Discípulos do Silêncio

Page 20

20

seus componentes tocava o tal instrumento e eu certamente gostaria muito se escutasse. Não, não, obrigado, eu estava muito cansado e uma hora de sono faria diferença... Até mais tarde, até mais tarde; dei as costas para o mineiro, tapei os ouvidos – com medo que a banda atacasse inadvertidamente – e voltei correndo para o caminhão. Havia sempre o lado positivo das coisas; pelo menos agora eu tinha uma desculpa para deixar um recado para Márcia caso ela não me atendesse novamente. Então deixei gravado que havia um instrumento exótico na banda dos Hamptons; eu estava curioso para saber o nome e ficaria feliz se ela pudesse me ajudar. Até cerca de um minuto após encerrar a ligação, eu ainda havia instigado Márcia a digitar meu número. Mais cinco e ela nem ouviria a mensagem (se ouvisse não daria a mínima). E em meia hora, eu havia me exposto a um ridículo sem precedentes em toda a minha vida. Entrava no caminhão para buscar o material, olhava para o colchão e era como se um imã me atraísse para ele. A carroceria cheia, vazia, e, ao fim do dia, cheia de novo; as barras de ferro, mesas e cadeiras que eu arrastava, e os minutos ao longo dos quais eu me arrastava, hora após hora. Só revi o mineiro nas últimas do dia seguinte. O cara estava exultante; tinha feito amizade com os músicos e talvez tocasse uma bossa nova no segundo set, ou cantasse um rap em português no último. Eram nove e cinquenta e o DJ comandava o show do intervalo. Após muita insistência, concordei em ouvir o terceiro set no palco, atrás das caixas de som. Fui para a tenda dos garçons e fiquei assistindo à festa dali, como bicho de zoológico lambendo a cria morta para, depois, dar com a língua nos dentes dos homens... Os rictos de passagem de som desmanchando caras pálidas e mastigando O cru e o cozido até agregar sorrisos às pregas das orelhas; a chuva de elogios e os pingos de verdade; os defeitos maquiados por nocautes técnicos, os criados cuspindo sangue e as dondocas fazendo charme com as mãos direitas sobre os ombros – como papagaio de pirata –, as palmas das esquerdas viradas para cima e os dedos indicadores apontados para trás e para frente..., para trás e para frente, para trás e para frente... Finalmente, o vento levantando as barras das saias das mães de família e os maridos de sangue azul, camisa listrada e suspensórios vermelhos olhando para o céu estrelado e discutindo política internacional como se fosse economia doméstica. A banda já voltava para o próximo set e agora eu tinha mais um


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.