA MARIA BAHIANA

DIREÇÃO: STANLEY KUBRICK

CORTESIA PARK CIRCUS/WARNER BROS.

1968

EUA/REINO UNIDO

149 MINUTOS

mstrong passa por uma complexa entrevista de em-

Esse é o novo olhar que ela investiga e propõe:

prego para ser astronauta. Da bateria de generais e

se olharmos para a humanidade terrestre com os

cientistas que compõem o comitê de seleção, surge

olhos do espaço, o que veremos?

uma pergunta que se presume crucial: o que o programa espacial representa para você?

Neil, interpretado por Ryan Gosling no filme, é um homem introvertido, de poucas palavras, que, na épo-

A

jornada de Stanley Kubrick até o Portal das Estrelas tem suas raízes na angústia da Guerra Fria. Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Pa-

ca, havia acabado de passar por um grande trauma

rar de me Preocupar e Amar a Bomba, filmado em

pessoal. Ele pensa por um longo tempo e finalmente

1963 (o ano do assassinato de John Kennedy) e lan-

diz: “Quando eu estava lá em cima, quando meu avião

çado em 1964 (o ano em que os norte-americanos

passou momentaneamente da atmosfera para a estra-

anunciaram o início do Projeto Gemini, cuja meta,

tosfera, eu vi como… como essa faixa azul que cha-

proposta por Kennedy, era pôr um ser humano na

mamos de céu é pequena. É muito pequena. E nós,

Lua), tinha sido sua tentativa de exorcizar a sombra

aqui embaixo, quando olhamos para cima, temos a

da extinção nuclear da humanidade, uma ansiedade

sensação de que o nosso céu é imenso. E na verdade

real e possível em meados do século 20.

é uma linha tão estreita, tão frágil…”.

A essa altura dos anos 1960, a Corrida Espacial

Esse momento que Neil menciona e que, como

tornara-se uma espécie de manifestação benigna da

quase todo o filme, veio da biografia de mesmo tí-

Guerra Fria, uma disputa de proezas científicas pelas

tulo, é a sequência que abre O Primeiro Homem.

quais os Estados Unidos e a União Soviética queriam

Chazelle filma com uma abordagem que espelha,

demonstrar, um ao outro e ambos ao resto do mundo,

direta e amorosamente, Os Eleitos (1983), de Phi-

que seu projeto de nação era superior. Para Kubrick,

lip Kaufman: num avião de teste fora de controle,

a proliferação de relatos sobre essa nova fronteira da

Armstrong ascende muito mais alto do que deveria

ciência era um assunto fascinante, que transcendia a

e, por um breve momento – lírico, delicado e assom-

hostilidade política. Era o espaço em si, a Terra como

broso –, vê-se valsando no silêncio negro do espa-

habitante do espaço e a solidão da humanidade no

ço, abarrotado de estrelas.

cosmos que o fascinavam.

E a última fronteira da Terra, o manto azul que a

Kubrick tinha uma visão, “uma meditação sobre

cobre, recolhe-se, pequena, um modesto traço entre

a possibilidade de vida extraterrestre”, como descre-

os astros.

veu o biógrafo John Baxter, mas não tinha uma his-

O grande triunfo, a grande força de 2001: Uma

tória. Na busca por um colaborador, Kubrick passou

Odisseia no Espaço, vem desta que é a raiz mais pro-

a investigar a comunidade da ficção científica e foi

funda da nossa fome pelo cosmos e as histórias sobre

parar em Arthur C. Clarke, um físico, matemático,

o cosmos: a ciência, sim, mas acima de tudo, o espíri-

mergulhador, inventor e escritor que morava em Co-

to. Acima de tudo a interminável sequência de pergun-

lombo, no Sri Lanka. Trocaram cartas e telegramas

tas sobre quem somos e como viemos parar nessa

e finalmente se encontraram em Nova York em abril

bolinha cheia de água, coberta por um frágil céu azul.

de 1964. Kubrick disse a Clarke que queria fazer um

Filha da Era Espacial de meados do século 20,

filme sobre “a relação do homem com o universo”.

mas imaginada antes do passo que mudou tudo – a

Clarke prontificou-se a mandar uma seleção de seus

chegada do homem à Lua –, a Odisseia abraça, em

contos sobre o assunto. Kubrick escolheu “A Senti-

primeiro lugar, o maior legado da corrida espacial: a

nela”, a narrativa de um artefato alienígena desco-

SOLARIS

gas debaixo do cosmos infinito.

O PLANETA DOS MACACOS

mais como gigantes sobre a Terra, mas como formi-

tão piloto e engenheiro aeronáutico Neil Ar-

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

Primeiro Homem, de Damien Chazelle, o en-

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

capacidade de nos vermos de fora para dentro, não

FRONTEIRAS FINAIS

E

m uma cena pequena, mas importante, de O

CORTESIA PARK CIRCUS/WARNER BROS.

tendo sido rejeitado –, o conto tornou-se a base de

C

um projeto que tomou quatro anos da vida de Ku-

tudo o que a ciência havia desenvolvido até o mo-

brick e Clarke e gerou, além do filme que viria a ser

mento. A animação canadense Universe e o longa

2001: Uma Odisseia no Espaço, várias outras obras

To the Moon and Beyond, dois documentários cien-

(inclusive duas sequências, 2010 e 3001) – e uma

tíficos, tornaram-se mais do que os alicerces de sua

rixa entre os dois colaboradores. Clarke se levantou

estética: o ator Douglas Rain, que narrou Universe, foi

e foi embora, “com lágrimas nos olhos”, segundo

escalado para ser a voz do computador HAL; a Graphic

seu amigo Michael Moorcock, no meio de uma das

Films, produtora de To the Moon and Beyond e par-

primeiras exibições fechadas do filme, quando per-

ceira habitual da NASA, foi agregada à equipe de

cebeu que Kubrick havia retirado toda a narração off

efeitos especiais, com um de seus designers, Dou-

com sua voz.

glas Trumbull, liderando o projeto. Vários cientistas

berto na Lua e suas possíveis implicações para o desenvolvimento da humanidade.

Escrito em 1948 para um concurso da BBC –

riado ao longo de quatro anos, enquanto a União Soviética entrava no programa Voskhod e os Estados Unidos respondiam com o proje-

to Gemini, 2001: Uma Odisseia no Espaço incorpora

Aqui está o cerne da questão 2001: para Clarke,

da NASA também foram escalados para, na des-

tratava-se de uma narrativa semidocumental espe-

crição do biógrafo John Baxter, trazer o maior rigor

culando de onde a humanidade viera (do contato

científico possível, “uma ênfase na parte ‘ciência’

com extraterrestres, ele presume) e para onde iria

mais do que na parte ‘ficção’”. “Eles eram tão ani-

(para o espaço, seu destino natural). Cientista, lógi-

mados!”, conta Moorcock, descrevendo uma visita

co, minucioso e intelectual, Clarke criara uma teoria.

ao set nos estúdios Shepperton, nos arredores de

Kubrick, intuitivo, impulsivo e inquieto, vislumbrara

Londres. “Todos tinham seus pequenos escritórios

um poema tonal.

no set e pareciam crianças em dias de filmagem.”

Bowman, o último terráqueo na sequência de acontecimentos de 2001, que, atravessando o Portal das

ca; a ruptura do ritmo visual; a montagem.

Estrelas, morre e renasce como um novo ser huma-

Sua “ficção científica boa”, formatada por esses

no, a semente de uma nova era.

parâmetros, não buscava as emoções fortes e tempo-

Como a chegada do homem à Lua, um ano de-

rárias dos sustos e encantamentos que costumavam

pois do seu lançamento, 2001: Uma Odisseia no Es-

(e ainda costumam) ser a obrigatoriedade do gêne-

paço tornou-se um marco, uma fronteira no gênero

ro. À medida que filmava, Kubrick ia se distanciando

ficção científica. A possibilidade de recriar o cosmos

das primeiras conversas com Clarke e suas ambições

cinematograficamente incendiou as mentes de toda

semidocumentais. Nada devia ser explicado: as ima-

uma geração de realizadores, de George Lucas (que

gens, cientificamente corretas, deveriam ser toda a

prontamente cooptou Douglas Trumbull para Star

explicação necessária. O silêncio do cosmos pedia

Wars) a Andrei Tarkóvski. Na obra de Kubrick, não

apenas pinceladas de uma trilha que, ao contrário do

havia lugar para monstros hostis – a catarse da bom-

que de costume, não enfatizasse a ação, não disses-

ba atômica e da Guerra Fria nos tokusatsu japoneses

se ao público o que deveria sentir e pensar. Por isso,

e nos filmes B norte-americanos – ou sequer para o

ele dispensou a trilha encomendada a Alex North, seu

medo: a conversa era outra, não mais sobre o temor

colaborador em Spartacus e Dr. Fantástico, e preferiu

do Outro, mas sobre o abraço do desconhecido e o

as seleções que havia feito como trilha temporária.

que poderíamos fazer e ser, além de nossa notória

O diálogo, mínimo. A montagem – da superposição

fragilidade.

do osso-arma no segmento “O Amanhecer do Ho-

Intuitivamente, como os artistas fazem, Kubrick

mem” à elaborada cacofonia de cores e luzes quando

estava olhando para a Terra como uma Criança das

Bowman (Keir Dullea) atravessa o Portal das Estrelas –

Estrelas: de fora para dentro, uma esfera azul no cos-

cria novas camadas de significado.

mos, solitária em sua especificidade. Ou não.

Durante quatro anos, Kubrick compôs uma forma meditativa de cinema, uma experiência que convida a plateia a deixar de lado seus modos terrestres de ser e abraçar o desconhecido, como os astronautas, como Ulisses, o da primeira Odisseia. Ou como o seu

ANA MARIA BAHIANA Jornalista, autora, pesquisadora, produtora, Ana Maria Bahiana tem uma longa e prestigiosa carreira no Brasil e no exterior, em imprensa, rádio, televisão e internet.

SOLARIS O PLANETA DOS MACACOS 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

Além do rigor científico, Kubrick tinha outras ferramentas em sua proposta criativa: o silêncio; a músi-

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

KUBRICK ESCREVEU EM UMA DE SUAS CARTAS A CLARKE.

FRONTEIRAS FINAIS

QUERO FAZER O TÃO ELUSIVO BOM FILME DE FICÇÃO CIENTÍFICA

A PRECAUÇÃO Kubrick tinha receio de que uma descoberta de vida extraterrestre ofuscasse sua obra. Assim, sem sucesso, tentou fazer uma apólice de seguros que o protegeria contra prejuízos.

O CONVITE O cineasta queria que o mangaká Osamu Tezuka assumisse a direção de arte do filme. Porém, o autor recusou o convite pois não queria ficar fora do Japão por um longo período.

A CONSPIRAÇÃO Para teóricos da conspiração, a chegada do homem à Lua foi uma farsa dirigida por Kubrick, que teria reaproveitado trechos do próprio filme para construir uma “farsa” espacial.

CORTESIA PARK CIRCUS/WARNER BROS.

_01 _02 _03 _04

O NOME A grande inspiração para o nome do filme veio de Odisseia, famoso poema épico grego atribuído a Homero e escrito na antiguidade por volta dos séculos 6 e 7 a.C, sobre a jornada de Ulisses.

FRONTEIRAS FINAIS

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

O PLANETA DOS MACACOS

SOLARIS

TEXTO POR: SÉRGIO RIZZO

DIVULGAÇÃO

DIREÇÃO: FRANKLIN J. SCHAFFNER

1968

EUA

115 MINUTOS

na cabeça do espectador ao final de O Planeta dos Macacos (1968) ganham incômoda atualidade. O que saiu de errado com a humanidade? Em que momento da história a irresponsabilidade, a inconsequência e o embrutecimento atingiram um ponto sem retorno? Como as lideranças políticas e econômicas nos conduziram de volta a um estágio pré-histórico?

Publicado em 1963, o romance homônimo do francês Pierre Boulle (1912-1994) – autor também do livro que deu origem ao clássico A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean – não propõe nenhuma explicação para o que teria acontecido ao longo de séculos, na Terra, para que o ser humano trafegasse na contramão da Avenida Darwin. Seu duplo carpado final – que tem mais parentesco com a versão de 2001, dirigida por Tim Burton, com roteiro de William Broyles Jr., Lawrence Konner e Mark Rosenthal – nocauteia o leitor.

SOLARIS

Incrivelmente, os dois filmes chegaram ao circuito

O filme de 1968 – produzido por Arthur P. Jacobs

dos Estados Unidos na mesma semana, no início

(que comprou os direitos do livro antes mesmo de

de abril, travando embate, que persiste ainda hoje,

sua publicação), dirigido por Franklin J. Schaffner

entre duas visões contrastantes do futuro.

e roteirizado por Rod Serling (o criador do seriado

Do homem-macaco ao homem, e depois ao su-

Além da Imaginação), com polimento de Michael

per-homem: ao pavimentar essa trilha linear, alimen-

Wilson (A Ponte do Rio Kwai, Lawrence da Arábia)

tada por violência, o cético Kubrick cedeu ao otimis-

– pariu sua própria maneira de concluir a provoca-

ta Clarke na antevisão do século 21– e, já sabemos

ção distópica de Boulle. Recorre a uma ideia igual-

agora, ambos estavam muito errados (e, sim, o filme

mente perturbadora, traduzida pela imagem icônica

é estupendo). Agradeçamos, por outro lado, ao ci-

da Estátua da Liberdade, mas também não oferece

nismo de todos os envolvidos em O Planeta dos Ma-

explicações.

cacos, por transportar a ironia desconcertante de

O

O PLANETA DOS MACACOS

denciais de 2018 no Brasil, as perguntas que ecoam

A PERSPECTIVA DE BOULLE TEM MAIS A VER COM O FUTURO QUE HOJE IMAGINAMOS DO QUE A DE KUBRICK E CLARKE.

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

rores aberta por ocasião das eleições presi-

Boulle para uma ficção científica em que se percorre final em aberto, com múltiplas elipses a se-

outra estrada: a que vai do quase-super-homem ao

rem resolvidas pelo espectador, é um dos

homem-quase-macaco.

raros elementos que aproximam O Planeta

Não temos ainda como checar se esse olhar

dos Macacos de 2001: Uma Odisseia no Espaço,

especulativo foi mais acertado, porque o futuro em

outro clássico da ficção científica. Lançado também

questão ainda está muito distante. Quando Taylor

em 1968, 2001 foi produzido e dirigido por Stanley

(Charlton Heston) e seus colegas pousam no que

Kubrick a partir de uma ideia desenvolvida por ele

parece ser “um planeta em órbita de uma estrela da

em parceria estreita com o escritor Arthur C. Clarke.

constelação de Órion”, estamos em 25 de novembro

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

às sombras) da caixa obscurantista de hor-

FRONTEIRAS FINAIS

D

istopia, aqui nos tem de regresso. À luz (ou

de 3978, mais de dois mil anos depois de a espaçonave ter sido lançada, em 14 de julho de 1972. Para a tripulação, foram apenas 18 meses de viagem. Um pequeno salto para aqueles homens, um gigantesco passo para a humanidade – mas para trás.

Basta dar uma olhada no atual estado de coisas para constatar que a perspectiva de Boulle tem mais a ver com o futuro que hoje imaginamos do que a de Kubrick e Clarke. Há, é bem verdade, uma gran-

TRIVIAS ESPACIAIS

de inocência na especulação distópica de O Planeta dos Macacos: os macacos falam inglês coloquial da década de 1960 e, assim, se resolve o problema da comunicação entre espécies. Boulle foi mais cuidadoso. O Taylor do livro, cidadão francês, precisa aprender a língua dos macacos para entender melhor sua cultura e conversar com eles de igual para igual.

Descontado esse jeitinho de linguagem em que Hollywood sempre foi especialista, as opções de cenografia, figurinos, direção de fotografia e música,

O INTERVALO Durante os intervalos nas filmagens, atores caracterizados como diferentes tipos de primatas geralmente ficavam juntos – gorilas com gorilas, orangotangos com orangotangos.

entre outros aspectos de O Planeta dos Macacos, ajudam a compor uma ambientação desoladora que, por sua vez, configura outra liberdade, desta vez mais radical e funcional, em relação ao romance. A civilização símia imaginada por Boulle encontra-se em um estágio de cultura e tecnologia que lembra a humanidade nos anos 1950; os macacos do livro usam aviões, por exemplo.

Concebe-se dessa forma, no filme, o invólucro estético para uma sociedade, a dos macacos, em que a ciência é refém da religião, em que o conhecimento

O ROTEIRO Os primeiros roteiros do filme eram mais próximos ao livro de Pierre Boulle, mas o orçamento limitado forçou a mudança para a sociedade de macacos primitiva do filme.

de ponta é ocultado da população pelos dirigentes com o objetivo de perpetuar dogmas (e com eles o controle sobre corpo e mente dos cidadãos), em que existem castas (orangotangos, gorilas, chimpanzés), em que tudo se resolve, em última instância, na base da reza, da força e da bala. Com quem eles aprenderam isso tudo? Taylor sacou a resposta.

SÉRGIO RIZZO é jornalista, professor, crítico e curador de cinema. Escreve para O Globo e dá aulas na FAAP, no Colégio Augusto Laranja, no Espaço Itaú de Cinema, na Academia Internacional de Cinema e em unidades do Sesc.

A REFEIÇÃO Mesmo durante as pausas, os atores e figurantes eram obrigados a permanecer caracterizados como macacos, pois levava muito tempo para produzi-los. Em razão disso, as refeições eram liquefeitas e bebidas com canudos.

FRONTEIRAS FINAIS

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

O PLANETA DOS MACACOS

SOLARIS

TEXTO POR: BRAULIO TAVARES

DIVULGAÇÃO

DIREÇÃO: ANDREI TARKÓVSKI

1971

URSS

166 MINUTOS

É assim o planeta-oceano Solaris, que a humani-

brick, o filme Solaris (1971) de Andrei Tar-

dade tempos atrás descobriu ser inteligente pelo

kóvski foi inevitavelmente comparado com ele, e

modo como otimizava e mantinha sob controle sua

chegou a ser chamado de algo como “a resposta

órbita em torno de dois sóis. O planeta era capaz

soviética a 2001”. Ou seja, foi inadequadamente

de alterar sua velocidade ou seu curso.

arrastado para um confronto às cegas, típico da

O escritor parece ser mais frio do que os dois

Guerra Fria. Sabe-se hoje que Kubrick já incluiu o

diretores mencionados. Desdenhou o filme russo

filme russo numa de suas listas de filmes que ad-

dizendo que “não tinha escrito uma história erótica

mirava. Tarkóvski não tinha visto 2001 quando fez

passada no espaço”. ta e os fenômenos incompreensíveis que ali ocor-

Ambos são frios, e isto é uma das coisas que

rem, como quando o planeta ergue no ar enormes

têm em comum. Os personagens do cineasta rus-

formações de plasma e cria sobre a própria super-

so experimentam emoções intensas, mas o trata-

fície algo equivalente a catedrais góticas de tama-

mento em volta é todo frio, contemplativo. Um fil-

nho descomunal, que logo se desfazem. Há um

me em que vemos mortes e ressurreições, mas a

capítulo inteiro dedicado à literatura solariana. Um

batida do coração nem muda. Já os personagens

capítulo borgiano no qual se descreve uma malha

de Stanley Kubrick são impassíveis como avata-

complicada de pesquisas, teses, relatos, tentativas

res de videogame.

de sínteses, uma rede de competições e invejas

O crítico Philip Lopate prefere apontar semelhan-

acadêmicas.

ças entre Solaris e Vampiros de Almas (1956), de

Para Lem, nunca conseguiremos compreender

Don Siegel, e Um Corpo Que Cai (1958), de Alfred

um alienígena. O alien será sempre o Inefável, o

Hitchcock. Neste último caso, ele indica a incapaci-

Impenetrável, o Incognoscível.

dade do homem de proteger a mulher, os múltiplos

Lem vê o planeta como um poço de memória

disfarces ou “ressurreições” da pessoa amada, a

e de atividade incessante. Tarkóvski muda de ân-

repetição inevitável dos mesmos erros do passado.

gulo e vê essa mesma profundidade e espessura

Também é instrutivo comparar o filme de Andrei

em seus personagens humanos, especialmente no

Tarkóvski com o livro que lhe deu origem (Solaris,

psicólogo Kris Kelvin. A ele cabe fazer uma última

1961), por Stanislaw Lem, já chamado “o Jorge

visita de inspeção na estação espacial que orbita

Luis Borges da Polônia”.

o planeta Solaris, e que está prestes a ser desati-

Lem é um autor conceitualmente ambicioso e muito prolífico. Uma das teses preferidas dos seus romances é o fato de que seremos incapazes de

vada. O que ele encontra quando desembarca na estação vai tirar sua vida dos trilhos.

tradutórias, intérpretes perfeitos, implantes se-

H

mióticos; muitas pulp fictions mostravam diálogos

gicos para dar mais volume a ela.

entender um alienígena quando nos depararmos com um. A ficção científica em geral teme essa possibilidade. Muitas histórias inventam máquinas

á outra semelhança entre Solaris e 2001, dois filmes tão diferentes. É que ambos recorrem à tecnologia espacial e futurista do

gênero, mas não temem usar contrastes cronoló-

imensos nos quais se pressupunha que os seres

Eduard Artemiev, o compositor da trilha sonora

lagartiformes de Deneb falavam um inglês perfeito.

de Solaris, lembra o amor do cineasta pela música

O alienígena (diz Lem) pertence a uma esfera

de Bach e o modo como a inseriram no filme. Arte-

mental inacessível à nossa, “não pode ser reduzido

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO

achou-o “frio e estéril”.

No livro, de fato, explora-se muito mais o plane-

ESTÁGIO 001: A ODISSEIA

Solaris, e quando viu o filme americano, depois,

SOLARIS

Odisseia no Espaço (1968) de Stanley Ku-

O PLANETA DOS MACACOS

a conceitos, ideias ou imagens da esfera humana”.

miev cita Tarkóvski:

FRONTEIRAS FINAIS

L

ançado pouco tempo depois de 2001: Uma

HÁ UM MOTIVO PARA QUE EU RECORRA TANTO AOS VELHOS MESTRES. O CINEMA É UMA ARTE MUITO JOVEM. PRECISO CRIAR NO SUBCONSCIENTE DO ESPECTADOR UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA DA PROFUNDIDADE DOS SÉCULOS, ATRAVÉS DA MÚSICA E DA PINTURA DOS MESTRES ANTIGOS, PARA QUE ELES SINTAM O CINEMA COMO UMA ARTE ANTIGA, ALGO COM 300 OU 400 ANOS DE EXISTÊNCIA, E NÃO APENAS 90 ANOS. É o mesmo senso de “profundidade por contraste” que Kubrick obteve com o “Danúbio Azul” para musicar a dança das espaçonaves. Quando se esperava algum tipo de música eletrônica ou vanguardista, ele trouxe a valsa de Strauss e o tempo da história se elasteceu rumo ao nosso passado cultural em comum.

Tarkóvski é um diretor de temperamento sensível e severo, e está mais preocupado em recontar ao seu modo a história dos seus personagens do que

OS OUTROS

Além da obra de Andrei Tarkóvsk, Solaris também foi adaptado para TV soviética em 1968, e para outro filme, estralado por George Clooney e dirigido pelo cineasta Steven Soderbergh em 2002.

A OPÇÃO

Tecnologias do futuro não são o foco de Solaris. Tarkóvski acreditava que “análises detalhadas dos processos tecnológicos do futuro mudam a fundação emocional de um filme: em vez de ser uma obra de arte, ele se torna um esquema sem vida e que apenas finge se aproximar da verdade”.

em consultar algum menu de convenções da ficção científica. A água e a chuva, elementos plásticos e dramáticos constantes nos seus filmes, aparecem aqui como uma espécie de passagem líquida entre o mundo sólido na escala humana e a realidade mais ampla abrangida por Solaris. Ou a do planeta-memória que cada um traz dentro de si, e que lhe é tão familiar e tão estranho quanto a qualquer cientista que ali desembarcar.

BRAULIO TAVARES é escritor e pesquisador de ficção científica e literatura fantástica. Suas publicações mais recentes nesta área são o livro de contos Sete Monstros Brasileiros e a antologia Detetives do Sobrenatural (ambos pela Casa da Palavra, em 2014).

O FÃ

Stanislaw Lem, autor do romance que inspirou o filme, era um grande fã da obra de Philip K. Dick. Mas curiosamente, Dick teve desentendimentos com o polonês, chegando a denunciá-lo ao FBI como um “conspirador comunista”.

Curadoria e Produção André Sirangelo e Fidel Madeira Apoio Editorial Aleph Edição de Texto Leandro Saioneti e Luciana Fracchetta Projeto Gráfico e Diagramação Pedro Fracchetta Revisão Bárbara Prince e Renato Ritto Divulgação Nathália Bergocce

Ilustração de Capa Scott Woolston

Agradecimentos Gilson Packer Simone Yunes Cecília De Nichile Bárbara Carneiro Humberto Mota Ana Maria Bahiana Braulio Tavares Sérgio Rizzo Quanta Post Casarini Produções

Agradecimentos especiais aos projecionistas e a toda a equipe do CineSesc

Realização

O

•

S E U

•

G U I A

•

P A R A

•

A

•

E R A

•

E S P A C I A L

FRONTEIRAS FINAIS Abril, 1968

#LEIASCIFI

SPACE STATION V: Por dentro do portal para as estrelas PÁGINA 04

ESTAÇÃO SOLARIS: A resposta soviética PÁGINA 14

D O H O M E M M ACACO AO S U P E R - H O M E M

PÁGINA — 10