PUBLICAÇÃO especial mutante março . 2019
não tem sumário
esta é uma 2
a n t ro + M I T s p
publicação mutante e serå atualizada durante toda a mostra
vive. respira. renova. a n t ro + M I T s p
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editorial
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eis anos não é pouco. Nesse tempo construímos um arcabouço de experimentações críticas, resenhas, convites, interferências, reflexões e estímu-
los pouco provável às estruturas mais afirmativas e conclusivas. Novamente, a Antro Positivo não tem por norte tentativas de explicar, solucionar ou reduzir os acontecimentos da MITsp, por um certo didatismo educativo comum que toma parte das boas intenções. Somos um tanto mais descontrolados, incontroláveis, e seguiremos assim, tendo a inquietude por estímulo maior. Começamos antes, como sempre fizemos. Já estamos dentro das salas e workshops, anotando, notando, vivenciando. Passeamos pelas conversas paralelas, pelos encontros que cercam o que ainda existirá. E nesse percurso, a escrita encontrada nesse especial será a soma de muitas outras experiências para além dos teatros, salas, espetáculos, incluindo o outro e as perspectivas surgidas ao acaso. Por isso, uma publicação em diálogo com a rotina da mostra. As críticas continuam ousadias, as reflexões propondo mergulhos críticos, as resenhas exercícios ao pensamento, e sempre pode haver surpresas. É nosso convite a todos. Surpreendam-se e surpreendam-nos. Sigamos inquietos e diferentes. Precisamos cada vez mais disso para dar conta de olharmos a realidade. Evoé.
março I 2019
quem? o que?
ANTRO POSITIVO
é uma publicação digital, com acesso
livre, voltada às discussões sobre artes cênicas e pensamento contemporâneo. Este especial faz parte da
programação oficial da MITsp 2019
editores
ruy filho [texto] patrícia cividanes [arte] colaboradores
ana carolina marinho anna zêpa bárbara santos juão nÿn
[fotos de capas e abres] série CORPO 1999/2000 - obras de Patrícia Cividanes Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, alertar algum erro ou apenas enviar um devaneio:
antropositivo@gmail.com
aqui anonimato não tem vez. quem tem voz, tem também nome e é sempre bem-vindo.
www.antropositivo.com.br @antropositivo
já publicamos sobre a mostra
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Críticas
tipos de Experimentações sobre críticas
6
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Reflexões
6
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Resenhas
diálogos
710
ações
Entrevistas
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já publicamos sobre a mostra
SOBRE AS EDIÇões anteriores entre em www.antropositivo.com.br/especiais PARA ler nossos especiais sobre a MITsp e outros festivais, além de conhecer nossas experimentações críticas. Bom mergulho!
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PRรณ 10
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รณlogo a n t ro + M I T s p
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PRólogo
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alvez este seja o ano um de um novo país. Não apenas por termos o presidente escolhido que temos, mas pelo que significa sua escolha. O conservadorismo chegou de vez, os olhos atacam diferentes, as vozes agridem opções, e a sociedade
é reinventada diante um descontrole decisivo e perigoso. Enquanto decide o que não quer, mais do que afirma, arrisca tornar-se estruturalmente submetido ao medo, ao aviso, controle, regras, valores daqueles que por nada disso são atingidos, apenas manipulam. São Paulo é megalomaníaco também em suas divergências; existe reativo a quaisquer lados surgidos, tornando a cidade o laboratório explícito desse novo país. Ruas transformadas em campos de batalhas ideológicas, pessoas transmutadas em policiais morais, espaços proibidos e conquistados em iguais proporções, quando não paradoxalmente ao mesmo tempo. No contexto dessa experiência única reside a perspectiva de uma dramaticidade que faz da metrópole seu próprio artifício ao teatro dos costumes. É tanto a cidade dos extremistas de direita quanto dos arruaceiros de esquerda. Ou, dizendo de outra maneira, da tradicional família brasileira e das minoria abandonadas. O fato é sustentar o conflito como estado permanente aos poderes em
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jogo, enquanto os lados definem-se a partir da subjetividade dos pontos de vistas daquele que escolhe jogar. A arte daqui, de modo geral, guarda ainda a mesma posição: quer olhar ao outro, quer incluí-lo, quer ser o discurso e voz do diferente, quer atingir os dilemas de nossa falência civilizatória, quer expor os processos de desumanização e anulação do indivíduo. Todavia, nem ela mesma mais apenas isso. Há agora na arte os que preferem o lado de lá da rua e cercam violentamente o que lhes parece contradições. O conflito tem deixado de ser apenas o contexto de uma teatralidade inerente entre distâncias e visões de mundo para existir determinante às construções narrativas. Por isso olhar ao indivíduo se justifique tão coerente. Por isso, talvez, ter-se e ao outro como documento pareça tão necessário. Contudo, é preciso cuidado. As mais frágeis narrativas são as que exploram as urgências utilizando-se da obviedade de sua necessidade para instituir contra-argumentos. Os bons conflitos no teatro não são os explícitos, e sim os escondidos nas entrelinhas pelo inesperado, e continuamos agindo e criando a partir de pautas dadas por apenas um dos lados, documentando-nos para salvar um sujeito que duvido ainda faça sentido. Uma Mostra Internacional de Teatro em São Paulo fala ao país espelhando possibilidades de inventarmos nossas escolhas. Ainda que aprisionada ao agora, sempre existirá na arte a capacidade de ser maior do que suas próprias tentativas. E experiências, bem se sabe, sobretudo poéticas, são impossíveis de serem controladas, pois reinventam o sujeito para além do que se idealiza. O teatro, por fim, precisa ser deliciosamente perigoso, estejam os sujeitos em quais lados estiverem. Que logo comecemos o ano um desse outro teatro, então.
por ruy filho
www.antropositivo.co
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ingles
om.br/
entrevistas exclusivas em inglĂŞs
acompanhe compartilhe distribua
e, entĂŁo, seguimos por ana carolina marinho
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á seis anos, uma euforia e ansiedade tomam o fim do mês de fevereiro e o início de março na capital paulista: a saga na compra dos ingressos da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Nesse ano, às 17h do dia 21/02, onde quer que estivessem, inúmeras pessoas pararam para acessar os sites em busca de um acento ao sol, vi isso acontecer inclusive nos transportes públicos. Al-
guns desavisados se enfureceram quando, poucas horas depois do início, os ingressos já estavam lotados ou o site do SESC congestionado. Costume que não assombra os espectadores ávidos. Até os espectadores assíduos que se sentiram frustrados com os espetáculos do ano passado estavam dispostos a uma nova chance e se aventuraram na vertiginosa saga em esperar na fila de espera virtual pela sua vez. Todos querem ver, sentir, experienciar teatro tomados pelo desejo em encontrar, em mergulhar no outro para ver as pulsões que brotam mundo adentro e afora. Nesse ano, o teatro documentário, mais um vez, pauta as escolhas da curadoria, o que nos faz pensar como tem sido urgente e simbólico o desejo de falar sobre si diante de uma coletividade fragilizada, bem como falar da força de uma coletividade diante de um indivíduo inquieto. O teatro costuma - e nós, cada vez mais, impomos isso - dialogar mais facilmente se estiver sob o terreno seguro e legítimo: só se fala sobre e a partir de si na tentativa de criar interlocuções, reverberações no entorno. Reflexo dos discursos pouco representativos na política e da tentativa em se opor à apatia? Há quantos anos o teatro documentário representa grande parcela das produções por aqui? Sem dúvidas, a força do documento, da realidade, dos fatos tomam-nos a atenção, oferecem-nos uma impressão sincera do outro que ali, exposto, nos apresenta feridas e reflexões que o perpassam. Mas o que essa forma diz sobre nós? Diante da ascensão de Bolsonaro e dos discursos de ódio, estamos passo-a-passo engolindo o revanchismo como ordem, distanciando-nos das práticas de alteridade com o discurso de que “saiam
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da frente, agora é a nossa vez”. Soma-se a isso a constante disseminação de informações inverídicas e o desejo em não ouvir o outro lado. A ambivalência em falar de si e calar o outro está cada vez mais frequente, é possível a utopia do falar com? Como construir uma sociedade com equidade, paridade, se o que queremos é tomar para nós algo? Há um prazer sádico nisso, o prazer da vingança. O fio entre “ser parte” e “ser dono” está sempre tensionado. Tomo a reflexão de Jessé Souza de que as lutas de classe infelizmente não são apenas para ter o acesso, mas costumam alimentar o desejo em monopolizá-lo, para compreender que os processos de construções de discursos estão transbordando de negações e segregações e seguindo pelo mesmo caminho. Como se “para estar” fosse preciso ignorar o outro, afinal fomos ignorados antes. Estamos adoecidos de ódio, respiramos vingança. Seguimos mantendo nossos costumes escravocratas: o prazer sádico em possuir e controlar o discurso, em desqualificar o outro, em tornar insignificante o que não diz respeito a mim. E como para essa doença ainda não sabemos a cura, avançamos nas medidas profiláticas apostando que a arte possa nos conduzir a uma rota de fuga para a apatia de uns e revolta de outros. Ainda que ela seja fruto desse lugar, suspeito que o teatro documentário e o teatro do real siga angariando espectadores curiosos porque busca um caminho de expor as fragilidades. A fuga nesse caso é para dentro: um convite à autocrítica. A plateia é a coletividade posta a ouvir: uma multidão de ouvidos e peles desejosas de sentir, tatear, deglutir e, por que não, insurgir. Olhando o outro é possível reconhecer no afeto e no ódio o que dói e sensibiliza em si. A arte tem dessas, atrita as inquietações com o exercício da linguagem e mobiliza quem presencia. Esperamos, pois, que nos próximos dias, as pupilas dilatem, os corações vibrem e a arte festeje, nem que para isso alguns se revoltem e outros amem. Que essa revolta, pois, seja retornar ao ponto nevrálgico, abismar-se com a distância que nos aproxima do outro, exercitar o olhar crítico sobre si e se atentar para os processos ambivalentes da criação.
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seguimos e entĂŁo, o ĂŁt n e e, somiuge a n t ro + M I T s p
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reflexão
Espetáculo zero ou as encenações invisíveis por ruy filho
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É
preciso, antes mesmo de seguir esse texto, expor o óbvio: a plateia na abertura da MITsp es-
tava formada sobretudo por artistas, ou a tal gente de teatro, como gostam tanto de dizer por
aí, com evidente tentativa de diminuir e atacar. E como organizam as tradições, as falas traziam apoiadores, patrocinadores e gestores públicos, além da própria mostra e seus representantes,
no palco e na tela. Nada estranho. Afinal, trata-se o evento de uma Mostra Internacional de Tea-
tro. Ideal que assim estivesse. Contudo, e por serem quem eram, o estranho mesmo ocorrera em uma certa amnésia oportuna, pela qual uma parte significativa dos convidados fora acometida.
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ão acrescentará muito discutir o tom melancólico, quase derrotista, persistente; mesmo assim, farei. Ele surge durante conversas, reuniões, apresentações de programações e não
seria ausente na abertura. O que lhe exigiu construir certos artifícios aos sentimentos. Faz parte
do teatro ter estratégias, devíamos estar acostumados. Ocorre que tem sido assim em muitos festivais e até eventos menores no Brasil, portanto não deve ser compreendido como algo exclusivo da MITsp, e sim como um narrativa comportamental pela qual lamento e álibi se misturam
de forma explicativa e preventiva antecipando o porvir. Dessa maneira, antes de qualquer coisa, ouve-se coisas do tipo: foi um ano difícil, o mais difícil até hoje, nunca imaginei chegar a isso,
não sei se tenho forças para continuar, não sei se vale a pena, tem sido só pela resistência, uma luta, uma batalha, uma guerra e outros termos bélicos para justificar as condições reais,
e que são reais mesmo. Por serem esses os argumentos generalizados, que tal se invertêsse-
mos a lógica e tratássemos os fatos a partir de outra compreensão?: conseguimos mais uma vez, superamos, vamos adiante, conquistamos, vencemos, aqui estamos, chegamos, não vão
conseguir nos parar..., algo por aí. Seria mais inquieto dar por vitória do que por vencido uma realização. Ocorre que vencer pode não ser teatral o suficiente, e o melodrama, ainda que mais próprio dos folhetins, atinge quase de imediato sua compreensão. Trata-se, então, de uma nar-
rativa teatralizada a partir da projeção da nossa expectativa emocional. Particularmente, prefiro
as superações épicas, ainda que duvide de heróis. Se o drama comporta a raiva pelo sofrido, entendendo o sofrimento um estado não próprio e imposto, limita, dada sua qualidade, pouco
espaço à revolta, justificando mais o lamentar do que o confrontamento. Algo um tanto paradoxal
diante ao que a própria mostra propõe provocar com os espetáculos convidados. Então, sugiro,
é necessário olhar o que se quer dizer e o que se diz, e reagir às armadilhas espalhadas nessas discrepâncias. Sorrir, e por conseguinte existir, é violentamente mais incômodo a quem lhe quer anular, do que apenas lamentar o imperfeito calculado. Ter uma mostra de teatro do tamanho da
MITsp, ou mesmo algumas outras, deveria ser suficiente para celebrar com entusiasmo, em um
país que tem a Cultura como inimiga e os artistas como os piores entes de sua sociedade. Seis anos depois, porém, lamenta-se, mesmo quando se quer engrandecer, mantendo a áurea desse teatro de vencidos submersos em profundo e eterno desamparo.
N
ão é sobre o palco, exatamente, esse texto. Como dito, o que ali se viu é uma constante que se espalha mais e mais pelos mais variados cantos, modelos e tamanhos de festivais brasilei-
ros; não se simplifica em um instante ou alguém. Também os políticos e suas falas programáticas,
suas posturas publicitárias, seus números e grandezas, seus argumentos em forma de promessas estiveram ali e, mais ou menos, encenaram suas categorias. Cumprem bem os seus personagens sociais, mas nem sempre são tão bons atores quanto acreditam. A amnésia na plateia é o
que mais me interessa nessa outra qualidade de encenação. Enquanto alguns aplaudiam um ex-
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reflexão
Espetáculo zero ou as encenações invisíveis
-ministro da cultura, agora secretário, sua imagem se fundia ao tempo, em minha memória muito recente, recuperando suas ações primeiras, dentre elas sentar-se com congressistas pastores, afim de ouvir seus pedidos de destruição da própria estrutura de financiamento e funcionamento da cultura; também das muitas vezes em que atacou abertamente e se contrapôs às instituições
que agora viabilizam o festival qual se apropria para discursar amigavelmente e cúmplice; ou pior,
contra o próprio artista que, por uma séria ironia, o recebe de braços abertos, tendo de dar conta desse outro já lhe desejar publicamente o pior. Poucos lembraram desses instantes, ao que parece. Muitos aplaudiram, afinal, agora a caneta em suas mãos está também mais próxima. Tais artistas, então, encenam a si mesmos ou nunca existiram como tais. Sem querer ser demasiada-
mente duro, ou não eram exatamente contrários ao que um ou outro ali já dissera antes, ou não
são tão eles mesmos, conforme se definem. O não percebido é alguns aplausos e atitudes serem na prática incompatíveis. Claro, sempre haverá quem responderá ter sido por educação. Mas não
se é mal-educado ao permanecer em silêncio, apenas coerente, se assim o quiser ser. O político
sendo político, e o artista sendo quem nisso tudo? A pergunta abre uma complexidade muito mais
profunda ao momento em que estamos, pois implica sustentar-se nesse arcabouço perigoso dos discursos e ideologias. Se agiu enquanto indivíduo, o aplauso é um equívoco; se assumiu o papel
de meio, as falas confrontam o próprio ser. Quando alguns intelectuais propuseram a reinterpretação de conceitos centrais ao contemporâneo, tais como sujeito e objeto, algo maior veio a tona.
Sujeito, explicam, é aquele que se sujeita, convidado a agir por um acontecimento, e não quem provoca o acontecimento a partir de si. Existir objeto significa objetar, contrapor-se, não se sujeitar
ao papel e funcionamento dado ao sujeito. Diante o ruído incoerente dos aplausos, tentando com-
preender o que profundamente significaria o instante, assisto uma parte de indivíduos agindo ao outro confusos: acreditando, pois, serem sujeitos de suas escolhas, quando, na verdade, estavam
se sujeitando ao contexto que lhes fora determinado. Estabeleceu-se, por fim, uma atmosfera artificial, teatral, encenada por ambas as presenças, e que, curiosamente, sobretudo por ser a maioria quem era, não fora capaz de identifica-la, ainda que explícita.
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esse catorze de março começou mais uma edição da MITsp. As falas e pronunciamentos terminam, e me preparo ao espetáculo de abertura pensando sobre como esperar que seja
ele mais do que somente um espetáculo - tanto aos que lá estão, quanto ao público em geral e até às pessoas que só se encontrarão com a peça a partir de seus ecos e desdobramentos junto aos
imaginários e respostas daqueles que lhe assistir -, se nem mesmos os artistas de teatro identificam as encenações que os envolvem, acabando sugados ao interior das manipulações pueris, oportunas e circunstanciais. O espetáculo acontece. Seguimos ao coquetel. Abraços, risos, comentários,
alguns agradecidos, alguns decepcionados, encontros, saudades, manifestações variadas, e no
todo a consciência da qualidade singular do assistido e das oportunidades ao pensamento. Mas,
do lado de fora, mais adiante, já com a porta trancada, o parque vazio, com poucos resistentes em uma conversa que insiste pela madrugada, meus incômodos permanecem e ecoam. Se é preciso tar diante o mundo. Se a encenação que se impõem nas relações supera o acontecimento do tea-
tro, radicalmente ainda mais quando este se quer arte, então talvez seja preciso reinventar a condi-
ção de sua experiência. Algumas respostas precisam de tempo e trabalho, existem e não são nada simples; outras, apenas de bons sensos, coerências e ética. Ah, não, essa palavrinha outra vez...
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foto Nereu Jr
reinventar o modelo de negócio, é urgente também reinventar-se para descobrir como se apresen-
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Uma Mostra Internacional precisa ser percebida ao tempo, pois está na convivência com a diversidade sua dimensão mais profunda sobre a produção contemporânea. Nesta Edição Especial realizamos pela segunda
crítica vez outra qualidade sobre a
Escrita Crítica: os espetáculos serão colocados em perspectivas a outros que participaram da MITsp nos anos anteriores. Uma maneira de ampliar o pensamento, a percepção, a experiência, os convívios e olhar ao presente e ao teatro com mais amplitude e curiosidade.
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MDLSX cinderela de Joël Pommerat (3a edição _ 2016)
A Repetição. História (s) do Teatro (I)
Mágica de Verdade
senhorita julia de Katie Mitchell (2a edição _ 2015)
Paisagens para Não Colorir
Árvores Abatidas de Krystian Lupa (5a edição _ 2018)
Compaixão. A História da Metralhadora Democracia 26
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O Alicerce das Vertigens
Sobre o conceito de rosto no filho de Deus
Cinco Peças Fáceis
de Romeo Castellucci (1a edição _ 2014)
Revolting Music de Neo Muyanga (3a edição _ 2016)
Manifesto Transpofágico Altamira 2042
eu não sou bonita de Angélica Liddell (1a edição _ 2014)
Woyzek
Partir com Beleza
de Andry Zholdak (2a edição _ 2015)
A Boba Stifters Dinge de Heiner Goebbels (2a edição _ 2015)
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dobra crítica
A Repetição. História (s) do Teatro (I)
senhorita julia
O efeito de real através das realidades aumentada e virtual Por Ana Carolina Marinho
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dobra crítica
C
omo começar um texto? A folha em branco é o anúncio de um por vir ou a
concretude do nada? Sento em uma cadeira, diante do computador, e
digito algumas palavras, aperto “enter” e escrevo algumas frases, mesmo que não sirvam exatamente ao texto que terei de escrever. É que não consigo
encarar a página em branco, ela não me estimula. Com as palavras soltas no documento tenho a impressão (mesmo que falsa, é uma impressão) do pensamento já saber por onde caminhar. Uma sensação de que controlo o percurso das palavras, que sei bem como conduzi-las (ainda que isso não seja verdade). É que a imagem da folha um pouco preenchida já é uma realidade, o texto como imagem já existe e acredito no que vejo. E é exatamente partindo desse ponto - de como a realidade se impõe diante da visão e de uma (falsa) impressão -, que aproximarei os espetáculos “A Repetição. História(s) do Teatro (I)”, de Milo Rau, apresentado na 6a edição da Mostra Internacional de Teatro e “Senhorita Julia”, de Katie Mitchell e Leo Warner, que integrou a 2a edição. Os dois espetáculos utilizam-se da linguagem cinematográfica para a construção da narrativa teatral: a manipulação ao vivo da câmera e sua projeção simultânea tornam o palco um set de filmagem. O teatro permanece em plano aberto, ainda que recortado pela luz que pode mudar os valores dos planos, pois a distância entre o personagem e o espectador permanece a mesma; é, porém, no filme, que os planos detalhes e os closes são possíveis, só a câmera é capaz de oferecer ângulos com tamanho detalhamento e precisão aos olhos da plateia que permanece sentada em suas cadeiras. Em “Senhorita Julia”, por vezes, são os próprios atores que manipulam as câmeras. O distanciamento provocado pela saída do ator da cena dramática à operação tecnológica dos equipamentos não é mediada por uma fala, por uma narrativa que elucide os diversos lugares de representação dos atores. A encenação é o jogo de realização do filme. O espectador atrita a ilusão de realidade provocada pelo cinema com a
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a repetição <> senhorita julia _ Por Ana Carolina
fabricação dos efeitos visuais e sonoros construídos no teatro. É ilusão antes de tudo. O ator é, ao mesmo tempo, a imagem e o produtor dela. Em alguma medida, poderíamos dizer que o personagem/ator, ao manipular a câmera, torna ela uma subjetiva de seu olhar. Ou seja, quando a atriz que interpreta Julia manipula a câmera para focar em Cristina, é também o olhar de Julia sobre Cristina. Em “A Repetição. História(s) do Teatro (I)”, por sua vez, a encenação é construída a partir do dispositivo de construção de uma peça de teatro e da seleção de atores para tal. A câmera é manipulada por operadores que não são do elenco. Nos primeiros momentos do espetáculo, a câmera filma e projeta em tempo real. É quando o ator vai reencenar o momento em que o homem caminhando com seu cachorro encontra o corpo de Ihsane Jarfi, que o jogo com a artificialidade ganha seus contornos. No palco, vemos o ator com o braço esticado segurando uma coleira imaginária. A câmera filma apenas seu rosto - e diante do histórico das imagens antes projetadas - acreditamos que ela está ao vivo. Ao alcançar mãos e pernas do ator, percebemos ser uma gravação, já que na imagem projetada o homem está segurando de fato uma coleira e um cachorro. É a primeira vez que o recurso de realidade aumentada é usado e passa a mobilizar o espectador a desvendar os mistérios da encenação. As duas peças criam a ilusão de realidade nas imagens projetadas que oferecem a sensação de maior verossimilhança que o próprio teatro. Já que é exatamente quando olhamos para o palco que vemos a artificialidade da cena, a construção dos efeitos, a engrenagem da realidade sendo fabricada. Os espetáculos atritam o lugar do cinema e do teatro ao provocar um espanto de linguagem. O teatro, experiência mais concreta, parece não ser tão verossímil quanto a virtualizada e reprodutível pelo cinema. Em alguma medida, avanço a reflexão para compreender o que nos impede de conectamo-nos com a realidade crua e precisarmos do amparo virtual para legitimar a própria realidade. Como se estivéssemos sempre suspeitando haver mais naquela imagem, algo que não fomos capazes de absorver por conta da limitação sensorial ou pela coibição
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dobra crítica
de uma força maior. É por isso que os vídeos em “Senhorita Julia” estão mais próximos da ideia de uma realidade virtual, enquanto em “A Repetição” se aproximam da realidade aumentada. No primeiro, a ideia de virtualidade está próxima da capacidade em se criar um novo ambiente, por meio de efeitos (no termo original, o computador e, aqui, as câmeras), se constrói um novo ambiente: um rebatedor de luz, por exemplo, faz parecer entrar um sol forte pela janela (ainda que seja noite). Em suma, a realidade está sendo construída diante de seus olhos e lhe transporta para outro lugar. É por isso que nos sentimos dentro da casa de Julia, que entramos na cozinha e chegamos perto das personagens, como se pudéssemos tocá-las. Há um prazer visual nisso tudo, provocado pela habilidade de sensualmente nos transportar para dentro de uma realidade simulada ilusória, porém, familiar. Em “A Repetição”, por outro lado, o espectador vê coisas surgirem que não estão diante de seus olhos, não vemos o efeito construindo a ilusão como na peça anterior, o vídeo sobrepõe objetos, pessoas e animais ao ambiente físico, burlando nossa capacidade visual. É essa mistura de mundos reais e virtuais, em algum ponto da realidade/virtualidade, conectando ambientes completamente reais a ambientes completamente virtuais, que se adensa a encenação de Milo Rau. Ainda que não percamos o sentido de presença, a realidade aumentada na montagem belga contribui para uma sensação de desmaterialização do corpo, em que a nossa materialidade corpórea pode se tornar um objeto virtual. Milo Rau aproveita-se disso para desenhar toda a direção, ainda que saibamos que em cena há atores profissionais e amadores, ficamos com a pulga atrás da orelha na distinção desses termos. Há um equilíbrio nas atuações que nos conduzem a duvidar das convenções. É na cena final que o teatro retoma para si a força da presença e a realidade. O ator sobe na cadeira para se enforcar em uma corda pendurada no teto, avisa que só sobreviverá se alguém o ajudar. Naquela apresentação, assim que ele sube, porém, sem querer escorrega e os outros atores se mobilizam para ajudá-lo. Ele, então, volta para cima da cadeira e põe a corda em seu
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a repetição <> senhorita julia _ Por Ana Carolina
pescoço. Sentada na cadeira, sinto um aperto no estômago, temo que ele de fato se jogue da cadeira e se enforque. Mas não me movo. O teatro volta com seu estigma de ilusão de realidade ou o espectador é que virou uma realidade virtual? Nós viemos só pra ver - e alguns para beber e encontrar as pessoas no coquetel pós-espetáculo - e não tememos agir. Ainda mais agora, que nos demos conta de como tornamos ordinária a violência em nosso país. O espetáculo se horroriza diante de um assassinato praticado contra um jovem homossexual na Bélgica, um caso de exceção na pacata cidade de Liége. Enquanto isso, nos espantamos em como os homicídios crescem exponencialmente no Brasil. Tenho que terminar a reflexão. Mas como terminar esse texto se, enquanto o escrevia, a folha em branco foi se manchando de sangue? Nas três horas que levei digitando, 21 pessoas foram assassinadas nesse país. Essa é a maior de nossas realidades. ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _______________________________ _______________________ __________________________________________ ____________ _____________________________________________________ _ ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _______________________________ _______________________ __________________________________________ ____________ _____________________________________________________ _ ______________________________________________________ _______ _______________________________________________ ______________ ________________________________________ _____________________ _________________________________ _____________________________ Leia a crítica sobre _________________________ ________________________________________ “Senhorita Julia”, por Ana Carolina ______________ ___________________________________________________ Marinho, em nosso fotos huberto amiel e nereu jr. especial MITsp 2015.
a repetição
diário sensível
Diário Sensível_ano3 é uma proposta da Antro Positivo em criar imagens poéticas autorais como desdobramento de um espetáculo, gerando um convite à reflexão. Acompanhe durante a publicação.
por patrícia cividanes 36
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a repetição
diário sensível
por Anna Zêpa 38
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fora do teatro, chuva. dentro do teatro, chuva. quando tragédia, chuva. quantas chuvas tocam uma vida sem vida?
o pior acontece. alguém sempre sabe quando o pior acontece. quem fez é a primeira pessoa a saber quando o pior acontece. quem fez conta? alguém, depois de quem fez, sempre é a primeira pessoa a saber quando o pior acontece. como contar o que não se viu? como não contar o que se viu?
o teatro dá conta do que não viveu? de quantas versões é feita uma história? os que viveram, os que fizeram, os que não viram, os que sentem todos os dias, os que se perguntam todos os dias, os que ouviram, os que filmaram e os que contam a partir do que ouviram dão conta do que não se viu?
quantos não-saberes montam uma história? o mal banal, a anatomia da dor, a solidão do outro, o crime dos vivos e o coelho afetivo se repetem na Liège dos irmãos Dardenne.
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a repetição
diário sensível Jazigo Para Flávio tua verdade entrecortada tuas palavras entaladas teu desejo interrompido de falar teu olhar pássaro curioso vôo ao redor vagueando como quem busca e não encontra repouso teu afastamento não compreendido minha curiosidade reprimida teu desejo mudo dança pulsa o celular novo os shorts novos de surfista a nova camisa oficial do time teu rosto escondido pela aba do velho boné soltos os pássaros não voam a tentativa do namoro a não realização teu retorno ainda mais silencioso novos rodeios ao longe como quem sabe que precisa encontrar ainda vejo tuas asas duras penas ainda ouço a violência mudez ensurdecedora minhas perguntas reprimidas não questiona quem te abraça
por barbara santos 40
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teu desejo por dançar meu encorajamento teus passos duros e fora de tempo tua mão grossa espalmada na minha para nosso pax deux teu desejo por atuar nossa peça nossa crença nossa tentativa o verbo que não se fez carne a alma separada do corpo a cena que nunca fizemos e tua mão espalmada imensa na minha capazes, não sabia do nó da vida de quem veio para não se conformar a corda comprada amarrada a cadeira empurrada o público que não estava para te aceitar foi o mesmo que depois veio fotografar hoje meus olhos cegos de doze anos despertam curiosos vagueiam buscando e não encontram pouso por não terem sido céu para teus intensos vôos (Flávio, de dentro do jazigo para Ihsane faço para ti este, já que estais aqui e ele também, no real do meu inconsciente, no real do nosso passado presente e que permanece sufocado em minha garganta)
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dobra crĂtica
O Alicerce das Vertigens
Revolting Music
Os gritos incontrolĂĄveis das Revoltas Por ruy filho
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ão deveria ser assim. Na verdade, não poderia ser. No entanto é, e o mundo, cada vez mais, parece estar despreocupado em se fingir compartilhável. Não o mundo, literalmente, mas o quê ou quem torna-o concreto ao indivíduo. E são sobretudo os próprios indivíduos, os que lhe determinam existir como espaço de isolamento, anulação, dor, horror e crueldade. Enquanto o planeta sobre-
vive ao humano, o homem se disfarça pelo pior que consegue, estabelecendo com isso a ambiência pouco aceita à vida, inclusive a sua própria. Elabora guerras, massacres, perseguições, preconceitos, julgamentos e punições nada verdadeiros criados para sustentar estruturas de dominação e poder. Todavia, só dá para chegar a tal propósito atacando e anulando as diferenças que confrontem ou problematizem seus planos. Seria esse nosso aspecto mais próximo à natureza: a violência pela qual um impõe ao outro? Não significa, porém, mesmo após percebida a distorção consciente e nada casual desse primitivismo pré-civilizatório insistente, que as ações e tentativas necessitem de artifícios como humilhação, tortura, estupro, mutilação, doutrinação forçada e outras violências igualmente incompreensíveis. Há prazer em realizá-las. Tais gestos traduzem menos a vontade de superar defensivamente o outro, sob o argumento da sobrevivência, o que seria nossa suposta lição ao observar a natureza, e mais a interpretação moral do que significa ao homem quando se imagina superior. Ataca-se, então, o outro, em tudo o que lhe for minimamente dignificante: da cultura à sociabilidade, do convívio ao respeito, da participação ao pertencimento, da história às experiências, do espaço ao ambiente, do corpo ao pensamento. São épocas e sociedades atingidas, atacadas e destruídas por sistemas idealizados com o único propósito de se chegar ao mais profundo no outro. Pensemos nas escravidões. Pensemos nas ditaduras atuais e suas brutalidades sobre os direitos básicos. Pensemos no quanto praticamente tudo isso tem sido, desde sempre, a história de povos inteiros, de um continente inteiro, de uma raça inteira, de uma cor sob milhares de justificativas absurdas, desde as religiosas até às cientificistas. O que
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corre sem perspectivas de imediata melhora, na África, principalmente, é a soma cruel da colonização e dos estímulos pós-coloniais que sustentam a presença de alguns dos piores genocidas e terroristas pragmaticamente tornados líderes, para sustentar o contexto exploratório pelo capital. O mundo seguiu por séculos ignorando essa condição imposta. Hoje, observa-a, o que ainda é inaceitavelmente pouco. Mas começa, enfim, a sentir ecoar, esbarrar e atingir sua tranquilidade branco-liberal, expondo-lhe às consequências do óbvio daquilo que ele mesmo provocou. Pois o homem não é tão simples de domar, acostuma-se por falta de saída, e no convívio ininterrupto de séculos com tanta dor e sofrimento aprende a encontrar suas maneiras de sobreviver e reagir. Não se controla a vontade de existência de uma revolta quando libertos os indivíduos de seus temores. E é sobre como dar maiores eficiências poética e estética às revoltas, principalmente, que trata esse texto, ao aproximar o espetáculo O Alicerce das Vertigens, de Dieudonné Miangouna, apresentado na atual edição da MITsp, a sexta, e o Revolting Music, de Neo Muyanga, trazido à terceira, ocorrida em 2016. Ao aproximarmos a palavra revolta, de imediato nos lembrarmos de ações violentas, reativas, destrutivas, vingativas, sejam a pessoas específicas, como um líder ou inimigo, sejam a circunstâncias ou projetos. Revoltar-se significa contrapor-se; revolta, já na qualidade de acontecimento, amplia à insubordinação explícita pela qual o gesto se torna manifesto desejante de transformação. Existem muitas variantes nessa transposição do sentimento ao ato, assim como são muitas as maneiras de expurgá-lo. Entre o desejo substitutivo que determina a anulação do outro para assumir seu espaço, papel e função, também estão as insurgências e insurreições, cujas particularidades incluem subversões às ordens estabelecidas e às tentativas de organizações de novas ordens que mantenham quaisquer traços ou origens nas combatidas. O que, ainda, não é o mesmo da recusa plena à qualquer ordem, tal como propõem os anarquistas mais radicais. Antes de existir nesse sentido evidentemente mais prático, a revolta violenta a própria percepção do indivíduo que a expôs. África ou
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Áfricas? O que parece ser apenas retórico, não o é, e implica na compreensão do outro a partir de parâmetros específicos. Ao tratar o continente como unidade, anula o indivíduo de suas muitas características históricas, culturais, religiosas, sincréticas, originais, ancestrais. Mesmo com a melhor das intenções, o africano é o negro internalizado em um continente, e passa a ser restringido a essa qualidade. A evidente catalogação do outro diz mais sobre quem a realiza do que quem é listado. A negritude posta em primeiro plano institui por princípio a diferença inquestionável pela qual deva ser compreendida. E este é o primeiro aspecto dado ao surgimento de uma revolta íntima e inconsciente: a da distinção primordial. Fora o escritor nigeriano Chinua Achebe quem melhor confrontou tal distinção ao se apresentar não primeiramente como negro, e sim como escritor. Ao se definir um escritor negro, Chinua não recusa a negritude ou africanidade; opta por diferenciar com precisão o que seria ao ser assim, do que viria a ser, se um negro escritor. Portanto, ao não ser percebido anterior à própria negritude, o indivíduo encontra-se, desde sempre, submetido àquele que lhe define, estabelecendo uma subjetividade padronizada e animalizada, quase que como uma espécie particular. Após as muitas graduações da animalização do indivíduo que atuaram e atuam sobre sua subjetividade, desde a formação das colônias até as neocolonizações ditatoriais, restou-lhes a estrutura de uma sociedade destruída, ainda alicerçada pelos valores europeus de outrora. É como se o viver correto tivesse de seguir os parâmetros e métodos importados de uma Europa de décadas passadas, cujo modelo organizacional e estruturante fosse de fato única opção plausível de civilidade. Inclui nisso a moral que tais modelos exigem. Inclui, ainda, a diminuição do outro com certa naturalidade. Também por isso, as histórias apresentadas, quase sempre em solilóquios, que preenchem a narrativa dos irmãos Fido e Roger, a partir do romance escrito por Dieudonné, no espetáculo O Alicerce das Vertigens, são brutais agressões à humanidade dos personagens e dos indivíduos que simbolizam, em variações intermináveis de ações, reações e destruições, após a morte do pai. A figura central à família
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deixa de existir ao tempo em que o país vê sua colonização ocorrer. Não é tão simples, porém, estabelecer nessa dupla violência quem é mesmo metáfora de quem. Um pai morto como figura de um país sucumbindo ao domínio do outro, ou um país destroçado como imagem de um pai fuzilado? O que o espetáculo aponta é a capacidade de narrarmos os mais profundos acontecimentos junto aos mais íntimos, e serem ambos fundantes de desdobramentos irreversíveis às macro e micro historiografias. Por isso as falas individualizadas assumem características não somente dos indivíduos quais representam, também a própria complexidade de uma tradição em que o dizer é especialmente uma maneira de se fazer existir. Dieudonné escolhe dizer e contar ambas as narrativas a partir do dissolver do indivíduo e pelo quanto suas revoltas são destrutivas a tudo ao seu redor. Assim revelam e são os atores, os corpos, enquanto projeta cenas de degolamento e esfolamento reais de animais. E não só. Quase ao final, quando pouco sobra de humanidade aos irmãos e de civilizado à República do Congo, o sangue projetado é humano, trazendo-nos o homem degolado depositado em uma bacia feito um animal qualquer. Parece pouco a narrativa sobre uma família na periferia congolesa de Brazzaville para dar conta da história de animalização que o povo sofrera tantas e tantas vezes e por diferentes dominadores até a atualidade. No entanto, pensar o amplo a partir de algo próximo torna as consequências mais possíveis de serem percebidas. Dieudonné cria seu próprio registro e compreensão dos acontecimentos na subjetividade de seu povo ao compreendê-lo como comunidade singular, junto ao qual só conseguirá estabelecer novas existências se atingi-lo em sua intimidade, sua individualidade, para nelas reconstruir uma identidade ampla e comum, não apenas nacional. Há nessa tentativa de tornar diversos o um outra qualidade de pensar a si e o todo, não mais a partir dos modelos eurocêntricos, posto estes inverterem a lógica do todo determinar o único. A isso, o filósofo queniano Henry Odera Oruka denominou, em suas quatro distinções da filosofia africana, por Sagacidade filosófica, em contraposição às outras possibilidades de estruturação do pensamento, tais como a Etnofilosofia, Ideológica nacionalista e a Filosofia profissional ocidental.
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A violência em O Alicerce das Vertigens segue para além da verborragia e imagem, está na estetização pobre de uma cena limitada a alguns elementos, em que preza certo tom previsível e pouco atrativo. A crueza do exposto, por conseguinte, acumulam-se ao dito e as narrações acabam por condicionar o palco a uma ilustração desnecessária. Não se trata, então, de um espetáculo de encenação, propriamente, mas de ambientar o espaço cênico ao contexto do narrado pelo ator. Por ser difícil acompanhar a velocidade do que é dito, seja pela agilidade da legenda, seja pela sobreposição do sotaque ao francês, a estetização, tal como é, fragiliza ainda mais a sedução do espectador. Afinal, a revolta na voz não acontece com igual eficiência aos olhos, e a própria continuidade da experiência, que tanto pede o acúmulo das muitas violências, acaba perdendo-se em inevitáveis escapadas. Com uma imensa e fundamental ressalva: a presença do próprio Dieudonné quase ao fim. Por ter sido condenado à morte no Congo, o artista mora agora na França. Sem ter o passaporte francês e sem conseguir renovar o original, o diretor não pode estar em São Paulo. Sua ausência física poderia ter interferido ou enfraquecido mais o espetáculo. No entanto, o vídeo enviado fora suficiente para expandir o assistido, até então. Nada fora mais impactante do que a revolta incontrolável do que se viu. Sua voz, seus gestos, sua vontade, seu ódio, sua violência foram mesmo o melhor do espetáculo, e bastariam para trazer aquilo que a mais de uma hora anterior tentara. Deixamos de ouvir uma história (ou histórias) e suas complexidades simbólicas para encontrar ao mais real o que no artista lhe obriga a criar o que cria. Dieudonné é sobretudo a pulsão de uma revolta incontrolável que não se limita a atingir, quer destruir, e nada parece escapar a esse projeto. Entre textos, vídeos, presenças, performances e Dieudonné bastariam sua escrita e ele. O restante acaba superado e tornado apenas teatro, naquilo que se pode entender por mais previsível e comum à linguagem. Ao espectador, ainda assim, a revolta assume a violência de ser profundamente desagradável. E por isso comove, por vezes até mesmo ao silêncio. Como dito antes, este texto aproxima O Alicerce das Vertigens a outro espetáculo: Revolting Music, de Neo Muyanga, principalmente por suas di-
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ferenças. Costurando dramaturgicamente as canções de protestos emitidas pelos movimentos estudantis em Soweto, durante a libertação da África do Sul, discursos políticos e músicas pop românticas atuais, como valores do que denominou por incompletas novas revoluções, o músico performer estabelece outra qualidade de acesso e compreensão às revoltas e ações. Faz da fala a urgência de uma voz que busca ao dizer argumentos e oposições às condições sociais, culturais e políticas então estabelecidas. Dessa maneira, as canções são também dizeres sobre o ontem, o ocorrido, o passado ainda em atuação sobre os indivíduos e corpos, e o amanhã, as possibilidades, o futuro de outra qualidade de existência e pertencimento. O espetáculo coloca em observação mútua luta e esperança, propondo olhar ao amar como igualmente revolucionário. Por isso escolhe cantar e acerta ao fazê-lo. Do contrário, a fala se tornaria discurso, e este não se sustentaria ao tempo, por mais que o desejássemos. A música, diferentemente, não estrutura o indivíduo a partir de sua manifestação racional, apenas; institui um estado emotivo pelo qual o inconsciente pode ser alterado ao convívio das sensações recebidas. Trata-se de compreender a revolta como uma reação de dentro para fora, cuja modificação do sujeito transfere à ambiência qualidades novas, reestruturando seu funcionamento lógico e suas manifestações. Ao cantar canções de revoltas, os estudantes, além de jogar ao mundo suas mensagens, assimilavam seus próprios desejos de torna-las reais. O que se sabe é que sim, as músicas moldaram os indivíduos e o entorno com profundas e incontroláveis reações. Durante a apresentação de Revolting Music, Neo Muyanga optou por não ter legendas. O aparente paradoxo, uma vez que o cantado revelava as palavras, dizeres e desejos contidos nas revoltas. No entanto, informados sobre do quê se tratavam as músicas, o espectador foi posto à outra qualidade de experiência: ouvir como exercício de sensibilização. Dessa maneira, a sonoridade era a informação maior às sensações, enquanto a música ampliava-se para além das letras e mensagens, a partir de um estado dramatúrgico de signos possíveis. Ora, então, emocionava com o que se projetava e idealizada aos sons; ora surgiam desconfianças
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dobra crítica
diante o estranhamento de sua banalidade musical. Era o confrontamento entre a revolta efetiva e o romantismo pueril que buscava a dramaturgia de Neo, sem que necessitasse maiores explicações. O inevitável, por conseguinte, era a individualização do espectador que percorreria com percepções distintas cada instante, mas tendo por igual a certeza das distâncias. Deslocar o indivíduo fragiliza qualquer argumentação definitiva e o contexto dado à revolta se torna ainda mais subjetivo, problematizando, de certa maneira, a percepção da própria crise sobre a identidade, tão presente na filosofia ocidental. O camaronês Marcien Towa explicará, já no início dos anos 2000, estar essa filosofia da identidade, na verdade, permeada por diversas ideologias que, uma vez em desconstruções no contemporâneo, provocam a própria crise em questão. Para o filósofo, ao olhar à África, torna-se evidente a urgência do ocidente, após perceber a crise, agir sobre os demais povos, afim de operar por sistemas de opressão sobre seus direitos. Ou seja, ao intervir sobre a identidade do outro, o ocidente sustentaria parte de suas próprias ideologias. Seria, então, pela cultura e não mais pela civilização que os povos suprimidos de suas identidades se reencontrariam. A Cultura como espírito ativo, reação racial, diz Towa, atividade essa capaz de produzir principalmente obras cuja união ao seu contexto constitui a qualidade de uma civilização novamente independente e singular. Ao cantar, os estudantes sul-africanos estabeleceram exatamente os instrumentos para o surgimento de uma outra perspectiva de cultura às suas revoltas; e as canções se validaram simbolismos estruturantes ao reconhecimento de uma identidade comum e, radicalmente, comum pelas soma de suas individualidades. Entre a violência explicitada em muitas dinâmicas cênicas por Dieudonné Miangouna e a subjetividade de uma experiência poética um tanto enigmática proposta por Neo Muyanga, o espectador pode encontrar duas possibilidades de convivências a estados de revolta contra sistemas de opressão e anulação do indivíduo, interessados em combater ora sua animalização ora sua desintelectualização, a partir de experiências culturais
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distintas como as estabelecidas nas ações congolesa e sul-africana – e que, por tamanho distanciamento e distância qual mantemos do continente africano, acabamos simplificando como iguais. Diante uma realidade tão violentada pela exposição da dor, do terror, do medo, do conflito, do agressivo, do perigo, da destruição, do sadismo, ainda assim a violência expurgada por Dieudonné abriu profundos acessos a boa parte da plateia. Do mesmo modo, no convívio com o poético de uma sugestão narrativa sobre o desejo afirmativo de luta e conquista, alguns espectadores deixaram o teatro, em 2016, profundamente transformados com a interpretação que eles próprios deram às canções. Direto ou íntimo; aos gritos ou doce; violento ou gentil. Ambos os espetáculos expuseram as entranhas de suas áfricas e os abismos de suas sobrevivências e tentativas. Todavia, trata-se a MITsp de uma mostra de teatro, e precisamos também concluir os espetáculos em relação a isso. E nesse aspecto, ainda que Revolting Music se realize na qualidade de um show estruturado dramatugicamente, e sendo O Alicerce das Vertigens evidentemente mais teatral, Neo é quem atinge maior precisão ao pretendido, ainda que não seja mesmo tão arrebatador quanto poderia se tivéssemos acesso às falas. Dieudonné, diferentemente, precisa dar conta de sua explosão, simplificar ao máximo até ser ele o interessante em seus espetáculos para se permitir acontecer em plenitude máxima. Falta ao congolês fundir artista e indivíduo e assim radicalizar mais profundamente até ser realmente uma incontrolável revolução também ao teatro. Por hora, Dieudonné teatraliza demais tudo aquilo que seus olhos e escrita já superaram faz tempo. ______________________________________________________ _________ _____________________________________________ ____________________ __________________________________ _____________________________ _________________________ ____________________________________ __________________ ___________________________________________ ___________ ___________________________________________________ Leia a crítica sobre ___ ______________________________________________________ ________Music”, “Revolting por Ana Carolina ______________________________________________ ___________________ Marinho, em nosso fotos guto muniz especial MITsp 2016.
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faรงa um orรงamento
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Woyzek
A obra de arte suspensa: o artista não é Sísifo Por ana carolina marinho
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xistem experiências e obras que adensam a reflexão quando, previamente, sabemos de informações sobre o processo de criação ou sobre o artista. Para alguns, a obra precisava bastar em si, para outros, ela se complexifica na apreensão de tais conhecimentos. Junto-me aos últimos: a obra é sempre um trecho, um espaço de vida diante da vida dos criadores. Algumas vezes saio
de um espetáculo com a impressão de haver algo por trás que motivou tais escolhas, mas que desconheço, e, desconhecendo, não consigo dialogar, porque sinto minha percepção limita. Falar sobre “A Boba”, de Wagner Schwartz, encaixa-se nessa série de espetáculos que carregam consigo uma sequência de acontecimentos, convocam pontes com memórias e fatos que intensificam o diálogo com o público, se este obter acesso a eles. Wagner foi, em 2017, acusado de pedofilia, após um vídeo de sua performance “La Bête”, divulgado na internet, revelar uma criança, na presença de sua mãe, interagindo com seu corpo nú. Ainda que inocentado, os constrangimentos e o sofrimento vividos pelo artista estão inscritos em sua pele e movimentos. Em “A Boba”, o performer utiliza-se de um dispositivo para a construção do espetáculo: manter de pé a obra homônima de Anita Malfatti sem o amparo de ganchos e pregos. Seria possível uma obra manter-se assim, em equilíbrio, sem a presença de outro corpo que a sustente? Em alguma medida, a dificuldade em vão exposta e dilatada em equilibrar o quadro sem uso de apoios revela o mesmo caminho da minha inquietação inicial: a obra não se finda em si, ela não é a totalidade; é sempre preciso convocar outro corpo (ainda que seja um objeto) para o acontecimento ganhar a dimensão de obra. Durante 50 minutos, Wagner tenta laboriosamente fazer o quadro ganhar consciência e pôr-se de pé; ele o ajuda em tal empreitada, mas o quadro é relutante e convoca a presença do performer até sua exaustão. Não há obra sem um artista e tampouco sem o público. Os quadros, expostos em museus, perpetuaram a convivência com o intocável, aproximando dos deuses - e distanciando das pessoas - a
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criação. Wagner rompe essa lógica, segura a reprodução de um dos quadros mais relevantes da artista brasileira Anita Malfatti e retira-lhe a aura do intangível. A busca incessante e frustrada em manter a obra em pé durante a primeira parte do espetáculo gerava desconforto na plateia que se sentia ora desamparada pelo artista, ora desamparada pela obra de Anita. Depois de instantes, fui deslocada para um estado de transe meditativo, em que o quadro parecia não ficar de pé por obstinação - ou carência. Qual o esforço da obra em dialogar com Wagner? Há uma sensação de inacabado, de que o espetáculo se encerra por descuido do tempo, exaustão do criador. É nessa medida, que aproximo “A Boba”, apresentado nessa edição da Mostra, e “Woyzeck”, de Andriy Zholdak, que compôs a 2a edição. Georg Büchner escreveu a peça “Woyzeck”, mas não a concluiu, pois faleceu precocemente. A montagem ucraniana dividiu os espectadores em quem embarcou enlouquecidamente na viagem vertiginosa e quem quis ir embora nos primeiros minutos por indigestão. Na ocasião escrevi ser o espetáculo uma odisseia visual da catástrofe, que a impressão era ter sido construído no intervalo entre bombas, que o horror e a instabilidade que operam no dia-a-dia do país entrava na sala de ensaio e perpetuava na criação de uma obra apoteótica, uma experiência de fim de mundo, em que as pessoas não se ouvem, só gritam e vociferam. Por oposição, “A Boba” se utiliza de estratégias distintas e alcança sensações similares. Ambos revelam a fragilidade dos artistas que, inseridos em seus tempos, sofrem sanções, censuras, oposições. Em Wagner e Zholdak, as experiências de frustração ou cerceamento revelam-se mais explosivas que a miséria absoluta. Como cada corpo reage às imposições? Como dialogar com a guerra moral imposta no cotidiano? O espetáculo brasileiro é silencioso, minimalista, há uma fragilidade escancarada, alimentada pela falsa moral do sistema opressor. Assim como o personagem em Woyzeck, Wagner criou atritos por romper com as lógicas da moralidade. O primeiro, diante da restrição e obrigatoriedade
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em só comer ervilhas, alcançou estados delirantes; o segundo, diante da investida em sustentar sozinho uma obra de arte, sucumbiu. Wagner, então, revela que não está fadado ao destino trágico de Sísifo. Ele não precisa carregar ininterruptamente a obra de arte até o topo da montanha de onde ela rolará de volta. Ele pode e decide suspender a travessia. A obra, mesmo que inacabada, é uma obra, já nos revelara Büchner. Tanto a montagem brasileira quanto a alemã escancaram a catástrofe moral das sociedades em que se inserem. Cada uma ao seu modo. Como diz Jean Baudrillard, o efeito mental da catástrofe é interromper as coisas antes que tenham um fim e mantê-las assim no suspense. E há muito não pisamos o chão. ______________________________________________________ ________ ______________________________________________ __________________ ____________________________________ ____________________________ __________________________ ______________________________________ ________________ ________________________________________________ ______ ______________________________________________________ ___ ___________________________________________________ _____________ _________________________________________ _______________________ _______________________________ _________________________________ _____________________ ___________________________________________ ___________ _____________________________________________________ _ ______________________________________________________ ________ ______________________________________________ __________________ ____________________________________ ____________________________ __________________________ ______________________________________ ________________ ______________________________________________ ________ ____________________________________________________ __ ______________________________________________________ ___ ___________________________________________________ _________ Leia a crítica sobre _____________________________________________ “Woyzek”, por Ana Carolina Marinho, em nosso especial fotos guto muniz MITsp 2015.
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Modernismo terminou. Talvez. Identifico-o, aqui, em maiúsculo por dois motivos: por qualificar e ser a denominação de um movimento estético específico e por determinar uma época na história. Cada vez menos teóricos, filósofos, pesquisadores e intelectuais conseguem estabelecer conclusivamente qual provocou qual. Alguns insistem ser a estética con-
sequente à observação de uma época que incluía novos valores, hábitos, instrumentais tecnológicos e científicos, conquistas sociais e comportamentais; outros, invertendo o argumento, apontam o quanto as manifestações artísticas influenciaram tais transformações a partir de suas proposições. Entre uma e outra leitura está o entendimento comum de que, seja por quem e como for, a modernidade iniciada séculos passados implica no reconhecimento de sua condição ser reinventar e modificar o homem, o meio e a maneira de se compreender e representar. Seguindo adiante, Gilles Lipovetsky confrontará o contemporâneo a uma espécie de hipérbole da modernidade, naquilo que definiu por hipermodernismo. Surgiu nesse conceituar próprio a contraposição fundamental ao outro argumento: serem as últimas décadas uma espécie de pós-modernidade. A aparente oposição entre as conceituações diz respeito não apenas às nomenclaturas ou defesas retóricas. Sendo Modernismo o movimento e instante em que a reinvenção (ou invenção de fato) significou substituir com explícita constância, o pós se valeria pela interrupção desse gesto, compreendendo os acontecimentos e respostas pelo viés acumulativo, pela combinação, sobreposições não mais hierarquizadas, em busca de instituir modelos definitivos. Para Lipovetsky nunca deixamos de querer substituir e superar, e mesmo o acumulativo se comprova apenas estratégia para iniciar possibilidades de reinventar o existente. Seria isso, então, uma radical e profunda necessidade de modificar algo para lhe instituir processos, possibilidades e ambiências possíveis de capitalização, apenas; segundo tem escrito recentemente, organizado e instituído cada vez mais por princípios estéticos. Olhando a muito disso também, Bauman formulou sua percepção inter-
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mediária colocando o homem de volta enquanto dispositivo, percebendo ser da condição humana o se relacionar com sentimentos, pensamentos, gestos, escolhas de modo transitório, ou, em seu termo, líquido, pelo qual fundou toda uma ampla filosofia. É inevitável, a partir disso, olhar a essas proposições sem lhes perceber os aspectos políticos pelos quais são apropriados pelas organizações, instituições e poderes, para atuarem sobre a realidade, portanto, o indivíduo, o homem, sua condição, sua humanidade. Diante dos paradoxos impostos de um aos argumentos do outro, é preciso refletir sobre como dar conta de representar esteticamente tamanhas complexidades, visto misturarem hipóteses filosóficas e práticas efetivas. A discussão se torna ainda mais densa quando trazidas às artes cênicas, por suas duas condições estéticas: a primeira, a manifestação propriamente; a segunda, por ser o performer também a afirmação estética do humano, a partir do que sua corporalidade representará aos outros em suas distâncias ou identificações. As escolhas de um artista, então, são tão significativas ao entendimento do contemporâneo quanto são as do seu uso por outros. O que ele informa? O que, ao ser ele, é informado? Ao não existir presente, o que deixa como informação? Não são especificamente questões próprias do nosso tempo. A manifestação do objeto artístico dependente do corpo foi colocada em xeque também nas artes cênicas durante o projeto modernista. Outrora, séculos atrás, o homem fora definitivamente incluído às representações a partir de sua presença junto aos contextos sociais, econômicos, políticos. Aos poucos, perdendo a narrativa da presença, o homem deixou de ser alguém, assumido por uma poética do corpo, tornado algo, mas um algo específico plausível de ser simbólico a muito mais do que seus próprios contextos. Ganha o corpo a liberdade de existir por si, ao tempo em que a arte aproxima as perspectivas mais cognitivistas para sua compreensão. Pelo argumento pós-moderno, o corpo é a possibilidade de agregar em uma única presença diversas qualidades simbólicas, narrativas, discursivas e estruturantes aos discursos poéticos. Pelo hipermoderno,
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o corpo viria a ser a afirmação do indivíduo à constituição do homem em seu projeto de epicentro dominante. Nem tanto um, nem tanto outro, o que se observa é o corpo servir-se a discursos não limitados às traduções, problematizador da própria pertinência à elaboração de uma percepção ao humano de seu tempo. Se também isso parece paradoxal, é pela falsa sensação de serem excludentes. Seria essa a sensação da estratégia do capitalismo estético apontado por Lipovestsky: acreditarmos ser necessário escolher e excluir, apenas para gerar entre nós novas demandas produtivas e de consumo. Tentemos outra maneira, então. Ao invés de eliminarmos, aproximaremos colocando em dialética as escolhas e, assim, olharemos o que um é capaz de revelar do outro, e não meramente questioná-lo. Nessa resenha, tal movimento se faz pela escrita ao tratar de A Boba, de Wagner Schwartz, apresentada durante a 6a edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, e Stifters Dinge, de Heinner Goebbels, trazido em 2015, durante a 2a. edição. A Boba que empresta nome ao espetáculo é, antes, a obra de Anita Malfatti, pintora modernista brasileira que, após estudar na Europa e pintá-la nos Estados Unidos, retorna ao Brasil e se torna ícone do movimento que transformou a cultura brasileira e com imenso impacto sobre a paulistana. Boa parte do que acontecerá por aqui, desde a primeira década do século xx até muito depois, deve-se ao responder, provocar, negar, assumir o Modernismo na literatura, poesia, música, artes visuais, dramaturgia, teoria da cultura, pensamento crítico, gestão cultural e produção da cultura. Assim, A Boba, de 1915/16, não é apenas um quadro a mais, e sim um símbolo do quão distante estávamos dos discursos mais modernos da época. Agredida, descaracterizada, desvalorizada à princípio, a obra assumiu sem defesa a qualidade de um discurso propício ao ataque que se voltava contra quaisquer tentativas de atualizações nas artes. Seu não entendimento não é restrito à técnica, cujo cubo-futurismo se unia ao expressionismo de colorido singular já tropicalizado deformava ainda mais os traços sugeridos do retrato, também ocultava a tentativa de não aceitação aos novos cânones de
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representação, portanto, de modernização do próprio sujeito, diante de uma configuração outra de como compreender o humano. Sendo outro, o homem, igual seria a sociedade e o mundo qual pertenceria. Sendo outra, a humanidade, o mesmo deveria acontecer ao pensamento. Assim, Anita ajuda sem imaginar ou querer a inaugurar a distância que só se alargaria entre público e artista, intelectual e arte, até hoje. No projeto de substituição do tal Modernismo, a modernidade foi exposta arriscada aos ideais, absurda às estéticas. Wagner Schwartz entra em cena sem pressa e traz consigo uma réplica de A Boba. Não por acaso. Também ele se viu destituído de qualquer qualidade ao ter confrontada sua ação artística. Contudo, e mais radicalmente, fora seu corpo nu o incômodo de uma atualidade inaceitável pela sociedade, menos por uma recusa da recepção crítica de sua presença-obra, tal como acontecera com Anita. A diferença está na condição de ser objeto o quadro e da objetificação do corpo, que, dirão os conservadores, não deve ali estar exposto em forma de materialidade narrativa, muito menos se simbólica. Combater o Modernismo, superá-lo, ser pós-moderno, então, confunde-se, em alguns instantes, com a perspectiva de negar o seguinte, o próximo, o outro. No caso de Wagner, aos ataques não bastavam querer a destruição de sua ideia, acabar com sua arte, destruí-lo como se faz a uma pintura que não se quer; era fundamental entendê-lo tela e extinguir o objeto, o símbolo, o corpo, a presença, sua existência, o sujeito, sua humanidade. Sendo assim, A Boba, o espetáculo, não se restringe a ser um encontro entre o performer e a obra icônica, mas o espelhamento de um no outro, pelo qual ambos se confundem discursos pretendidos à arte e respostas não convidadas às obras. Wagner observa a tela e parece querer compreender a si; A Boba o espera como quem não sabe o que dizer, a não ser sobre o passado. Mas quanto o ontem ainda é suficientemente capaz de nos avisar sobre o amanhã? Na onda de um conservadorismo crescente global está a dinâmica das falências. Ideais se tornaram projetos; realizados, como seria óbvio, não cumpriram suas utopias, e agora são confrontados tendo eles próprios de
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contra-argumentos às suas anulações. Não é sobre ideais, então, posto a frustração ser essência às utopias; o mundo experimenta a falência do projeto modernista do homem ser sempre capaz de se superar, em contínuo estado de progressão, nessa equivocada leitura das superações serem sempre evolutivas. É possível evoluir para traz, provam-nos os acontecimentos. E sobreviver, seja enquanto alguém ou algo, buscando nisso traços de dignidade, apresenta-se urgente e impossível. Tanto quanto o equilíbrio da tela por Wagner, insistente em tentar mantê-la em pé apenas com o chão. Ele se dedica por longos e fundamentais minutos. O gesto requer seu tempo, sua calma, sua tentativa, e avisa: não poderá ser o que nele se idealizou. Até que a tela que se equilibra, inesperadamente, e o artista a move com delicadeza quase etérea. E cai. Novamente. Como se não lhe coubesse outra condição. Foi Aristóteles quem definiu a matéria como aquela que tem apreço pelo chão. Nesse percurso silencioso de um gesto em desenvolvimento de si mesmo, somos levados da descrença à esperança, e desta à melancolia. A tela continua sendo apenas tela. O corpo deveria ser somente corpo. O traço na pintura tornou-se despercebido. O artista continua sendo somente corpo. As ideias se perdem e se esquecem. O convite segue sendo somente corpo. Até quando? Até não mais existir. Mas sem o corpo, sem o alguém dele, apenas algo - uma vez que, no capitalismo estético de Lipovetski, não seria mais o corpo o objeto estético e sim o sujeito, o sujeito como algo - , sem esse algo específico, como compreendermos a arte, se está é este, e impõe-se a dimensão de existir cada vez mais invisível? Sem o sujeito a obra deixa de acontecer. Destruir o corpo é fundamental ao fim. Quando Stifters Dinge, de Heiner Goebbels, foi apresentado em São Paulo, durante a MITsp, o espectador foi surpreendido por uma obra que tinha por presença exatamente a ausência de um corpo. A instalação propunha uma narrativa estética pela articulação de seus objetos atribuindo-lhes ainda estados e instantes inegavelmente específicos. Subvertendo a lógica, os pianos se moviam, os sons determinavam movimentos luminosos, a iluminação velava e escondia e tudo se provocava existir ambiência
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e realidade poética cuja ausência humana davam conta de presentificar o eco da humanidade a qual se referia nessa espécie de pós-civilização. Restava, então, aceitar o próprio acontecimento como narrativa e ter na subjetividade de sua expressão o discurso de uma Estética da Ausência, segundo a definição conceitual do próprio artistas. O esvaziamento da presença como subversão da previsibilidade do comum. O que afirma ser sobretudo o corpo a dimensão mais comum ao próprio homem. Sem este, nega-se não apenas o homem, também a percepção da realidade ser a manifestação a partir de sua centralidade. O homem ou humano é o acontecido, é o superado, persistente apenas na qualidade de uma teatralização de sua ausência, posto que está na sugestão inerente à existência dos objetos usados, da natureza que o antagoniza, do gesto mecânico que o dispensa, da voz em off que se confirma memória. Heiner Goebbels encena ao espectador para além de um espetáculo a solidão do próprio sujeito diante a superação da história pela história. Enquanto no projeto modernista a substituição sempre requer a decisão do homem pelo que virá ao criar e estabelecer os novos paradigmas, estruturas, estéticas e representações, em Stifters Dinge, o homem desaparece superado por ele próprio deixando de ser essencial à cadeia de acontecimentos. Trata-se, assim, de outra configuração de modernindade, pela qual o sujeito é a própria substituição e não mais quem lhe provoca. A Estética da Ausência não dialoga com o Modernismo, a não ser pelo seu desconhecimento, por conseguinte não afirmará nem o pós-moderno (posto não haver moderno), tampouco hipermoderno. Situa-se em um espaço de valor distinto e particular observando o humano por outras perspectivas fundamentalmente estéticas. Por isso, o corpo é radicalmente materialidade bruta e não se limita a existir discurso apenas pelo homem. O corpo em cena é a qualidade de presença estética narrativa existente sobre tudo aquilo que se fizer discursivo a partir de contextos específicos. Confrontá-lo é tão mais complexo do que apenas alguém. Necessitaria atingir a totalidade do existente sob o argumento do mundo não ser digno aos valores. Nessa ausência, por fim, Heiner
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Goebbels defende de forma irrefutável o homem ao retirá-lo da equação. O homem, destituído de seu papel de sujeito, passa a existir como naturalidade estética plausível, e como tal pode ou não contemplar discursos a ele atribuídos. Mas que não existirão por si, somente por aqueles que se apropriarem e se exporem a fazê-los. Wagner Schwartz, diferentemente, como vimos, confirma a presença pelo existir próprio e se questiona nessa possibilidade de existência a validade de ser sobretudo uma manifestação poética. Goebbels afirma a poética como presença e questiona a necessidade de outras existências para instaurar narrativas e contextos. As opções requerem soluções distintas. Wagner busca existir ao excesso de seu exercício e luta na união com a réplica de A Boba por um diálogo físico que ora a utiliza ora a confronta, até chegar a um extado de exaustão, em uma espécie de expurgo e êxtase. Precisa confirmar o próprio corpo como presença, e para tanto atua sobre ele a narrativa de seu esgotamento como artifício de transformação. O rosto avermelha-se, a pele sua, os olhos se tornam vivos de pulsões e silêncios que agora gritam mais alto do que quaisquer palavras. É seu encontro com a Estética da Ausência. Se não pela retirada da cena do corpo, do verbo, do dizer, da fala, algo tão próprio do humano. Goebbels não precisa do homem, Wagner se livra do humano. Sem falar torna-se limpo de uma civilidade que não lhe serve, que lhe agride, que lhe quer outro; encontra-se primitivo ou, ainda, mais verdadeiramente em essência, liberto, real, reafirmando o projeto modernista de substituir e reinventar, só que agora sobre si. Não há como sustentar um estado onírico e delicado como propõe Goebbels, ainda que sua instalação-obra seja de um agigantamento opressor ao espectador. Ao dançar e se tornar A Boba, Wagner potencializa a concretude de uma violência que se explicita na realidade de seu corpo, de sua presença, dos discursos que assumiu, dos que assimilou, dos que o transformaram e deformaram em uma figura irreconhecível aos padrões do belo. Por isso a necessidade de negar a humano qual se entende e reinventar a estética de outra qualidade de presença.
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Assim como em outro espetáculo seu, Piranha, o artista propõe-se um jogo íntimo de desconfiança sobre seus limites e, portanto, de sua condição. Tanto quanto em Transobjeto, o desafio sobre a estetização do nosso moderno tropical, ao ser tornado ritual de reconhecimento, existe, olhando-se, agora, pela neutralidade de um corpo que se despe de artificialidade e revela-se apenas acontecer, em uma cultura em que o corpo é tudo menos ele mesmo. Mais do que uma resposta a La Bete e seus desdobramentos politizados pelos conservadores, A Boba é uma tentativa de respiração inconsciente do artista para reencontrar-se. Nada fácil. A consciência por vezes age e interfere e limita o instante a querer se explicar e resolver. Tudo a seu tempo. Assim como a fala se tornara sua maneira de ser uma Estética da Ausência, existindo mais radicalmente ao não estar, o corpo há de encontrar seu próprio esvaziamento dos discursos para surgir um elo de continuidade e não apenas de respostas. O corpo é assim, um treino. Não de gestos e movimentos, isso cabe aos atletas. Um treino de experiências que, uma vez vividas, podem e precisam ser abandonadas ao surgimento de tudo o que poeticamente será capaz de substituir o vivido. Há uma modernidade em Wagner que dialoga com o futuro. Anita talvez se entusiasmasse com essa outra maneira de pintar retratos. ______________________________________________________ ________ ______________________________________________ __________________ ____________________________________ ____________________________ __________________________ ______________________________________ ________________ ________________________________________________ ______ ______________________________________________________ ___ ___________________________________________________ ___________ ___________________________________________ _________________ _____________________________________ _______________________ _______________________________ _____________________________ Leia a crítica sobre _________________________ _______________________________________ “Stifters Dinge”, por Ruy Filho, em nosso _______________ _________________________________________________ especial MITsp 2015. foto Mario Miranda Filho
precisamos falar sobre censura na arte
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especiais
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dobra crítica
Cinco peças fáceis
Sobre o conceito de rosto no filho de Deus
Por uma sensibilização de consciência Por ana carolina marinho
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dobra crítica
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uando pensamos em uma reencenação de uma peça, compreendemos que algum texto já montado será novamente produzido, com o mesmo elenco ou não, com o mesmo diretor ou não, o que importa é que será inserido em um novo contexto, o agora. Nesse sentido, toda obra capaz de ser reproduzida está na seara da reencenação. Há, porém, o caso
em que se deseja revisitar um fato do passado para capturá-lo e, diante da ausência de materiais de arquivo e do desejo em atualizar ao nosso tempo, está a possibilidade de reapresentá-lo. Eis o exemplo em que Milo Rau mais uma vez se lança: reconstituir por meio do teatro um crime na Bélgica. Esse dispositivo traz um sentido de envolvimento, de imersão e atualização do crime, o que, às vezes, só as fotos e documentos, por si só, não permitem tensionar e provocar o entendimento de que o sentido dado a um acontecimento não é apenas o fato de reconhecê-lo, mas as estratégias que se usa para representá-lo. A Bélgica foi responsável por um dos maiores genocídios da história, mas o sangue foi derramado “longe de suas vistas”. Mesmo que o país reconheça toda a crueldade que impôs ao Congo, Milo Rau provoca a necessidade em reencenar a violência cotidiana que acontece dentro do país para discutir sobre a naturalização de processos de dominação e a consequente violência produzida. Quais as consequências históricas que a permissão de matar e dominar geram? No caso do Brasil, como nos diz Jessé Souza, o ódio ao escravo se converte no ódio aos pobres, no temor constante em sermos conduzidos a trabalhos indignos próprios de uma classe de excluídos e marginalizados, e é por isso que marginalizamos e excluímos, para mantê-los longe de nós, para não nos misturarmos e sermos confundidos. O Brasil, porém, é fruto de uma violação constante e desmascarada, de uma cultura escravocrata que permanece incrustada em nossas práticas cotidianas. Na Bélgica, porém, os crimes escolhidos por Milo Rau para serem reencenados são traumas coletivos e pouco se aproximam dos cometidos pelos belgas no Congo, mas aterrorizam em
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detalhes, visto que aconteceu diante de seus olhos, com seus vizinhos e foram feitos de belgas contra belgas. De belgas contra belgas. Nesse sentido, o que o diretor nos aponta é a força que o reconhecimento do outro como sujeito igual, tanto no caso da vítima quanto do agressor, é fundamental para o processo de tomada de consciência e solidariedade. É exatamente por meio dessa tomada de consciência que a força dos espetáculos de Milo Rau se inscrevem. O dispositivo da reencenação de um acontecimento ou fato é posto como estratégia para dialogar com o fato através dos personagens do presente. Por isso, a reencenação não é feita pelos agentes do evento. Em “Cinco peças fáceis”, sete crianças são convocadas a reconstruir trechos que envolveram o famoso crime de pedofilia provocado por Marc Dutroux na Bélgica. O criminoso disse que pretendia raptar várias crianças para depois criar, embaixo de uma mina, uma cidade subterrânea que iria protegê-las, onde o bem e a segurança prevaleceriam. É exatamente diante da ambivalência do discurso do criminoso, que perturba a consciência das crianças (a exemplo do depoimento de uma das raptadas, que afirma ele dizer a proteger, mas não entende por que a machuca), que aproximo o espetáculo ao “Sobre o conceito de rosto no filho de Deus”, de Romeo Castellucci, apresentado na 1a edição da MITsp. Nos dois, o público é posto como testemunha ocular de um despertar. É sobre a ambivalência do discurso religioso que inúmeras atrocidades foram e são cometidas. Em nome do “bem”, os sentidos são alterados e as pessoas convertidas. O processo de conversão costuma não compreender o outro enquanto sujeito ativo de suas escolhas. Nesse sentido, o próprio Castellucci fala sobre o desejo em fazer do teatro uma experiência de sensibilização da consciência. Os dois espetáculos adensam-se sobre a ideia de catástrofe, aquilo que tanto traumatiza quanto fascina, que perturba a ordem natural das coisas, desnudando o cotidiano, provocando a consciência a novas realidades. O início do espetáculo italiano nos conduz a uma falsa impressão de que a realidade está sendo escrita no palco. Um pai idoso tem incontinência fecal e o seu filho executivo é o responsável por limpá-lo. À medi-
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da em que a cena avança, nos constrangemos com as fezes, com a iminência do mal cheiro, com a sujeira se alastrando sobre o palco branco; o público inquieta-se diante do que vê e teme o que virá. Ao contrário do espetáculo belga, a ilusão de realidade é uma das estratégias tomadas aqui. O público embarca na vertiginosa possibilidade que as supostas fezes sejam fezes, que a suposta incontinência seja real. Não queremos lidar com a realidade, preferimos a ilusão. Há porém um prazer sádico, que relatei na crítica feita à época: o desejo em ser real. Apesar da situação de constrangimento, há um ímpeto cruel em que tudo seja real e esteja diante dos olhos de Jesus (há a imagem de seu rosto estampada imensamente no centro do palco). Logo em seguida, crianças atiram granadas no rosto de Jesus, como resposta àquela face que não se modifica, que não esboça reações diante da violência do mundo, até que, por fim, o rosto é auto-dissolvido. Rau e Castellucci propõem estratégias de retirar o espectador e os atores da sujeição, pondo diante de nós fatos e circunstâncias que preferimos não ver nem ouvir. Enquanto em “Cinco peças fáceis” o rosto estampado no centro do palco é o de um homem adulto que se comove diante das respostas das crianças, ainda assim, é a representação do centro do mundo: o homem branco europeu; o rosto no centro do palco em “Sobre o conceito de rosto no filho de Deus” é o rosto erroneamente representado de Jesus (os traços são de um homem branco europeu, porém ele nasceu no Oriente Médio) e tem suas inquietações, rugas e expressões retiradas, a placidez é inalterada; logo ele que nos vê e nos julga mantém ironicamente a calma e harmonia de suas feições. A serenidade imperturbável é catastrófica e como toda catástrofe, seguimos nos fascinando e revoltando. O que acontecerá a todos nós quando esse rosto for dissolvido da centralidade? E, ainda mais, o que acontecerá quando nenhum outro precisar substituí-lo? ______________________________________________________ ___ ___________________________________________________ _________ Leia a crítica sobre “Sobre _____________________________________________ ___________________ o conceito de rosto no filho de Deus”, por Ruy ___________________________________ _____________________________ Filho, em nosso especial fotos guto muniz MITsp 2014.
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cinco peças fáceis
diário sensível
por Anna Zêpa 90
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o céu anuncia. o sonho denuncia: é possível reinventar uma verdade?
as nuvens sumiram. o sol sumiu. uma infância prisioneira do falo.
ninguém fala. ouvidos calam. no tempo parado, uma vida contada em ausências.
com quantos sonhos se faz uma
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cinco peças fáceis
diário sensível
por barbara santos 92
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um dia distante
assistiremos nuvens cinzas contornarem no alto do céu cenas oníricas com a gota d’água condensada de nossas lágrimas
de perto hoje
choramos cegos dos rostos de nossas muitas crianças apagadas rente ao chão por mãos metálicas que desenham armas
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Paisagens para não colorir
Árvores Abatidas
Entre a frustração e o fracasso: muros etários Por ana carolina marinho
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etorno à noite do dia 20 de março. Sentada na plateia, suspeitava que o encontro com aquelas 9 adolescentes chilenas seria um mergulho profundo, só não previa que elas mesmas apontariam estratégias para reservar oxigênio (sem cilindros) e conhecer trechos abissais do oceano e retomar à superfície ainda com fôlego para um novo mergulho. Há uma pulsão específica quando o palco é ocupado
por crianças/adolescentes e velhos. Há em seus rostos uma performatividade do tempo. Seus corpos geram um espanto do inesperado, um tanto porque confinamos aos menores a prisão domiciliar e a palavra sem experiência que precisa pedir permissão para ser dita, e aos idosos a mesma prisão domiciliar, porém a palavra já sem sentido, cansada e desgastada pelos anos. O teatro é majoritariamente adultocêntrico, ainda que seja dirigido a crianças ou velhos. E é exatamente quando a cena é povoada por não-adultos que o espanto se faz através da presença. Em “Paisagens para não colorir”, de Marco Layera, as adolescentes entre 13 e 17 anos nos convocam a olhar para nós mesmos - e quem fomos - ao passo que avançamos para a compreensão de quem estamos nos tornando. Foi assim que me dei conta ser sempre pelo substantivo plural que os cerceamentos aos menores são feitos: “olhe o que todo mundo está dizendo!”, “o que dizem todos?” são frases ditas, quando alguma ação fora da curva é realizada. Tememos mais aos outros que a nós mesmos. Mas quem são todos? Se “todo mundo” engloba inclusive “eu” e “você”, quando o adulto vocifera uma dessas frases tira o adolescente do lugar de sujeito e o destina à objeto, como se ele fosse o causador de uma infinita série de más intenções. Nesse sentido, os adultos estão acostumados a praticarem uma chantagem obscena: eles põe fim à cena da troca, não há diálogo quando a argumentação se reduz à “você não tem idade para saber”, “você só é uma criança”, como se os adultos pudessem ser tudo. Essa chantagem obscena é típica de quem detém o poder e teme ser posto à prova. É exatamente sobre esse poder que manda e desmanda nas criações - familiares e artísticas - que aproximo “Paisagens para não co-
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paisagens para não colorir <> árvores abatidas _ Por ana carolina marinho
lorir”, exibido nessa edição da MITsp com o espetáculo polonês “Árvores Abatidas”, de Krystian Lupa, que compôs a 5a edição. Para tanto, trago Jean Baudrillard para elucidar tais aproximações. Toda a nossa realidade se tornou experimental. Na ausência de destino, o homem moderno está entregue a uma experimentação sem limites sobre si mesmo. Nesse sentido, se a ilusão de um futuro, enquanto sujeito, está cada vez mais distante, que nos aproximemos, então, do objeto para alcançarmos novas possibilidades. Os dois espetáculos, pois, diante da frustração com o status quo a que estão destinados, propõe, cada um a seu modo, a aproximação com os objetos: de um lado o corpo adulto e de outro o corpo adolescente. O corpo adulto fadado ao imobilismo, fruto de uma série de frustrações, visto que mesmo sabendo todos os caminhos, saídas e estratégias não se movimenta por preguiça, cansaço ou depressão, e, de outro lado, o corpo animado, inquieto que compreende caminhos e saídas, mas que nunca os pôs em prática diante do cerceamento etário - o muro que impede o trânsito por questões fundamentais. É exatamente diante dessas constatações que os espetáculos se adensam e escolhem estratégias obscenas. O obsceno é para o filósofo francês o hiper real, o excessivo. No espetáculo polonês a imobilidade é excessivamente exposta durante as quatro horas; tal obscenidade é o que permite brotar o avesso, que se esgotem as possibilidades para escancarar o vazio, extraiam as máscaras para expor o oculto. Só diante do esgotamento da imobilidade que o movimento poderá brotar. A estratégia do espetáculo chileno, por sua vez, é desabafar o desabafo, pronunciar o impronunciável, até que nos acostumemos com ele e banalizemos o não dito. Oferece uma nova aura para os desejos não pronunciados e que não são secretos - visto que todos nós os conhecemos, só vivemos a ilusão de que eles não são sentidos por menores, ilusão reforçada pela punição e repreensão. Os dois espetáculos elevam-se à sua potência superlativa. As nove garotas propõem um olhar sobre a subordinação injusta dos argumentos, desejos e liberdades da adolescência, enquanto os treze personagens dialogam sobre o teatro na medida em que discutem sobre os limi-
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tes da liberdade diante da subordinação ao poder superior (o financiador). Em alguma medida é exatamente o poder financeiro que define a escala de hierarquias. Quantas vezes os pais dizem “quando você tiver seu dinheiro, pode fazer o que quiser, mas enquanto mora comigo, sou eu quem decido”? Na arte é também o patrocinador quem define, a partir do seu poder de escolha, o que será produzido e por quem. Nesse sentido, há sempre alguém estruturando as pautas e fabricando as fronteiras. Mas o que acontece aos corpos quando tomam consciência dessa tragédia da imobilidade e censura a que estão destinados cotidianamente? A brutalidade da realidade provoca que tipo de sociabilidade? É exatamente nesse ponto que os espetáculos se distinguem. Ainda que tanto os menores quanto os maiores sintam a frustração, o fracasso parece fazer parte apenas do vocabulário adulto. Na juventude sempre há tempo para realizar os desejos, na vida adulta a cobrança é constante porque o tempo está se esvaindo. Há, portanto, uma rebeldia em “Árvores Abatidas” que aspira o fracasso para jamais tornar-se medíocre: jamais ser um cadáver artístico vivo. Melhor ser o pior, porque, assim, já se é alguma coisa. Enquanto que “Paisagens para não colorir” aprofunda a frustração dessas jovens submetidas a sistemas contínuos de opressão e silenciamento para revelar “novos” caminhos, que só se fazem possíveis porque, enfim, paramos para ouvi-las. Nesse sentido, as estratégias de mudanças não são novas, o que é novo é que permitimos que elas sejam pronunciadas. E é exatamente assim que nós, adultos na plateia, damos-nos conta de como ordinariamente deslegitimamos as opiniões dos menores, enfim. Quando paramos para apenas ouvi-los é que percebemos a força, lucidez e profundidade que há neles. Há uma geração presenciando uma nova sociabilidade: os adolescentes sabem de si e propõem mudanças nas escolas, dentro de casa e nas ruas. A tomada de consciência deles é tão arrebatadora para alguns quanto amedrontadora para outros, frações de poder são destituídas cada vez que um adolescente desafoga algum pensamento crítico e encontra espaço para o diálogo. Algumas paisagens não se devem colorir, mas abismar-se. fotos guto muniz e Nicolás Caldéron
Leia a crítica sobre “Árvores Abatidas”, por Ruy Filho, em nosso especial MITsp 2018.
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Manifesto Transpofágico
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A capacidade cruel e assassina dos adjetivos Por ana carolina marinho
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á um corpo sem cabeça no palco. Um corpo sem rosto. O contorno definido da pele é rompido no pescoço, a ausência de face torna o corpo a imensidão, ele pode ser tudo, não há fronteira. Renata Carvalho está em cena para manifestar-se: o corpo não pode ser destino - é canal, meio - tampouco pode ser início. O corpo trans é o próprio manifesto político: existir é resistir na
cidade transgredindo os modelos estabelecidos. Essa primeira realidade que nos confrontamos - o corpo - é cotidianamente modificada pelo tempo, pelas escolhas e pelos desejos, e eis aqui a vontade em fagocitá-la para absorver o que dela interessa e expelir o restante. Somos potenciais mutantes biológicos e estéticos. Renata nos convoca a olhá-la, enquanto percebemos o trânsito de nossas curiosidades, de nossas incompreensões, a fim de romper a fronteira do pensamento e opinião. E alerta gentilmente que, se alguém sente instabilidade, desconforto ou perigo de estar diante de um corpo trans, pode se retirar do teatro. As luzes laterais indicam a saída, mas ninguém se move. Um tanto pelo desejo em aventurar-se diante do desconhecido, outro tanto por empatia. “Manifesto Transpofágico” adensa-se sobre a autonomia dos corpos, sobre sua expressividade e autoestima. A escolha por desnudar-se (mantendo a calcinha, porém) afirma a estratégia de que é o corpo quem fala, ele é o interlocutor de todas as inquietações, medos e desejos que abriga. É, então, que a atriz questiona o público da necessidade de desnudar-se por completo, entregando à plateia a decisão de tirar a calcinha, caso ache importante ver uma mulher com pau. A provocação nessa tomada de consciência é certeira: o espanto estético da mentalidade cis está justamente na sobreposição das imagens, na justaposição do pau com os seios fartos. Reflito sobre a importância da imagem como estratégia de desmistificação, já que, à medida em que somos expostos a uma imagem, o espanto inicial ganha contornos de trivialidade. A ideia da imagem pode ser mais forte que a própria imagem. Nesse sentido, há um medo diante do mistério, diante da imaginação que conduz por
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manifesto transpofágico <> eu não sou bonita _ Por ana carolina marinho
lugares nunca antes pisados. Mas por que, para respeitarmos, precisamos tornar desgastada e rotineira a imagem? O que nos impede de lidar com o desconhecido? Naquele dia, a plateia decidiu não olhar. Por empatia e respeito à Renata (que afirmou ser a parte de seu corpo mais difícil de lidar)? Por não achar preciso ou não conseguir? Ou por receio de desmistificar a imagem? Por quê? Renata começa seu manifesto apresentando inúmeros adjetivos costumeiramente ouvidos por ela e pelos corpos trans para revelar a limitação e violência que algumas palavras exercem sobre outras. Inicio, por aqui, a aproximação entre “Manifesto Transpofágico” e “Eu não sou bonita”, de Angélica Liddell, apresentado na 2a edição da MITsp, a partir do devaneio sobre a repressão dos adjetivos e sua capacidade de reduzir o sujeito às convenções e termos. Corpo matável, corpo pornô, marginalizado, gay, objetificado, são alguns dos apresentados. O adjetivo sempre subordina o sujeito à uma extensão ou qualidade, é sempre um julgamento diante do substantivo. Liddell, na própria escolha do título do espetáculo, aponta a força assassina dos adjetivos - nós não somos isso nem aquilo, até que alguém nos condene. É, porém, quando Renata apresenta o vídeo de Bartô falando sobre os cortes com gilete nos braços, pescoço e boca das travestis, que engulo à seco as estratégias de sobrevivência dos corpos trans. As auto-escoriações provocadas com instrumentos cortantes tinham como objetivo intimidar os clientes, quando ameaçadas, e garantir a soltura quando detidas. Com medo de serem contaminados com o vírus HIV, os policiais e clientes paravam com as agressões. É a partir da constatação dessa estratégia que aproximo novamente os espetáculos. Angélica descortina uma sequência de dores e violações que enfrentou para desmascarar a sociedade perversa que objetifica os corpos das mulheres de todas as idades e as destina a um futuro fatal. Em cena, a performer espanhola corta suas pernas com cacos de vidro e come um pão encharcado por seu próprio sangue. Assim como Bartô, Angélica compreende ser preciso mutilar-se para que não lhe agridam mais. É exatamente quando o
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manifesto transpofágico <> eu não sou bonita _ Por ana carolina marinho
sangue sai do corpo da mulher trans ou cis que o choque é consequência do nojo, do medo e da apreensão (o sangue menstrual costuma causar impacto semelhante). Exatamente aquilo que sai de dentro dos corpos cotidianamente reprimidos jorra como uma cascata alucinante. A repressão aprisiona os líquidos - e tanto mais - a tal ponto que, qualquer corte, é uma fissura no universo e provoca consequências na arquitetura dos dias. A saída é romper essa membrana da epiderme para unir os líquidos internos às matérias externas. Retorno à imagem do corpo de Renata sem cabeça. Penso no instante em que arrancam a cabeça da galinha e ela dança como nunca antes. Mas aquela não é a última dança de Renata, ao contrário, é um manifesto para a eternidade, para que as travestis não precisem mais sobreviver, e sim que vivam, existam e sejam respeitadas. Renata nos apresenta um manifesto em processo de construção, buscando estratégias para dialogar, encontrando caminhos para estabelecer as pontes e o olho-no-olho. Ela que foi e segue sendo constantemente censurada busca romper com o espanto pictórico e estético que a sua presença causa na moralidade, apresentando-nos seu corpo como a manifestação de vida e amor. ______________________________________________________ _______ _______________________________________________ ________________ ______________________________________ __________________________ ____________________________ ____________________________________ _______________________________________________ _________________ _____________________________________ ___________________________ ___________________________ _____________________________________ _________________ _______________________________________________ ____________________________________ _________________________ _____________________________ ______________________________ ________________________ _________________________ _____________________________ ____________________ _________________________________________________ ______________ ___________________________________ fotos de souza e carola monteiro
Leia a crítica sobre “Eu não sou Bonita”, por Ruy Filho, em nosso especial MITsp 2014.
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A sujeição cotidiana ao mal-entendido Por ana carolina marinho
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ulher: o ser humano feminino, considerado em conjunto, ideal ou concretamente. Homem: a espécie humana; a humanidade. No homem cabe o todo, tudo; enquanto na mulher a palavra é local, particular. Os conceitos foram feitos por homens, para homens e sobre homens. Nesse sentido, o todo masculino é tão abrangente
quanto restritivo. Quando e como romper essas fronteiras? Silvia Calderoni nos apresenta um corpo em estado de desordem, um sistema com moléculas em agitação constante, expandindo as fronteiras da pele que o armazena e provocando fissuras nas leituras e entendimentos. Só por meio desse movimento desordenado que o sentido é despojado, que a imobilidade não se torna ameaça e que o corpo perde a regra; só assim, a estrutura é posta ao avesso. Em MDLSX somos convidados para entrar num sistema eletrificado, aonde as partículas vibram nossos poros e excitam nossos pêlos. Silva nasce e cresce menina até os 13 anos, quando descobre ter fisiologicamente estruturas masculinas, e que pode, então, decidir qual gênero escolher. Seus pais indicam que ela siga sendo uma menina, mas o passado dela revela a infelicidade nessa escolha. É, então, que decide inverter a lógica da expectativa e experimentar o não binarismo, a androginia, viver a ambivalência de seu corpo. Silvia convoca-nos para imergir através tanto da eletricidade dinâmica quanto estática. À medida em que seus movimentos aumentam, as cargas em seu corpo seguem proporcionalmente e nós sentimos os pelos do braço arrepiarem, ouvimos estalos e vemos faíscam saltarem dos objetos. Tudo isso porque seu movimento é contracorrente, propõe um deslocamento de ponto de vista, uma mudança de paradigma e a encenação caminha lado a lado com as provocações. É, então, que nos deparamos com a sutileza e delicadeza da selvageria e nos espantamos: estamos amortizados pela domesticação de nossos corpos, desejos e pensamentos; civilizamos até os sonhos. Por que tememos a selvageria que nos habita? Por que silenciamos os pensamentos selváticos? O que há de revolucionário no
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mdlsx <> cinderela _ Por ana carolina marinho
processo de insubordinação dos termos e das palavras? Silvia Calderoni apresenta-nos a sua história, a concretude de uma trajetória, permeada por um excesso de tentativas de cooptar a experiência e reduzi-la a termos que, por sua natureza semântica, são inadequados. Selvaticamente aponta o retorno para nós, rompendo as expectativas sobre o natural. A natureza é híbrida e ambivalente, a catástrofe e a criação andam juntas e se confundem. Não há acidente, quando tudo tende sempre a desmoronar e desaparecer, visto que, em alguma medida, é o desastre a principal fonte de energia do futuro. Estamos, porém, docilizados, o que interfere e reduz nossa capacidade de entendimento e leitura do mundo. E é exatamente nesse ponto que aproximo “MDLSX” com o espetáculo “Cinderela”, de Joël Pommerat, apresentado na 3a edição da MITsp. A grande problemática em “Cinderela” e “MDLSX” é a mesma: o erro de entendimento de algumas palavras: no primeiro caso, a protagonista compreende mal as últimas palavras proferidas por sua mãe no leito de morte e se desloca a uma sequência de atos falhos e obstáculos que a impedem de viver tranquilamente; enquanto no segundo, a protagonista, por um erro de leitura do mundo sobre seu corpo, vive aprisionada dentro de um conceito, até o próprio conceito ser rompido, quando o corpo traz novas leituras e liberta a compreensão. Em “Cinderela”, uma nova possibilidade sobre o conto de fadas é proposta em cena, ao atualizar a história, uma sequência de fatos se tornam anacrônicos e problematizam nossos tempos. Há uma inversão que causa novos pontos vistas: quem precisa voltar antes da meia noite é o príncipe que precisa esperar uma ligação de sua mãe (que nunca receberá, pois está morta), por exemplo. Pommerat investe na adaptação dramatúrgica a partir de experiências estéticas entre o dito e o não dito, entre o mostrado e o imaginado, entre o esperado e o que acontece para construir uma atmosfera que revela as sequelas de uma interpretação equivocada em uma situação. Nesse sentido, aponta-nos um dos maiores problemas da humanidade, a dificuldade na interlocução. Grande parte das intolerâncias religiosas e do cerceamento moral está fundada numa leitura superficial de um texto.
>> a n t ro + M I T s p
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dobra crĂtica
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a n t ro + M I T s p
mdlsx <> cinderela _ Por ana carolina marinho
Todo tipo de coerção é fundamentada sob o entendimento de algum termo. Nesse sentido, o inteligível é uma abstração, visto toda situação verbal estar passível de pontos de vistas e compreensões. O espetáculo se adensa, portanto, no assombro que as palavras da mãe gera no corpo e no pensamento de uma criança. A falha na escuta e o mal-entendido que gera cria uma atmosfera de desamparo e instabilidade. É exatamente o mesmo que ocorre em “MDLSX”. O mal-entendido dos pais e médicos diante do corpo de uma criança taxa sua sexualidade pelo que observam externamente no órgão sexual e gera uma infinita sequência de dores e incompreensões para Sílvia. É exatamente no momento em que as personagens dos dois espetáculos decidem questionar a leitura que elas mesmas estavam imersas que o rumo das histórias se modificam. Esse processo de releitura de si é tão fundamental quanto difícil, romper com a rotina é desgastante e revelador. Os dois espetáculos apontam a importância em questionar os pontos de vistas, os entendimentos e a norma, trazendo para o corpo e para a experiência do sujeito o canal para a condução de uma nova trajetória mais ambivalente e menos maniqueísta, mais autônoma e emancipada das leituras alheias. ______________________________________________________ _______ _______________________________________________ ________________ ______________________________________ _________________________ _____________________________ __________________________________ _________________________________________________ ______________ ________________________________________ _______________________ _______________________________ ________________________________ ______________________ _________________________________________ __________________________________________ ___________________ ___________________________________ ________________________ ______________________________ ___________________ ___________________________________ ______________ _________________________________________________ ____________________ _____________________________ fotos de guto muniz
Leia a crítica sobre “Cinderela”, por Ana Carolina Marinho, em nosso especial MITsp 2017.
mdlsx
diário sensível
por patrícia cividanes 122
a n t ro + M I T s p
a n t ro + M I T s p
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mdlsx
diĂĄrio sensĂvel
por barbara santos 1 24
a n t ro + M I T s p
SER APENAS Ã&#x20AC; PENAS SER
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respi
piro
COCARES CRYTYCOS por JUAO NYN Fotos_ Mylena Sousa Agradecymento_ Carol Pyneyro
A REPETYÇÃO 128
a n t ro + M I T s p
a n t ro + M I T s p
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COCARES CRYTYCOS
YSTO Ã&#x2030; UM NEGRO?
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COCARES CRYTYCOS
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VESTYGYOS
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COCARES CRYTYCOS
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a boba
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COCARES CRYTYCOS
5 PEÇAS FÁCEYS
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a n t ro + M I T s p
uma publicação especial sobre a cena contemporânea da
^ acesse e acompanhe as atualizações
www.antropositivo.com.br/
especiais
al ĂŠ m d o s e s p e t ĂĄ culo s
works
140
a n t ro + M I T s p
shops
workshop
Eu, O Espelho do Outro Intercâmbio artístico Com Arkadi Zaides
Israel/França
Quando veio ao Brasil em 2015, com o espetáculo Arquivo, o coreógrafo e bailarino israelense surpreendeu o público ao dançar os movimentos dos colonos judeus nos territórios palestinos ocupados, partindo da mimese dos gestos e das ações registrados em vídeo pela ONG israelense B’Tselem. Em seu retorno a São Paulo, Arkadi partirá de cenas brasileiras para, com os participantes do laboratório, dançar o poder e o contrapoder, os movimentos que nos humanizam e aqueles que nos desumanizam. por ana carolina marinho
>> leia entrevista exclusiva com Arkadi Zaides em nossa edição 13. ( www.antropositivo. com.br/edicoes)
workshops
1
21 de fevereiro
(penúltimo dia de oficina)
Q
uando assisti “Arquivo”, de
demais, e acompanhe de dentro.
Arkadi Zaides, não imaginava o
Sentados em roda, no chão, o dia se
quanto aquela experiência reverbera-
inicia. Percebo que Arkadi havia pro-
ria em mim por tanto tempo. De lá pra
posto, nos dias anteriores, cada inte-
cá, nenhum pensamento ou proces-
grante encontrar um arquivo, um do-
so criativo se abstém da memória do
cumento, para partir dele um desejo
espetáculo e de como me mobilizou.
criativo. Poderiam ser uma imagem,
Na época, escrevi uma crítica intitula-
vídeo, um documento em papel, algo
da “Arquivo ou uma ode à alteridade”,
que mobilizasse o indivíduo social-
porque o espetáculo se apresentava
mente por meio das perguntas “o
como ode à conciliação, à olhar para
que esse documento me diz e o que
si e ver o outro, uma representação
posso dizer sobre ele?”. Naquele dia,
de como uma ação política pode se
iniciou-se o compartilhamento dos
dar através da arte de maneira poten-
documentos escolhidos. Foi assim
te, profunda e delicada. Quando sou-
que conheci Lilith Cristina, 18 anos,
be do intercâmbio artístico “Eu, O Es-
que, aos 15, ocupou sua escola con-
pelho do Outro”, entusiasmei-me em
tra a reorganização escolar e a pre-
acompanhar, alimentada pelo desejo
carização. Ela levou fotografias e um
em expandir a experiência com Arka-
vídeo do dia em que os secundaris-
di para dentro de uma sala de ensaio
tas ocuparam o Centro Paula Souza.
e compreender um pouco mais de
Seu recorte foi preciso: o instante em
seus pensamentos e práticas criati-
que os secundaristas pulam o muro
vas, que, pelo título, comungava com
para ocupar o prédio. O desejo dela
minha impressão sobre seu trabalho
é investigar a insurgência dos cor-
e suas escolhas. Pela impossibilida-
pos que levantaram de uma cadeira
de de acompanhar desde o come-
de aula e pularam, como um corpo
ço, chego no penúltimo dia, com os
coletivo, os muros do Centro Paula
encontros já em andamento. Reser-
Souza. Como corporificar a multidão
vo uma cadeira à margem da sala e
daqueles corpos em um? As inquie-
sento munida de caderno e caneta.
tações e provocações de Lilith e seus
Propõe-se que eu sente, junto aos
documentos me faziam pensar em
como pular o muro é também rom-
pela questão “eu não posso dançar
per uma fronteira, e, quando penso
a invisibilidade feminina, mas como
na fronteira mais próxima, encontro
posso movê-la?”, seus documentos
a pele - esse contorno que nos im-
e os choros de todos que acompa-
pede de ser tudo. Lilith e os demais,
nhavam revelavam uma ferida aberta:
ao pularem os muros, romperam
os três vídeos juntos escancaravam
essa fronteira que nos limita do todo.
a dor do retrocesso político, das vio-
Como um sólido que vaporiza, os se-
lências simbólicas e legitimadas, o
cundaristas apontam caminhos de
golpe parlamentar. Como materializar
sublimação, de transformação dos
essa dor e indignação? Nós vemos
estados físicos. O movimento dos
Dilma discursando e o que ela vê
secundaristas, sem dúvida, rompeu
enquanto discursa? Olhava àqueles
uma fronteira no nosso imaginário,
vídeos e imaginava o porquê daque-
mobilizou-nos para um novo estado,
las pausas repentinas, dos suspiros,
trouxe-nos possibilidades rompendo
dos sorrisos de canto de boca; o que
fronteiras, abriu a pele, permitiu que
ela estaria vendo? O que ela conse-
os órgãos sentissem o mundo. E,
guia enxergar naquela plateia majori-
depois de Lilith, o mundo já não era
tariamente masculina de senadores,
mais o mesmo; a liberdade, ousadia
deputados federais e demais chefes
e força nos conduziria pelo restante
de Estado? Seguimos discutindo
do dia.
e refletindo sobre a força daqueles
F
oi, então, que Lucienne Guedes
documentos. O meu primeiro dia em
expôs seus documentos. Trou-
contato com o intercâmbio artístico
xe três vídeos de Dilma Rousseff: o
foi estimulante e provocador, não via
primeiro discurso de posse, o segun-
a hora de conhecer os demais arqui-
do e o discurso pós-impeachment.
vos escolhidos.
Diante dos vídeos, Lucienne repetia
____ _________________________
trechos ditos pela presidenta, numa
_____________________________
tentativa de abrigar em sua boca as
________________________________
palavras ditas no púlpito, ressoadas
____________________
para uma multidão. Impulsionada
__________________________
__
___________
>>
workshops
2
22 de fevereiro
(último dia de oficina)
C
omo praxe dos últimos dias de
de um filme que retrata a massa de
encontros que nos mobilizam,
indocumentados bolivianos que en-
foi um dia de lágrimas mais soltas,
frentam condições de trabalho aná-
de coração pulsante e saudoso.
logas à escravidão em São Paulo,
Os demais participantes revelaram
e um áudio de seu pai rememoran-
seus documentos e criaram dispo-
do a chegada da família na capital
sitivos para nos colocar em contato
paulista e a trajetória para conquis-
com os arquivos. Cada documento
tar os documentos e se legalizarem.
era revelado e, junto com ele, mer-
Edson trazia na escolha de seus
gulhávamos nas motivações pes-
documentos o desejo em investigar
soais e nas suas reverberações. O
e materializar esses corpos clan-
compartilhamento dos arquivos nos
destinos, ilegais. O que mais me
revelava as inquietações de cada
chamava atenção era a força que a
um. Sem dúvida, mergulhar em um
ausência de um documento gerava
arquivo era um convite para dialo-
na escolha do mesmo. Em alguma
gar com a memória e ressonâncias
medida, o documento escolhido
no hoje. A provocação de Arkadi,
por ele parecia ser a ausência do
estimular a escolha de um docu-
documento, o corpo indocumenta-
mento externo que não estivesse
do. Babi Fontana, por sua vez, em
necessariamente em você, estimu-
busca de investigar o silenciamento
lava a perceber os padrões e as re-
das mulheres, levou dois documen-
petições, as consequências daquilo
tos: uma matéria de jornal sobre a
numa esfera social, uma busca por
morte de sua avó, importante pre-
compreender uma dança coletiva,
paradora vocal que morreu com
em que cada um escolhe seu modo
uma doença que a impedia de fa-
de entrar e se envolver com o do-
lar; e um vídeo sobre as mulheres
cumento. Edson Burgos, jovem bai-
de Serra Pelada que precisavam
larino boliviano radicado no Brasil,
se vestir de homens para trabalhar,
por exemplo, trouxe vídeos de sua
porque a elas não era permitido ga-
pesquisa sobre a imigração boli-
rimpar. E assim íamos conhecendo
viana filmados na fronteira, trechos
as motivações e as inquietações
de cada um através dos seus do-
outro a si, caminhos possíveis para
cumentos. Ao final do encontro, na
a construção de novas práticas de
conversa final, alguns integrantes
socialização e de uma sociedade
revelaram que tiveram dificuldade
mais humana e solidária.
em escolher um documento e por
____ __________________________
isso não compartilharam; levantou-
____________________________ ____
-se uma discussão sobre as causas
_________________________________
dessas
Discutimos
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sobre o estado em que os corpos
_________________________________
foram ficando, em alguma medida,
______ ___________ ______________
menos festivos, uma introspecção
_________________________________
que revelava ora uma ferida aber-
_______ _________________________
ta, ora um receio de escolher um
_____________________________ ___
documento “menos urgente”, que
_________________________________
não dialogasse com o outro, que
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se encerrasse em si, um medo em
________________________________
fechar-se no próprio umbigo; o que
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prontamente foi contraposto com
________________________________
o fato dos documentos, por mais
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pessoais que pareçam, quando
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compartilhados têm a capacidade
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de dialogar com o entorno, com o
_________________________________
outro, muito pelos padrões que se
_________________________________
repetem e assim encontram resso-
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nância em outras histórias. “Eu, o
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espelho do outro” escancarou ur-
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gências, necessidades de pôr-se
_________________________________
em diálogo, em escuta atenta aos
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gritos e sussuros do mundo, em
_________________________________
estado de alteridade, de reconhe-
_________________________________
cer em si o outro e reconhecer no
_____________________ _____
dificuldades.
workshop
DO “LUGAR” AO “NÃO LUGAR” Intercâmbio artístico Com marta soares
brasil
Artista em foco na MITbr, Marta Soares propõe investigar alguns dos procedimentos utilizados na pesquisa e na criação de Vestígios, instalação coreográfica. Partindo do método dialético desenvolvido pelo artista de land art Robert Smithson – a relação entre o “lugar” e o “não lugar”, uma das referências no desenvolvimento da obra –, o grupo realizou uma imersão física em trechos do Caminho do Peabiru, antiga rota indígena que cruza a cidade de São Paulo. por ana carolina marinho
>> leia entrevista exclusiva com MARTA SOARES em nossa edição 5. (www.antropositivo. com.br/edicoes)
workshops
1
08 de março
O
primeiro dia que acompanho
para ser feita no dia seguinte. Mas
o encontro já não é o primeiro
como sintetizar uma experiência em
deles. Isso diz muito sobre a distân-
uma imagem ou ação? Como tor-
cia necessária entre a experiência e
nar o espaço público suporte dra-
minhas observações. Chego no pe-
matúrgico e pictórico? Durante 30
ríodo da tarde e vejo o retorno dos
minutos, cada um se debruçou em
oficineiros e Marta. Estavam na rua,
inúmeras possibilidades, resgatan-
caminhando
pelo
do as imagens evocadas na leitura
trecho do Caminho do Peabiru, uti-
e as sensações experimentadas na
lizado pelos indígenas, muito antes
caminhada, em busca de encontra-
da colonização, para ligar o Oceano
rem imagens que tivessem alcance
Atlântico ao Pacífico, começando
para os transeuntes, que impactas-
ou terminando nos litorais catari-
sem o entorno. Na hora de com-
nense, paulista e paranaense e indo
partilhar, o primeiro, bailarino, de-
até à Cordilheira dos Andes. O cami-
cide apresentar seus movimentos,
nho era percorrido a fim de encon-
afirmando ser essa a melhor forma
trar os deuses que o conduziriam à
para expressar sua proposta. Des-
Terra Sem Mal, o paraíso mitológico
de a oficina de Arkadi, percebo ím-
dos guaranis. No trecho feito, ca-
petos criativos distintos entre baila-
minharam do Pátio do Colégio ao
rinos e atores. Não é regra, mas há
Vale do Anhangabaú em um andar
uma repetição afirmativa: bailarinos
silencioso, em busca de absorver a
costumam preferir experimentar no
paisagem no corpo. De volta à sala
corpo para depois falaram sobre o
de ensaio, cada um iria individual-
que funciona; atores, por sua vez,
mente apresentar sua proposta de
costumam preferir falar as ideias
intervenção no espaço público uti-
para depois experimentá-las. Mar-
lizando a experiência na caminhada
ta, porém, sugeriu que as demais
e como base o texto lido no encon-
fossem comentadas e não realiza-
tro anterior: “História do Caminho
das, tendo em vista que as ações
de Peabiru”, de Rosana Bond. Uma
deveriam acontecer no dia seguinte
ação sintética deveria ser pensada
e que tínhamos pouco tempo para
conjuntamente
conhecermos todas as ideias para
__________________________
avançarmos na escolha do rotei-
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ro de intervenção. Foi, então, que
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Marta elegeu as ações que mais
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se repetiram entre os participan-
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tes: caminhada de costa e lenta, a
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presença do milho como oferenda,
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marcação de caminho e polinização
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do trajeto, gesto de aterrissagem e
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uma roda para compartilhar os so-
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nhos da noite anterior.
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>>
workshops
2
09 de março
Ú
ltimo dia de workshop. Imersão
e chão irregular e cheio de obstá-
física em trechos do Caminho
culos. Foi na Sé, porém, o trecho
do Peabiru. Partindo do Pátio do
mais difícil. Não pela geografia do
Colégio até o Vale do Anhangabaú
trecho, mas pela presença dos pas-
(ou proximidade), todos vestidos
tores furiosos. Suas palavras co-
de branco e debulhando um milho
léricas denunciavam o estigma de
“azul” - para mim, roxo - caminha-
um grupo vestido de branco. A as-
rão de costas, a passos lentos,
sociação ao candomblé ou umban-
falando esporadicamente a frase
da era inevitável para eles que, in-
“quando atravessarmos para o ou-
dignados com a presença daquele
tro lado do oceano, comeremos mi-
grupo, exclamavam barbaridades.
lho azul”, e realizando um gesto da
“Vão para o inferno com as suas
aterrissagem a cada 30 passos da-
bucetas”, “o que vocês querem é
dos. Era pós-carnaval e mais de 50
transformar todo mundo em via-
bloquinhos ocupavam a cidade de
do!”, “ainda bem que tenho o corpo
São Paulo. Naquele trecho, encon-
fechado, seus demônios”; ao passo
tramos um parado diante do Pátio
que o grupo seguia lentamente, de-
do Colégio. Marta decidiu abortar
bulhando o milho, em busca da Ter-
a ideia de compartilhar em roda os
ra Sem Mal. Inúmeros curiosos se
sonhos com os transeuntes, uma
aproximavam. A maioria suspeitava
vez que o clima festivo era dema-
que fosse ou “coisa de terreiro” ou
siadamente distinto da energia e es-
“coisa de teatro”, o que revela não
tado que se buscava experimentar.
só o estigma da veste branca como
Partiu-se, então, para a caminhada.
o do intocável corpo no espaço pú-
Os primeiros passos e as primei-
blico, aquele que não se comunica,
ras ruas já apontavam o por vir: era
que não responde às inquietações,
preciso que o grupo imergisse em
apenas segue o roteiro de ações de
um estado de meditação capaz de
sua performance. De toda maneira,
manter o ritmo e a concentração
para nós que acompanhávamos,
diante da multidão desavisada que
era excitante ver as reações dos
passava, diante os olhares curiosos
olhares curiosos e a serenidade dos
olhares do grupo, uma contradição
que uma ação extraordinária pode
pulsante. Alguns migrantes bolivia-
provocar no cotidiano: o espanto é
nos pararam para ver, encantados
pela imagem, pela ação. No vai-e-
com o “milho azul” debulhado. Não
-vem da cidade-mundo, um grupo
pude, porém, deixar de refletir du-
decidiu caminhar lentamente de
rante o trajeto sobre a frase dita
costas debulhando “milhos azuis”,
inúmeras vezes pelo grupo “quan-
e isso era suspiro para quem pou-
do atravessarmos para o outro lado
sasse a vista, ainda mais para quem
do oceano, comeremos milho azul”.
os viu atravessar a Praça do Patriar-
É que sempre soube que a colora-
ca numa das maiores tempestades
ção azul nos alimentos é inexistente
enfrentada por São Paulo. A chuva
na natureza. O engenheiro de ali-
fez-se presença ao lado deles. Foi,
mentos Marcelo Alexandre Prado,
então, que o espaço público dissi-
da Unicamp, inclusive explica que
pou os olhares curiosos. Embaixo
isso é real e tem uma explicação
das marquises, alguns se aventura-
tanto bioquímica quanto química:
ram a seguir o debulhar do milho.
“Os corantes presentes nas plan-
Aquela água era um prenúncio de
tas, cuja função é protegê-las, são
que o outro lado do oceano estava
substâncias muito sensíveis à luz,
cada vez mais perto.
ao oxigênio e à acidez. Enquanto
____
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os pigmentos verde e vermelho são
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mais resistentes, o azul se degrada
__________
rapidamente, a não ser que esteja
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em um ambiente alcalino, o que é
______________
raro na natureza, já que a maioria
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dos alimentos tem pH de neutro
______________________________
para ácido”, além disso, diz, his-
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toricamente associamos a cor azul
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à alimentos mofados e venenosos.
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Salvo essa indagação sobre a cor,
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o trajeto do grupo revelava a força
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bete coelho + ricardo bittencourt + emĂlio kalil + carlos august enrique diaz + jaram lee + luiz melo + romeo castellucci + thomas willem dafoe + mikhail baryshnikov + robert le page + felipe
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a n t ro + M I T s p
+
to calil + danilo santos de miranda + jô soares + marília pêra s ostermeier + win vandekeybus + denise fraga + antonio araújo hirsch + brett bailey + peter pál pelbart + rodrigo garcia
a n t ro + M I T s p
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sig
@antrop
ga
positivo conteĂşdos exclusivos
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