Jornal APUSM edição Julho de 2014

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Periódico mensal da Associação dos Professores Universitários de Santa Maria

Julho 2014

Crônicas

A felicidade de ser inútil

Como sair da casinha numa boa

Máximo José Trevisan

Celina Fleig Mayer

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á alguns anos li a obra, entre tantas, da autora Louise Hey, “Você pode curar sua vida”. Auto-ajuda? Mas o que importa é que a autora me abriu os olhos para muitas verdades e me confirmou outras tantas em que já acreditava, sem colocá-las em prática. Entre vários ensinamentos, ela aconselha que não se insista tanto com as crianças no colégio com datas históricas, e seja enfatizado como devem funcionar as “relações humanas”, em todos os níveis, porque é isso que está faltando demais, hoje. Mas havia um capítulo, e até nem sei se estava escrito lá ou eu intuí e adaptei, que me provocou um clic, de repente. Vai ver, fiz uma “leitura” do que li. E descobri com a autora (talvez esteja inventando, até) que casamento é uma espécie de “armadilha”, pois duas pessoas que são loucas uma pela outra, ao perderem a motivação, passam a se ver como gente comum, porque vivem lado a lado. Às vezes grudados e sufocados. Por isso, os defeitos crescem bastante, e as qualidades mínguam. O homem é bagunceiro? Sempre foi, não tem conserto. Daí a ideia de “sair da casinha”, sair de perto, mesmo estando junto, dar-se um distanciamento e ver o outro revestido com toda aquela roupagem que fez, no passado, com que ficássemos apaixonadas. E sentíssemos saudades por qualquer ausência que se impusesse. Afinal de contas, quando implicamos muito com os defeitos do outro, estamos afofando o terreno onde eles vingam, e a rela-

ção fica bem mais difícil. Por trás daquilo que não gostamos, ainda existe tudo o que nos encantava no cara. Se a gente apelar para uma separação – sem aqueles motivos seríssimos, que existem quando o sujeito muda totalmente de personalidade e se torna um estranho perigoso e intratável outra vai usufruir da pessoa boa que conhecemos no passado e deixamos ir “morrendo” aos poucos. (Cabe aí a sentença: “dize-me com quem andas...”). Essa vai se encantar e, quem sabe, multiplicar os dons que ele já tem. E nós, sem remédio para a bobagem praticada, vamos voltejar em torno da infelicidade, acusando o destino e o homem que, de tão safado, só soube dar valor pra essa segunda (terceira ou quarta) “chance” de vida a dois. Sair da casinha dessa vivência de já saber tudo do outro, tendo a resposta pronta sempre igual e esperada, tipo um “mantra” mal rezado, pode dar um up na relação. Ninguém precisa aprender sobre isso. Leva tempo para decorar a teoria. Mas na prática, é pra começar já, mudando a aparência fechada que, geralmente, pregamos no rosto, e tratar o tão conhecido como um estranho, a quem, “inconscientemente” queremos seduzir. E, nós sabemos como mudar, para que uma boa e surpreendente impressão faça com que o homem escolhido fique encantado. Os dois, aí sim, vão saber o que é sair da casinha sufocada da mesmice. (Nota: Faço referência ao gênero feminino, mas cabe direitinho para eles, também).

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eli dois textos de grande lucidez e sensibilidade sobre a velhice: Oficialmente velho, de Leonardo Boff, ao completar 70 anos, e Quando o inverno chegar, do inesquecível Rubem Alves sobre palestra que fez em São Paulo à Terceira Idade. Os autores surpreendem e provocam os leitores. Todos sabemos que as estações do ano não perguntam se podem ou devem chegar e quando. Elas respondem à natureza e surgem, inevitavelmente, uma após a outra. Assim acontece com os humanos em relação à infância, à adolescência, à juventude, à maturidade e à velhice! Leonardo Boff lembra que há um lado instigante na velhice, última etapa do crescimento humano: “Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações, ao longo da vida, até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.” Ao refletir sobre o sentido da vida, Boff afirma que precisaríamos de muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos defina. Ressalta que vivemos especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida, reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. Ao final, diz que ainda alimenta dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o pri-

meiro é escrever um livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa: “Eu só queria nascer de novo para me ensinar a viver.” Rubem Alves, por sua vez, foi provocativo com os velhos que foram escutá-lo: “Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a esse glorioso momento da vida em que podem se entregar à felicidade de serem totalmente inúteis...” A resposta dos ouvintes veio em forma de indignação coletiva. Muitos participantes passaram a proclamar o que faziam para confirmar que não eram inúteis!..Rubem Alves ressalta, então, que as respostas atendiam à ideologia da nossa sociedade, que julga as pessoas como julga as lâminas de barbear, as esferográficas, os filtros de café... Uma lâmina de barbear rombuda, uma esferográfica esgotada, um filtro de café usado deixaram de ser úteis e vão para o lixo por serem inúteis. A Nona Sinfonia é absolutamente inútil, mas a vassoura, ao contrário, é muito útil. Um poema é inútil; já o papel higiênico é muito útil. O que vale mais? perguntou o conferencista. Repentinamente, os rostos indignados se abriram em sorrisos. Ocorre-nos indagar: afinal, o que somos? Poemas ou lâminas de barbear? Sinfonias ou vassouras? Por que resistimos tanto à felicidade de sermos inúteis, conquistada na velhice? (Em tempo: Rubem Alves nos deixou, há pouco tempo, ao completar 80 anos).


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