Aforismos, de Karl Kraus

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KARL KRAUS

AFORISMOS Seleção, tradução, glossário e apresentação Renato Zwick

Porto Alegre – 2010


Título alemão: Aphorismen: Sprüche und Widersprüche; Pro domo et mundo; Nachts. Tradução baseada na edição digital das obras de Karl Kraus organizada por Christian Wagenknecht (Schriften, Digitale Bibliothek Band 156, Berlim, Directmedia, 2007). Capa

Humberto Nunes Índice onomástico

Rodrigo Breunig Revisão

Eduardo Wolf Pedro Gonzaga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) K91a

Kraus, Karl, 1874-1936 Aforismos / Karl Kraus; trad. e org. Renato Zwick. — Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2010. 208p.; 14 x 21 cm. Inclui notas, glossário e índice. ISBN 978-85-60171-14-9 1. Literatura austríaca — aforismos. 2. Literatura austríaca — pensamentos. I. Zwick, Renato, org. II. Título.

CDU 821.112.2(436)-84

(Bibliotecária responsável: Paula Pêgas de Lima — CRB 10/1229)

Todos os direitos desta edição reservados a ARQUIPÉLAGO EDITORIAL LTDA. Avenida Getúlio Vargas, 901/506 CEP 90150-003 Porto Alegre — RS Telefone 51 3012-6975 www.arquipelagoeditorial.com.br


Sumário

Apresentação ............................................................................. 7 Ditos e contraditos ................................................................ 17 1. A mulher, a imaginação ............................................... 2. A moral, o cristianismo ................................................ 3. O homem e o seu próximo .......................................... 4. Imprensa, estupidez, política ....................................... 5. O artista .......................................................................... 6. Escrever e ler .................................................................. 7. Países e pessoas ............................................................. 8. Humores, sentenças ...................................................... 9. Ditos e contraditos ........................................................

19 31 41 51 63 69 81 85 91

Pro domo et mundo ............................................................ 101 1. Da mulher, da moral ................................................... 2. Da sociedade ................................................................ 3. Dos jornalistas, estetas, políticos, psicólogos, imbecis e eruditos ....................................................... 4. Do artista ...................................................................... 5. De duas cidades ........................................................... 6. Acasos, lampejos ......................................................... 7. Pro domo et mundo ....................................................

103 109 117 129 139 143 147


De noite ................................................................................. 155 1. Eros ............................................................................... 2. A arte ............................................................................ 3. A época ......................................................................... 4. Viena ............................................................................. 5. 1915 ............................................................................... 6. De noite ........................................................................

157 163 169 175 177 187

Glossário ............................................................................... 193 Índice onomástico ............................................................... 201


Apresentação

Para fazer uma excelente sátira, basta dizer a maior parte das coisas como elas são. Karl Kraus, Hüben und Drüben (Do lado de cá e do lado de lá)

Karl Kraus não foi apenas o maior autor satírico de língua alemã do século XX, mas chegou a ser considerado um dos maiores satiristas de todos os tempos, digno de figurar — no entender de outro grande escritor, Elias Canetti — ao lado dos nomes de Aristófanes, Juvenal, Quevedo, Swift e Gogol. Sua obra é vasta e multifacetada: milhares de páginas de ensaios, aforismos, poemas, peças teatrais e adaptações, cujas primeiras versões foram em boa medida publicadas no jornal Die Fackel (A tocha), que o escritor fundou em 1899 e passou a redigir sozinho a partir de 1911 até poucos meses antes de sua morte, em 1936. Kraus nasceu na cidade de Jičin, na Boêmia, em 1874; três anos depois, a família, cujo pai fizera fortuna no ramo da fabricação de papel, mudou-se para Viena, onde Kraus passaria toda a sua vida. De início, estudou direito e, a partir de 1894, contrariando a vontade paterna, filosofia. Entre 1892 e 1899 escreveu artigos para vários jornais, apartandose bruscamente do meio literário e jornalístico de que fazia parte para fundar seu próprio jornal. Sobre esse momento, Kraus diria anos depois num aforismo: “Logo se completarão

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Karl Kraus retratado por Trude Fleischmann, em 1928. [acervo do wien museum]

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dez anos que não recobro mais a consciência. A última vez que a recobrei, fundei um jornal polêmico”. A primeira obra de Kraus publicada em forma de livro foi a coletânea de ensaios Sittlichkeit und Kriminalität (Moralidade e criminalidade), de 1908, em que denunciava sobretudo os abusos cometidos pelo Estado nos processos envolvendo os chamados crimes sexuais, como adultério, pederastia e proxenetismo. Num dos ensaios do livro, Eros und Themis (Eros e Têmis), o autor afirma, por exemplo, que em tais processos se liam cartas de amor em audiência secreta — tão secreta que os cães de caça da opinião pública conseguiam abocanhar os nacos mais picantes... Essa denúncia receberia expressão aforística numa obra posterior: “O escândalo começa quando a polícia lhe dá um fim”. O autor não considerava essa coletânea de ensaios uma mera reprodução de textos já publicados em Die Fackel, mas uma obra completamente nova, pois, segundo ele, os ensaios em que estava baseada foram inteiramente reelaborados quase linha por linha, procurando conservar aquilo que, na condição de valor duradouro, pôde ser salvo das garras dos interesses do dia. Nesse processo de “eternizar o dia”, o polemista se contrapunha de maneira evidente ao jornalismo de sua época, que, no seu entender, “jornalizava a eternidade”. Esse processo é ainda mais evidente em sua obra seguinte, Sprüche und Widersprüche (Ditos e contraditos, de 1909; literalmente: Ditos e contradições), a primeira das três coletâneas de aforismos que publicou. Se nos ensaios ainda havia referências claras a fatos e pessoas, nos aforismos a mordacidade de Kraus se volta em especial contra estados de coisas — a vida em sociedade, a situação da cultura, a petrificação da língua sob a forma de chavões — e contra 9


tipos: o jornalista, o político, o esteta, o folhetinista, o caixeiro, o filisteu e outros mais; raros são os nomes e raros são os fatos do dia. É essa condensação extrema que confere ao aforismo as arestas cortantes que inevitavelmente ferem o leitor. Exprimindo o que à primeira vista muitas vezes parece ser uma generalização abusiva, o aforismo requer reflexão; ele desestabiliza as certezas cotidianas cristalizadas em frases feitas e, à luz de seu brilho repentino, apresenta aspectos da realidade até então ignorados. Talvez também valha aqui uma ideia de outro mestre do gênero, Nietzsche, que afirmou no prefácio de Zur Genealogie der Moral (A genealogia da moral): “Um aforismo, devidamente cunhado e moldado, ainda não foi ‘decifrado’ pelo fato de ser lido; ao contrário, é só então que deve começar a sua interpretação, para a qual uma arte da interpretação se faz necessária”. Parece ser precisamente isso que Kraus expressa numa sentença de sua segunda coletânea aforística, Pro domo et mundo (“Em defesa dos meus interesses e dos interesses do mundo”), de 1912: “O aforismo requer o fôlego mais longo”. E não só o fôlego do autor para redigi-lo, mas também o do leitor para lê-lo — e interpretá-lo... Daí também a exigência, ainda da primeira coletânea: “Meus trabalhos devem ser lidos duas vezes para serem bem compreendidos. Mas tampouco me oponho a que sejam lidos três vezes. Prefiro, porém, que não sejam lidos do que o sejam apenas uma vez. Não pretendo me responsabilizar pelas congestões de um imbecil que não tem tempo.” No intervalo entre essas duas coletâneas de aforismos, em 1910, Kraus inaugurou uma terceira frente de batalha na luta contra o seu tempo: além de redigir um jornal e publicar 10


livros, começou a fazer leituras públicas de seus textos. No segundo volume de sua autobiografia, Die Fackel im Ohr (A tocha no ouvido, publicado no Brasil como Uma luz em meu ouvido), Elias Canetti nos dá um vivo retrato dessas conferências. Em 1924, quando pela primeira vez assistiu a uma delas, o satirista já tinha um público cativo que o idolatrava com veneração incondicional; mais do que tudo, chamou inicialmente a atenção de Canetti o comportamento de massa desse público, sua reação uniforme aos ditos e vereditos que emanavam de uma instância que parecia “pressupor uma lei intocável, estabelecida e absolutamente segura”, para citar as palavras de outro texto de Canetti (o ensaio Karl Kraus, escola da resistência, incluído na coletânea A consciência das palavras). Aliás, esse aspecto jurídico, por assim dizer, também foi observado com precisão por Walter Benjamin em seus Ästhetische Fragmente (Fragmentos estéticos): “Nada se compreende desse homem enquanto não se reconhece que tudo, necessária e absolutamente tudo — a língua e as coisas — se passa para ele na esfera do direito”. Ou ainda: “Em torno dele, os processos se acumulam. Não aqueles que ele precisa conduzir nos tribunais de Viena, mas sim aqueles cujo tribunal é Die Fackel.” No entanto, a despeito da agressividade, da violência verbal e da verdadeira fúria assassina com que perseguia seus adversários (sobretudo jornalistas, políticos e figuras prestigiadas do meio cultural vienense), Kraus era pacifista. O que hoje pode parecer natural, nada tinha de óbvio nos tempos que precederam a Primeira Guerra. Em meio ao entusiasmo belicista generalizado, Kraus foi a voz dissonante que alertou para o perigo de confundir patriotismo com interesses comerciais. Na sua terceira coletânea de aforismos, 11


Capa da primeira edição do jornal Die Fackel, de 1899. [acervo do wien museum]

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Nachts (De noite), concluída em 1916, mas só publicada em 1919, ele afirma: “Há lugares em que pelo menos se deixam os ideais em paz quando a exportação corre perigo, onde se fala tão honestamente dos negócios que eles não seriam chamados de pátria e em que por precaução se renuncia a ter uma palavra para ela. Nós, idealistas da exportação, chamamos tal povo de ‘nação de negócios’.” O repúdio de Kraus à guerra, contudo, alcançou sua expressão mais veemente na gigantesca peça Die letzten Tage der Menschheit (Os últimos dias da humanidade). Renunciando às formas convencionais — não há herói, não há trama e, dada a sua extensão, a peça não é encenável —, seu conteúdo, nas palavras do prólogo do autor, é “irreal, inimaginável, impensável, inacessível a qualquer dos sentidos despertos, a qualquer lembrança, um conteúdo apenas conservado num sonho sangrento, uma vez que figuras de opereta representavam a tragédia da humanidade”. E ainda: “Os fatos mais improváveis de que aqui se dá notícia realmente aconteceram; eu retratei o que outros apenas fizeram. Os diálogos mais improváveis aqui travados foram pronunciados literalmente; as invenções mais chocantes são citações.” Citações, sobretudo, da imprensa da época, que Kraus julgava não ser apenas uma instigadora da guerra, mas a responsável por ela. Mesmo os últimos dias da humanidade, porém, não foram os últimos; menos de uma década e meia após o fim da guerra, Hitler chegaria ao poder. A exemplo do que ocorrera depois de declarada a Primeira Guerra Mundial, Die Fackel deixou de circular durante vários meses depois que Hitler foi nomeado chanceler, em janeiro de 1933. A razão: Kraus gestava outra obra, o monumental ensaio Dritte Walpurgisnacht 13


(Terceira noite de Valpúrgis), no qual, invocando o auxílio do Fausto de Goethe — o título é uma alusão a duas cenas da tragédia —, tentou apreender o fato incomensurável da chegada dos nazistas ao poder. A famosa frase de abertura do ensaio é característica da perplexidade do satirista: “Nada me ocorre acerca de Hitler”. Tal perplexidade, no entanto, é apenas retórica, pois Kraus tinha noção clara do que estava acontecendo e das conclusões a tirar desses fatos: já em fevereiro de 1933, foram abertos os primeiros campos de concentração; notícias de maus-tratos infligidos a prisioneiros eram divulgadas abertamente; políticos se gabavam sem constrangimento dos milhares de detentos em prisão preventiva nos seus estados; intelectuais como Gottfried Benn e Martin Heidegger manifestavam publicamente suas adesões ao regime; Hitler e seus asseclas não faziam segredo algum dos planos expansionistas de criar uma Grande Alemanha. Embora só tenha sido publicado na íntegra postumamente, em 1952, trechos desse ensaio chegaram a ser publicados em Die Fackel. Mais uma vez, Kraus foi uma voz dissonante; mais uma vez, tinha razão ao alertar para o pior. Aliás, num aforismo escrito com clareza profética ainda durante a Primeira Guerra Mundial, ele já afirmara: “Não, a alma não fica com cicatrizes. A bala entrará por um ouvido da humanidade e sairá pelo outro.” Algumas palavras ainda sobre a tradução. Os critérios para a seleção dos aforismos ora traduzidos foram basicamente dois: percuciência e traduzibilidade. Embora isso signifique dizer que quase sempre privilegiamos os aforismos mais breves — os mais afiados — e aqueles que não exigissem longas notas de rodapé explicando tudo o que fosse 14


perdido na tradução, ainda assim a presente coletânea traz um bom número de aforismos longos, quase ensaios, e outro bom tanto de aforismos em que só por muito pouco não se perderam as ideias do original (ou aquilo que entendemos que sejam essas ideias...). Dessa forma — e desafiando o implacável juízo do nosso autor sobre a tradução: “Uma obra da língua traduzida em outra língua: alguém que atravessa a fronteira sem sua pele e do outro lado veste o traje típico do país” —, buscamos apresentar um panorama o mais representativo possível da criação aforística de Kraus.

Renato Zwick

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DITOS E CONTRADITOS Dedicado a Helene Kann Tormentos da vida — volúpias do pensamento



1 A mulher, a imaginação

A sensualidade da mulher é a fonte primordial em que a espiritualidade do homem busca renovação. A volúpia estéril do homem se nutre do espírito estéril da mulher. Porém, o espírito masculino se nutre da volúpia feminina. Esta cria as obras dele. Por meio de tudo aquilo que não foi dado à mulher, ela age de maneira a que o homem aproveite seus próprios dons. Os livros e os quadros são criados pela mulher — mas não por aquela que escreve ou pinta. Uma obra vem ao mundo: foi a mulher que gerou aquilo que o homem deu à luz. Eis a verdadeira relação entre os sexos, quando o homem confessa: “Meus pensamentos são sempre sobre você, e por isso são sempre novos!”. A personalidade da mulher é a ausência de substância enobrecida pela inconsciência. O homem tem cinco sentidos; a mulher, apenas um. Alegrias de homem — agonias de mulher. 19


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Primeiro foi criado o homem. Mas a mulher é um hísteron-próteron. Nada é mais insondável do que a superficialidade da mulher. Logo apreendemos o conteúdo de uma mulher. Mas até chegarmos à superfície! No caso do homem, o espelho serve apenas à vaidade; a mulher precisa dele para se assegurar de sua personalidade. Na alegria e na tristeza, por fora e por dentro, em qualquer situação, a mulher precisa do espelho. O erotismo do homem é a sexualidade da mulher. A superioridade masculina na aventura amorosa é uma vantagem mesquinha, por meio da qual nada se ganha e apenas se violenta a natureza feminina. Deveríamos permitir que cada mulher nos introduzisse nos mistérios da vida sexual. O “sedutor” que se gaba de iniciar as mulheres nos mistérios do amor: o estrangeiro que chega à estação ferroviária e se dispõe a mostrar as belezas da cidade ao guia turístico. Eles tratam uma mulher como se fosse um refresco. No entanto, não admitem o fato de as mulheres sentirem sede.

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Quanto mais forte a personalidade da mulher, tanto mais facilmente ela carrega o fardo de suas experiências. O orgulho sucede a queda. A capacidade genial da mulher para esquecer é algo diferente do talento da senhora de não ser capaz de se lembrar. As qualidades intelectuais e morais da mulher também podem estimular a sexualidade fútil do homem. Pode ser comprometedor se mostrar na rua em companhia de uma mulher honrada, mas praticamente beira o exibicionismo conversar com uma garota sobre literatura. Se uma mulher deixa um homem esperando e o homem se contenta com outra, ele é um animal. Se um homem deixa uma mulher esperando e a mulher não se contenta com outro, ela é uma histérica. Phallus ex machina — o Salvador. A vantagem da mulher de sempre poder atender aos desejos foi estorvada pela natureza com a desvantagem do homem. Pela desvantagem de não poder sempre atender aos desejos, o homem foi compensado com a sensibilidade para perceber cada imperfeição da natureza como uma culpa pessoal. Hamlet não compreende sua mãe: “Olhos sem tato, tato sem visão, ouvidos sem mãos ou sem olhos, o mero olfato ou a parte mais enfermiça de um sentido verdadeiro não andaria assim às apalpadelas. Oh vergonha! Onde está o teu

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rubor?”. Isso é algo que o homem não pode compreender; ele sente a ideia de que uma mulher copule com o rei Cláudio como uma impertinência contra ele próprio. Ele mesmo se sente colocado no “suor fétido de um leito asqueroso”, e sua consciência elevada se indigna. Mas é a partir dela que Shakespeare fala. E, por isso, Hamlet apenas se escandaliza com a idade da matrona, idade em que normalmente costuma “estar domado o auge do sangue”, este “espera pela razão” e um gosto discernente se impõe. Ele reconhece que a juventude da mulher não pode escolher entre um apolo e um miserável monarca remendado, que sexo e gosto quase sempre seguem caminhos diferentes, e “proclama que não é vergonha quando as paixões se lançam ao ataque”. Não fosse seu filho, e ele concederia mesmo à mulher de mais idade que “o demônio que a vendou de tal maneira no jogo da cabra-cega” é o mesmo sentido sexual que entorpece todos os outros sentidos da mulher — mais ainda do que no homem mais inclinado ao sexo — e age de maneira anestesiante sobre toda compreensão. Os Oberões jamais compreenderão o fato de Titânia também poder acariciar um asno, pois, graças a uma sexualidade inferior, nunca seriam capazes de acariciar uma asna. Por isso, eles próprios se tornam asnos no amor. Perífrase: “Ele preenche meu ouvido inteiramente com sua voz!”, disse ela do cantor. Uma bela garotinha ouve um ruído rascante junto à parede de um quarto. Ela receia que sejam ratos, e só se acal-

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ma quando lhe dizem que ao lado há um estábulo e que um cavalo está agitado. “É um garanhão?”, ela pergunta, e adormece. A mesma garotinha pôde certa vez dizer de alguém que a seguira: “Ele tinha uma boca que beijava por si mesma”. Quão pouca confiança merece uma mulher que se deixa apanhar numa fidelidade! Hoje ela é fiel a ti, amanhã a outro. Ela disse a si mesma: “Dormir com ele, tudo bem — mas nada de intimidades!”. O sexo da mulher toma parte em todos os assuntos da vida. Às vezes, até no amor. O fato de mesmo os ciumentos permitirem que suas mulheres se movam livremente nos bailes de máscaras mostra o quanto o sexual é secundário e ausente para o homem. Eles esqueceram o quanto puderam se permitir outrora nesses bailes com as mulheres dos outros, e acreditam que desde que casaram a licença geral foi suspensa. Eles sacrificam o ciúme por meio da presença. Não veem que esta é uma espora e não um freio. Nenhuma mulher ciumenta deixaria seu marido ir a um baile de máscaras. Uma mulher cuja sensualidade nunca cessa e um homem ao qual ocorrem ideias sem parar: dois ideais de humanitarismo que parecem mórbidos à humanidade.

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A mulher mediana está suficientemente equipada para a luta pela vida. Com a faculdade de não precisar sentir, a natureza a compensou em abundância pela incapacidade de pensar. A mulher bonita recebeu tanto entendimento que se pode falar tudo a ela e nada com ela. Uma relação amorosa que não ficou sem consequências. O homem deu uma obra ao mundo. Decidiu-se em favor das mães e contra as heteras que nada produzem, no máximo gênios. Respeitemos o campo e amemos a paisagem. Esta é mais nutritiva. Que volúpia se deitar com uma mulher no leito de Procusto de sua visão de mundo! Estou sempre sob a forte impressão daquilo que penso de uma mulher. Se puder interpretar uma mulher como eu bem entender, isso é mérito dela. Faltava-lhe apenas um defeito para ser perfeita. Os defeitos são os obstáculos em que Eros prova sua valentia. Apenas as mulheres e os estetas fazem uma cara de desaprovação.

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Há mulheres que não são bonitas, apenas parecem sê-lo. Grandes traços: grande atração. A cosmética é a cosmologia da mulher. Se as mulheres que se maquiam são inferiores, então os homens que têm imaginação não valem nada. Certamente não é só o exterior de uma mulher que interessa. A lingerie também é importante. As mulheres pelo menos possuem cosméticos. Mas com o que os homens encobrem seu vazio? Quem exige que Xantipa seja mais desejável do que Alcibía– des é um porco que sempre pensa apenas na diferença sexual. Em estilística, falamos de metáfora quando algo “não é usado no sentido próprio”. Assim, as metáforas são as perversões da linguagem, e as perversões, as metáforas do amor. O voyeur passa na prova de força da sensibilidade natural: a vontade de ver a mulher com o homem supera inclusive a repugnância de ver o homem com a mulher. A satisfação erótica é uma corrida de obstáculos. É considerado normal santificar a virgindade em geral e ansiar pela sua destruição em particular.

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O “masoquismo” é a incapacidade de ter prazer de outra forma a não ser na dor ou a capacidade de tirar prazer dela? Não há criatura mais infeliz sob o sol do que um fetichista que anseia por um sapato feminino e precisa se contentar com uma mulher inteira. As bailarinas têm a sexualidade nas pernas; os tenores, na laringe. É por isso que as mulheres se decepcionam com os tenores e os homens com as bailarinas. Eis precisamente a diferença entre os sexos: os homens nem sempre se deixam enganar por uma boca pequena, mas as mulheres sempre são ludibriadas por um nariz grande. Eles passam o tempo com cálculos mentais: ele extrai a raiz da sensualidade dela, e ela o eleva à potência. Façamos a distinção entre mulheres culposas e dolosas. Mulheres caridosas apresentam uma forma específica e muito perigosa de sexualidade modificada: a samaritíase. Gosto de monologar com mulheres. Mas o diálogo comigo mesmo é mais interessante. Visto que é proibido por lei ter feras selvagens, e os animais domésticos não me dão prazer algum, prefiro continuar solteiro.

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Às vezes, uma mulher é um substituto bastante útil para a masturbação. No entanto, é preciso um excesso de fantasia. Com frequência as mulheres são um obstáculo para a satisfação sexual, mas, como tal, eroticamente utilizáveis. À noite todas as vacas são pretas, mesmo as loiras. Mas se abster da mulher não é lá um prazer assim tão especial, isso eu preciso reconhecer! Quando um conhecedor das mulheres se apaixona, ele se assemelha ao médico que se infecta junto ao leito de um doente. Risco profissional. Uma mulher sem espelho e um homem sem autoconfiança — como poderão sobreviver neste mundo? Toda mulher parece maior à distância do que de perto. Nas mulheres, portanto, não apenas a lógica e a ética se encontram de pernas para o ar, mas também a óptica. As mulheres decentes consideram o maior dos atrevimentos que as apalpemos debaixo de suas consciências. Em relação às mulheres, a ordem social nos deixa apenas a alternativa de sermos mendigos ou ladrões. A única coisa que importa no amor é não parecermos mais bobos do que nos fazem.

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Só ama verdadeiramente uma mulher aquele que também estabelece uma relação com seus amantes. No início, isso sempre causa a maior das preocupações. Mas a gente se acostuma a tudo, e chega o tempo em que ficamos ciumentos e não suportamos que um amante seja infiel. Não é preciso que sejam sempre as qualidades do caráter ou do espírito masculino que levem as mulheres a serem infiéis. O que é enganado é sobretudo o ridículo da posição oficial que o proprietário ocupa. E contra isso, nem mesmo qualidades físicas oferecem sempre proteção. Basta olhar uma mulher para ser tomado por um profundo desprezo pelos seus amantes. Jamais, porém, eu gostaria de responsabilizá-la por eles. Se dar presentes a uma mulher não dá prazer, deixemos isso de lado. Em comparação com algumas mulheres, o tonel de uma danaide é um autêntico cofre de economias. Não consigo me livrar assim tão rápido da impressão que causei numa mulher. Ele era tão ciumento que tomou as dores do homem que ludibriava e quis esganar a mulher. Temos de pagar pelos defeitos que o Criador deixou nas mulheres? Por serem lembradas todo mês de sua imperfeição, nós precisamos nos esvair em sangue?!

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A mulher não sente as dores que o homem lhe causa. O homem, inclusive essas. Não é verdade que não se pode viver sem uma mulher. Apenas não se pode ter vivido sem uma.

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