Contra a boa e a má sorte só tem poder a morte

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Contra a boa e a má sorte só tem poder a morte

Ainda antes das suas duas filhas entrarem no quarto, já António tinha em cada uma das mãos dois pequenos sacos de linhagem que amarrava com pouca força dado o seu estado debilitado. -Tenho aqui dois sacos cheios de moedas de ouro, são um para cada uma de vós, minhas filhas. António das vacas, como era conhecido lá na aldeia, estava há muito doente. Sabendo que o seu fim de vida estava quase a chegar, certo dia resolveu reunir as suas duas filhas para lhes dar alguns conselhos e entregar-lhes todas as suas poupanças que conseguiu juntar ao longo da sua já longa vida. Viveu toda a vida da agricultura, tendo herdado do seu pai dois terrenos e algumas vacas, daí que fosse apelidado carinhosamente de António das vacas. Nunca ou quase nunca deixou de cultivar as terras onde cultivava batatas, milho e centeio, para além disso, possuía alguns hectares de vinha que posteriormente transformava em vinho para venda nas feiras da região. Mas do que mais gostava era das suas cabeças de gado que criava com grande afinco e era também através dos bovinos que conseguia amealhar mais algum dinheiro. Todas os dias o agricultor passava com os seus animais pelos caminhos estreitos até uma pequena ordenha para mugir as vacas duas vezes ao dia, sempre às mesmas horas, daí que os vizinhos soubessem as horas pela sua passagem e exclamassem: -Lá vai o António das vacas! Já não deve ser cedo! António era considerado por toda a vizinhança como um homem íntegro, muito trabalhador e humilde ao ponto de cada vez que passasse um pobre lhe dar sempre alimentos que tinha das suas terras. Os mais necessitados vinham de longe porque a fama do agricultor que não deixava ninguém com os bolsos vazios constou muito para além das terras vizinhas. Na verdade, o lavrador desde muito pequeno se dedicou ao campo para auxiliar o seu pai, também ele um homem ligado à lavoura. Como filho único quase não foi à escola porque na altura o ensino era só para aqueles que tinham algumas posses, o que não era o caso dele. Enamorou-se de uma moça vizinha que vinha todas as semanas a casa de seu pai, que mais tarde passou para ele, para comprar alguns dos bens alimentares para a sua família. Amélia era o nome da rapariga que o então jovem Tó e os vizinhos o apelidavam na altura, namoriscou a partir do momento em que este a seguiu um dia até à sua casa com o pretexto de que ela não podia com um saco de batatas que havia comprado ao seu pai. Pediu-lhe em namoro da forma mais simples e singela que encontrou: “Queres namorar para mim?” Ela corou, não lhe respondeu logo, e só no dia seguinte lhe disse que sim, mas que tivesse cuidado porque o pai era muito autoritário e podia não gostar da brincadeira. Apenas falavam quando a jovem ia a sua casa ou quando Tó passava a casa dela e vinha à janela mal ouvia o assobio. Foi assim durante um ano até que resolveram casar. Amélia veio


morar para casa de António, este sentia-se feliz pela mulher que tinha, amava-a muito e sentia ainda mais orgulho de esta ter ido virgem para o casamento. Não obstante, não passou muito tempo após o enlace, que nascessem duas filhas com espaço de apenas dois anos entre elas. A filha mais velha era a Rita, que nasceu robusta e de olhar terno, e quando cresceu, diziam os vizinhos que tinha feições com o pai, nomeadamente na pele escura e nos olhos castanhos, a sua estatura era baixa e um pouco roliça, era ainda alegre e bastante trabalhadora. Ao longo dos anos, nunca deu preocupação alguma a quem quer que fosse, ocupava-se dos trabalhos domésticos, desde as lides da casa, passando pela ajuda do pai nos trabalhos da agricultura. Muitas vezes era ela quem ordenhava as vacas ou ia para a feira vender as novidades que os campos da família lhe iam trazendo. Nunca virava as costas à luta, estava sempre pronta a juntar mais alguns trabalhos àqueles que já lhe davam muito que fazer e que lhe tiravam tempo para cuidar de si própria. Na verdade, aquela criatura, bondosa e humilde, não quis estudar mais quando completou o 4.º ano para ficar com mais tempo para auxiliar o seu pai. Não passou muito tempo após ter dado à luz a sua primeira menina, já a mãe Amélia, voltava a engravidar, quase sem querer. Os pais ficaram um pouco surpreendidos por tamanha rapidez daquele acontecimento mas rejubilaram por poderem ser pais pela segunda vez em tão pouco tempo, afinal aquele ser que iria nascer não era mais que o fruto do seu amor. António amava a sua mulher mais do que a sua própria vida e faria de tudo para a ver feliz. O pior mesmo veio com a gravidez. Amélia teve muitos problemas de saúde ao longo da gestação da sua segunda filha, por várias vezes foi parar ao hospital, ora por perder imenso sangue ora por desmaios constantes. Os médicos transmitiram-lhe que viria a ter vários problemas com a gravidez, que poderia mesmo perder a filha e que, na pior das hipóteses, a sua vida poderia estar também em perigo. Durante a gravidez, António, apesar de não ser rico e viver dos rendimentos gerados do trabalho na lavoura, foi sempre incansável, levou a mulher aos melhores médicos da região, não queria que lhe faltasse nada, nem a ela nem mesmo à criança que iria nascer dali a algum tempo... Mas o pior estaria mesmo para acontecer; nem ele, nem Amélia suspeitariam que o drama daquela gravidez de risco se transformasse numa grande tragédia. Certo dia, estaríamos no sétimo mês de gestação quando Amélia começou a sentir imensas dores no ventre e o marido, incansável como sempre, chamou uma parteira que morava numa aldeia vizinha e acompanhou-a. Quando esta chegou, o agricultor tentava desesperadamente acalmar a mulher sem que esta se apercebesse da angústia do esposo. Antes de ser transportada para o quarto pela parteira, Amélia sussurrou ao marido: - Não te preocupes comigo! O que importa é que a nossa filha nasça bem e com saúde. E vai nascer de certeza, custe o que custar! Se me acontecer alguma não te esqueças que o importante é o bem-estar do bebé. Olha também pela nossa menina mais velha, lembra-te que eu amo-te desde o primeiro dia que te conheci e que as nossas filhas são o fruto que nós geramos com muito amor! Eu amo-te e amar-te-ei para sempre! - Querida, eu também te amo muito, mesmo muito! – respondeu António das vacas com as lágrimas nos


olhos e comovido - Vai correr bem, vais ver! Mas nem tudo correu bem. Quando o lavrador estava já exausto de tanta espera, irrompe pela porta do quarto a parteira com as mãos ensanguentadas, com a bebé nos braços trémulos e de lágrimas nos olhos, e antes que o homem conseguisse abrir a boca, diz em voz baixa: - Posso-lhe dizer que a bebé nasceu prematura, mas parece estar de boa saúde, vai ter de ficar durante alguns tempos no hospital mas está fora de perigo. Graças a deus! Quanto à mãe… lamento informá-lo mas… não consegui fazer mais nada por ela mas tentei tudo e… foi impossível. Não parava de sangrar e… - Não quero acreditar, ela está viva, vá ver de novo! E desatou a berrar compulsivamente e tão alto que o seu pranto deve ter-se ouvido do outro lado da vila. O agricultor não queria acreditar, apetecia-lhe culpar a parteira pelo sucedido, tinha o coração destroçado, e gritava: -Não me deixes, querida, peço-te! Não!!! António tinha agora duas lindas filhas, mas acabava de perder o grande amor da sua vida, aquela que o fez feliz durante tantos anos, que o aconselhou quando precisou dela, que o ouviu quando ele necessitava de desabafar, aquela que lhe preparava o comer quando ele vinha cansado após mais um dia de trabalho, aquela que lhe aquecia uma panela de água quente quando chegava a casa todo ensopado de porcaria da lavoura, a mãe das suas queridas filhas, a razão do seu viver. Não poderia ser verdade, por que é que o destino o traiu quando mais precisava dela, será que deus se havia esquecido da fidelidade que sempre lhe confiou? Agora era só ele e as suas duas filhas. Como poderia ele educar sozinho as suas meninas? Apetecia-lhe desistir de tudo e morrer, ir para a beira da sua amada e ser de novo feliz a seu lado. Mas os dias foram passando e António começou a pensar que se calhar foi deus quem o colocou naquela situação delicada para o testar como homem e como pai, e por outro lado, havia prometido à sua mulher que protegeria e educaria as suas filhas, afinal, eram elas a prova de um amor tão grande e tão belo como o que ele havia vivido com a sua amada Amélia. Uma das razões por que o lavrador começou a pensar desta forma, deveu-se em parte à sua filha mais nova, a tal que nasceu quando a mulher partiu para junto de deus. A Laura, era assim que se chamava a filha mais nova, era muito mais parecida com a sua esposa do que a mais velha. A filha era loira, tinha olhos verdes, um corpo esguio e fazia António pensar que esta estava cada dia mais parecida com a mãe. Ao contrário da mana mais velha, esta mostrava-se cada vez mais rebelde e insinuante. Os anos foram passando e as duas filhas foram ficando cada vez mais diferentes. A educação do pai, apesar de se ter mantido sempre fiel aos seus princípios, também não foi sempre igual com as duas filhas. A mais velha continuava a trabalhar cada vez mais dando seguimento aquilo que o seu progenitor sempre fez, sempre com afinco e dedicação. Levantava-se sempre ainda o dia vinha longe e ia levar as vacas a ordenhar enquanto o pai tratava das terras, e quando os primeiros raios de sol apareciam no


horizonte, já ela estava em casa a dar de comer aos porcos e às galinhas. Era assim o dia todo. Seguia-se a preparação do almoço não só para si e para os seus familiares mas também para os criados que trabalhavam nas terras por conta do pai. Na altura das colheitas das batatas, das uvas e do malhar do milho, chegavam a ser mais de trinta pessoas. Depois de lavar a loiça e de arrumar os cacos, arrumava a casa e ia vender legumes ou fruta no mercado na freguesia vizinha. À noite, não era muito diferente. Lavar as cortes do gado, levar de novo as vacas leiteiras a ordenhar, fazer o jantar e tudo o que pudesse até se deitar já a altas horas da noite para fechar um pouco os olhos porque daí a poucas horas estava de novo na hora de reiniciar toda a labuta. Não tinha tempo para si, nunca havia namorado nem mesmo saído com amigos, na verdade, não tinha tempo para amizades, o dever estava sempre acima da sua vida pessoal. A filha mais nova foi sempre muito mais protegida pelo pai, talvez porque lhe pareceu cada vez mais parecida com a mãe, nunca fez nada em casa. António queria que ela estudasse para não levar uma vida tão pesada quanto os pais e a irmã. Este nunca lhe pediu que o ajudasse, nem mesmo que auxiliasse Rita nas lides da casa ou do campo, por sua vez, esta nunca teve o discernimento ou a vontade de poder trabalhar com o pai ou com a mana mais velha, tudo o que fazia era para seu proveito. Continuou os estudos, ao contrário da irmã mais velha, embora não fosse uma aluna muito aplicada, apenas fazia o essencial para transitar de ano e não se esforçava para nada, talvez porque o pai lhe desse tudo o que ela pedia, dinheiro para roupa, para gastos pessoais ou mesmo para as festas da escola, nunca lhe havia faltado nada. Laura não sabia o que era o trabalho. Apenas passeios com amigos, festas e alguns namorados que depressa despachava porque davam muito trabalho, além disso, não estava para perder a sua liberdade nem submeter-se a alguém, deixando de fazer a sua vida de livre e espontânea vontade. A relação do pai com as filhas era muito distinta, com a mais velha apenas falava sobre o seu trabalho ou questionava-a sobre a irmã, se já tinha vindo das aulas ou se já tinha ido com os amigos. Com a filha mais nova, António tinha uma relação mais próxima e de grande cumplicidade; quando tinha algum tempo, levava-a até à cidade e iam lanchar e passear até ao jardim. A relação entre as irmãs foi sempre fria, quase não falavam, apenas o essencial, em parte porque as suas vidas eram muito diferentes. Nem na hora das refeições havia encontro entre estas. Laura nunca almoçava e quando vinha jantar a irmã estava de volta do gado a alimentá-lo ou a ordenhar as vacas. No entanto, Rita ficava triste e desanimada com a atenção que o seu pai concedia à sua irmã, até porque este nunca tivera consigo uma palavra de elogio ou uma atitude de carinho como fazia com Laura, apesar de nunca ter comentado com o seu pai, até porque era incapaz de o fazer por uma questão de respeito e de educação para com este. Discutir com a mana poderia não ser muito inteligente da sua parte para não enervar o pai e evitar que este pudesse virar-se contra ela.

Os anos foram passando, sem que a vida desta família se alterasse muito. O lavrador foi envelhecendo, agora mais feliz, pois sabia que a sua missão que havia jurado à mulher na hora da sua


morte estava quase cumprida, a sua saúde começou a deteriorar-se aos poucos, não tardou muito que se sentisse velho. As tarefas agrícolas estavam cada vez mais nas mãos de Rita, e, apesar de não lho dizer, tinha imensa confiança nas capacidades de trabalho da filha e confiou-lhe mesmo a responsabilidade perante os trabalhadores que iam laborando dia a dia nas suas terras. Sentia grande orgulho e satisfação por ver Laura uma mulher muito bela, cada vez mais parecida com a mãe, e ainda por saber que esta continuava os estudos, sempre tivera o sonho de que esta fosse médica ou juíza. Ficava a imaginá-la com um cargo muito importante e a ser reconhecida pela vizinhança da aldeia. Como seria bom ouvir os vizinhos a exclamarem de admiração e de inveja: ”a filha do António das vacas é muito inteligente!” Nos últimos dias, a saúde do pobre agricultor tinha-o deixado muito debilitado, quase já não comia, pouco ou nada dormia e mal tinha forças para sair da sua cama para satisfazer as suas necessidades mais básicas. A sua filha mais velha mostrava-se preocupada com a sua saúde, mas o pai dizia-lhe que não tinha doença alguma, que apenas se sentia muito cansado e que lhe apetecia ficar no seu quarto a remexer antigas fotos da sua juventude com a mulher ou então ficava contemplativo durante horas e horas à janela do seu quarto olhando em redor os seus campos cultivados, vendo os animais e aquela paisagem maravilhosa repleta de árvores, de verdura, sentindo os cheiros que inalavam os eucaliptos e os plátanos ao sabor do vento primaveril e ouvindo os pardalitos a chilrear logo pela manhã e o cantarolar dos melros que ecoavam por toda a sua casa. Num desses dias, pressentiu que o seu fim de vida estaria por horas e não perdeu tempo, foi muito devagarinho até à sua sala de estar e abriu um pequenito baú que estava coberto de pó, dando mostras que já há alguns anos não era remexido por ninguém, nem mesmo ele, e tirou de lá de dentro dois pequenos sacos de linhagem. Voltou a fechá-lo e regressou pé ante pé até à sua cama e ficou a aguardar que as suas filhas estivessem ambas em casa. Apesar de nem sempre isso ser possível, naquela noite o lavrador conseguiu-o porque naquela manhã implorou às suas meninas que estivessem em casa às vinte horas impreterivelmente. Assim, chegada à hora marcada, as suas duas filhas não tardaram a entrar. Primeiro entrou Rita, com um ar visivelmente cansado; trazia uma roupa velha, umas galochas nos pés e um avental que lhe tapava algumas nódoas da sua camisola já pouco branca, do seu infinito trabalho que se ia repetindo todos os dias. Tinha um pressentimento que aquilo que o seu pai tinha para lhes transmitir não era bom, mas por mais que desse voltas à cabeça não consegui descobrir o que seria. O pai não esboçou qualquer reação com a sua entrada. De seguida, entrou Laura, visivelmente despreocupada, com um ar juvenil e um pouco agastada porque teve de obedecer ao pai e cancelar um jantar que considerava muito importante com alguns dos seus amigos de faculdade. Ao contrário do que se sucedera poucos segundos antes, agora António sorriu ligeiramente com a entrada da segunda filha pois por breves instantes teve a ligeira sensação de que quem entrou no seu quarto foi a sua querida Amélia. E logo aludiu: -Tenho aqui dois sacos cheios de moedas de ouro, são um para cada uma de vós, minhas filhas. São a poupança de uma vida. Tudo o que fiz e construí desde que casei com a vossa mãe foi a pensar em vós.


Prometi à minha querida mulher na hora da sua morte que vos protegeria e ajudaria a alcançar tudo aquilo que quisessem. Porque a minha família foi sempre ela e vós, queridas filhas. Hoje, chegou finalmente o momento por que eu tantos anos esperei. O dia da vossa recompensa. Quero-lhes dizer que as amo, sempre amei e continuarei a amar, mesmo depois de eu vos deixar. E é agora que isso vai acontecer. -Não diga isso, paizinho! – exclamou Rita e amarrou-lhe o braço. Laura arregalou os olhos de espanto, mas manteve-se impávida e serena. - Não se preocupem, vou partir, sei que de hoje não passarei, pois até para falar já nem forças tenho, mas vocês vão prometer-me que ficarão bem, e que continuarão a ser as filhas que sempre foram e que me deixaram muito orgulhoso. Na minha mão direita tenho um saco com cem moedas em ouro, são para ti, Rita. Porque sempre foste uma filha obediente, trabalhadora, respeitadora quer para comigo, quer para os criados e para com a tua irmã. Sei que és poupada e sabes gerir uma casa como deve ser, com autoridade e competência. Assim, retira algumas das moedas do saco e gasta-as nas tuas necessidades pessoais. Sei que vais precisar delas e que as vais fazer durar e multiplicar com o teu suor. Confio-te ainda, para além, das lides da casa, da continuação do trabalho que fez de mim aquilo que eu sou hoje, e que tu tão bem deste continuação, que ajudes a tua irmã com a tua dedicação e carinho, pois eu sei que és capaz e ela precisa de ti, pois és a mais velha. No entanto, esta casa é das duas de igual modo, ou seja, o que tem uma tem a outra. Agora tu, querida Laura. Toma este pequeno saco de moedas de ouro que tenho na minha mão esquerda. São 150 moedas que deves gastar como bem entenderes, confio em ti, sei que tens de estudar, gostava muito que fosses respeitada e considerada a doutora aqui da nossa região. Estuda e sê feliz, tu mereces, e deixa-me dizer-te que estás cada vez mais parecida com a tua querida mãe. Confio muito nas tuas capacidades, és uma menina muito inteligente e assim deverás continuar. Mal o pai presenteou a filha mais nova com as moedas de ouro dizendo-lhe aquelas ternas palavras, já Rita estava possessa e impediu que este dissesse mais alguma palavra: -Pai, desculpe mas não é justo que a mana tenha mais cinquenta moedas do que eu. O que é que ela é mais do que eu? Trabalha mais? Alguma vez me ajudou ou a si? Eu farto-me de trabalhar e tenho menos moedas do que ela? Desculpe, pai, mas… Laura interrompe a sua irmã mais velha com veemência: -Cala-te! Não vês que o nosso pai está muito doente e se continuares a dizer asneiras ele pode morrer! -Deixa, Laurinha. A tua irmã está um pouco nervosa, mas ela sabe que eu gosto das duas filhas por igual, apenas tu precisas de mais algum ouro para os teus estudos, só isso! Nada mais! E não quero que vocês sejam inimigas por isso, assim, peço-lhes que nunca discutam sobre o que quer que seja! -Pai, e se eu quiser mais ouro para casar ou mesmo para… Antes mesmo que a filha mais velha dissesse mais o que quer que fosse, o pai António caiu lentamente para trás e feneceu. Mas foi feliz porque sabia que a sua vida tinha-lhe trazido muitas coisas


boas, pois a sua riqueza aumentou, fruto do seu trabalho árduo ao longo dos anos, teve uma mulher maravilhosa que tanto amou e duas filhas muito diferentes, mas que o deixaram muito orgulhoso. Além disso, António das vacas, como era carinhosamente tratado pelas gentes lá da terra há muitos anos, fartava-se de dizer, nos últimos tempos, que a sua doença não o deixava triste mas muito feliz, pois sabia que cada dia que passava era menos um que faltava para estar, novamente, junto da sua amada Amélia. Apesar das filhas terem chorado a perda do seu progenitor, cada qual à sua maneira, sabiam que o pai sofria há muito tempo e que a sua morte era inevitável, mas nenhuma queria admiti-lo. O pior mesmo foi que, a partir daquele momento, a relação entre Rita e Laura nunca mais foi a mesma. Na verdade, nunca tiveram assim uma afinidade tão grande que agora se perdesse, mas a frieza que sempre mostraram uma pela outra, ia-se transformar agora em ódio e numa disputa entre ambas. A dor das filhas pela perda de António das vacas foi, com o passar dos tempos, transformando-se em saudade, e, mais tarde ainda, lembrança. O tempo foi-se passando, e as irmãs raramente se falavam. Desde a derradeira conversa que tiveram com seu pai, Rita sentia um ódio interminável pela sua irmã, não sabia se seria por o pai a ter sempre em melhor conta, ou por ter recebido menos cinquenta moedas do que ela; contudo continuou o seu trabalho rotineiro e árduo que herdou do pai, na esperança que um dia Laura reconhecesse finalmente o seu esforço e começasse a realizar algumas tarefas lá de casa, nem que fossem apenas pequenitas coisas, mas que a fizesse deixar de lado o azedume com que estava cada vez mais. Mas Laura continuava sempre a agir da mesma forma, ou pior ainda, pois desde que o pai partira, trazia constantemente um sem número de amigos lá para casa; não havia semana em que não convidasse os seus colegas da faculdade para jantaradas que a sua irmã preparava sem deixar sair um só lamento e, claro está, nunca ninguém teve o desplante de a questionar sobre lavar as panelas ou arrumar a mesa. Ao início, Rita não deu importância ao assunto, pensava que era apena uma vez e as palavras do pai sobre ajudar a irmã não lhe saíam da cabeça, mas agora estava a ficar farta desta situação, para além do trabalho que efetuava sozinha com determinação, o pior era o barulho das conversas dos convivas que durava até altas horas da noite e que apenas a deixavam dormitar durante duas ou três horas, pois continuava a ter de madrugar para levar as turinas a ordenhar. Laurinha, como era apelidada pelos compinchas notívagos, nem se dava ao trabalho de pedir à mana pessoalmente, para fazer as ceias para aquela gente toda, apenas lhe deixava um pequeno bilhete escrito com a hora e o número de convivas que iam degustar a sua apetitosa comida, sim porque Rita era considerada por toda a aldeia uma grande cozinheira, chegou mesmo em tempos a ser convidada par sair de casa e fazer da cozinha a sua profissão mas o pai achou que estaria melhor a seu lado, pois ali fazia mais falta do que cozinhar para outros. Das pessoas de fora sempre obteve elogios, mas dos familiares mais chegados nem por isso, talvez por orgulho ou esquecimento, mas nem uma palavra se ouvia sobre a sua deliciosa comida. Claro que Laura era mal-agradecida, pensava Rita, afinal um simples “obrigado” ficar-lhe-ia muito bem, mas sabia que seria impossível ouvir tal agradecimento da boca de sua irmã.


Mais um ano se passou e aquela situação pouco ou nada se alterou, até que uma noite, numa daquelas farras noturnas já tradicionais lá por casa, capitaneadas por Rita, que envolvia muita comida, bebida e barulheira “até às tantas”, dois amigos de Laura embebedaram-se, fizeram uma zaragata tal, tendo mesmo um deles partido um jarrão precioso que já vinha dos tempos da avó de António. Laura que não havia ainda “posto olho”, mal ouviu o estrondo, estremeceu, levantou-se da cama apressadamente e expulsou toda a malta em voz alta: - Rua! Todos fora daqui! Quero dormir um pouco, caso vocês não saibam, eu trabalho e daqui a pouco estou a pé. Lá fora já, antes que chame aqui as autoridades da terra e toque o sino a rebate… E antes que Laura abrisse a boca, perplexa com aquela atitude surpreendente da irmã, Rita ameaçou-a: - E a ti, tenho a dizer-te que quero ter uma conversa contigo hoje, sem falta. Na manhã seguinte, mal Rita chegou com o gado, dirigiu-se à cama onde a irmã ainda dormia, bateu-lhe à porta do quarto várias vezes até esta lhe abrir a porta. Rita assentou-se na esquina da cama e dirigiu-se para a irmã nestes termos: - Mana, o que se passou nesta casa na última noite foi uma coisa muito feia. Não consegui dormir toda a noite. Chegou a hora de dizer Basta! - Desculpa, eu não queria que isto acontecesse… - Mas não foi apenas hoje, há quase dois anos que o nosso pai morreu e desde então, esta casa nunca foi a mesma. Isto cada vez está pior, ele não iria gostar desta rebaldaria. - Sabes que o papá nunca se importaria por trazer os meus amigos cá a casa. -Não me interessa! Eu estou farta de trabalhar para ti e tu nunca me ajudaste em nada, nem sequer alguma vez me agradeceste. Pelo menos, facilita-me a vida e nunca mais quero ver aqui algum amiguinho teu. - Os amigos são meus e metade do que está aqui dentro também é meu. - Então, se os queres trazer para aqui, fazes-lhe tu o jantar e vai para os fundos com eles porque eu não estou para tolerar mais isto. As lágrimas saltaram dos olhos de Laura e mesmo antes que esta falasse, Rita confrontou a irmã: - Diz-me quantas moedas de ouro ainda te restam? Mas não me mintas! - Não tens nada com isso. Mas ainda tenho o suficiente para não mendigar nem te pedir esmola. - Já não deves ter muitas, eu já tenho mais algumas do que as que o pai me deu, sabes porquê? Porque trabalhei muito e não saí com ninguém nem as gastei mal gastas, por isso, peço-te que poupes e desafio-te que consigas transformar as que tens noutras tantas como eu fiz. O pai pediu-me para te ajudar, mas deute mais moedas a ti do que a mim, mas não contes com o meu auxílio se ficares pobre. - Vou-me embora daqui desta casa, vou deixar-te aqui sozinha a apodrecer, porque quero ser feliz, posso não ser rica mas serei feliz, ao passo que tu nem amigos tens, não sabes o que é a felicidade. A vida é maravilhosa, deve ser vivida com alegria, mas tu só sabes trabalhar. De que te serve trabalhares tanto e


poupares, se depois não gastas aquilo que ganhas? Prefiro ser pobre e remediada do que rica e infeliz. A última coisa que Rita queria era ver a irmã partir dali e deixá-la sozinha numa casa tão grande, pelo que ainda implorou a Laura que ficasse, dizendo-lhe que era um desejo do pai ver as duas irmãs a darem-se bem e a morarem na casa que ele demorou tantos anos a construir, mas Laura retorquiu, dizendo que não precisava da irmã, e que lhe iria demonstrar que quem estava certa era ela, disse-lhe ainda que nunca mais haveria de voltar ali, pois faltava-lhe apenas cerca de um ano para terminar o seu curso e talvez fosse viver para o estrangeiro. Apesar de Rita insistir para que Laura ficasse, esta respondeu-lhe dizendo que era tarde e que a sua decisão estava já tomada. Na tarde daquele mesmo dia, Laura partiu daquela casa, com os olhos lavados em lágrimas, uma mala em cada mão, e sem se despedir de sua irmã, apenas lhe disse: Adeus! Rita amava a irmã, tinha o coração partido, mas o seu orgulho ferido impediu-a de lhe pedir desculpa e deixou-a partir sem lhe dirigir sequer mais uma só palavra. As duas irmãs seguiram as suas vidas, e durante longo tempo, não mais se viram nem falaram. Rita não sabia fazer mais nada que não fosse trabalhar diariamente, sábados e domingos incluídos, porque as vacas dão leite todos os dias, e não querem saber de feriados ou fins de semanas para descanso. Claro que esta tinha imensas saudades da mana, mas de certo modo os afazeres ajudavam-na a esquecer a zanga que tiveram, pese embora, em nenhum momento se tivesse arrependido do que lhe disse. Laura, continuava a ser o oposto, fartava-se de gozar a vida, de organizar festas e bailaricos e convidar toda a sua turma para grandes jantaradas, no apartamento que alugou desde que saiu de sua casa. Mas nunca deixou os estudos, sendo mesmo uma das melhores alunas do seu curso. Estava mesmo a terminar o último ano, mas só lhe restavam cinco moedas de ouro, insuficientes para os estudos e para a viagem de final de curso que era habitual fazerem lá na faculdade. Apesar de não querer deixar de lado o seu orgulho perante a irmã mais velha, Laura estava desesperada, e vendo-se quase sem moedas de ouro, certa noite resolveu passar pela sua antiga casa e pedir algumas moedas à irmã sem se importar muito com o que poderia ouvir, afinal elas eram irmãs, e se fosse Rita a precisar da sua ajuda, não hesitaria em emprestar-lhe as moedas que ela necessitasse, afinal eram do mesmo sangue, e uma ajuda, seja ela qual for, nunca se deve negar a ninguém, tal como o pai fazia com os pobres que passavam a mendigar lá por casa. Finalmente, a vida começava a sorrir um pouco a Rita. Nos últimos tempos, um dos seus empregados tinha mostrado interesse por ela. Não era um homem muito novo, nem bonito, mas o que importava é que havia demonstrado carinho por ela, fazendo-lhe alguns recados, voluntariando-se para ir com ela para a feira vender fruta e tinha sido ele o único que aceitou ajudar Rita uma noite, quando esta lhe ligou a altas horas da madrugada para a auxiliar no parto de uma vaca que estava a correr menos bem do que o habitual. Ele era viúvo há algum tempo, não era rico, mas parecia um homem poupado, tinha pouco cabelo e uma barriga bem saliente que lhe saía para fora das calças, mas ela não poderia ambicionar nenhum moço esbelto, alto e muito elegante, pois sabia que no último ano também havia


engordado bastante. Quem lhe dera a ela ser como a irmã, alta, magra, loira e muitíssimo bonita. Isso era uma das coisas que mais invejava na irmã, e que havia feito despoletar o ódio que por ela sentia. Laura, mal chegou à porta da casa que tantas aventuras lhe havia proporcionado na sua infância e juventude, não evitou que uma lágrima lhe saltasse dos olhos, de emoção e saudade, afinal foi ali que nasceu, cresceu e que perdeu o seu pai. Antes mesmo de entrar, por momentos, lembrou-se da discussão que precipitara toda aquela situação, sentiu uma enorme vontade de ir embora, e não mais voltar ali, mas Rita quase não a deixou continuar os seus pensamentos, irrompendo até à porta e abrindo- a à irmã. Rita viu a irmã chegar e não queria acreditar. Finalmente, Laura havia aprendido a lição, e humilhando-se perante ela, veio ali com o intuito de lhe pedir desculpa - pensou ela. Há muito tempo que aguardava esse encontro. Antes mesmo que a irmã falasse abraçou-a e quase não a deixou falar. - Mana, finalmente tiveste a honra de vir aqui a casa para me pedires desculpa, podes vir de novo para tua casa e viver comigo, eu desculpo-te, claro! Estavas com grandes saudades da tua mana mais velha? Esta casa também é tua. Apenas te peço que me ajudes em algumas tarefas, vamos criar uma nova relação entre nós as duas… - Mana, eu… não vim aqui para voltar de novo para cá. Gostei muito de viver aqui, mas esta casa já faz parte do meu passado. Apenas gostaria de te pedir um grande favor, preciso que me emprestes apenas cinco ou seis moedas de ouro. Preciso de pagar algumas dívidas que fiz com os estudos e tenho mesmo de ir à minha viagem de finalistas. Apenas te peço isso, mais nada. E claro que quero voltar a ser de novo tua amiga, mais ainda do que fomos no passado. Passamos uma esponja sobre tudo o que de mau se passou entre nós. E virei visitar-te todos os meses. Mal Laura começou a explicar as razões que a levaram a ir ali, Rita alterou o seu olhar e a sua postura perante ela. Arrependeu-se das palavras que proferiu e do abraço que lhe deu. Começou a ficar com calores no peito e a raiva subiu-lhe pelo corpo acima. - O quê? Será que estou a ouvir bem? Tens o desplante de vir cá a casa pela primeira vez desde que saíste para me pedir moedas de ouro? Que eu saiba o nosso pai deu-te cinquenta moedas a mais do que me deu a mim. E tu já as gastaste? Eu não te disse para trabalhares e poupares como eu faço? Eu tinha vergonha na cara. Nem uma desculpa, nem uma palavra de conforto à irmã a não ser pedir moedas porque estás falida? Eu bem te avisei. Quem te avisa teu amigo é! - Não estou para ouvir outra vez as tuas palavras e zangar-me de novo contigo! Então, emprestasme ou não as moedas? Logo que puder eu devolvo-tas! - Claro que não empresto, por acaso tenho mais moedas agora do que as que o pai me deu, mas não vais ver nem uma! São minhas e ganhei-as com o meu suor, enquanto tu vives cada dia como se amanhã não existisse! - Já sei a história da cigarra e da formiga desde os meus três anos de idade porque tu me contaste. Já vi que não posso contar contigo, pois digo-te: Com a tua ajuda ou sem ela acabarei o curso e irei ao passeio enquanto tu…


Laura sai apressada porta fora sem deixar a irmã falar mais nada, enquanto Rita furiosa, insulta-a de menina mimada e de arrogante, mesmo quando esta já não está presente. À medida que se ia afastando daquela casa, Laura chorava compulsivamente e jurava a si mesmo que nunca mais na vida ali haveria de voltar. As belas lembranças que tinha desde tenra infância passadas com seu pai e com alguns amigos transformavam-se agora em fantasmas que queria deixar de ter dentro de sua cabeça. A tristeza e o desânimo que Laura sentia após a discussão eram para a sua irmã mais velha momentos de fúria e de ódio. Esta soltou o rabo-de-cavalo do seu cabelo e com as suas mãos esgadelhouse violentamente e aos berros prostrou-se pelo chão da sala, partindo os adereços e tarecos que eram de sua mãe, e que encontrava pela frente, tendo por fim bradado aos céus: - O culpado disto tudo és tu, pai desnaturado e injusto, que não soubeste ver o quanto esta filha te amou e sempre realizou todas as tuas ordens sem nada reclamar, enquanto a tua filha mais querida nada te deu, apenas exigiu de ti e tu cedeste sempre aos seus caprichos, fossem eles os mais difíceis de realizar… Os dias foram passando e aparentemente a discussão das filhas do falecido António estava esquecida. Rita tinha cada vez mais intimidade com o seu criado Guilherme, era esse o seu nome. Agora já iam juntos para a feira, dar de comer às galinhas e aos porcos lá da quinta e eram vistos constantemente às compras no mercado da cidade com uma cumplicidade cada vez mais crescente. Até que um dia este perguntou a Rita se não poderia ficar a viver lá em casa, afinal já se conheciam há muito tempo e assim poderia auxiliá-la nos seus afazeres quotidianos com mais frequência. Esta retorquiu que isso só seria possível no dia em que se casasse com ele. Assim, este pediu a mão em casamento a Rita. Esta comovida disse logo que sim, mas que não queria uma festa muito grande, pois ficaria muito cara e, além disso, detestava ser falada na região. Rita estava diferente, trabalhava com o mesmo afinco e dedicação, mas agora o ar triste e cansado que demonstrava ultimamente na realização das suas tarefas diárias, deu lugar a uma mulher mais sorridente e bem-disposta. Muitas vezes, dava por si a cantarolar e a assobiar sem saber verdadeiramente o motivo para tamanha felicidade. Claro que era o seu casamento o motivo daquela euforia quase desconhecida que se apossava de si. Apesar da cerimónia ser discreta e quase em segredo, Rita queria que os seus criados fossem todos à boda. E Laura não deveria ser também convidada? Sim… tinha de a convidar. Mais do que convidá-la, seria nobre da sua parte pedir-lhe que viesse viver de novo lá para casa. A tarefa não seria fácil e a resposta poderia ser negativa, mas se lhe emprestasse as tais moedas que a irmã lhe pediu talvez conseguisse levar avante os seus intentos. Mesmo com Guilherme presente, o vazio deixado pela irmã aquando da sua partida nunca havia sido preenchido. Assim, certo dia Rita deixou a sua labuta diária com Guilherme e informou-se através de alguns


amigos de Laura sobre o seu paradeiro. Esta partilhava com uma colega uma pequenita habitação, não era muito confortável nem tinha o espaço da sua casa de infância mas dava para ir vivendo até esta terminar o seu curso e arranjar emprego. Quando Rita chegou a casa onde a irmã habitava, sentia-se algo nervosa mas ao mesmo tempo confiante. Estava quase certa que a irmã aceitaria a sua proposta e que a antiga desavença entre as duas ficasse definitivamente sanada. Laura, por sua vez, ficou surpreendida, não contava que a irmã viesse ter com ela e ficou um pouco assustada de início e desconfiada, mais tarde, não fosse esta mais uma das suas artimanhas. - Mana, posso dar-te um beijo?- E sem que a irmã reagisse, Rita passava ao ataque. - Bem sei que na última vez a nossa conversa não correu como desejaríamos, mas vamos tentar esquecer tudo o que se passou naquele dia, afinal nós somos irmãs, sangue do mesmo sangue. Por isso, estive a pensar melhor na tua proposta e claro que te empresto as moedas que me pediste. Aliás, dou-tas, não tas empresto, dou-te vinte moedas em ouro que eram ainda das que o nosso papá nos deixou. Laura estava perplexa, não sabia o que dizer nem qual o motivo que levou a irmã a mudar assim tão repentinamente de ideias, afinal a discussão tinha ocorrido há apenas três meses. - Rita, isso é bonito da tua parte, mas porque mudaste de ideias? O que queres de mim? -Nada, apenas convidar-te para o meu casamento com o Guilherme, o nosso criado mais velho, e também para vires morar de novo lá para casa, afinal de onde nunca devias ter saído, pois a casa também é tua. E esta casa é muito fraquinha para viveres aqui. -Folgo em saber que finalmente resolveste juntar os teus trapinhos. E agradeço-te o convite. Mas eu parto já depois de amanhã para a América, onde vou estagiar num dos melhores hospitais do mundo. -Conseguiste, então, acabar o teu curso como sempre desejaste? -Sim, e infelizmente não me ajudaste quando eu mais precisava de ti. O que te havia custado emprestar-me umas míseras moedas em ouro? -Mas não era para uma viagem de finalistas? -Sim, mas eu sabia que essa viagem poderia ser muito importante para mim, como foi. Foi nessa viagem que consegui o meu estágio que agarrarei com unhas e dentes. -Sim, mas… e como conseguiste as moedas em ouro? -Não te preocupes, alguém mas arranjou e não foste tu. Por isso, obrigada mas não quero mais nada que te pertence e até podes ficar com a casa toda para ti, para lá não voltarei jamais! Quanto ao teu casamento, desejo-te a maior sorte do mundo. Quero que saibas que talvez não regresse mais ao nosso país e nunca mais me vejas. Já não me revejo mais aqui. -Mas, Laura, não digas isso! - replica Rita, quase em desespero de causa.- Peço-te, não vás, fica comigo, não te exigirei que trabalhes para mim e nunca te magoarei, juro! - Não acredito mais em ti! E agora já não há mais volta a dar. Tenho de partir, é a minha vida que


está em causa, é tão importante para mim como o casamento é para ti! -Estou em estado de choque! Que irmã és tu, deixares a tua irmã sozinha? És má, não tens sentimentos. – respondeu Rita, de novo com um ar furioso, com a raiva que a caracterizou no anterior desaguisado. Laura abre a porta de casa e com um ar mais duro e solene riposta: -Não tens o direito de vir para aqui insultar-me e gritar-me na minha casa. Pode ser pequena e modesta mas nunca passei fome ou roubei para aqui estar. Põe-te a andar antes que a minha amiga chegue e assista a mais este confronto entre duas irmãs que se deveriam amar e afinal passam a vida a discutir. -Tu és a culpada, nunca soubeste ser uma irmã a sério e o nosso pai ou melhor o teu pai mimou-te. Não sabes o que é a vida! Nunca serás feliz! Nunca me verá mais à tua frente. Hipócrita! Traidora!- e enquanto vocifera estas palavras, Rita sai porta fora. -Eu respeito a tua decisão- diz Laura com voz trémula-, se é assim que queres também nunca mais na vida me verás- batendo, por fim, a porta com veemência.

Um ano mais se passou. A vida das duas irmãs seguiu por caminhos opostos. Enquanto Rita casou quase às escondidas, e continuou a viver na casa que a viu nascer, Laura realizou o seu estágio, foi convidada a continuar o seu trabalho que tão bem desempenhou até então, valendo-lhe mesmo ter ganho uma medalha de mérito e apaixonou-se pelo diretor do hospital, um tal John Smith, americano de gema, alto, moreno, olhos esverdeados, corpo musculado e atlético, e cobiçado pela maior parte das mulheres que aí trabalhavam, quer pelo seu aspeto físico, quer pelo poder que este detinha em mãos. Haviam-se conhecido durante o estágio. Finalmente, Laura estava a viver um verdadeiro conto de fadas. Rita tentava engravidar mas sem sucesso; após várias tentativas, veio a descobrir que o marido era infértil, tendo sido este o motivo de várias discussões lá de casa nos últimos tempos. Nunca em momento algum souberam notícia uma da outra, embora as duas pensassem muitas vezes em como estaria a viver a sua irmã, nunca procuraram ou quiseram ficar a par das novidades das vidas de cada uma, até por uma questão de orgulho, embora as duas se amassem, nunca o diriam uma à outra.

Dois anos se passaram desde então. Enquanto Laura vivia ao lado de John Smith de uma forma feliz, sempre com muitos afazeres e com um sucesso cada vez maior, a tal ponto de se deslocar a vários países para discursar em palestras sobre a arte nobre do seu trabalho sendo já considerada a par do seu companheiro, uma guru em medicinas alternativas, Rita continuava o trabalho que o pai lhe havia deixado, não se sentindo feliz, mas antes muito amargurada e triste porque não havia sido esta a vida que em jovem ambicionava para si. Guilherme tentava mimá-la com presentes e até com uma viagem a Espanha mas a esposa estava cada vez mais agressiva e fria com ele, pouco ou nada falava a não ser sobre as lides do campo. Na verdade, desde que a irmã partira para o estrangeiro, com a agravante da notícia da infertilidade de Guilherme, que Rita estava intratável. Não dormia com ele, passava os dias a


berrar com os criados ou a partir objetos antigos, verdadeiras relíquias que pertenceram ao seu pai, tal como adornos, pratos em porcelana ou jarras de qualidade que este havia colecionado com entusiasmo durante toda a sua vida e que agora não passavam de simples pretextos para Rita expelir a sua fúria para com ele. Guilherme já não conseguia arrancar-lhe um sorriso e sentia que ele era a única causa da ira da sua mulher. Mas não! O principal motivo da sua triste e repetitiva vida era o agricultor António das vacas, como era carinhosamente tratado por aquelas bandas, e a maneira como este educou diferentemente as suas duas filhas.

Certo dia, Rita foi verificar a correspondência, tal como era seu hábito, e qual não é o seu espanto ao deparar-se com uma carta com o remetente em nome da sua irmã. Tremulamente e com o coração quase a sair pela boca, abriu-a e deparou com uma bela fotografia de Laura, mais bela do que nunca, com aqueles cabelos compridos, loiros e encaracolados, com um sorriso nos lábios tão aberto e sincero que esta percebeu logo que a irmã estava muito feliz. O rosto de Rita ficou sério e pesado, quando viu que ao lado da irmã, no retrato, estavam também um jovem, alto e bonito, que só poderia ser o seu companheiro, e que mostrava estar embevecido e muito apaixonado por ela. Junto à carta, estava ainda um pequeno saco que esta desembrulhou nervosamente, com dez moedas em ouro, sem que esta percebesse do que se tratava. Rita estava pálida e gélida como nunca se vira antes, mas teria ainda de arranjar forças para conseguir ler a carta ou então rasgá-la e não querer saber o seu conteúdo. Hesitou, ficou quase sem se mexer durante alguns segundos até conseguir desdobrar o papel escrito que Laura lhe havia enviado. Aos poucos, começou a movimentar a cabeça e a virar os olhos para a dita carta: Querida mana, Antes de mais gostaria de saudar-te e de te agradecer por leres aquilo que gostaria de dizer-te pessoalmente mas que ainda não sou capaz. Espero ainda que estejas a viver uma vida repleta de saúde e de amor. Quero que saibas que eu estou muito feliz, a única coisa que me faz ficar triste é não estar perto de ti e não poder pedir-te desculpa por tudo o que te disse ou a maneira que muitas vezes me comportei contigo. Como viste na fotografia que te enviei, o homem que me abraça é o meu companheiro John Smith. Somos ambos médicos e temos uma clínica enorme que gerimos com muito trabalho e dedicação aqui na América. Vivemos juntos quase desde que aqui cheguei e o nosso amor é tão grande que daria a vida por ele. Soube ainda há poucos dias atrás que a nossa família vai aumentar, vamos ser pais. Se for um menino chamar-lhe-emos Anthony em homenagem ao nosso querido pai, se for uma menina, vai chamar-se Rita em tua homenagem, e se não te importares, gostaria que fosses a sua madrinha. Tenho ainda a dizer-te que te estava a dever dez moedas em ouro, que um dia, sem tu o saberes, pedi ao teu marido, quando desesperadamente lhe implorei que mas emprestasse, dois dias após tu me teres negado as mesmas. Desculpa por ter de ser assim, mas precisava mesmo da tua ajuda e ele teve compaixão de mim, acabando por me ajudar. Peço-te que as recebas com todo o amor e que lhe agradeças. Preferi dar-tas a ti, pois não estaria bem se não te contasse, mas deixa que te diga que tens um homem bom e humilde como teu esposo. Quanto à casa, podes ficar com ela, eu cedo-te a minha parte, uma vez que foste sempre tu que trataste das lides que o pai te incumbiu, e será justo, uma vez que tiveste menos moedas do que eu. O papá não gostava mais de mim do que de ti, apenas fez aquilo que achou melhor para nós as duas, por isso perdoa-lhe por favor. Poderás vir cá quando quiseres para te dar um grande abraço e enterrarmos de uma vez por todas o machado de guerra, nem que seja para o batismo do meu bebé, e talvez tragas também contigo um filho no teu regaço. Gostaria muito que me respondesses em breve, estou ansiosa para saber novidades tuas.


Até breve. Amo-te muito Da tua irmã mais nova, Laura.

Rita deixou cair a carta e a fotografia no chão e ficou inerte durante algum tempo. Não sabia se havia de chorar ou gritar, não sabia se havia de sentir ódio da irmã pela vida feliz que levava, ou pena de si mesma, por ter sido mais uma vez enganada. Não sabia se haveria de dar um tiro ao seu marido por têla traído ou espetar uma faca no coração da criança que iria nascer em breve, e que esta nunca conseguiu ter, apesar de tentar vezes sem conta. Apetecia-lhe perguntar a Deus porque é que há na vida pessoas com sorte, e outras, por mais que se esforcem, não têm sorte alguma. Rita voltou a recuperar forças, pegou no saco das moedas que a irmã lhe deu, foi ao cofre buscar as restantes, grande parte delas, deixadas pelo pai, meteu-as todas num saco maior, e apressadamente, sem olhar para trás, e sem falar mais nada para quem quer que fosse, saiu de casa a pé, como o fez tantas vezes, perante o olhar de alguns criados e de Guilherme que ainda lhe perguntou aonde ia em passo tão acelerado, mas esta nem sequer esboçou um olhar ou uma hesitação e continuou a caminhada. Parou junto ao cemitério a poucos passos dali, onde jaziam os restos mortais de seu pai, e entrou, dirigindo-se à campa nestes termos: “Pai, aqui estou eu, a tua filha mais velha, aquela que sempre desempenhou o trabalho que tu pediste desde tenra idade e que nunca soubeste fazer feliz, ao contrário da tua querida filha mais nova que tu idolatravas e que amavas mais do que a tua própria vida. A minha missão está cumprida, fiz o que pude, mantive a casa até agora e dei continuidade à tua labuta, mas agora venho devolver-te todas estas moedas em ouro que nunca me serviram para nada. Nem elas nem a casa. Tu és a causa destas desavenças entre as tuas duas filhas, a mais bonita, rica, inteligente e vencedora, e a mais feia, escrava e infeliz. Afinal, foi isto que sempre quiseste durante toda a tua vida. Toma as moedas e a partir de agora, já não te devo mais nada.” Dito isto, de um modo frio, calculista e odioso que durou apenas alguns segundos, Rita espalha todas as moedas violentamente pelo jazigo, em seguida pega numa pequena lata de pesticida que trazia no saco, e engole o veneno vorazmente e sem qualquer hesitação, em apenas dois ou três tragos até esta ficar vazia, depois ajoelha-se, fecha os olhos e cai prostrada sob a laje de mármore, junto ao jazigo do pai, para não mais se levantar. Laura só soube da morte da irmã alguns meses depois quando Guilherme encontrou a carta fatídica onde constava a morada da América e lhe escreveu. Esta não queria acreditar, sentia-se a única culpada pela perda da mana e chorou convulsivamente nos braços do seu companheiro. Pediu-lhe que tirassem uns dias de férias e que viessem a sua casa apenas uma última vez. Foi o que aconteceu. Laura referiu a John que doassem a casa aos pobres que o seu pai tantas vezes havia acudido, e que Guilherme e os restantes criados ficassem com algumas parcelas de terreno para cultivarem por conta própria, afinal precisariam de viver. O americano consentiu e elogiou a atitude nobre da sua querida Laura, mas ainda a questionou sobre vir um dia viver para ali, ao que esta respondeu dizendo que o desgosto dela era tão


grande que se vivesse apenas um dia mais ali morreria também. Laura estava finalmente junto do sepulcro da irmã e do pai e abraçada a John e ao sabor do vento que soprava de mansinho, colocou um cravo vermelho na campa do papá e uma rosa branca na da mana. Ficaram ali durante alguns momentos e Laura contemplou-os, e por fim, foram-se afastando. Esta olhou pela derradeira vez para aquela que foi a sua casa e lembrou-se por momentos, de várias aventuras e desventuras que por ali passou durante vários anos, antes de partir para a América com seu John e com o filho no seu ventre que em breve haveria de nascer. A residência estava agora vazia e o silêncio fazia-se de novo sentir como quando o agricultor contemplava aquela paisagem maravilhosa da janela do seu quarto repleta de árvores, de verdura, sentindo os odores que inalavam os eucaliptos e os plátanos ao sabor do vento primaveril. Apenas se continuavam a ouvir os passaritos a chilrear e o cantarolar dos melros que ecoavam por toda a casa. Passado anos já poucas pessoas ou ninguém haveria de se lembrar da estória daquela família, que apaixonou todas as aldeias da região, mas que o destino quis trair, nem do lavrador António, nem das suas queridas filhas, muito diferentes mas ambas amadas por ele.


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