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GRANDE ENTREVISTA

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ARTUR VAZ SEM RODEIOS:

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“O Diário da República é a forma de comunicação essencial do Ministério da Saúde”

TEXTO: Marina Caldas FOTOGRAFIA: Daniel Pego

Desde 1996 que Artur Vaz vem todas as segundas-feiras do Porto – de onde é natural – para Lisboa, mais precisamente para o Hospital Beatriz Ângelo onde é administrador executivo da SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Loures. Depois, às sextas-feiras regressa ao Norte para estar com a família.

Este licenciado em Direito tem na Administração Hospitalar a marca de quase 40 anos de trabalho e já cruzou todos os meandros do setor, desde o público ao privado e agora as Parcerias Público- -Privadas (PPP’s).

Nesta entrevista a O Hospital, em algumas fases onde se percebe a emoção (apesar da máscara), acusa o Estado de não dar aos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a autonomia de que precisam para crescer e, ao mesmo tempo, acusa o setor público de não querer aprender com o privado e, por isso, ser necessário implementar, urgentemente, de uma mudança na cultura de gestão do SNS.

Assume que a Covid funcionou como um “abanão” para o SNS que provou que quando é preciso sabe fazer, e bem, mas acrescenta que isso não chega e revela que entre março e outubro de 2020 os hospitais estiveram completamente sozinhos a tentarem sobreviver à crise que a Covid motivou e sem qualquer apoio por parte das entidades responsáveis.

Sobre o fim das PPP’s, percebe-se que fica triste com esta decisão mas diz que uma parceria é como um casamento e neste momento já não há forma de dar a volta à situação. O divórcio é a única opção.

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“O que ficou por fazer por causa da Covid é uma espécie de pandemia silenciosa”.

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Passado mais um período complicado que Portugal viveu, e que ainda está a viver, qual a situação dos hospitais portugueses na generalidade?

Penso que pela força das circunstâncias os hospitais portugueses reencontraram uma dinâmica que não viviam há muitos anos. Uma dinâmica de grandes mudanças internas, quer do espaço e na organização de trabalho, quer mesmo ao nível da participação das pessoas na vida e na gestão dos hospitais. E isto foi importante. Naturalmente que houve muita pressão sobre os profissionais de saúde - e esse não é um aspeto positivo desta situação – mas foi um bom “abanão” que os hospitais levaram e espero que a partir daqui ganhem capacidades que estavam adormecidas. Penso que, na generalidade, os hospitais portugueses estão bem e recomendam-se, mas não devemos esquecer que também entrou mais dinheiro do que habitualmente.

E durante algum tempo não houve doenças não-covid para tratar…

Isso é um problema que os hospitais vão ter de enfrentar agora, ou seja: o que ficou por fazer por causa da Covid. É uma espécie de pandemia silenciosa que, neste momento, está a retomar a sua normalidade o que significa que o acesso dos cidadãos aos hospitais está a atingir valores pré-pandémicos. Há neste processo um saldo que vai ter de ser, ainda, calculado mas que será negativo de qualquer forma: houve muita gente que não recebeu os cuidados de saúde que merecia e de que necessitava - ou porque não se deslocou aos locais de saúde e o problema não foi detetado ou porque os próprios serviços, com a suspensão da sua atividade programada durante meses, acabaram por os perder do seu radar. Agora vão voltar em força, com situações clínicas mais graves e mais avançadas. Isto tem um preço, naturalmente!

O ”abanão” de que fala veio provar o quê, concretamente: que o sistema não esta a funcionar? Que é preciso uma reforma do SNS?

O “abanão” veio provar aos hospitais públicos portugueses que eles são capazes de enfrentar uma situação inesperada de crise, que são capazes de se reinventar na sua organização e funcionamento e que têm capacidades que estavam atrofiadas por um modelo de gestão “amarfanhante”, em que há muito pouca margem de liberdade para que os hospitais possam escolher as soluções que acham mais adequadas a cada caso concreto.

Temos de entender que os hospitais são como as pessoas: são todos diferentes uns dos outros e a solução que funciona no hospital A pode não funcionar no hospital B e quando organizações tão complexas e dinâmicas como estas são geridas por decreto e por ‘chapa 5’ para todos, perde-se muita coisa.

Esse foi o principal erro durante todos estes anos?

Esse é um erro que decorre de outro que, para mim, é o principal: este modelo de gestão do SNS – e não falo só dos hospitais - não me parece adequado a um setor que é tão dinâmico; que conhece tantos avanços anualmente e que exige uma abordagem mais flexível e mais personalizada em que exista uma entidade que estabeleça o que é a estratégia essencial do Serviço Nacional de Saúde.

Depois, logicamente que terá de ser dada autonomia às entidades funcionais (como são os hospitais e os ACES), mas uma autonomia responsabilizante que seja monitorizada e baseada na responsabilização das lideranças. No meio de tudo isto, perde-se muito essa noção da importância da liderança, porque no fundo o Diário da República é a forma de comunicação essencial do Ministério da Saúde.

Então, como é ser administrador hospitalar neste modelo de gestão?

É péssimo! Eu tenho uma experiência relativamente recente vivida no Hospital Amadora-Sintra, entre 2008

“A forma como as administrações dos hospitais públicos são tratadas pela tutela é de um profundo desrespeito e de uma profunda ignorância pelo que se passa no terreno”.

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"OS HOSPITAIS PÚBLICOS (...) TÊM CAPACIDADES QUE ESTAVAM ATROFIADAS POR UM MODELO DE GESTÃO 'AMARFANHANTE'"

e 2011, e digo-lhe que é uma experiência até um pouco aviltante. A forma como as administrações dos hospitais públicos são tratadas pela tutela (e quando falo da tutela falo dos diversos organismos do Ministério da Saúde) é de um profundo desrespeito e de uma profunda ignorância pelo que se passa no terreno e por um terrível autoritarismo administrativo. E isso são os ingredientes para uma receita que vai, obrigatoriamente, correr muito mal.

E os administradores hospitalares pagam por tabela?

Eu desde que comecei a trabalhar na administração hospitalar – já la vão quase 40 anos – que, o que eu vi, fundamentalmente, foram situações em que os melhores eram castigados - porque se têm resultados positivos alguém vai arranjar maneira desses resultados passarem a negativos (alterando o modelo de financiamento ou retirando a possibilidade de os hospitais utilizarem os excedentes que conseguiram criar) - e os que têm maus resultados acabam por ser premiados porque levam sempre, no fim do ano, um adicional ao orçamento para tapar um buraco que não conseguiram resolver durante o ano.

Isto parece-se que transmite sinais completamente errados a quem está no terreno. Não estou a dizer que temos de ter uma cultura persecutória e castigadora… não é isso que estou a dizer… mas temos que ter uma cultura de responsabilidade.

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“NINGUÉM SABE QUEM MANDA NO SNS (OU TODOS MANDAM) E ISSO PARA UMA ORGANIZAÇÃO DESTA DIMENSÃO É FATAL”

Eu, aqui no Beatriz Ângelo, todos os anos sou avaliado pelo Conselho de administração a que pertenço (sendo eu administrador executivo do hospital). E o meu patrão se não estiver satisfeito comigo avisa-me primeiro e, depois, se eu continuar a falhar de forma sistemática manda-me embora. Não preciso dessa motivação nem desse estímulo para fazer as coisas bem, mas isto tem um peso. Eu vivo do meu trabalho e percebo que se não tiver um bom desempenho, não vou sequer conseguir motivar a organização para ter um desempenho adequado. Neste caso a pressão pode funcionar como um bom incentivo.

O que me está a dizer é que o SNS precisa ser reformulado…

Principalmente o modelo de gestão!

E que modelo de gestão é que gostava de ver implementado no SNS?

Se a Marina perguntar quem é que manda no SNS não obtém nenhuma resposta, já reparou? Primeiro porque ninguém sabe quem manda no SNS (ou todos mandam) e isso para uma organização desta dimensão é fatal.

Nós recebemos diariamente ordens do Gabinete da Ministra da Saúde, dos dois Gabinetes dos Secretários de Estado, da Direção-Geral da Saúde, do SPMS, entre outros departamentos, e depois são circulares informativas, circulares normativas, despachos, portarias, decretos… enfim… toda a gente manda no SNS e uma organização com esta dimensão e este peso não pode ser gerida e organizada assim.

Penso que devemos ter uma organização com uma gestão autónoma do SNS (autónoma relativamente ao Ministério da Saúde, porque este Ministério não pode ser visto como o Ministério do SNS). Isto para dizer o quê? Que a gestão do SNS devia estar muito mais autonomizada!

Vamos falar um pouco das Parcerias Público-Privadas, porque estão na ordem do dia…

Ou da noite… parece que chegou a noite das PPP’s …

O que consta é que as quatro PPP’s existentes no país não vão ter continuidade apesar de o

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Tribunal de Contas dizer que poupam dinheiro ao Estado e são mais eficientes, mas depois a senhora Ministra da Saúde diz que a culpa de as PPP’s não avançarem não é do Governo mas dos parceiros que não estão interessados em que tal aconteça. O que se passa?

O que se passa com as PPP’s é que elas são fundadas num pressuposto que não existe: que o Estado (ou os Governos) estão interessados nas PPP’s. Não estão! Se estivessem colocariam em cima da mesa os tópicos para análise e discussão sobre o que se passou em 2020, por exemplo. Porque o dinheiro que entrou no SNS foi distribuído por todos os quadrantes menos para as PPP’s. Posso dizer-lhe que este Hospital (Beatriz Ângelo) perdeu cerca de 29 milhões de euros em 2020 por causa da suspensão da atividade, por causa dos custos acrescidos com a Covid e demos conta disso ao Governo. Sabe o que disso o Governo? “Eh pá tanto dinheiro!”.

O que é que querem que a gente faça? Que continuemos aqui desta forma? Este ano, não devemos perder os 29 milhões de euros mas vamos certamente perder cerca de 25 milhões (porque o princípio do ano foi terrível. O primeiro trimestre foi para esquecer em termos de atividade do hospital) e o Governo, se fosse um parceiro de verdade, devia juntar as partes e discutir o assunto, para que fosse resolvido seriamente. Mas não.

O Governo não está a ser um parceiro?

Claro que não. Se me perguntar se o Grupo Luz Saúde quer sair do Beatriz Ângelo digo-lhe redondamente que não! O problema é que nós (enquanto Grupo Luz Saúde) não nos conseguimos manter no Beatriz Ângelo para lá do contrato. Os bolsos dos nossos acionistas também têm fundo e eles não podem continuar a injetar aqui dinheiro para nós continuarmos a perdê-lo, sucessivamente.

Mas o problema, neste caso, foi apenas a Covid?

Essencialmente foi a Covid. Há, obviamente, três ou quatro outros problemas que têm a ver também com a arquitetura do contrato de gestão que determinam que a operação do hospital não seja inócua em termos financeiros (já nem digo rentável). Uma dessas questões tem a ver com o problema dos internos. Não somos nós que definimos o número de internos que o hospital recebe anualmente, mas sim a Comissão Nacional do Internato Médico. E com os internos vem uma fatura que temos que pagar, obrigatoriamente, enquanto que nas mesmas circunstâncias, os hospitais públicos recebem por isso. Nós não recebemos um tostão!

Mas isso não está no contrato?

Não está nem deixa de estar! Esta situação já passou por um Tribunal Arbitral que entendeu que não tínhamos direito a receber nada e o que é interessante é que numa parceria um dos parceiros diga ao outro que vai enviar o número de internos que ele decide e que esse outro parceiro tem de pagar a fatura do seu bolso, independentemente do número que o primeiro parceiro decidir enviar a cada ano! Eu digo, por exemplo, posso receber dez internos … enviam-me quarenta! Isto não é uma parceria!

Mas o Tribunal de Contas diz que vocês conseguem poupar dinheiro ao Estado ….

Mas pelos vistos isso não interessa nada!

Há três efeitos das parcerias que não se podem esquecer, sem falar da dimensão material da mesma que foi a construção dos hospitais. Pela primeira vez em Portugal os hospitais das PPP’s foram construídos no prazo que estava programado e decidido previamente. Lembro-me quando fui pela primeira vez ao Amadora-Sintra, em 1996, a construção daquele hospital demorou oito anos. A construção do Beatriz Anglo demorou exatamente dois anos e pusemo-lo a funcionar em 19 dias após a conclusão da construção. E eu gostava de ver exemplos (que não das PPP’s) a cumprir estes prazos!

O segundo efeito a ter em conta tem a ver com a eficiência. Nós conseguimos ser mais eficientes, é verdade, porque temos uma gestão mais flexível… é natural que isso se verifique!

O terceiro efeito das parcerias é o de aprendizagem... e nesta dimensão eu acho que o Estado aprende pouco. Há um esforço financeiro enorme, do Estado, para gerir estes contratos, mas o que o Estado retira para a sua própria gestão dos hospitais públicos é muito pouco e poderia ser muito mais pois nós temos soluções que deveriam ser aplicadas noutros hospitais e que resultariam em mais eficiência.

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Este contrato é gerido de uma forma administrativa e o que se está sempre a acompanhar é o que somos obrigados a entregar mensalmente, trimestralmente e anualmente (para ver se cumprimos com as nossas obrigações), em vez de se olhar para o contrato como uma parceria em que também se aprende, até para se replicar noutros sítios.

Num casamento, os interesses têm de estar alinhados, senão o casamento vai levar ao divórcio. Este casamento está esgotado e como tal não vale a pena insistir!

E os grupos privados que têm estado ligados às parcerias conseguem sobreviver sem as PPP’s?

Claro que sim!

O que se diz é que se não fossem as PPP’s e as ligações dos privados ao SNS esses grupos não conseguiam sobreviver….

Isso é conversa da treta! Nós (Hospital Beatriz Ângelo) somos a primeira e única parceria que o Grupo Luz Saúde teve e o Grupo já existia antes… não nasceu com a parceria e não cresceu devido à parceria, apesar de ter ganho muito com a parceria… e ganhou muito em conhecimento e em organização clínica porque temos aqui condições que nas outras unidades do grupo não existem, na mesma dimensão. Lógico que conseguimos comprar os medicamentos mais baratos porque se juntaram as restantes unidades do grupo, é obvio que sim, mas isso é um problema de escala. Isso também acontece no Estado (o Estado também compra melhor quando faz concursos centralizados) mas que fique claro que o grupo não necessita do Hospital Beatriz Ângelo para existir ou para continuar a crescer!

Perante este quadro, e tendo em conta que me disse há pouco que temos de reformular é a gestão, se retirarmos agora as PPP’s o que fica?

Fica o resto (risos).

O que o Estado deve fazer, em minha opinião, é reformular e autonomizar a gestão do SNS. Dar-lhe autonomia e deixá-lo crescer como entidade autónoma e com liderança de topo que tem de ser responsável por tudo o que se passa para baixo….

Acha que os políticos querem que isso aconteça?

Não quero saber o que os políticos desejam e enquanto gestor estou a dizer o que penso! E nem estou a pensar no meu futuro, porque já esta pré-destinado e não estou a pensar em arranjar um lugarzinho para me entreter!

O que penso é que enquanto não autonomizarem a gestão do SNS não se vai avançar muito mais, porque vamos continuar ao sabor das manchetes dos jornais (como sabe todos os governos são estimulados – positiva ou negativamente - pelas notícias dos jornais e das televisões e é com base nessas notícias que se tomam medidas de forma avulsa).

Pergunto: qual é o plano estratégico do SNS? Alguém conhece? Eu não! Uma coisa tão importante onde cabem dezenas de hospitais, centenas de centros de saúde, etc. não tem um plano estratégico de desenvolvimento. Acho isto absolutamente inconcebível!

Estou habituado a trabalhar em empresas e todas elas têm o seu plano estratégico, através do qual sabemos para onde vamos e onde cada pedra que juntamos na parede, sabemos qual a sua função (porque sabemos como queremos que fique a parede no fim do dia). No SNS vamos andando, e vem um ministro novo e diz mais uma coisa nova e perdemos muito tempo a começar tudo de novo.

O senhor conhece bem os cantos à casa (do SNS) porque passou por todos os setores. Quais são as principais diferenças que encontra na forma de gerir nos locais por onde passou? Como classificaria a gestão totalmente pública, as PPP’s e a gestão totalmente privada?

Não consigo fazer essa diferença porque eu sou sempre o mesmo. Mas uma coisa posso garantir-lhe: eu gostei de trabalhar em todos os sítios por onde passei, alguns mais do que outros, óbvio, mas gostei de trabalhar em todos os locais.

"As PPP’s conseguem ser mais eficientes porque têm uma gestão mais flexível"

"ESTE CASAMENTO (PPP’S) ESTÁ ESGOTADO E NÃO VALE A PENA INSISTIR”

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Mesmo no Hospital Fernando Fonseca?

Adorei trabalhar no Fernando Fonseca, no Hospital dos Covões e em todos os locais porque em todos os sítios por onde passei encontrei sempre pessoas verdadeira“Tem sido um grande mente interessadas, empenhadas e dedicadas, seja no desafio desmistificar este setor público seja no privado. receio e incutir confiança Agora se falarmos das condições, enquanto gestor, aí não tem semelhança. Eu, aqui, sou absolutamente em todos os doentes, mas o autónomo dentro do que são as estratégias traçadas CHULN tem implementado para o hospital e para o grupo. E não tenho ninguém a “bichanar-me” ao ouvido, para agora fazer assim um conjunto alargado ou assado, para agora contratar este, agora despedir de medidas que tornam aquele… não tenho ninguém a fazer-me isso! E isso é uma vantagem enorme, mesmo que no fim do ano a instituição segura e me digam que como não consegui cumprir as metas confiável” traçadas tenho de abandonar o barco. Eu prefiro esta abordagem clara e transparente – e que é igual para todos – do que receber ordens que não compreendo, não percebo a fundamentação e que não vale a pena questionar (quando se questiona fica-se mal visto e marcado para sempre).

Para o corpo clínico – médicos, enfermeiros, farmacêuticos e técnicos – também considera que é preferível essa abordagem do que a do setor público?

Penso que sim. Aqui no Beatriz Ângelo temos uma organização clínica que não existe nos outros hospitais públicos portugueses, que vem do conceito que existe no setor privado do Grupo e que foi abraçada pelos profissionais que aceitaram trabalhar connosco (era um pressuposto) e posso dizer-lhe que apenas 4 ou 5 médicos não aceitaram o modelo, porque é um modelo que é muito entusiasmante e que motiva muito o trabalho de equipa, mas que é muito exigente. As pessoas têm que falar umas com as outras; têm que reunir diariamente de manhã, para fazerem a distribuição de doentes pelo hospital todo e isto não é brincadeira.

Mas a verdade é que, hoje, as pessoas revêem-se muito neste modelo e um dos medos que existe neste momento, relativamente ao fim do contrato de PPP aqui no Beatriz Ângelo, é que se acabe com este modelo e que se comecem a colocar tabuletas à porta dos pisos a dizer serviço disto e daquilo, porque nós já não estamos habituados a trabalhar assim… essa é uma maneira muito ineficiente de se trabalhar

E para a pessoa com doença… este modelo também é vantajoso?

É, porque está centrado no doente e não está centrado no médico!

Os conceitos balcânicos da cardiologia, da nefrologia, da medicina Interna não estão centrados nos doentes mas nas especialidades e nos médicos. Nós temos uma gestão muito flexível das camas e eu não quero saber onde está a cama mas sim se posso lá deitar este doente em concreto. Se é mulher ou homem, se tem 18 ou 80 anos. Interessa-me se tem uma infeção e se a pode transmitir, isso sim! E esse trabalho é feito 24 horas por dia. Há uma pessoa a fazer isso 24 horas por dia durante os sete dias da semana. E não sou eu, que estou a

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atender o doente, que digo para onde é que ele vai. Este doente não é da cardiologia ou da medicina interna, mas sim do hospital e tem um médico associado. Na manhã seguinte, na reunião, os responsáveis olham para o doente e analisam o que deve ser feito.

As pessoas não querem saber em que cama é que se deitam nem querem saber se isto é uma PPP ou não! As pessoas querem saber que este é um bom hospital e que são bem tratadas.

Ao longo de décadas temos ouvido muito falar da necessidade de separação das águas, entre os setores, ou seja, profissionais de saúde que trabalham no setor público não devem trabalhar no privado e vice-versa. Ainda faz sentido insistir neste conceito?

Acho que é uma falsa questão! Isso só fazia sentido dizerse quando o setor privado em Portugal era “artesanal”, em que os médicos tinham o seu consultório e depois havia umas Casas de Saúde onde os doutores iam operar e pouco mais. Neste momento a realidade não é essa e isso não existe. Temos hospitais privados completamente autónomos e, portanto, aquilo que seria um conflito de interesses e que podia ter repercussões na relação do hospital público com os cidadãos que o utilizavam hoje em dia é residual.

Por outro lado, há vantagens também na possibilidade de os profissionais puderem trabalhar simultaneamente nos dois setores, a principal delas é que o Estado pode continuar a pagar mal aos médicos ou aos enfermeiros. Isso significa que o privado paga melhor….

No privado, grande parte dos médicos tem o seu rendimento associado à sua produção e, portanto, quanto mais produzir mais ganha, enquanto que no Estado o modelo de pagamento é por salário fixo, sem incentivos nem prémios, e que deixa como mensagem a ideia de que “faças o que fizeres não te preocupes que ganhas o mesmo” e ainda “se fizeres mais é porque és ‘tótó’”. Penso que no meio destes dois modelos deve estar a virtude.

Mas pensa que o mesmo médico ou enfermeiro trabalha mais e melhor no privado do que no público?

É natural que as pessoas reajam a incentivos. Acontece com todos nós e todos queremos ganhar mais. E se for possível trabalhar mais, para ganhar mais a maioria das pessoas também quer! Agora, se for possível não trabalhar nada para ganhar o mesmo… também estão disponíveis.

Penso que o SNS tem problemas muito mais graves e urgentes para discutir, neste momento, do que esse.

Durante os primeiros tempos da Covid, como olha para o trabalho feito aqui, no Beatriz Ângelo?

Foi fantástico! Começámos no dia 12 de março com reuniões diárias, às 08h30, no auditório, com todos os diretores de serviço (das especialidades mais relevantes para o tratamento da Covid, naturalmente), enfermeiros coordenadores, gestores e com todas as pessoas que fossem importantes para formular decisões e para as implementar rapidamente. Durante cinco meses, o nosso dia começava assim. A comissão executiva fez uma escala para estar aqui sete dias por semana – havia sempre alguém presente e eu passei aqui muitos fins de semana – e mudámos o hospital totalmente, quer fisicamente quer ao nível de organização.

O que nos deprimia mais é que desde esse dia até outubro de 2020 não houve coordenação absolutamente nenhuma da atividade hospitalar. E quando digo nenhuma, é mesmo nenhuma!

É incrível como um modelo de gestão tão centralizado para umas coisas, numa situação em que se exigia uma grande centralização e uma grande comunicação entre todos os envolvidos … nada! E entre março e outubro, ou seja, nos sete primeiros meses da pandemia não sabíamos o que se passava nos outros sítios e isso deprimia-nos muito porque tínhamos a noção que estávamos completamente debaixo de água, telefonávamos para todo o lado para ver se nos conseguiam ajudar mas os outros hospitais também estavam debaixo de água ou diziam-nos que não podiam ajudar e não havia nenhuma entidade a quem podíamos recorrer para resolver situações limites. Depois ouvíamos dizer que abriam e fechavam hospitais de campanha e tudo era muito triste e deprimente, porque estivemos completamente sozinhos.

E depois de outubro?

As coisas foram melhorando, paulatinamente, e se não

tivesse havido alguma coordenação regional na terceira vaga, nós tínhamos colapsado em absoluto. A terceira vaga de janeiro e fevereiro foi absolutamente brutal. Nós tivemos 85% da nossa capacidade de internamento do hospital afeta a doentes Covid. Temos uma unidade de cuidados intensivos polivalente com 10 camas, tivemos 26 doentes internados em cuidados intensivos de nível 3, mais 60 de nível 2, espalhados pelo hospital. Se não tivesse havido, nessa altura, alguma coordenação e ter-se ganho essa capacidade, tinha corrido muito pior do que, o que correu.

Correu muito a ideia, durante o período da pandemia, de que o Norte funcionou melhor do que o Sul e que a Saúde tem ganho um peso maior no Norte do país. O senhor é do Norte mas trabalha no Sul. Isto é uma realidade?

O modelo de funcionamento da sociedade é diferente a Norte e a Sul, e particularmente diferente da cultura de Lisboa. São características endógenas das regiões e das pessoas, da História, da Cultura, etc. Somos de facto diferentes! No Porto, por exemplo, gasta-se muito pouco tempo com “rapa-pés” - as pessoas até são acusadas de serem um pouco grosseiras ou rudes, mas não são: são diretas!

Não me admira que existam diferenças, porque a abordagem dos problemas, a Norte, é mais direta e resolutiva e discute-se menos o que é acessório e mais o essencial.

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