“DA RUA, CORRENTEZAS”
Guto Oca14 de maio de 2024 (visitação até 13 de julho)
“Da rua, correntezas”
JOANA D’ARCLIMA
O imaginário muda pela disputa de mundos, pela fecundação da imaginação. Neste imaginário não se trata de sonhar o mundo, mas sim de penetrá-lo. Isso significa que uma intenção poética pode me permitir conceber que na minha relação com o outro, com os outros, com todos os outros, a TotalidadeMundo, eu me transformo trocando-me com o outro permanecendo eu mesmo, sem renegar-se, sem diluir-me, e é preciso toda uma poética para conceber estes impossíveis. (Édouard Glissant ,1995).
Celebramos nesta exposição do artista Guto Oca intitulada “Da rua, correntezas”, muitas relações que atravessam e adentram a rua, isto é, os espaços públicos que revelam os modos de viver, trabalhar, festejar, deambular da população de maneira geral. Neste sentido, Guto Oca nos dá a ver processos de apropriação que a “pessoa” faz desses espaços com muita criatividade, sutilezas e invenções. Essas apropriações acontecem e se dão de muitas formas, sendo apreendidas pelos/as transeuntes, viventes, moradores/as no cotidiano, ora desfiando regras impostas, transgredindo-as, por meio de astúcias e saberes, ora aproveitando as oportunidades e os acasos, produzindo assim, o que Michel de Certeau nomeou por a invenção do cotidiano. Guto Oca inventa e reinventa seus caminhos e trilhas pela cidade de João Pessoa/PB e alhures, por onde seu corpo de homem negro se insere e cria fundações e alicerces. Produz deslocamentos e questionamentos nesses espaços, que em larga medida são, esses espaços, ocupados por corpos de pessoas brancas. Além de se voltar para sua própria história de vida, reconhecendo as controvérsias de sua negritude, por integrar uma família - cujo pai, Antonio Alves dos Santos, pernambucano e pessoa negra, e, sua mãe de cor branca, alagoana, Maria Lionalva de Holanda -, moradora da Mooca, bairro reconhecido na narrativa histórica, como espaço de ocupação de famílias imigrantes da Itália entre outras de origem europeia, na cidade de São Paulo, cujo reconhecimento racial representava uma tomada de decisão de sobrevivência social.
Em narrativa de memória, o artista realça a convivência íntima e afetiva com a figura emblemática da sua madrinha, negra retinta, considerando que essa experiência de sociabilidade permitiu a ele, desde muito pequeno, se ver como pessoa negra. Depois a escola, a convivência na rua, entre outros espaços de sociabilidade, sublinhou sua condição racial. Não à toa que nessa exposição está presente um trabalho intitulado Madrinha, onde o artista representa, simbolicamente, a madrinha preta e o menino “café com leite ou chocolate” - como era chamado pelos colegas da escola -, cujas imagens carregam os laços afetivos dessa experiência e parte das complexidades sobre a questão racial no Brasil até os dias atuais.
Nesse sentido o artista toma sua história e as memórias de seu núcleo familiar como objeto de pesquisa artística e de reconhecimento racial. Por um lado, afirmar-se como homem e artista negro numa sociedade racista se tornou um imperativo político, por outro, o desejo em acessar saberes, conhecimentos, modos de vida, filosofias e o sagrado de matriz africana foi
urgente, ampliando o chão por onde o artista pisa e suas relações com a sua ancestralidade. O artista se coloca como um andarilho, um errante entre fronteiras reais e simbólicas para constituir um inventário de imagens, cores e poéticas.
O caminhar, segundo o artista Moisés Patrício, também é uma prática estética, neste sentido, para Guto Oca esse gesto torna-se uma metodologia de criação, como um ritual e ato performático, com base em caminhadas, deslocamentos, incorporações e em suas vivências. Com efeito no âmbito do conjunto de obras de Guto Oca a dimensão da performance se faz recorrente. Seus trabalhos performáticos se valem desta metodologia do caminhar dentro de uma dimensão estética e política, que parte de um caminhanteartista que deseja compartilhar percepções que confrontam e reflitam sobre tempos simultâneos, memórias e ancestralidades, rituais que evocam entidades protetoras da vida e de todos/as seres da natureza, ou seja, da natureza.
Por meio da pintura o artista desenvolve parte de sua narrativa poética. Mesmo sendo ele daltônico, a investigação com a policromia e o jogo cromático, que desenvolve, revelouse como um desafio ao longo de seu trabalho, sem se valer de regras e teorias cromáticas, a intuição o move. Além disso, outro aspecto interessante de sua criação é a produção de pigmentos feitos à base de terra, cola e cachaça, para não somente chegar a resultados pictóricos densos e atingir níveis complexos de texturas e densas camadas, mas, há um só tempo, introduzir um discurso crítico a cerca da monocultura açucareira, dos modos de vida dos/ as trabalhadores/as rurais, da presença do latifúndio em nossa paisagem, entre outras questões e temas que derivam desse amálgama que produz para pintar. Cada visitante, com base em suas experiências, repertórios, histórias e sensibilidades pode ampliar esse leque de questões que a obra de Guto Oca sugere, afinal “(...) a arte não é mero entretenimento ou decoração, [que] ela tem significado e [que] tanto queremos como precisamos conceber esse significado – e não temer, ignorar ou construir respostas superficiais, ditadas por autoridades”. (Morrison, 2009, p. 79/80).
Os suportes que adota para acolher a pintura são variados: da tela, ao eucatex, para restos, fragmentos de madeira colhidos em suas andanças pelas ruas. O olho vaga livre recuperando, das ruas, artefatos abandonados. Para ele, são preciosos, carregam muitas camadas e tornam-se um campo expandido de possibilidades para sua poiese. Além desta materialidade, carregada de significados, Guto Oca também adota para seus trabalhos pictóricos fragmentos de móveis que ele encontra em suas deambulações. Esses são
tratados pelo artista em seu ateliê/casa. Depois, ao modo da assemblagem, junta, justapõe, sobrepõe, partes dessas manufaturas umas com as outras, criando objetos pictóricos ou pinturas objetos, ou ainda, esculturas pictóricas, friccionando esses complexos campos semânticos e suas significações. Insere ainda, quando convém, estruturas pictóricas feitas no tecido, ou ainda, um outro material que o acompanha, e, talvez seja a marca registrada do artista desde 2018/2019: cabelos que recolhe o tempo todo em salões de cabeleireiros/as, utiliza seus próprios cabelos, do seu filho Guilherme, de sua mãe e familiares. Esse tecido orgânico feito por meio de fios de cabelos compõem estruturas visuais de extrema força simbólica e cultural.
Parte dessas composições feitas por dreadlocks – o que já nos impõe um debate sobre os significados sociais e políticos da representação do cabelo crespo e do uso do dreadlocks numa sociedade como a nossa - formam estruturas ambientais que se engendram aos espaços formais arquitetônicos, tiras de chinelo (estilo havaianas), entre outros elementos. Nada é aleatório e sem significado no conjunto de trabalhos desse artista. Guto Oca é um artista multidisciplinar e multiartista.
Nessa primeira individual do artista em Pernambuco, que a Arte Plural Galeria organiza na cidade do Recife/PE, Guto Oca apresenta um conjunto significativo de aproximadamente 42 trabalhos. A maioria deles foram feitos para exibição nessa exposição, que começou a ser curada em maio de 2023. O artista investiu na criação de trabalhos exclusivos para a mostra Da rua, correntezas, como a construção de dois objetos escultóricos elaborados por meio da bricolagem de móveis restos de madeira (fragmentos ou não) encontrados por ele na rua – espaço privilegiado do acontecimento para o artista, como ele próprio se refere: “na rua, há sempre a possibilidade da surpresa e do inesperado”. Como já mencionado, a rua faz parte de suas vivências e experiências por onde viveu. Em São Paulo, a rua lhe trouxe a visualidade do grafite, da pichação, do rap e das andanças no centro da cidade, quando trabalhou de office boy. Depois a rua foi se tornando espaços das caminhadas, das descobertas das favelas, das gentes e do que é descartado como obsoleto e lixo. Guto lança mão da apropriação do que está na rua – inclusive dos modos de vida e espaços sociais – e incorpora, a rigor, a própria rua, os trânsitos, os transes e as correntezas e seus fluxos aos seus trabalhos, criando poesias visuais. Correnteza – movimento que flui, que leva, que move, que limpa, que devasta, por vezes. Há duas esculturas inéditas presentes na exposição que traduz bem o processo criativo do artista e sua poética. Olodé de rua – escultura que assume o desvio para o vermelho –incorporando ao trabalho a dimensão simbólica da representação de uma entidade guardião da rua, um guerreiro guardião. A outra escultura, o artista introduz, junta e conecta os objetos achados em madeira, incorpora a ela a pintura de quatro cabeças/máscaras e sobre essa estrutura insere um alguidar em cerâmica - objeto indispensável nos rituais das religiões afro-brasileiras, chamado também de oberó (obero) ou de igba-ebo -, intitulando essa obra de Quatro Cabeças. O modus operandi é a rigor o de transformar, o que encontra pronto (mesmo que fragmentados), em outro
elemento/objeto, potente de identidade visual, cultural, conceitual e simbólica. O ato transformador de incorporação – tirar do lugar de naturalização e dotar de outro sentido – da própria rua e o que dela o artista se apropria, no horizonte maior de abrangência, é o fio condutor que move essa exposição.
Da rua, correntezas, além das esculturas, diversas pinturas compõem essa cartografia do que a rua dá. Esses trabalhos carregam referências simbólicas religiosas de matriz africana, modos de vida, lugares e espaços das cidades, e ainda, fragmentos que povoam a memória do artista. Bares, botequins com suas especificidades visuais, etílicas e culturais estão presentes. Mercados, armazéns e varadouros são emblemáticas referências representadas nas pinturas. Praias (Praia da Penha/PB), feiras, bairros e quilombos (Conceição das Crioulas) se fazem presentificar por meio de referências, símbolos e signos que por vezes aparecem sutilmente, ou não. Há outros que carregam imagens que remetem ao tema da tradição dos mais velhos: Velho e Velha, que carregam suas raízes aparentes em um corpo frágil. Também nos trabalhos Embarque, Plataforma, Correnteza, Usina, Trampo, Dengo, Doce, Xodó, Consagrado... entre outros que estão nessa exposição podem, juntos, compor um inventário histórico cultural desta dimensão dos fluxos diaspóricos no Brasil, ou ainda, apontar para fragmentos de existências e modos de vida coletiva e os afetos. Para enfatizar ainda mais esse gesto poético/político da incorporação/apropriação, é imperativo citar a série, aqui presente, intitulada O que sustenta o Precioso. Trata-se de três trabalhos que traz ao debate a questão do que é precioso e preciso em nossas vidas. O que valorizamos? Quais nossos diamantes? O artista parte para esse trabalho com base numa experiência, como professor em uma escola pública no município de Bayeux, colado a João Pessoa/ PB. Se apropria da visualidade do diamante, imagem desenhada pelos estudantes à época, como símbolo de riqueza e poder. Guto Oca incorpora esse símbolo, nesta série pictórica, inserindo-o sobre a imagem de suas máscaras. Assim, não busca desenhar a pedra seguindo a rigor suas características formais, ao contrário, sua mão corre solta, de certa maneira, como a mão de um iniciante no desenho, a exemplo dos estudantes, e, reapresenta o símbolo com suas deformações, problematizando os sentidos de perfeição, beleza, poder e valores naturalizados. Ao mesmo tempo na série Orí que sustenta o raro, o artista novamente recoloca a imagem do diamante sobre o Orí, que significa cabeça, lugar que abriga as entidades sagradas cultuadas pelo povo de santo.
Da rua, correntezas nos possibilita adentrar em muitos mares com seus fluxos e correntezas que ora se revelam calmos e ora turbulentos. Adentramos também em filosofias, saberes e no sagrado presentes por decorrência dos fluxos e refluxos África/ Brasil e dos movimentos de corpos que atravessam fronteiras e territórios. Guto Oca insiste na construção de uma máscara que povoa seus trabalhos, como uma entidade que ao menor sinal de desarmonia, ela é convocada para equilibrar a ordem das coisas, anunciando sua ligação com os encantados, como acontece no filme La noir de... do cineasta e escritor senegalês Ousmane Sembène. Adentremos esses universos de encantamentos e beleza que a obra de Guto Oca nos convida, para assim encantar nossas vidas.
Zé / 2024
PVA sobre madeira
40 x 36 cm
Armazem – 2024
PVA sobre tecido e madeira
63 x 58 cm
Estrelado / 2024
PVA sobre madeira e tela
1,28 x 92 x 73 cm
61
Usina / 2024
PVA e verniz sobre madeira
49 x 40 cm
57
Varadouro / 2024
82 x 49 cm
Curandeiro / 2024
81 x 56 cm
Artista GUTO OCA
Curadoria
JOANA D’ARC
Fotografia e tratamento de imagem GUSTAVO BETTINI
Projeto Gráfico e Diagramação
MARCOS MILET
Rua da Moeda, 140, Bairro do Recife
Recife, PE, Cep 50030 - 040, Tel 81 3424 4431
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