Castanheiro da Princesa

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Castanheiro da Princesa

HistĂłrias de vida no interior do paĂ­s


agosto 2018


Castanheiro da Princesa

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I Percorria-se um longo caminho estreito, onde mal se cruzava um carro de bois com uma pessoa a pé, que se estendia por entre vários montes repletos de pinheiros e vales verdejantes.

Depois de percorrida a poeirenta passagem ziguezagueante desenhada pelo tempo e pela força resistente do homem, contornadas as diversas pedras que por lá se encontravam semeadas, chegava-se a uma pequena aldeia no meio de campos castanhos viçosos onde eram guardadas, por árvores de fruto e trémulas cearas, umas quantas pequenas casas rústicas e humildes.

Poucas pessoas escolhiam aquele irregular caminho para passar de carro e mesmo a pé não era fácil percorrê-lo e superá-lo. Só quem soubesse da existência da pequena povoação se arriscava a levar a viagem atribulada até ao fim.

Não se via vivalma até poucos metros antes de se entrar no aglomerado de casas plantadas irregularmente naquele sítio de ninguém.

O que se via primeiro, logo depois da térrea passagem e antes de chegar ao largo da igreja que encimava a aldeia, era um velho castanheiro pejado de folhas que escondiam ouriços verdes e castanhos. Um castanheiro que todos recordavam ser já muito alto na altura em que nasceram e do qual ouviram falar nas histórias contadas, à noite em frente ao fogo do lar, pelos pais e pelos avós antes daqueles em literários encontros familiares.

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Havia um amontoado enorme de ouriços que se estendiam copiosamente pelo chão de terra e pelos terrenos próximos que rodeavam o tronco impossível de abraçar por dois homens. Eram em tanta quantidade que cobriam, na sua totalidade, a terra circundante, não deixando as ervas, que tentavam crescer por baixo, espreitar o sol para dele se alimentarem e crescerem.

Numa dessas histórias antigas, contadas com a intenção de despertar sentimentos de tristeza e paixão nos ouvintes, falava-se de um cavaleiro em armadura reluzente que teria chegado àquelas bandas montado no seu cavalo preto como a noite que viria a dominar o seu coração empedernido pela vida.

Dizia-se que viera em busca de uma bela princesa que fugira do castelo do Rei, seu pai, e com quem teria sonhado durante uma batalha.

Partira o cavaleiro a meio da contenda, em que estava a comandar as tropas, deixando os seus companheiros sozinhos e entregues à morte certa em glorioso e sanguinário combate.

Esse elegante cavaleiro teria escrito o nome da sua princesa de sonho naquele castanheiro e ali ficara registado ao longo dos tempos como sinal do seu sofrimento e da sua desgraça amorosa.

O cavaleiro procurara a sua amada por entre montes e vales, mas acabara por não a encontrar até parar para repousar à sombra dos ramos daquele castanheiro onde gravara, com a sua espada ensanguentada, o seu nome sonhado.

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A princesa teria sido já levada por uns nobres, enviados pelo Rei, que cavalgavam furiosamente para apoiar na batalha de onde o cavaleiro se teria retirado numa manhã de nevoeiro denso e terra vermelha.

Falavam os mais velhos que aquele cavaleiro, logo que voltara ao campo de batalha, vira a sua princesa estendida no chão, no meio dos corpos destruídos dos seus companheiros de luta e dos nobres, sem vida e com uma mensagem escrita em sangue, ao lado de um punhal cravejado de pedras preciosas e que lhe era dirigida.

"Procurei Vossa Mercê por todas as partes do reino, sabendo que o encontraria em um qualquer canto. Neste campo de batalha, perguntei onde estaria o meu Senhor e um bravo soldado disse-me que tinha sido morto e que se encontrava inumado neste campo de extinção. Não vos encontrei. A minha vida não faz sentido sem o Vosso amor e por isso aqui fico."

O cavaleiro, destroçado com a perda da sua amada de sonho desconhecida, partira no seu cavalo negro para lugar incerto, nunca mais tendo sido visto por ninguém naquelas paragens ou em outras do reino de sua majestade. Foi procurado pelo soberano para aplicação de castigo por traição ao seu povo, mas perdoado por amor à sua amada.

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Como é costume e adequado nestas histórias contadas na companhia do fogo da lareira, havia quem dissesse que o cavaleiro encontrara a princesa naquelas terras de Castanheiro e que ambos teriam partido, para o reino prometido, após escrever o seu nome no castanheiro montados na negra besta.

Viriam a casar nas cortes do Rei, seu pai, que depois da morte deste, deixara um longo e próspero reinado para o jovem casal.

Esta visão fazia com que as crianças se sentissem felizes e mostrassem os seus olhos brilhantes logo que terminava o encontro ficcional.

Se à frente do contador estivessem acocorados meninos ou meninas mais calmos e imaginativos, então acrescentava-se um final feliz.

E o que aconteceu depois? Depois de casarem, viveram sempre felizes para sempre. E depois? Tiveram dois lindos filhos. O rapaz, que era o mais velho, continuou a reinar e afilha manteve-se sempre junto a ele. Uau! Que linda história. Agora vamos lá todos dormir, meus meninos.

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As casas em pedra eram cobertas por telhados em colmo e apresentavam, quase todas, uma pequena horta nas traseiras onde se cultivavam os produtos mais necessários à sobrevivência diária.

Nos pequenos espaços, colhiam as couves, o feijão, as batatas, as cenouras ou mesmo as cebolas que consumiam até que terminassem; algumas vezes, partilhavam com outros vizinhos mais necessitados, na certeza que se um dia fosse necessário sabiam a que porta bater.

O colmo estava já acastanhado pelo fumo das chaminés que

fumegavam

simultaneamente;

no

inverno,

o

fumegar

dominava os céus durante todo o dia; no verão, sentia-se aquele cheiro a madeira queimada após a hora de os homens recolherem a casa para comer o caldo, já os últimos raios de sol tocavam aquelas terras, enquanto o astro se escondia atrás dos montes.

Na altura da matança do porco, alguns homens dirigiam-se à vila mais próxima, no dia de feira, com os seus produtos agrícolas às costas ou em cestos de vime; tentavam lá fazer a troca por pedaços de carne de porco, de lardo ou chouriça fresca.

O fumeiro era, depois, construído na casa de um dos vizinhos da aldeia; a salmoura ficava entregue a outro dos residentes. Cada ano a casa escolhida para o tratamento das carnes era diferente, assim como o responsável pelo precioso bem.

Naquele calmo amontoado de casas viviam pouco mais de duas dúzias de velhos homens e mulheres fieis às suas origens e

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resistentes à necessidade a que outros tinham cedido de partir em busca de vida melhor em terras distantes.

Enfrentando as dificuldades da existência naquele local ermo, estes homens e estas mulheres sentiam que aquela era a sua terra e que não encontrariam melhor vida em qualquer outro local do mundo.

Antigamente, aquele lugar tinha sido povoado por largas dezenas de homens e mulheres que trabalhavam as terras, retirando delas o sustento para si e para as suas famílias; no entanto, as dificuldades dos pais, para encontrarem trabalho remunerado, tinham feito com que a maior parte fosse saindo para a cidade ou para o estrangeiro.

Depois desse afastamento inicial, os jovens da aldeia continuaram a seguir os passos dos pioneiros e o pequeno lugarejo só pôde contar com os mais velhos para continuar a sentir-se útil e com vida.

Não se via uma única antena em cima das casas. Só o fumo que saia das chaminés ao longo de todo o ano se elevava

acima

dos

telhados,

criando

um

ambiente

mais

amarelado ainda do que o causado pelo colmo; em tempo de calor, viam-se as flores em vasos coloridos pendurados nas janelas abertas

pintadas

de

azul

desbotado

pelo

tempo.

Eram

acompanhados por toalhas de todas as cores que secavam, pingando a água para o terreno verde.

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A aparência descorada das janelas estendia-se aos próprios habitantes que vestiam, na sua maioria, de negro enlutado. Esse aspeto enegrecido das gentes honrava os que tinham partido para outras terras mais ou menos distantes ou os que tinham já morrido e repousavam eternamente nos terrenos da Igreja.

A única comodidade de que beneficiavam os moradores e que lhes facilitava um pouco mais a vida, era um pequeno café com telefone público que usavam quando acontecia alguma emergência ou precisavam chamar o carro para os levar à vila. Ali bebiam uma cerveja em dia de festa de aniversário do Ramiro ou às vezes no da Albertina, quando o marido o permitia.

Tinham ainda o ar puro, contaminado pelos odores fortes a erva verde, a cereais castanhos, a flores perfumadas e a frutos silvestres que pululavam nos silvedos que circundavam alguns dos campos cultivados.

Para além do café, onde podiam também arranjar, de vez em quando, uns ovos, uma galinha, um coelho, ou das trocas na vila, tudo o resto era retirado da terra à força de braços com o custo do suor de cada um.

Os animais da terra eram umas quantas cabras que se reuniam em rebanho sazonal, umas poucas galinhas e uns raros coelhos que a Albertina criava no seu terreno, nas traseiras do café, para consumo próprio, troca ou venda aos vizinhos; havia,

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ainda, dois cães que davam sinal de alerta sempre que se chegava um perigo ao povoado. Ladravam sonoramente quando cheiravam o lobo, quando alguém caminhava pela aldeia depois de se esconder o sol, quando havia trovoada ou quando a sede apertava.

Um desses cães era de um dos habitantes que vivia numa das pontas da aldeia e que todos conheciam por ser, ou parecer ser, conhecedor das coisas da vida. Quele animal era o seu único amigo e companheiro diário.

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Ti Laurentino da Teresa

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II Numa das casas da aldeia vivia o velho Manuel Laurentino. Ti Manuel Laurentino, ou Laurentino da Teresa como era chamado por alguns vizinhos mais velhos, era um homem respeitado e sempre tinha sido um ser feliz.

Nasceu naquele pequeno povoado de vinte e cinco casas em pedra, telhado de colmo fumegante e cultivo à porta.

Mais ao longe, da sua janela descorada, via os campos bem tratados e cheios de cereais dourados, montes verdejantes cortados por um caminho em terra pedrado.

Árvores de fruto ponteavam a paisagem como um tecido irregular tingido de manchas irregulares vermelhas, verdes e castanhas.

Manuel Laurentino criara-se naquela mesma aldeia e nunca tinha dali saído a não ser para ir à vila em dia de feira semanal ou ir ao Doutor para ver o que era aquela dor que por vezes sentia na perna e que se recusava a aceitar que fosse da idade ou do trabalho contínuo. Sempre que tinha de ir ao pequeno burgo, voltava logo que os negócios estavam concluídos. Reconhecia que não gostava de estar muito tempo fora da sua terra, afastado da sua gente, longe da sua casa e principalmente sem a companhia da sua Teresa.

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Laurinho, como era conhecido na sua infância, fora um rapaz que cedo decidira ficar para sempre ali na sua terra, ajudando o pai Joaquim e a mãe Maria de Lurdes a tomar conta dos campos e das colheitas.

Assistira à partida de muitos dos seus amigos de infância para o estrangeiro, em busca da aventura e da riqueza prometidas.

Tinha muito jeito para a madeira. Trabalhava pequenos pedaços, que encontrava ao longo do caminho que percorria incessantemente ao longo dos dias e outros que cortava do velho castanheiro, que recebia os raros estranhos que por vezes se dirigiam à aldeia ou os filhos da terra que voltavam em tempo de celebração do padroeiro.

Dando uso à navalha que seu pai lhe oferecera quando sentira que o filho já tinha juízo e idade suficientes para tomar conta de si próprio, dos pequenos pedaços de madeira que usava nasciam utensílios domésticos, estatuetas de figuras imaginárias e outras criações que muita gente não conseguia perceber muito bem o que eram, mas que para ele eram obras de arte. A sua mais preciosa criação tinha sido uma imagem de princesa que talhara num cavaco de madeira do velho castanheiro e que dizia ser a tal princesa do cavaleiro em cavalo negro.

Percorria

campos

e

montes

em

busca

de

ninhos

secretamente escondidos, montava as armadilhas que ele próprio construía e apanhava uma ou outra ave que depois adotava e da qual tratava com todo o carinho.

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Houve mesmo uma altura em que apanhou um jovem melro meio depenado que caíra do ninho onde nascera; alimentou-o à boca com pedaços de pão que retirava ao que lhe poderia diminuir a fome. Com muito empenho e paciência, ensinou-o a falar algumas palavras e durante alguns anos foi a sua companhia de conversa, de brincadeira e de desabafos. Acabou por perder aquele amigo à imagem dos que, ao longo do tempo, tinham voado para fora da terra.

Como a maior parte das pessoas da aldeia, aproveitava os frutos que a terra lhe oferecia para matar a fome que o acompanhava todos os dias e que disfarçava com a sua original arte de criação de amigos imaginários em madeira.

Em casa não havia muita abundância de alimentos; os pais cultivavam os campos e uma vez por mês, na ida à vila, tentavam trocar alguns produtos por galinhas, ovos ou, com alguma sorte, peixe que era alimento raro ou para os mais abastados. De resto havia batatas, couves, feijão, o pão de centeio que era cozido, de quinze em quinze dias, para toda a aldeia, no forno comunitário; consumiam, ainda, algum queijo que resultava da ordenha das cabras do rebanho comunitário.

O que Laurinho mais gostava era do queijo que pontualmente chegava à mesa e que lhe sabia a flores e a ar puro. Não sabia quem fazia aquela delícia e também não se importava com isso. Importante era poder saborear um bom pedaço daquele raro e único manjar que partilhava com o seu amigo de penas quando este ainda estava na bela gaiola de pequenos pedaços de galhos de árvore entrançados.

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Quando o seu companheiro partir, corria com a sua roda de madeira empurrada por um arame dobrado na ponta que encontrara, desprotegido, numa vedação de um vizinho, sentava-se no meio de um campo de flores, tirava aquele pedaço de queijo do bolso roto das calças e degustava-o como se fosse o supremo e derradeiro alimento à face da terra.

Casara-se com Teresa Violante. Fizera-o não por falta de escolha, mas por um dia ter sido tocado pela sua alegria, pelo seu olhar brilhante e pelo sorriso que lhe oferecia reconfortante.

Viviam, depois de se casarem na igreja da aldeia, em casa dos pais de Laurentino que tinham morrido naturalmente alguns anos antes e depois de uma sexagenária vida de trabalho na terra.

Dizia-se, na povoação, que tinha sido a festa de casamento mais bonita de sempre, registada no eterno castanheiro onde foram colocados os seus nomes ao lado daquele outro da princesa imaginária. Fizeram uma festa para todos os vizinhos da terra e terse-ia, até, sacrificado uma das ovelhas para alimentar tantas bocas.

Teresa Violante era uma das poucas jovens que ficara naquele paraíso perdido entre montanhas depois de ter atingido a idade de casar.

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Enquanto

as

outras

jovens

procuravam

encontrar

casamento, logo que os pais o permitiam, para poderem ir para fora e procurar uma vida melhor, Teresa Violante decidira manter-se ali, tomando conta das cabras da povoação e cuidando da mãe Maria do Carmo e do pai António.

O pai António não podia ajudar muito em casa por causa de um acidente que tivera e que o fizera regressar de Espanha (para grande alegria de Teresa, que sentia a sua falta e tinha de realizar as tarefas que cabiam ao progenitor, e desgraça de Maria do Carmo, que teve de se acomodar à pouca ajuda do marido e ao seu péssimo humor).

António, um dos homens mais ativos que se conhecera por aquelas bandas, lá dava umas voltas pelos campos, cortava umas couves tenras e umas frutas das árvores mais baixas, mas para trabalhos mais duros ou que exigissem mais das suas costas, já não podiam contar com ele.

O homem, para tentar esquecer a incapacidade que o fizera abandonar Espanha, perdia-se pelos campos e evitava encontrar-se com alguém.

Quando chegava a casa, fechava-se no quarto e já ninguém podia contar mais com ele para fazer companhia ou ter uma

conversa.

Levantava-se,

silenciosamente,

para

comer

qualquer resto do jantar, que a mulher conscientemente lhe deixava na mesa, quando já todos dormiam.

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A pequena Teresa acordava de manhã bem cedo e alegrava-se por ver aquele prato vazio em cima da mesa; era sinal que seu pai ainda estava por ali. Partia com o seu rebanho para mais um dia entre montes e campos, só voltando ao cair do dia.

Alimentava-se do pouco que levava consigo, do que conseguia recolher na natureza e do leite que retirava dos animais com as próprias mãos, colocando a boca por baixo deles.

Era também ela quem fabricava o queijo para todos os vizinhos e que tanto agradava, em segredo, a Laurinho; fazia-o ainda da mesma forma que sua mãe, sua avó e sua visavó o tinham feito durante gerações e se tinham ensinado umas às outras ao longo de anos de aprendizagem e dedicação.

Era uma rapariga pequena e elegante, de faces rosadas e cabelos sempre presos encaracolados. Descalça e de roupas coloridas, chamava a atenção pela sua alegria e dedicação aos outros. Essa alegria continuou a mantê-la mesmo depois de o seu pai ter morrido por força da vergonha de não poder cuidar da sua família como queria e exigiam os vizinhos (ou, pensava ele que exigiam).

Na sua natal aldeia, Laurentino era conhecido pela sua barba branca comprida, pelo seu andar calmo e molengão, pelo seu cigarro sem filtro no canto da boca que se movia constantemente ao ritmo do seu assobio e o obrigava a cuspir os pedaços de tabaco que se iam colando à língua. Vestia sempre de preto em memória da sua Teresa que o abandonara há já

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quase trinta anos; tinha sido o dia mais triste da sua vida quando, ao chegar a casa, viu o Doutor a sair.

Alguém tinha ouvido um grito, tinha ido a casa que se mantinha, como de costume, de porta aberta e vira a Ti Teresa estendida imóvel no chão. Havia um banco partido ao seu lado e junto da pequena janela alta que dava para os campos de cereais onde o marido normalmente parava para cavar, regar ou verificar da sua maturação.

Tinham corrido a casa do Doutor Pereira que, com a sua mala debaixo do braço, se tinha apressado a ver o que se passava, correndo tão rapidamente quando o fato negro o permitia.

Naquele dia, Laurentino acordara, como sempre, quando o sol batia na sua janela e projetava a sua luz na imagem da Senhora de Fátima que se sobrepunha à cabeceira da cama. Teresa estava já acordada e preparava na cozinha as hortaliças colhidas na pequena horta para o caldo que comeriam à noite. Olhara para trás e vira o marido levantar-se, sacudir a roupa, pentear os seus cabelos negros com os dedos e passar pela cozinha. Olhara para a sua Teresa, recebera o seu calmo sorriso e saíra de casa para o seu habitual trabalho nos campos.

Apanhara duas maçãs ao sair de casa, que começara logo a rilhar e dirigira-se à fonte de água fresca de nascente. Bebera a

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sua pinga de água, lavara a cara da noite de sono e passara a mão molhada pela cabeça, endireitando o cabelo.

Cavara umas videiras onde nascia já alguma erva daninha, abrira a água da poça para regar as videiras, pois era a sua manhã de humedecer as terras que as acolhiam; encaminhara a água para os regos que fora criando ao lado das fartas ramadas.

Fora dar uma volta até às cearas para verificar se estavam a maturar em condições e sem pragas. Tocadas meia dúzia de espigas, concluíra que estaria tudo em condições ajudado pelo experiente olhar e apurado olfato.

Voltara a fechar a água de rega para que a poça enchesse de novo antes da próxima poçada e sentira o sol que se colocara por cima da sua cabeça e lhe aquecia o miolo descoberto.

Com este calor viera o cheiro da comida da sua Teresa e por ele fora conduzido até casa.

Fora recebido por um olhar calmo e reconfortante. Sentara-se à mesa e deliciara-se com o caldo aquecido do dia anterior e com um punhado de batatas cozidas a acompanhar um pedaço de carne de porco gorda que tinha trazido na sua última ida à vila.

Falaram sobre a qualidade dos cereais e de como teriam muito e bom pão durante todo o ano.

Este ano parece que não vai haver fome!

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Queira Deus que não venha nenhum mal que nos estrague a vida! Claro que não, homem. Vai correr tudo bem.

Saíra depois do almoço e fora até ao adro da igreja. Tinha prometido ao Senhor Padre que limparia o mato que começava a crescer à volta do cemitério e que dificultava o trabalho das senhoras quando iam colocar as flores nas campas.

A meio da tarde, enquanto recolhia as silvas num monte para deixar secar e depois queimar, sentira um aperto no peito e tivera de se sentar no chão de terra para recuperar o fôlego. Assim se mantivera durante uns minutos. Não percebera o que se tinha passado, pois fora a primeira vez que tal lhe acontecera. Sempre tinha sido homem de saúde e nem uma constipação se tinha atrevido a chegar-se perto de si. Pensou que seria melhor ir ao Doutor Pereira se aquilo continuasse a acontecer.

Retomara o trabalho, sempre com aquele aperto cravado no peito, e deixara tudo no mesmo monte que viria a queimar dois ou três dias depois. Limpara, ainda, algumas ervas que nasciam nas paredes da igreja e voltara para abrir novamente a poça de água de rega das suas videiras.

Terminado o dia de trabalho, voltara para casa com o sentido, ainda, naquele mal-estar que sentira aquando da limpeza do terreno da igreja.

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Tenho muita pena Manuel, mas a Ti Teresa não caiu bem e eu não pude fazer mais nada por ela.

Foram as palavras que dissera o Doutor Pereira que saia a porta de casa quando Manuel Laurentino chegava.

Entrou o Laurentino, dirigiu-se ao seu quarto e viu aquela imagem da beleza da sua Teresa estendida na cama, de pele branca e fria. Já não olhava para ele da cozinha, nem lhe oferecia o sorriso quando entrava em casa.

O cansaço do Ti Manel passava logo que entrava aquela porta e sentia o sorriso brilhante dos olhos da sua Teresa, agarrada ao fogão a preparar a refeição que ele mais gostava: aquela que ela ajeitava com amor e com que se alimentava na sua companhia.

Após um dia de trabalho árduo nos campos, Laurentino voltava a casa, com a roupa da cor da pele castanha de terra com pontuadas manchas de suor. Olhava para a sua mulher, absorvia o seu sorriso, tirava as botas de trabalho e depois de lavar as mãos e arranjar os seus cabelos negros, sentava-se à mesa da cozinha. Sempre assim fora desde que formara família.

Naquele dia não.

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Não tirou as botas, não lavou as mãos e manteve os cabelos negros emaranhados. Pior do que tudo aquilo foi não merecer o calmante sorrir da Teresa.

Sentiu o coração arrefecer, o chão fugir-lhe por baixo dos pés e o ar rarear. Não conseguiu deitar nem uma lágrima, não soltou nem uma palavra.

Sentou-se ali mesmo, ao lado daquele corpo caiado imóvel. Viu o sol entrar pela janela após o luar que se tinha toda a noite refletido nos seus olhos e que, segundo se dizia na terra, lhe teriam, naquela mesma noite, pintado os cabelos de branco dorido.

O Doutor voltou de manhã cedo para tratar dos papéis necessários, consolar o transformado Laurentino e dizer-lhe o que se tinha passado naquela tarde.

Desses dias recorda o adeus à sua branca e quieta Teresa, as lágrimas que não lhe caíram da cara, as palmadas dos vizinhos nas suas costas, a bênção do Senhor Padre e o regresso a uma casa vazia.

Olhou para a cozinha e não sentiu o calor daquele sorriso que sempre o recebera.

Recorda, ainda, a falta que lhe fizeram os filhos, a dor de não poder dizer-lhes o que tinha acontecido com a sua mãe e

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receber o seu conforto e apoio. Os filhos só viriam a saber daquela desgraça uns meses depois quando voltaram de férias.

Albertino continuava, de vez em quando, a falar com a sua Teresa.

Mantinham longas conversas sobre o que faria para "o comer" naquela noite, o que a Maria do Albino lhe tinha dito de manhã sobre a água que naquele dia era do Pereira, apesar de no dia anterior, o dela, não ter havido muita para regar os seus campos e matar a sede às colheitas. Falavam sobre os filhos que tinham partido e sobre os netos que deveriam ser tão queridos e tão parecidos com os filhos e com eles próprios. Olhavam para as fotografias que se empoeiravam em cima do armário do quarto e comparavam imaginárias feições.

Os filhos, Lurdes e Justino, tinham partido para França já há alguns anos.

Laurentino e Teresa falavam do dia em que se tinham conhecido no meio daqueles campos que agora tinham recolhido o seu corpo, enquanto Laurentino ouvia a radionovela que já não lhe fazia muito sentido.

Agora não tinha com quem comentar os amores relatados e como aquilo não tinha jeito nenhum porque só podia acontecer nas histórias da radio; já não podia olhar envergonhado para a sua

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Teresa e ver-lhe a cor marcar-se mais por baixo dos olhos, quando ouviam o som de um beijo trocado entre o Justino Rafael e a Cristiana Sofia.

Um dia essas conversas desapareceram da mesma forma fria que a sua mulher tinha partido: de um momento para o outro, sem ele estar lá e sem aviso.

Manuel Laurentino passara, então, a andar de um lado para o outro, sem destino, sem objetivo, sem saber realmente o que fazer ou porque andava ainda em cima das suas velhas e cansadas pernas.

Os filhos continuavam em França e só voltavam no mês de agosto para a festa do padroeiro.

Que bonitos estão! Estás cada vez mais parecida com a tua mãe, que Deus a tenha. Quando puderdes, passai lá em casa para beber uma pinga e provar de um bolo que acabei de fazer.

Isto diziam as vizinhas à chegada dos filhos de Laurentino. Durante esse mês de férias, o Manuel parecia outro. Andava sempre limpinho, de roupa engomada e com um sorriso que acompanhava o seu cigarro no canto da boca.

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Brincava com o neto e falava-lhe da avó Teresa e de como ela gostaria de o conhecer e de lhe fazer o bolo de nozes que era a sua especialidade.

Passeava pelas suas terras, bebia a sua água fresca de nascente na bica da fonte, dava uma cavadela aqui e outra ali para que o neto visse como se fazia e para que, talvez um dia, voltasse e cuidasse do que tanto trabalho lhe dera a manter limpo e cultivável. Mostrava-lhe os sítios secretos, que só ele conhecia, onde havia ninhos de pássaros, aproveitando para lhe contar as suas juvenis aventuras de caçador de aves.

Sabia, no seu íntimo, que esse dia em que o neto teria vontade de voltar à terra nunca chegaria e que nem mesmo os filhos voltariam de novo, pelo menos enquanto fosse vivo; no entanto gostava de acreditar que um dia, talvez, pudesse vir a acontecer e que o visitassem a ele e à Teresa no cemitério da aldeia.

No final das férias os filhos, o neto, a alegria e a vida feliz partiam.

A casa enchia-se de ainda mais memórias que se juntavam às da sua Teresa. Ficavam os retratos das férias, com o Laurentino e o neto, dos filhos com os vizinhos e de todos juntos na procissão do padroeiro a pegar o andor da Santa Teresa; ficava o vazio de uma casa cheia de histórias alegres agora frias.

Ti Manel retornava, então, à sua triste e perdida vida de antes de agosto.

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Acordava de manhã quando a primeira luz do sol batia na janela do seu quarto frio e vazio.

Levantava-se e sacudia a roupa do dia anterior para poder vestir sem o pó que acumulara.

Saia de casa depois de olhar para a fotografia da sua Teresa e dava a sua volta costumeira pelas terras. Apanhava uma ou duas maças da árvore da porta da casa, bebia uma pinga de água fresca da bica de nascente, fumava os seus cigarros dançantes e dava uma ou outra cavadela na terra.

Voltava ao final de mais um dia no campo, depois de ter comido qualquer coisa que fizera no dia anterior.

Entrava a porta, olhava para a cozinha e não via já aquele sorriso que tanto o aliviava do cansaço quando a Ti Teresa cozinhava para o jantar dos dois.

Deitava-se na cama vazia de um quarto agora escuro, sem sequer ligar o rádio. Já não conseguia manter a mesma vontade de trabalhar e cuidar da terra que tinha quando era mais novo e tinha mais energia. Já lhe faltava o desejo de ouvir a história que passava no rádio.

O seu objetivo, desde que tinha ficado só e os filhos tinham partido, era chegar ao fim do dia e acordar no dia seguinte "se Deus quiser".

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Os irmĂŁos

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III O Justino, nome que lhe tinha sido dado a partir de uma personagem de radionovela a que a mãe Teresa e o pai Laurentino assistiam todas as noites depois da refeição.

Foi ele o primeiro a partir. Tinha quinze anos e foi levado por um vizinho dos pais que voltara à aldeia para passar as férias de agosto e lançar uns foguetes na festa do padroeiro.

O vizinho Carmindo tinha-o visto naquela pobreza de vida; falara com o Laurentino e dissera-lhe que o rapaz tinha trabalho com ele em França e que sempre podia ganhar algum dinheiro para ajudar a melhorar a sua vida e a da família.

Garantira-lhe que tomaria conta dele como se fosse seu filho.

O Laurentino falara com a Teresa que se agarrou ao peito e acedeu dando-lhe um oscilar choroso de cabeça. Não queria perder a companhia do filho e não sabia se iria aguentar vê-lo partir; no entanto, sabia que naquela pequena aldeia o filho não teria o futuro que merecia.

Partiu,

no

penúltimo

dia

de

agosto,

despedindo-se

carinhosamente da sua triste mãe; abraçaram-se longamente.

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Que Deus vá contigo, meu filho! Vai, com certeza, minha mãe.

O pai, esse, apesar de querer parecer mais duro, não conseguiu conter aquela lágrima que o filho limpou, dando-lhe um encolhido aperto de mão.

Não chore, meu pai. Que a sorte te acompanhe, meu filho.

Fez aquela longa e cansativa viagem mantendo aquela imagem triste da mãe que se despedia enquanto o carro se afastava lentamente pela estrada térrea. O pai, esse, já tinha virado costas e partira para os seus campos choroso. Não conseguiu, também ele, travar as lágrimas acumuladas até ao momento em que começou a sentir a aldeia afastar-se.

Ficou a morar na casa do vizinho, que o desencaminhara, durante os primeiros tempos e enquanto não se acomodava ao país e às estranhas pessoas.

Foi-lhe arranjado trabalho numa empresa de construção civil; começou de imediato a sua nova ocupação.

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Apesar de sentir na pele a dureza do que era obrigado a fazer, nunca desistiu; tinha prometido ao seu pai, em conversa de despedida, que iria conseguir vingar. Estava determinado a cumprir a sua promessa e a fazer tudo o que lhe fosse mandado para que pudesse regressar a casa com a capacidade de orgulhar os pais.

Sempre demonstrara vontade de, como bom filho, oferecer aos pais um fim de vida melhor. Queria que não tivessem mais necessidade de trabalhar e de passar pelas necessidades sentidas para criar os seus filhos.

Chegara mesmo a ocupar-se, na sua distante aldeia, no apoio à realização de trabalhos nos campos dos vizinhos, trocando essa ajuda por bens que lhes eram necessários à existência diária. Para além desse comprometimento com os habitantes de Castanheiro, estudara até ao sexto ano, aprendera a ler e a escrever e sempre se tinha apresentado como um aluno inteligente e dedicado.

No final daquele primeiro ano emigrado, não conseguiu juntar condições para voltar em agosto a casa. Tinha determinado o objetivo de voltar unicamente quando pudesse legar alguma coisa que facilitasse a vivência dos pais.

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Conheceu, já em França e durante aquele mês de agosto, uma rapariga portuguesa que trabalhava na limpeza de algumas casas, em Champigny-sur-Marne.

Ficou encantado com aquela moça. Veio a saber que era de uma terra muito perto da sua aldeia e que, se calhar, até já se teriam cruzado na vila em dia de feira.

Cansado de trabalhar nas obras e de ser mal compensado, trocou para um comércio de materiais de construção que pertencia a um grego que o vira na obra e gostara do seu esmero profissional.

Este novo patrão tinha uma série de casas que alugava aos seus empregados mais necessitados. Ofereceu-lhe uma dessas habitações e Justino aceitou de imediato.

Aquela casa e o novo trabalho dar-lhe-iam uma nova perspetiva de vida e a possibilidade de constituir família com quem começara a namorar pouco tempo depois de a ter conhecido, a Conceição.

Casaram e foram morar para aquela pequena casa, remodelada com a ajuda do Carmindo, na Rue de la Mézy.

Todos os dias saia de casa bem cedo e ia para o trabalho na loja de materiais de construção civil, na Rue Benoît Frachon. Levava a sua motoreta Scooter que comprara, em segunda mão, com o ordenado dos dois primeiros meses de trabalho. A mesma Scooter que tinha chamado a atenção da sua mulher quando o

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viu passar, pelo Parc du Plateau, num fim de tarde soalheiro de abril.

Vira-a a varrer o passeio em frente a uma das casas das várias madames para quem trabalhava, ganhara coragem e oferecera-se para a levar a casa.

Ela recusara a oferta com medo que o pai não achasse muita graça uma moça solteira andar por ali com um estranho que nem sequer se tinha apresentado ou pedido autorização para sair com a filha.

Justino, à imagem de seu pai, não desistira de conquistar aquela rapariga e continuara a insistir com o convite que a Conceição viera a aceitar com a condição que pedisse autorização ao pai e à mãe.

Ter-se-ia reunido, num jantar, com os pais para lhes pedir respeitosa autorização de namoro.

Quais são as suas intenções? Eu quero namorar com a sua filha, mas o que quero mesmo é casar com ela em breve. E acha que pode dar uma boa vida à rapariga. Tenho um emprego e ganho bem. Estou habituado a não ter medo do trabalho; nunca tive lá em Portugal e agora que a conheci tenho ainda menos. Tenho uma casa para nós.

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Já sabe que esta é a nossa única filha e que estaremos atentos para ver se cumpre a sua palavra. Gosto muito da Conceição e vou tratá-la sempre bem. Pelo que me contou, conheci o seu pai e sempre o tive como homem de palavra. Espero que saia a ele e cumpra a sua.

Nunca mais se separaram desde que recebera permissão para namorar a rapariga.

Naquele primeiro mês de agosto de Justino em França, a Lurdes foi fazer-lhe companhia, levada pelo mesmo Carmindo.

Carmindo, à semelhança do que tinha acontecido com Justino, tinha retornado, de novo, à sua pátria na companhia da sua mulher.

Viu que aqueles pais ainda sentiam muitas dificuldades para dar à filha a vida que ela merecia e que ele via que poderia ter em França.

Era uma jovem mulher trabalhadora, apoiava os pais em tudo aquilo que podia, ia à escola para aprender a ler e a escrever, mas sabia que não poderia continuar para além do sexto ano, pois não havia possibilidades económicas para isso.

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Tinha a Lurdes catorze anos e o Carmindo, agora dono de um supermercado, arranjar-lhe-ia trabalho nesse estabelecimento que ficava na Rue Serpente, muito perto da pequena casa de família do irmão e onde este morava já com a sua mulher, grávida do primeiro filho.

A Lurdes recebera o nome da sua avó paterna que tinha sido batizada em honra da Nossa Senhora de Lourdes. Tinha sido o Padre que, na missa de uma manhã de domingo pouco antes de a menina nascer, falara de um milagre daquela santa, fazendo chorar as mulheres da aldeia e soluçar os homens que se recusavam a ser vistos chorar.

No final daquele agosto de férias, lá partiram os três deixando para trás os pais que, novamente, sentiram a saída de mais um filho. A despedida, agora, era ainda mais penosa porque se tratava da sua "menina", como dizia o pai Laurentino.

A Lurdes ainda pensou em ficar, desistindo da viagem; não queria deixar ficar a mãe sozinha sem ajuda e sem a sua confidente de sempre.

Minha filha, tens de ir, porque mereces mais do que o que te podemos dar aqui! Mas, minha mãe, quem vai tomar conta de ti? Quem vai fazer-te companhia? Quem te vai ajudar?

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Não te preocupes. Tenho o teu pai. Quem vai falar comigo quando eu precisar de conselhos? Tens o teu irmão. Mas vou ter muitas saudades, minha mãe! Também eu, mas daqui a pouco já vamos estar juntas de novo. Vai e cuida bem de ti.

A mãe, recorrendo às suas últimas forças, resistiu às lágrimas e acompanhou-a ao transporte que levaria a sua filha para longe de si.

Fizeram a longa viagem, sempre com o coração preso àquela imagem da mãe abraçada pelo pai; aquele foi um momento raro de manifestação pública de carinho entre ambos.

Chegados a França, instalou-se em casa do irmão que alegremente a recebeu.

Começou a trabalhar no supermercado. Primeiro como repositora de produtos nas prateleiras, mas rapidamente foi promovida à caixa de pagamento. Os patrões gostaram muito do seu trabalho e da sua seriedade confiando-lhe o manejo dos dinheiros da casa.

Ao sábado frequentava uma escola para aprender a língua e poder crescer no trabalho.

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Também ela, dois anos e poucos meses depois de ter chegado a França, conheceu um rapaz daquela cidade, empregado numa oficina de motos. Lá tinha o irmão comprado a sua Scooter e mantivera contacto para possíveis negócios futuros. Apresentou-lhe a sua irmã num dia em que tinham ido substituir um cabo de travão que se tinha rebentado surpreendentemente.

O empregado reconhecera-a de imediato. Este tinha, um dia, ido ao supermercado de Lurdes e vira-a a colocar os produtos nas prateleiras, ficando encantado com a sua determinação e perfeição. Não se atrevera a falar com ela, mas não a tinha mais conseguido tirar da sua cabeça.

A Lurdes e o namorado nunca chegaram a casar o que não era do agrado do revoltado irmão; dizia-lhe que se um dia os pais soubessem que não estava casada, não iriam aceitar a situação e se iriam sentir envergonhados perante os vizinhos da aldeia.

Nunca contaram nada aos pais para evitar o desgosto e combinaram mesmo dizer que tinham casado numa pequena igreja de Champigny-sur-Marne. Não teriam tirado, no entanto, fotografias porque o dinheiro ainda não era muito e "os retratos saíam caritos".

Aquele rapaz tinha já a sua casa montada e Lurdes mudou-se com ele para lá, deixando o irmão com a sua família.

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Nunca se afastaram os irmãos; encontravam-se todos os dias ou para almoçar após a paragem no trabalho ou para jantar no final da labuta diária.

Nos domingos reuniam as duas famílias na casa de um ou de outro e trocavam memórias do passado, tentando diminuir as saudades que tinham dos pais.

Voltariam todos a casa e à terra natal naquele verão que se aproximava.

Viajaram naquele início de férias, Justino, a mulher e os dois filhos, no seu Simca 1100 e num Renault 4L, vinham Lurdes, o companheiro e a filha, dois anos depois de Lurdes ter saído da sua pequena aldeia.

Voltavam à pequena aldeia no mês das festas do padroeiro. Traziam os carros cheios de roupas e de objetos diferentes que, diziam eles, toda a gente da cidade tinha e precisava.

Disse o seu pai Laurentino, olhando admirado para aqueles equipamentos, que eram objetos modernos onde se ouviam vozes como acontecia com o seu rádio ou com o telefone do café do Ramiro.

Eram máquinas que tiravam os retratos às pessoas e de imediato se via sair, pela frente da dita máquina, um pedaço quadrado de papel; depois abanavam aquilo e começava a aparecer a figura da pessoa retratada.

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Isto é um milagre!

Traziam sempre, também, uns chocolates e uns rebuçados que eram a alegria dos filhos e dos vizinhos que se juntavam perto da casa do Laurentino sempre que corria a voz que o Justino e a Lurdes tinham chegado com os meninos.

Naquelas férias de verão não tiveram a companhia da sua mãe que falecera surpreendentemente.

Choraram a sua falta e tentaram convencer o pai a viajar de volta com eles.

Laurentino nem sequer considerou aquela possibilidade. Não conseguiria afastar-se da sua Teresa; todos os dias se dirigia ao cemitério e ali passavam algum tempo a conversar.

Para além dessa necessidade que sentia, considerava já não ter nem idade nem saúde para sair da sua Castanheiro natal.

Partiram, juntamente com os filhos e restante família, logo que terminava a pausa anual no trabalho; deixavam o pai para trás sabendo que até ao ano seguinte não mais teriam notícias dele.

Desconheciam, ainda, se aquela seria a última vez que estariam todos juntos, lembrando a partida da mãe na sua ausência.

Mal sabiam que assim aconteceria.

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O Senhor Padre

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IV Joselito era um rapazinho muito distraído que gostava de jogar ao botão ou ao pião com os colegas.

Para jogarem ao botão, faziam um pequeno buraco no chão junto a uma qualquer parede e começavam a lançar os botões retirados da caixa de costura das mães; o botão tinha de bater primeiro na parede e depois entrar no buraco. Aquele que conseguisse depositar o seu na cova ganhava os dos restantes que ficavam fora. Quando mais do que um menino atingia o objetivo, dividiam o espólio revertendo o sobrante para o mais velho.

No pião, cada um trazia os seus melhores carrapetas para abrir as hostilidades; depois era vê-los rodar, rodar e rodar até que um deles parasse e caísse. O jogador cujo pião parasse primeiro tinha de lançar o batatinha para receber as maçarocadas dos outros enquanto aguentasse. Muitas das vezes alguém saia a choramingar com os pedaços do batatinha na mão, mas era assim mesmo.

Na Escola, o Professor Armandino Sá via-o como um dos melhores alunos, mas nada que se comparasse com ele próprio quando era aluno.

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Quando o Professor Sá andava na escola, sabia tudo na ponta da língua, desde os reis, até aos rios e afluentes e mesmo as tabuadas; tinha uma caligrafia perfeita que treinara no caderno pautado de cinco linhas durante largos anos.

Agora ninguém quer saber nada. Acham sempre que sabem tudo e que não é preciso trabalho! Até parece que alguma coisa cai do céu!

O menino José estava sentado ao lado do seu melhor amigo, o Nabo; assim lhe chamavam, na brincadeira, por ter muitas dificuldades nas contas de dividir e multiplicar e não pela forma esquisita que apresentava o seu nariz (assim lhe diziam para que não ficasse triste).

A culpa era da tabuada que "não tinha jeito nenhum". Também não percebia muito bem para que lhe iria servir saber os reis das dinastias e os rios de Portugal; uns já tinham morrido há muito tempo e nem os tinha conhecido de lado nenhum, os outros corriam longe dali e nunca lhe fariam diferença.

Queria, como o seu pai, ser eletricista e nem os reis o iriam ajudar a juntar os fios, nem a água daqueles rios poderia chegar-se perto dos condutores elétricos para não dar choque e queimar tudo. Para além disso não era muito amigo da água que evitava a todo custo que se aproximasse do seu corpo.

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Quanto à tabuada já nem tentava; não conseguia perceber, por muito que se esforçasse, como é que o cinco vezes o oito poderia dar quarenta.

O José, pacientemente, juntava cinco pedras em oito linhas diferentes e depois pedia ao Nabo que as contasse; ele lá contava, mas dizia que assim era mais fácil porque só tinha de somar as pedras e não multiplicar como nas tabuadas.

Somar eu consigo. Pego nos dedos e já está.

O Nabo era mesmo assim e o José gostava do seu amigo assim como ele era.

Quando havia que explicar como se substituía uma lâmpada fundida na sala, o Nabo brilhava. Enchia ainda mais o seu peito de ar e dava uma longa explicação técnica sobre o assunto, passando depois a cometer o heroico ato de dar à luz na sala de aula.

Recebia o aplauso entusiástico por parte dos colegas, mas imediatamente interrompido pelo Professor Sá que não admitia aquele ruído na sua sala de aula, apesar do reconhecimento ao trabalho desenvolvido pelo rapaz.

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O Professor Armandino Sá era um homem muito sério, exigente com os meninos e por vezes violento. Castigava duramente qualquer um deles, com umas boas reguadas, ou bofetadas (quando a régua não estava à mão) sempre que não respondiam às suas ameaçadoras perguntas, constantemente acompanhadas por um "Vê lá o que dizes!" e um dedo bem apontado ao menino que trémulo transpirava.

Exigia que soubessem, sem abrir o caderno, o nome e localização geográfica exata dos rios de Portugal, onde nasciam, que terras banhavam e onde desaguavam; já não exigia os afluentes mas premiava com um raro "Muito bem, menino!" aquele que os soubesse corretamente. Ele era o Mondego, o Guadiana, o Minho, o Tejo, o Sado, o Vouga e muitos outros; havia até um que se chamava "Nabo" como respondeu o Nabo ao querer dizer "Nabão". Sabia que todos se iriam rir dele pela associação ao seu nome.

No dia seguinte o pobre rapaz apresentava uma grande bolha na palma da mão direita, resultado das dez reguadas que lhe valeram o rio "Nabo".

Mostrava-se, no entanto, orgulhoso por ser o prémio da sua resistência ao riso dos colegas e por não poder justificadamente, devido à lesão, escrever o que o Professor mandasse naquele dia.

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Não admitia que ninguém desconhecesse os reis de todas as dinastias portuguesas e os respetivos cognomes.

Os pequenos lá balbuciavam os da primeira, de Borgonha:

D. Afonso I, o Conquistador, o Fundador, o Grande; D. Sancho I, o Povoador; D. Afonso II, o Gordo, o Crasso, o Gafo, o Legislador; D. Sancho II, o Capelo, o Piedoso, o Pio; D. Afonso III, o Bolonhês; D. Dinis I, o Lavrador, o Rei-Trovador, o Rei-Poeta, o Rei-Agricultor; D. Afonso IV, o Bravo; D. Pedro I, o Justiceiro, o Cruel, o Cru, o Vingativo, o Tartamudo, o Até-ao-Fim-do-Mundo-Apaixonado; D. Fernando I, o Formoso, o Belo, o Inconstante, o Inconsciente.

Seguiam-se os da segunda, de Avis; aumentava o arrastamento na língua dos meninos e um ou outro abria disfarçadamente a boca:

D. João I, o de Boa Memória; D. Duarte I, o Eloquente, o Rei-Filósofo; D. Afonso V, o Africano; D. João II, o Príncipe Perfeito, o Tirano; D. Manuel I" e parava toda a gente com o catarrear do professor que fazia com que despertassem em alerta, "D. Afonso V no segundo reinado; D. João II no segundo reinado; D. Manuel I, o Venturoso, o Bem-Aventurado, o Pomposo; D. João III, o Piedoso, o Pio; D. Sebastião I, o Príncipe Desejado; D. Henrique I, o Casto, o Cardeal-Rei, o Eborense.

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Depois era fácil e cantarolavam automaticamente um pouco mais alto os da terceira, a Filipina; até o Nabo elevava a sua voz acima da dos colegas de classe:

Filipe I, o Prudente; Filipe II, o Pio, o Piedoso; Filipe III, o Grande …

e nesta altura o professor Armandino fazia notar a sua voz dando expressão à sua maior admiração pelo "o Grande".

A voz baixava e ouvia-se

Na terceira, a de Bragança, eram D. João IV, o Restaurador, o Afortunado; D. Afonso VI, o Vitorioso, o Prisioneiro; D. Pedro II, o Pacífico; D. João V, o Magnânimo, o Magnífico, o Rei-Sol Português, o Freirático; D. José I, o Reformador; D. Maria I, a Piedosa, a Louca; D. Pedro III, o Capacidónio, o Sacristão, o Edificador; D. João VI, o Clemente; D. Pedro IV, o Rei-Soldado, o Rei-Imperador, o Libertador; D. Maria II, a Educadora, a Boa-Mãe;

D.

Miguel

I,

o

Rei

Absoluto,

o

Absolutista,

o

Tradicionalista, o Usurpador; D. Maria II no segundo reinado;

e aqui ninguém se enganava porque o professor se tinha colocado no estrado e lhes tinha mostrado o indicador,

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D. Fernando, o Rei-Artista; D. Pedro V, o Esperançoso, o Bem-Amado; D. Luís I, o Popular, o Bom, o Rei-Marinheiro; D. Carlos I, o Diplomata, o Martirizado, o Mártir, o Oceanógrafo, o Rei-Pintor; D. Manuel II, o Patriota, o Desventurado, o Estudioso, o Bibliófilo, o Rei-Saudade.

Nesta última tirada, o Nabo só mexia os lábios ao som dos colegas para não dizer nenhuma asneira.

No final, o professor Sá, numa das vezes das dinastias:

Estão todos de castigo!

Olhavam todos para o Nabo. Ele tapava a boca e abanava negativamente com a cabeça querendo dizer que nem tinha falado.

Ficavam de boca aberta, mas silenciosos, questionando-se sobre o que teria falhado ou o que teria o Nabo dito.

O castigo é escrever cinco vezes os reis e a dinastia a que pertenceu cada um. Vamos lá meus meninos ou tenho de vos aguçar as mãos?

levantando a régua costumeira.

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Ninguém se atrevia a responder ou mesmo questionar. Ninguém exceto o Rufino que lá ao fundo levantara o braço e, tendo a devida autorização, perguntara o que tinham falhado.

Senhor professor, qual foi a nossa asneira? O Muito Amado. D. Fernando, o Muito Amado. Esqueceram-se deste dado muito importante.

O Nabo recostava-se, de novo, na sua cadeira e respirava profundamente mostrando um sorriso aos colegas.

Depois chegam ao exame, reprovam todos por não saber o Muito Amado e a culpa vai ser do Professor que não ensinou os meninos. Toca a trabalhar, seus caloteiros!

E todos baixavam a cabeça, espetavam o lápis juntamente com o nariz no caderno liso e esticavam as dinastias e os reis sem deixar que nada falhasse para não terem de repetir novamente mais cinco vezes, ou levar tantas reguadas quantos reis a nação teve.

A tabuada tinha de ser sabida na ponta da língua, da frente para trás e de trás para a frente.

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Na noite anterior aos dias de tabuada ninguém repousava muito bem; muitos adormeciam mesmo com a lengalenga na ponta da língua em vez do Padre-Nosso ou da Salvé Rainha.

A caminho da escola, nesses dias de questionário matemático, em vez das brincadeiras do costume, ouvia-se, daqui e dali, as vozes que se cruzavam entre o oito vezes quatro e o seis vezes sete, ou mesmo o nove vezes nove. O Nabo ficava-se pela do um, porque era só repetir os números. Depois, na sala, era rezar para não lhes calhar o dedo do Professor ou para lhes sair uma tabuada decorada. Mantinham, no entanto, a cabeça sempre baixa para se tornarem invisíveis.

O Professor Sá vestia as suas roupas escuras com sapatos pretos sempre bem lustrados, que contrastavam com a sua cor pálida. Mostrava uma cabeça tão lustrosa quanto os sapatos onde pontuava um peleiro branco que penteava para o lado na tentativa de cobrir a desértico crânio.

Não conseguia encontrar espaço suficiente na cadeira de braços para se sentar, devido à largura corporal que apresentava, o que o obrigava a circular pesadamente entre as carteiras dos meninos, aproveitando para distribuir um ou outro açoite quando reparava numa caligrafia menos legível ou num número menos bem-desenhado.

Aquele homem frequentara o Seminário até ao momento em que decidira sair para cumprir o serviço militar, trocando unicamente de farda.

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Logo que voltara da satisfação da obrigação pátria, porque era aí que se fazia "um homem a sério", começara a ensinar meninos na escola primária da sua freguesia, por indicação de um Major que conhecera. Mantinha a sua postura militarista que aprendera no Seminário e aperfeiçoara nas fileiras militares.

Tinha mantido o celibato que trouxera do Seminário e morava sozinho numa velha casa que pertencera à família.

Ao domingo, o José ajudava o Senhor Padre na missa, por vontade da mãe e a descontento do pai que preferia vê-lo a trabalhar a seu lado "como um homem"; no final da missa podia comer o que tinha sobrado das hóstias não benzidas pelo Padre.

Um dia, depois da missa, foi à sacristia buscar a paga pelo seu apoio concentrado na celebração; guardou umas quantas hóstias no bolso que depois deu aos colegas de brincadeira fazendo de conta que era ele o Padre.

A mãe viu aquela brincadeira e achou que o rapaz até tinha algum jeitinho, pois fazia tudo exatamente como acontecia na missa.

Ainda me vai dar um belo Padre, este meu rapaz.

Aquele sinal na ponta do nariz e o cabelo cortado à tesoura pela mãe davam-lhe um ar de adulto; esse aspeto só era contrariado pelas brincadeiras típicas dos seus seis anos, pelos

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beijos diários à mãe ao deitar-se e pelo "A sua bênção" ao pai sempre que se levantava.

Certa manhã, correu de casa com pressa para ir ganhar uns botões ao Nabo e aos outros amigos que aparecessem para a brincadeira. Levantou-se de um pulo, molhou a ponta dos dedos na torneira gotejante da cozinha, passou-os pelos olhos, penteou o cabelo tesourado e correu porta fora.

Quando voltou, umas horas depois por chamado da fome, com o bolso cheio de botões, colocou o pé direito dentro da porta de casa, mas já não conseguiu completar a intensão de entrar, colocando o outro pé; só se recorda de ver uma grande mão de dedos grossos vindo ao encontro da sua cara e de bater com a cabeça na parede que separava o interior do exterior da sua casa.

Abanou a cabeça para colocar as imagens na ordem normal, olhou para cima e viu o seu pai olhando fixamente para ele.

Onde foste? Só fui … Não te esqueceste de nada hoje de manhã? Eu … É a brincadeira!

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Recuperou, na sua cabecinha dorida, os momentos da manhã e lembrou-se do "A sua bênção" que não dissera. Percebeu,

de

imediato,

o

pecado

cometido;

corrigiu-o

acrescentando um pedido de desculpa e nada mais disse, retirando-se para lavar as mãos e sentar-se à mesa. Nunca mais deu motivos ao pai para que tivesse de repetir aquela lição.

Na sua vizinhança viviam duas meninas da mesma idade com quem ia para a escola todos os dias.

A Madalena e a Mariana completavam o trio que saltitava pelo passeio risonho até à porta da primária da cidade. Quando lá davam entrada, o José seguia o seu caminho para a dos rapazes e as duas amigas sentavam-se, lado a lado, numa das salas da ala feminina.

A Senhora Professora Francisca Ferreira era uma senhora brincalhona que tratava as suas meninas por "lindas" e lhes passava carinhosamente a mão pelo cabelo todos os dias ao entrarem na sala. Este comportamento poderia ser resultado do facto de ter unicamente um filho rapaz, apesar de sempre ter desejado ter mais e principalmente uma rapariga.

Era muito exigente com as crianças, mas ajudava as que apresentassem mais dificuldades em qualquer assunto, recebendo-as, fora de horas, em sua casa.

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Ensinava

os

reis

e

as

princesas

contando

histórias

maravilhosas que encantavam as alunas e as mantinham vítreas com os olhitos brilhantes pregados nela.

Aprenderam a história de Pedro e Inês, suspirando por aquele amor inenarrável que levara à morte da mulher que fora Rainha depois de sepultada; soltaram um "Pobre Pedro" quando souberam do seu regresso a casa e da descoberta da orfandade dos seus filhos. Disseram mesmo que um dia gostariam de visitar os dois onde estivessem para rezar por eles.

No Mosteiro de Alcobaça, meninas. Um ao lado do outro.

Cantava umas músicas animadas com as quais as alunas aprendiam todas as tabuadas. Quando era dia de prova de matemática ouviam-se aquelas boquitas cantarolar umas músicas e escrever logo de seguida as tabuadas na folha.

Cinco vezes zero, Quente de febre, É igual a zero, Delirou a lebre. Cinco vezes um, Afiada como lixa, São cinco,

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Disse então a lagartixa. Cinco vezes dois, Gritou da toca, São dez, A comprida minhoca.

E assim continuavam durante toda a tabuada até ao momento de terminarem com o …

Cinco vezes dez, Pensou o dia inteiro, Só pode ser cinquenta, O triste pavão faceiro.

Quem não gostava daquelas cantilenas era o Professor Armandino Sá que, na sala ao lado separada por um muro fino desenhado, abanava a cabeça e estalava os dedos.

Como vai aquela canalha aprender alguma coisa de jeito se passam o dia a cantar!!! Vai ser lindo quando chegarem ao exame e fizerem asneira. Vamos ver depois quem canta!

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A Senhora Professora usava as suas roupas coloridas que só acabavam nas golas dos seus sapatos a condizer. Sinalizava o peso da sua longa experiência com o cabelo branco que lhe batia nos ombros e enquadrava perfeitamente a face rosada fina.

Era uma mulher baixinha, um pouco mais alta do que as meninas que ensinava, redonda.

Na sua infância e juventude tinha estado ao cuidado de uma

família

de

professores

devido

às

muitas

dificuldades

económicas dos pais; não conseguiam fazer entrar em casa comida que chegasse para alimentar as bocas dos seus seis filhos, nem mandá-los para a escola. Preferiram, então, distribuir alguns por famílias que deles cuidassem bem e lhes dessem comida, roupa e educação.

Nunca fora, no entanto, esquecida pelos progenitores que frequentemente adotante.

Esses

a

visitavam

eram

com

momentos

consentimento felizes;

mostrava

do os

casal seus

brinquedos aos pais, contava-lhes o que se passara na escola e às escondidas, pensava ela, ainda dava qualquer coisa para entregar aos irmãos que se mantinham em casa.

Acompanhara a mãe adotiva enquanto ensinava as suas classes e começara a ajudá-la logo que tivera idade para parecer adulta; demonstrara muito jeito para crianças o que a levou a tirar o curso no Magistério Primário uns anos mais tarde.

Conhecera um rapaz quando tirava o curso, com o qual viera a casar. Tiveram o Rafael Monteiro, filho que foi o único por problemas de saúde que o marido viera a revelar.

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Nos dias de muito calor de verão, os seus calções listados na horizontal, a sua camisinha bem engomada e as sandálias de cordão eram sinal distante de que vinha ali o José.

No inverno resguardava-se melhor; mantinha as riscas horizontais

nas

suas

calças,

continuava

com

a

camisinha

engomada agora de manga comprida, à qual se sobrepunha um casaco grosso de fazenda. Nos pés usava o seu calçado preferido, umas botas de cabedal que o pai lhe tinha comprado na feira por serem iguais às suas e que lhe davam um ar de gente grande.

Durante a sua infância, para além daquela surpresa castigadora do pai por culpa dos botões, nada de muito relevante e diferente dos outros meninos lhe aconteceu.

Recebeu um relógio de ponteiros e corda quando passou o seu exame da quarta classe. Aqueles ponteiros dourados brilhantes que se moviam religiosamente no fundo negro foram o seu orgulho e o sinal de que, a partir daquele dia, tinha de se comportar como um homem. Desde logo ganhou a responsabilidade de cuidar do seu presente, de o alimentar diariamente rodando a coroa e mantendo-o vivo.

Aquelas férias de verão, que o levaram da infância à juventude adulta, foram marcantes. Passou todo o tempo que arranjou, entre o "A sua bênção" e o beijo de boa-noite, com a sua amiga Madalena.

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A Madalena era uma rapariga muito serena e senhora do seu nariz. Destacava-se na escola por ser muito organizada, atenta, participativa e por apoiar as colegas que tinham mais dúvidas a perceber as contas, o nome dos rios ou dos reis de Portugal; tinha aprendido aquele comportamento com a sua professora. Nos intervalos gostava de brincar às mães e às professoras. Era sempre ela a mãe ou a professora.

Vivia com o pai Custódio Silva e com a mãe Laurentina de Fátima; o irmão mais velho, o Gustinho, saíra de casa para trabalhar em França quando a Madalena tinha completado o seu segundo aniversário.

Brincava, quando não ajudava a mãe nas tarefas domésticas, com as suas bonecas. Alimentava e tratava das suas filhas com todo o carinho que estava acostumada a receber da mãe.

Tinha cabelo comprido e claro que se estendia em cachos até meio das costas; prendia uma parte da sua vasta cabeleira com um laçarote no cimo da nuca. Aquele cabelo estendia a sua beleza pela pele clara rosada que orgulhava os pais e espantava os vizinhos.

O seu aspeto físico era enriquecido pelas suas roupas bem tratadas; a sua saia de godé pelo joelho, as meias que cresciam até à altura da bainha da saia, a blusa de folhos colocados à volta do fino pescoço e os seus sapatos em pele clara eram o regalo dos olhos dos moços que a viam passar para a escola na companhia do José e da Mariana. O José, esse, saltitava atentamente a seu

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lado, não tirando o olho dos mirones e mostrando o seu descontentamento, mostrando os punhos em riste, sempre que algum se atrevia a assobiar à sua colega de viagem.

Nos dias mais frios, a sua graça não diminuía. Substituía a saia em godé por uma com pregas que lhe cobria as pernas até ao tornozelo, colocava a sua camisola de gola alta coberta por um lindo casaco de fazenda igual à do casaco do José e que o deixava muito orgulhoso; completava a imagem com uns sapatos rasos de couro tratado e claro.

Fez o exame de quarta classe no mesmo dia do José e foi premiada com uma bolsa de tecido colorido e malha, no fundo, que correu a mostrar ao amigo; este retribuiu a animada simpatia com a visão, "mas não toques", do seu relógio de ponteiros dourados e corda.

Para além daqueles momentos de viagem para a escola, o José, sempre que podia, escapava-se para um dos cantos do recreio masculino e dava uma espreitadela por cima do muro que o separava do feminino.

Observava, em silêncio, a Madalena sentada num banco a perguntar às colegas a tabuada do nove e voltava para os seus botões.

Um dia foi apanhado pelo professor Sá a cometer a arriscada e proibida façanha; valeu-lhe um longo puxão da orelha

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esquerda estendido desde o recreio até à sala de aula. Aí passou o intervalo a escrever as tabuadas do um até à do dez sem parar até que os colegas voltassem. Mas valeu a pena o castigo, pensou ele com um sorriso maroto.

As férias de verão passou-as em brincadeiras com o José; disfarçava a sua vontade com o convite à Mariana e ao Nabo para se juntarem a eles; queria ter a certeza que o pai Custódio não se chateava por estar sempre na companhia do rapaz.

Olha que não fica bem a uma menina como tu estar sempre com aquele moço! Mas ele é o meu amigo, pai! Vai brincar com as tuas amigas a coisas de menina, Madalena! Está bem.

A Madalena queria era estar com o José e sempre que podia contrariava o pai.

Entraram ambos para o quinto ano, mas em escolas diferentes.

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A Madalena rumou à escola feminina que estava a uns bons quinze minutos de caminhada de sua casa, podendo fazer esse caminho diariamente com as amigas.

O José, para desespero seu e grande tristeza da Madalena, foi para uma escola que se situava junto a um pequeno monte a sul da sua casa.

O pai, proprietário de uma pequena loja de comércio de utilidades domésticas, achou que o rapaz iria crescer mais se estivesse naquele ambiente presbítero onde podia ser controlado e orientado para um futuro de sucesso. A mãe anuiu lacrimejante à opinião do pai, até porque não poderia ser de outra forma após o marido ter falado.

Revelou-se, o José, um bom aluno no colégio de padres. Não podendo sair, regularmente, durante a semana para ir a casa, ocupava-se na escrita de histórias imaginárias e na leitura dos muitos volumes que forravam a enorme biblioteca escolar.

Todos os dias ajudava à missa da manhã e à do final do dia. No silêncio da noite, aproveitava, sempre que lhe era possível, para dar um salto por cima do muro que aprisionava os alunos do colégio.

Levantava-se silenciosamente, sem acordar os colegas de dormitório, pegava na roupa e pé ante pé lá se dirigia à casa de banho onde se vestia.

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Descia a longa escadaria e saia por uma janela do refeitório que se mantinha sempre aberta devido aos vapores que se acumulavam.

Esgueirava-se por entre os pinheiros e corria pela estrada empedrada até à frente da casa da Madalena, onde chegava, a correr, uma boa hora depois da arrojada fuga.

Atirava uma pequena pedra à janela. Ganhava vida nova ao receber aquele olhar entorpecido da amiga, tapado pelo reflexo da lua no vidro do quarto.

Trocavam uns quantos gestos que só eles entendiam, durante alguns minutos e depois voltava, da mesma forma, ao colégio onde se deitava para dormir as poucas horas que faltavam até à missa da manhã.

A Madalena, depois de ver o seu amigo João e trocar uma quantidade de sinais com ele, via a sua silhueta diminuir lentamente no escuro da noite e dormia angelicalmente até de madrugada.

No dia seguinte, e apesar do sono da noite mal dormida, lá estava o José, com o seu cabelinho cortado à tesourada pelo interno do colégio, a sua farda de calças escuras e camisa branca, pronto para vestir os paramentos e apoiar o Senhor Padre. Algumas vezes fechava por momentos os olhos cansados, deixava cair a cabeça, mas acordava rapidamente com o ruído das pessoas que se levantavam ao "Oremos" do Senhor Padre.

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Assim passava os seus dias calmamente sagrados. No final do primeiro ano de colégio, terminados os estudos, voltara a casa para dois meses de férias.

A primeira visita feita fora a casa da Madalena. Aquele rosto divinamente alegre estava marcado por reluzentes lágrimas de dor. A sua mãe tinha ficado doente e não saia da cama; nada tinha dito a José nas suas noturnas visitas para não o preocupar.

Aquela criança recatada, que se dedicava à criação artística nos seus desenhos de flores e campos verdejantes, tinha agora de ser mulher; precisava cuidar da casa e do pai.

Iria abandonar a escola ainda com o seu belo cabelo comprido encaracolado, preso no cimo da nuca com um laçarote colorido.

No meio da sua lida caseira ia encontrando tempo para se encontrar, às escondidas do pai e com a concordância enferma da mãe, com o José que vivia os seus dias de férias à espera daquele momento; recebia o sinal combinado e saia do meio das árvores que limitavam a casa da Madalena e onde se escondia da reprovação do pai da amiga.

Viviam, ali, os momentos mais felizes e cúmplices do dia de ambos. Falavam muito, riam-se, brincavam e em muitos momentos limitavam-se a ficar a olhar um para o outro.

Chegaram mesmo, num dia de sol, a dar as mãos; o José consagrou um beijo envergonhado na face rosada de Madalena

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que encolheu os ombros, corou e soltou um acanhado sorriso silencioso.

Mantiveram os seus enamoradamente inocentes hábitos durante o tempo de colégio interno de José e de necessário enclausurado apoio caseiro de Madalena.

Terminados os estudos colegiais, José voltaria a casa homem feito e com a possibilidade de decidir a sua própria vida. Tinha decidido, no silencioso recato da capela do colégio, falar com o pai de Madalena e pedir para namorar com ela.

Madalena esperava-o. Madalena esperou José no dia marcado para a sua chegada por informação alegre do Nabo que o soubera no café do Pisco.

Madalena esperou todo esse dia e dois mais a seguir naquela janela que os separara nos seus encontros noturnos, sem que os seus olhos brilhassem com a imagem reconfortante do José.

Soube, no final dessa semana, que o filho do Manuel Paulino tinha seguido para o seminário. Correra a voz lá na obra onde o pai da moça trabalhava, que o rapaz, na companhia da mãe, tinha saído do colégio e sem desfazer as malas, seguira para o Seminário de onde sairia ordenado Padre.

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Esta teria sido a informação que o Nabo deveria ter comunicado à Madalena se não tivesse saído a correr de alegria, a meio da conversa, para ir contar a novidade.

A tristeza de Madalena não se conseguia medir porque decidira escondê-la da sua mãe que tinha piorado e precisava de tudo menos de ver a sua filha desgostosa.

No entanto, o seu coração esmorecera e definhara com aquela ausência inesperada, recordando os sentimentos que deveriam ter invadido Pedro ao descobrir o corpo frio da sua Inês.

Percebeu que não mais poderia ver o seu João nem pensar em

construir

com

ele

a

família

que

sempre

desejara

simuladamente nas suas brincadeiras com bonecas.

O definhar do seu coração foi acompanhado por sua mãe que veio a falecer alguns meses após o fenecimento do coração de Madalena.

A triste moça ficou por ali perdida em casa, atormentada entre a falta do José e a má-vida pela qual seu pai começara a encarreirar, por saudade da sua Laurentina e por se ver com uma filha para criar sozinho.

O pai, vendo-se sozinho com uma casa para governar e uma filha para criar, percebeu que não iria ser capaz de cumprir o seu dever. Saia de manhã para o trabalho e voltava sempre já o sol se escondia atrás do monte que acompanhava a escola que o

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José frequentara. Entrava em casa, já ébrio, e recolhia-se no seu quarto vazio sem sequer notar a presença da criança.

Da solidão acumulada resultou a entrada de uma estranha em casa como companheira do pai. O mau relacionamento que mantinha com aquela mulher, os maus-tratos resultantes da ignorância a que era sujeita diariamente, obrigaram a menina a decidir dar um novo rumo à sua vida desesperada.

Partiu, um dia, para trabalhar nas limpezas; encontrou uma casa onde vivia uma família de cinco pessoas que a acolheu como empregada doméstica e ama dos dois filhos mais novos.

Mantinha semanal contacto escrito com o José. Não desistia da sua intenção, apesar de nunca receber resposta.

José sempre estranhara a falta de resposta às cartas que pedia ao Reitor para enviar para casa, mas que na realidade eram para a sua Madalena. Desconhecia também o motivo para não receber notícias da Leninha. Pensava que se calhar se poderia ter esquecido dele; até nem era de admirar devido a tudo o que tinha acontecido e ao tempo que tinha passado.

No seu segundo ano, chegou ao Seminário uma carta. Avisado pelo Padre Justino da chegada da missiva, correu de alegria ao gabinete do Reitor, na esperança de ser da Madalena.

Entrou naquele espaço lúgubre e viu a postura esfíngica do velho homem. Escondeu o sorriso que trazia nos lábios e recebeu a

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carta aberta com uma palmada nas costas e um "Força, meu rapaz!".

Era de sua casa e tinha escrito, com a letra da sua mãe, que o seu pai morrera num acidente na loja.

Seu pai, à falta de ajuda e por peso da idade cansada de muito trabalho, começara a arrumar umas estantes

onde

guardava produtos que vendia. Uma das estantes tombara e ele teria ficado preso por baixo dela, vindo a falecer ali no momento. Fora descoberto no final do dia, quando a loja de comércio ficara aberta após a costumeira hora de fecho.

Partiu, no dia seguinte, com a bênção do Senhor Reitor para voltar dali a dois dias.

Entre a tristeza que lhe invadia o coração pela perda do seu pai, encontrou um pequeno espaço onde reluzia uma leve luz de esperança. Seria a sua oportunidade de rever a Madalena, falar com ela e saber de tudo o que se passara.

Aquela pequena luz desapareceu quando procurou, com o olhar, a Madalena entre as pessoas que assistiam aos serviços fúnebres e não a encontrou em lado nenhum.

Depois do funeral do pai, soube que a Madalena tinha partido dali, há já algum tempo. Não conseguiu, no entanto, saber

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para onde tinha ido nem o que fora fazer, pois o Nabo não obtivera nenhuma informação relevante.

Regressou ao seu cárcere sem ter satisfeito o desejo escondido de rever a sua amiga. Regressou com uma terrível certeza de que não mais veria a sua Madalena, aquela que tinha conseguido manter o seu coração vivo apesar do negrume do ambiente em que passava os seus dias.

O Senhor Padre José de Deus Oliveira terminou a sua formação clerical e depois de ordenado, foi enviado para uma pequena aldeia situada entre montes e vales e servida por um estreito caminho serpenteante de terra poeirento.

Era um jovem forte, bem-arranjado, eloquente e que despertou, desde a primeira missa celebrada na pequena igreja, a admiração respeitosa das mulheres e o apreço dos homens daquela sua nova paróquia.

Alojou-se na casa da Igreja e assim se manteve durante vários anos.

Como fazia algumas vezes durante o ano, um dia foi à cidade comprar um novo cálice para as suas celebrações na igreja e um fato preto para si.

Conduzia, já na metrópole, o seu automóvel por uma rua de comércio e muito espaço verde, quando viu uma figura feminina que lhe trouxe à memória velhos tempos.

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Estacionou o seu velho Volkswagen carocha que herdara do seu antecessor e este do anterior, numa praça junto à casa de paramentaria. Satisfez a necessidade do cálice ali mesmo, escolhendo um com a imagem do coração de Cristo e uma cruz na tampa; a sua cor dourada luzia da mesma forma que os ponteiros do relógio que trazia no pulso e que se moviam religiosamente desde a conclusão da sua quarta classe.

Percorreu, a pé, uma outra rua que o levava à alfaiataria e, num parque próximo onde brincavam crianças, sentiu um calor estranho no peito. Parou.

Bebeu um pouco de água numa bica ali instalada para satisfazer a sede dos mais pequenos, sentou-se num banco de madeira à sombra.

Levantou os olhos e viu aquela imagem de mulher que o levara ao passado por momentos quando passava com o seu Volkswagen.

Ficou ali sentado a observá-la e a tentar perceber de onde a conheceria. Poderia até parecer mal um homem de Deus estar assim estacado a olhar para uma mulher ali no meio de um parque, o que o fez disfarçar olhando para as crianças que brincavam.

Seria alguém que vira na sua nova paróquia? Seria confusão sua com alguém muito parecido que conhecera?

Naquela incerteza, uma ideia assaltou-lhe o pensamento.

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É a Madalena! Só pode ser a Madalena!

Não se rendeu ao desejo incontrolável de se aproximar dela com receio de errar nas suas suposições. Continuou ali sentado naquele mesmo banco, sem conseguir tirar os olhos daquela mulher.

Lena! Lena!

Chamava uma das crianças que oscilava num dos baloiços guinchantes do parque. O pedido de ajuda levou aquela mulher a dirigir-se apressadamente para a auxiliar.

Vestia uma saia com pregas e uma camisa com folhos que eram tocados pelo cabelo comprido encaracolado e claro. Mas foi o laçarote colorido no cimo da nuca que fez o Senhor Padre dar um salto do banco e dirigir-se a ela.

Chegado junto da criança suspensa no baloiço, olhou para aquela mulher que se baixara para parar o trémulo baloiço; ela olhou para ele sem nada dizer e ali ficaram até serem acordados daquela letargia pelo puxão na saia da menina que salvara. Recolheu a pequena no colo e voltou a fixar o olhar naquele homem vestido de preto, raro cabelo na cabeça achatada, e que deixava correr uma lágrima pela cara que circundava um nariz com sinal na ponta.

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Tu és a Madalena! Sou. E tu… és o José!

Pousou a criança que se impacientava para viajar no escorrega.

Uniram-se num abraço saudoso preso desde o dia em que se tinham visto pela última vez naquela fugida de casa.

Demoraram o abraço discretamente durante longos minutos. Sentaram-se ambos num outro banco de madeira e falaram demoradamente sobre as suas vidas ao longo daqueles eternos anos de separação forçada.

Tens uma filha muito bonita! Não é minha filha. Só tomo conta dela e daquele outro menino que é seu irmão.

O José suspirou profundamente. A Madalena sorriu. Não esgotaram naquelas horas os anos que os tinham separado; marcaram o mesmo local para se encontrarem no dia seguinte e terminarem aquele reencontro, já sem a necessidade

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de atender constantemente aos pequenos que continuavam a brincar.

Madalena recolheu as duas crianças e partiu, não sem antes voltar a olhar para aquele milagre inesperado.

José continuou sentado naquele parque vendo-a partir; olhava para o céu e agradecia aquele dia.

Voltou

ao

seu

herdado

transporte

e

percorreu

os

intermináveis quilómetros que o separavam do seu novo lar.

Ainda o sol não tinha refletido os seus raios nas espigas de cereais dos longos campos que rodeavam a sua morada paroquial, já o Senhor Padre estava a pé e preparado para se reunir com o passado. Vestira o seu velho fato negro que sacudiu do pó.

Percorreu aquela distância que o separava da cidade sem reparar nem na paisagem, nem naquele acidente que tinha ocorrido ao passar pela velha ponte sobre o seco ribeiro, nem mesmo no viajante que circulava arrastadamente e pedia, estendendo o polegar, que o levassem.

Chegou à cidade, ao parque de crianças e ao banco de madeira; sentou-se e olhou em volta sem ver vivalma.

Bebeu, novamente, um pouco de água da bica das crianças e olhou novamente para o céu azul-quente daquele dia cor de milagre.

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O sol brilhava e o calor obrigava a que enrugasse a testa húmida ao olhar para cima de olhos semicerrados.

O que iria fazer da sua vida. Era um homem de Deus e aquilo que estava a acontecer era um pecado. Mas Deus não o poderia castigar por voltar a sentir amor, algo que sabia estar na base de todos os ensinamentos que absorvera ao longo da sua formação sacerdotal.

Mastigava estes pensamentos na sua cabeça quando foi interrompido por uma voz doce que o fez esquecer todas aquelas dúvidas que lhe tinham preenchido os breves momentos de solidão perdida.

Falaram longamente das suas vidas. Trocaram silêncios cúmplices sempre que a escola primária era tema de recordação ou quando lembravam as noites fugidas ao colégio em que cruzavam mensagens surdas por breves momentos.

Repetiram cantilenas da infância e partilharam gargalhadas quando se referiam às histórias do Nabo ou às do Professor Sá a discutir com a Professora Francisca sobre as suas aulas ruidosas que não o deixavam ensinar condignamente os meninos.

Madalena contou o que se passou quando teve de sair de casa para trabalhar naquela família que a acolhera; falou do seu sofrimento às mãos daquela mulher que o pai decidira colocar em casa para não se sentir só e o acompanhar na bebida. Recordou o sofrimento sentido no dia em que percebera que não mais iria ver

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o José. Mostrou todas as cartas guardadas não-respondidas ao longo dos anos de afastamento.

O José recordou o seu sofrimento profundo ao saber que saíra do Colégio diretamente para o Seminário sem ter a possibilidade de a rever. Enumerou os momentos passados em frente ao papel branco de carta que dirigia para casa na esperança de receber resposta. Contou o momento em que, naquele dia de despedida paterna, a procurara entre a multidão sem a ver.

Falaram, riram, suspiraram; viveram anos num dia. No final daquela jejuada jornada consentida, tinham decidido que nunca mais se separariam independentemente das promessas realizadas no passado.

O José falaria com o Arcebispo para o deixar sair do sacerdócio.

Comunicaria

a

sua

decisão

aos

seus

fiéis

e

abandonaria a paróquia para viver com a Madalena.

A Madalena sairia de casa dos patrões para viver ao lado do seu José. Agradeceria o apoio e dedicação dos que a tinham recebido e, apesar de não querer imaginar a dor da separação das crianças, partiria com aquele homem.

Assim decidiram e juraram cumprir trocando um beijo inquieto na face.

Alguns dias após este reencontro, o Senhor Padre dirigiu-se, no seu usado carocha, à cidade com o objetivo de voltar

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acompanhado para a sua pequena aldeia. Ficariam na sua residência até que arranjassem morada própria para os dois.

Estacionou junto à casa onde Madalena trabalhava e acolheu-a chorosa da despedida da família que a recolhera. Abandonou as lacrimosas crianças que tinha ajudado a criar, abraçando-as e beijando-as na testa.

Colocaram os poucos haveres que acumulara na pequena mala frontal do carro e seguiram caminho.

Percorreram estradas pavimentadas, serpentearam por aquele caminho poeirento desviando-se, quando possível, das pedras que iam pontuando o chão, passaram um velho e alto castanheiro

e

estacionaram

no

terreiro

da

sua

residência

paroquial.

Foram, naquele momento, vistos pela Ti Josefina; a descoberta levou o Padre José a inventar uma narrativa. Confiá-la-ia aos seus paroquianos de forma a evitar os "diz-que-disse" e os comentários abafados que sabia serem comuns por aquelas bandas.

Foi Madalena apresentada a todos os

fiéis

como

empregada que vinha tomar conta das lides caseiras do Senhor Padre. Seria ela a tratar da lavagem da sua roupa, da limpeza da casa e da preparação das suas refeições.

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Uns habitantes torceram um pouco o nariz à explicação, arrastados pela beleza da rapariga e pela gaguez momentânea original do Senhor Prior.

Chegaram mesmo a comentar pecaminosamente entre si que aquilo ainda ia dar chamusco.

Isto não me cheira nada bem! Pois é, vamos ver no que isto vai dar. Um homem novo e jeitoso com uma moça bonita, sozinhos em casa!? Vai ser lindo.

Ali retomaram as suas vidas tentando manter as aparências perante os vizinhos da aldeia, não conseguindo evitar que alguns deles continuassem a achar tudo aquilo um pouco estranho.

O Senhor Padre continuava, no início, a parecer o mesmo homem e todos os habitantes da aldeia agradeciam por ter um enviado de Deus que desse a missa todos os domingos, que os ouvisse em confissão, que batizasse as poucas crianças que iam nascendo e perdoasse os defuntos; não queriam muito saber daquilo que o Senhor Padre fazia dentro de portas.

Madalena mantinha-se fechada em casa à espera do seu José para o almoço, para o jantar e para o carinhoso repouso noturno.

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O Senhor Padre dava a missa de domingo, dava os restos de hóstia não sacramentada ao seu ajudante e partia a correr para casa sem sequer se despedir dos paroquianos.

Quando era chamado para algum serviço, fosse batizado ou funeral, fazia-o com a competência que lhe era conhecida, mas sem perder muito tempo para voltar para junto da Madalena.

Esta alteração no comportamento do Senhor Prior fazia com que o grupo daqueles que tinham torcido o nariz fosse crescendo em número e em certezas.

Daquela relação carnal resultou, alguns tempos passados, a gravidez de Madalena.

Não querendo que o José acabasse com a sua vida paroquial, ela sempre lhe pedia para a levar à cidade onde poderia visitá-la quando lhe aprouvesse.

O José respondia-lhe constantemente que não se separaria mais dela e que iria cumprir o seu pensamento original de pedir ao Arcebispo para o libertar do seu juramento, contando-lhe tudo o que tinha acontecido.

Madalena continuava a insistir que convivia bem com aquela situação. Não queria que ele abandonasse a sua fé e sugeriu que montasse casa para ela e para o filho numa outra vila distante daquela sua aldeia onde ninguém os conhecesse.

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Com o jeito que lhe era característico, convenceu o José a aceitar a sua sugestão e assim ficou marcado acontecer a partir do momento em que se começasse a notar que a pequena barriga se destacava.

Viveram tempos felizes de homem e mulher durante os poucos meses em que conseguiram esconder o segredo dos fiéis da aldeia.

Um dia, o José chegou a casa e comunicou que tinha cumprido o desejo de Madalena.

A gravidez começara a ser visível e ele montara casa numa pequena vila a alguns quilómetros dali; a distância não era demasiada para evitar que a visitasse amiúde e podiam criar o filho sem que ninguém desconfiasse. Para além disso, teria melhor acompanhamento médico durante aquele período na vila.

Partiram para a nova morada ímpia e instalou-se a Madalena no conforto que lhe tinha sido preparado por José.

Todos os dias lá voltava à socapa, depois de retirados, durante a viagem, os símbolos roupais da sua devoção, para que ninguém desconfiasse ou criasse reais imagens daquele amor proibido.

Madalena ia justificando as ausências e constantes partidas de seu "marido" com uma ocupação de comerciante que o obrigava a longas e diárias viagens.

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Mantiveram esta relação familiar até ao momento em que a grande hora chegou. O filho tinha marcado o seu momento de surpreender os pais.

Madalena foi assistida por uma parteira reservada da vila, previamente avisada, que era costume trazer ao mundo as crianças das vizinhas; nascera o "fruto do pecado", como diziam na época sempre que um filho nascia de uma relação entre um homem e uma mulher não casados.

Quando José chegou, uma vez mais, a casa, assistiu àquele quadro natalício de seu filho no colo de Madalena deitados na cama; Madalena sorriu e entregou-lhe o fruto do seu longo e demorado amor.

José olhou para aquele seu filho longamente e abençoou-o como fizera sempre com as crianças dos outros na altura do batismo.

Deu-lhe um beijo na testa rosada e ainda húmida. Sentiu-lhe o cheiro característico.

Acariciou a cara de Madalena e beijou-a na face. Recebeu o último suspiro sorridente daquela que tinha reencontrado após uma separação prolongada.

O parto tinha decorrido conforme previsto pela parteira.

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Já a criança tinha recebido a primeira luz do dia e Madalena sentira uma forte dor abdominal. A parteira teria ido cuidar da criança, mas ao ouvir os queixumes da mãe, teria pousado o recém-nascido e verificara que a mãe sofrera uma hemorragia interna muito grave. Aconselhara que fosse levada para o Hospital, sugestão que Madalena recusara de imediato por não poder contar a verdade sobre aquela criança fruto do pecado.

A parteira tentara resolver a situação com o que tinha à sua disposição, mas a condição afigurara-se irreversível. Madalena pedira unicamente que a mantivesse acordada o tempo suficiente para, pela primeira vez na sua vida, cumprir o desejo de estar em família com o seu filho e o seu grande amor.

José amaldiçoou, com lágrimas que corriam do seu rosto para o do pequeno e se confundiam com a humidade daquele novo ser, aquele Deus que lhe tinha retirado a mãe do seu filho após a ter encontrado ao fim de tantos anos.

Acatou aquela que lhe parecera uma decisão vingativa do Deus a quem tinha devotado grande parte da sua vida, aceitando aquela criança como uma espécie de compensação pela perda sofrida.

Partiu daquela casa deixando para trás tempos de feliz convivência velada e de inúmeras lembranças de um curto tempo conjugal.

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Numa noite de sábado chegou à sua pequena aldeia com o filho ao colo.

Comunicou aos discípulos daquele Deus que tão mal lhe fizera, que aquela criança teria sido abandonada à porta da sacristia da Igreja. Não sabia quem eram os pais, mas como bom-pastor acolhia aquele elemento novo do seu rebanho; trataria dele com todo o amor fraterno que qualquer cristão deve demostrar pelos seus irmãos em Cristo.

As mulheres ouviram aquelas palavras santas e deixaram correr uma lágrima emocionada pelas faces, apertando a mão à vizinha que se sentava a seu lado.

Os homens, quase todos os homens, sentiram aquele apego cristão do Senhor Padre como um gesto digno de um santo. Outros voltaram a torcer o nariz e a abanar afirmativamente com a cabeça, pensando no seu íntimo "eu bem sabia" ou "disse logo que isto cheirava a chamusco desde o princípio". Nada disseram naquele momento, mas a dúvida ficou instalada.

Cuidou daquele seu filho como de um filho se deve tratar, mantendo sempre o segredo partilhado com a entidade por si amaldiçoada; sentia que ao dar o seu amor, o seu carinho e o seu cuidado àquela criança mostrava a sua vingança contra a maldade divina sofrida; ao mesmo tempo agradecia a Madalena os momentos felizes passados e aquele fruto do seu amor.

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A criança cresceu ali no ceio daquela comunidade e quando atingiu a juventude foi enviado para a cidade.

Estudaria lá, cursaria medicina e só voltaria quando merecesse ser chamado Doutor.

O Senhor Padre veio a falecer com a sua longa idade naquela terra que lhe tinha sido atribuída e à qual tinha dedicado a sua fé.

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O emigrante

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V O Zé Amado era um homem solteiro que, como dizia, conhecia mundo.

Não tinha encontrado ninguém com vontade de aturar o seu constante mau-humor, pelo que se mantivera sozinho ao longo da vida.

Tinha, uns anos antes, partido para a Suíça, mas voltara rapidamente por não se adaptar nem ao tempo, nem às palavras que as pessoas deixavam sair da boca. No entanto, esta breve saída para o estrangeiro tinha-lhe dado um estatuto, entre os vizinhos, de conhecedor das coisas da vida e das realidades das pessoas lá de fora.

Era a ele que os mais velhos recorriam quando havia um campo para lavrar. Metia lá o trator que comprara logo depois da chegada da Suíça com o dinheiro que tinha trazido, e num piscar de olhos punha tudo pronto para a sementeira.

Era ele o moço da terra que ajudava os mais velhos nas tarefas mais pesadas, recebendo o almoço ou o jantar e uma pinga, dependendo da hora a que terminasse as suas tarefas.

Era assim que gostava de viver e de se manter, até porque não sabia cozinhar e tanto o pai como a mãe estavam já junto à igreja, debaixo daquela mesma terra, fazendo companhia à Teresa e aos restantes habitantes que tinham já partido, e não tinha ninguém que lhe fizesse um prato de comida de jeito.

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Dizia-se, na aldeia, que ele tinha voltado da Suíça cheio de fome e que o não saber cozinhar fora a sua perdição lá fora. Sabiam que tinha morado, durante aquele tempo em que estivera emigrado, juntamente com mais seis homens, num quarto minúsculo com camas amontoadas. Tinham de lavar a roupa numa pequena bacia, fazer as compras e cozinhar.

Sabiam, ainda, que quando chegava a vez de ele cozinhar, os colegas se queixavam daquilo que ele dizia ser um prato típico da sua aldeia e que mastigava alegremente sem mostrar os dentes em nenhum momento. Os colegas chegaram mesmo a dispensá-lo da cozinha e a encaminhá-lo para a lavagem da roupa e da louça, algo que ele não fazia com muito agrado por serem "coisas de mulher".

Quando não havia trabalho a realizar para os vizinhos, lá tinha de pegar em duas ou três batatas, umas couves e um pouco de água, pô-las ao lume e tentar matar a fome com o tal "prato típico" da sua aldeia, que na verdade era só tipicamente seu: um caldo malfeito

Dia 15 de novembro de um ano já distante, nascia, naquela pequena aldeia perdida entre montes e vales, um menino pálido que não chorou no momento em que era esperado pelo Doutor que se tinha ali deslocado da vila para atender aquela modesta mulher.

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Maria de Fátima Pereira era uma senhora com uma experiência de vida justificada pelos seus quase cinquenta anos de existência.

Pequena e de tez clara, tratava bem do seu cabelo negro que combinava com as suas pestanas longas e sobrancelhas bem desenhadas.

As mãos pequenas e calejadas apresentavam sempre umas unhas bem tratadas. A pele macia contrastava com a solitária vida dura que lhe tinha sido destinada.

Nascera naquela aldeia de Castanheiro da Princesa, onde vivera toda a sua vida; só de lá se tinha temporariamente afastado nas raras e pontuais idas à vila em dias de feira, à imagem da quase totalidade dos vizinhos.

Aí, para além dos bens necessários à sobrevivência, procurava algum produto para manter a sua beleza natural que conseguisse contrariar a passagem do tempo.

Conhecera um homem que se tinha deslocado a Castanheiro para, dissera ele na sua qualidade de comerciante, comprar umas ovelhas que esperava serem criadas por ali.

Batera à porta de Maria de Fátima aquela estampa de homem com os seus trinta e muitos anos, que fora recebido com muito entusiasmo.

Aquele jovem ter-se-ia apercebido da fragilidade da mulher e conseguira convencê-la a deixar que ficasse em sua casa. Como

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morava numa das pontas da aldeia, ninguém se apercebeu que um estranho se tinha instalado com a vizinha.

Uma mulher que vivia sozinha no meio de nada, foi o alvo perfeito para aquele indivíduo que queria unicamente aproveitar-se de situações não acompanhadas por vizinhos cautelosos, como aquela.

Dando cumprimento ao desejo de ser mãe, Maria de Fátima engravidou

algumas

semanas

depois,

tendo

descoberto

o

desaparecimento do homem dois dias após euforicamente lhe ter comunicado que supunha estar naquele estado que os levaria a ser pais em breve.

Nesse dia, acordara de manhã bem cedo e sentira a falta do jovem companheiro a seu lado.

Levantara-se e procurara-o por toda a casa. Espreitou no exterior e também nada descobriu.

Concluiu, tristemente, que teria fugido; reparou que uma pequena cruz em ouro, que herdara da sua mãe, e uma pulseira dourada, que lhe tinha sido colocada no pulso pela sua madrinha no dia de batismo, tinham desaparecido da gaveta aberta da cómoda do quarto onde guardava aquele seu único tesouro.

Chorou durante alguns dias sem conseguir sair de casa, mais pela perda dos seus bens do que pela do companheiro; esta ausência temporária da Maria de Fátima causou estranheza na vizinhança.

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A Ti Teresa Violante, com o objetivo de descobrir os motivos do misterioso desaparecimento da vizinha, deslocou-se a sua casa numa tarde sombria e ouviu a mulher em confissão.

Confessado o pecado da carne vivido e os motivos para tal ilusão, Teresa ofereceu-se, desde logo, para a ajudar em tudo o que fosse necessário, inclusive a levar a bom-termo aquele nascimento tão desejado.

Todos os habitantes da aldeia acabaram por saber daquela sua história; nunca a julgaram, no entanto, compreendendo que aquele malfeitor tinha enganado a pobre mulher, aproveitando-se da sua fragilidade.

Quem me dera apanhar o malandro!

Diziam alguns homens.

Se o visse cortava-lho, para não fazer mal a mais ninguém!

Diziam outros que eram aprovados nas suas intensões pelas respetivas mulheres.

Maria de Fátima Pereira dera ao mundo aquele rapazito que não se revoltou gritando à terra naquele momento natal. A seu

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lado, para além do Doutor, tinha Teresa que lhe segurava a mão tentando acalmá-la com a sua experiência.

José Manuel Pereira Amado era um menino muito calado e mal-humorado na maior parte das horas do dia. Tinha recebido o Pereira da mãe, o Amado do pai que não conhecera (apesar de a mãe sempre lhe dizer que aquele nome vinha do facto de sempre o ter amado muito, mesmo antes de ter nascido); José Manuel era homenagem ao avô.

Aquele menino sempre triste brincava pouco com as outras crianças da povoação. Iam ter com ele a casa, convidavam-no tentadoramente para brincar, mas este preferia quase sempre ficar em casa a tratar das suas construções imaginárias.

Quando, raramente, aceitava o convite, aguentava pouco tempo na companhia dos amigos; depressa começavam a jogar aos pais e às mães o que lhe era estranho por nunca ter vivido em ambiente parecido.

Quando o dia era dedicado aos ninhos, depressa desistia por não gostar de aprisionar aqueles passarinhos que eram retirados às progenitoras.

Cresceu no seu pequeno mundo limitado à sua pequena aldeia. Para admiração da mãe, nunca sentiu necessidade de perguntar ou saber quem era o seu pai. Aceitava a sua situação e satisfazia-se com a sua família de dois.

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Ficou só quando a sua mãe faleceu prematuramente com sessenta e cinco longos anos de experiências de vida; tinha ele quase atingido a idade adulta de dezassete anos e via-se naquela casa vazia, isolado.

Vendo-se sem trabalho que o mantivesse alimentado, apesar das ajudas que recebia dos vizinhos e especialmente da Ti Teresa, que mantivera a sua promessa durante todos aqueles anos, decidiu partir.

Aproveitou a oferta de um tio que teria mantido contactos na Suíça; estivera emigrado nesse país distante durante muitos anos e decidiu ajudar aquele sobrinho a dar rumo à vida.

Foi apresentado a um grupo de viajantes que, como ele, estavam determinados a partir para não terem de continuar a sobreviver com o pouco que a terra lhes dava. Era gente de aldeias dedicadas à terra, umas mais próximas e algumas que se situavam a maior distância. Estavam unidos por esse desejo de sorte e determinados a tudo fazer para que ela aparecesse.

Ensacou uma pouca de roupa, à qual juntou os pedaços de pão que lhe restavam da cozedura comunitária e o queijo que recebera das ovelhas do rebanho dos habitantes locais.

Juntou-se aos outros seis homens, numa manhã de junho, numa aldeia onde nunca tinha estado, mas à qual seu tio o acompanhou para a despedida.

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Partiram. À falta de transporte que os levasse naquela viagem, avançaram a pé até ao momento em que fossem recolhidos por uma velha camionete que os deixaria no destino.

Partiram em direção a Espanha, à cidade de Salamanca, onde esperavam ter transporte motorizado para a restante viagem, como estava combinado.

Esta primeira etapa da viagem demorou-lhes uns penosos doze dias por territórios desconhecidos para a maior parte deles. Só um dos homens fizera já o caminho e confiavam todos nos seus conhecimentos geográficos e na sua capacidade de orientação.

Caminhavam doze horas diárias, tinham de arranjar o que comer e beber em pequenas atividades temporárias que iam arranjando ao longo do caminho.

Descansavam quando havia tempo, mas sempre com o pretendido destino em mente.

Passou por muitas terras, por montes e rios que nunca tinha percorrido. Nunca viu, no entanto, nenhuma que fosse tão bela quanto a sua, mesmo não tendo nenhum curso de água; tinha, no entanto, uma bica de água de nascente fresca que dava saúde a todos os que dela bebessem.

Por onde passavam, eram ajudados pelos locais que estavam

já acostumados

àqueles grupos

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de pessoas

que


infelizmente tinham de partir de suas casas para encontrar uma vida melhor para eles e para as suas famílias.

Ofereciam-lhes dormida nos palheiros que acolhiam os produtos recolhidos da terra; alimentavam-nos com uma sopa e algo mais que houvesse para terem força para a longa viagem.

Que seja por Deus! Muito obrigado.

Abordada a cidade de Salamanca, um local que lhe pareceu outro mundo pela diferença de movimento e gente que por ali vivia, apanhou transporte para a restante viagem.

Chegou a Santander dois dias depois da conclusão da longa caminhada. Demoraram mais três dias a chegar às portas do seu destino suíço. Após atravessarem a difícil fronteira, atingiram Bordeaux, depois Lyon antes que mais uma fronteira a ultrapassar se aproximasse.

Em tempo de emigrantes, a vigilância era muita nos postos de controlo e a limitação à passagem maior ainda do que a vigia.

Era comum alguns emigrantes serem impedidos de passar os postos fronteiriços, ou por não terem os documentos necessários, ou por terem aspeto de quem iria sem objetivo de vida previsto para o estrangeiro.

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O grupo do José Amado foi parado na fronteira de França que lhes dava acesso ao país de destino. Um dos elementos do grupo pareceu suspeito a um dos polícias de fronteira que ali se encontravam. Foi revistado, foram-lhe pedidos os documentos e apesar do susto sofrido, lá seguiram caminho, de novo juntos.

Cruzou mais esta etapa da viagem e depois de Genève, lá chegaram ao esperado destino.

Aquela cidade suíça pareceu-lhe ainda mais assustadora do que a espanhola que achara tão grande e movimentada. Não percebia nada do que as pessoas diziam e sempre que interpelado por alguém, sorria e seguia em frente abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

Os olhos brilharam de admiração quando viu, ao longe, o rio Ródano que lhe pareceu não ter fim. Apreciou aquele mundo aquático como quem nunca vira tanta água acumulada num só local.

Com muita fome, muito cansaço e muita esperança, ao fim daquele terrível tempo de viagem pioneira, enfrentou a longa escadaria que conduzia à pequena vila de Gruyères.

Esperava-os um pequeno quarto de camas sobrepostas em madeira, com um pequeno fogão e uma bacia para lavagem da roupa e do corpo.

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Tinham, no entanto, uma janela por onde olhar para uma bela paisagem natural e rústica.

Do quarto de Zé Amado via-se a larga praça empedrada a que tinha acesso depois de descer umas escadas construídas com o mesmo material natural que se prolongava da praça.

Aquela praça era dominada por uma pequena igreja muito parecida com a que estava acostumado a frequentar na sua aldeia natal.

A Chapelle à Calvaire tinha um pequeno telhado em madeira à sua entrada. Os fiéis eram acolhidos por duas imagens colocadas por cima da porta que escoltavam uma cruz de Cristo cruxificado.

As largas portas em madeira eram um convite à entrada e à oração dos que por ali passavam.

Bancos corridos em madeira estendiam-se ao longo do espaço semiobscurecido; estes assentos viriam a ser um dos poucos locais que se tornariam costumeiros para o Zé na sua aventura.

Ao longe via-se um grande castelo de torres altas amareladas

pelo

tempo;

rivalizavam

mesmo,

em

altura

e

grandiosidade, com os altos picos dos Alpes que se apreciavam à distância.

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O jovem emigrante foi colocado a trabalhar numa fábrica de queijo. Outros receberam ocupação na construção civil e um outro foi até chamado para limpeza de um pequeno café e restaurante que existia muito perto da sua residência.

Viria

a

revelar-se,

este

restaurante,

um

elemento

fundamental à sobrevivência do grupo no tempo em que por ali ficou. Depois de servidos todos os que se dirigiam ao espaço com vontade de almoçar ou jantar, era possível recolher, em folhas de jornal, os restos das refeições. Quase todos os dias era possível presentear os colegas de quarto com os restos de petiscos que o empregado levava para o quarto.

Levantavam-se sempre com os primeiros raios de luz que entravam pela janela. Repartiam a bacia existente para a sua limpeza corporal, seguindo um horário rígido estabelecido em concordância com a idade de cada um.

O Zé Amado, por ser o mais jovem, era o último na lavagem corporal; este facto até lhe agradava por não ter de ser assistido naquele momento íntimo pelos outros companheiros.

Comiam alguma pouca comida que o empregado do restaurante trouxera no dia anterior e partiam para um dia de trabalho.

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O Zé Amado, antes da labuta diária, passava sempre pela pequena capela do largo em frente a casa. Entrava e falava sobre a sua vida, recordando a sua mãe e os poucos amigos com quem pontualmente brincava enquanto criança. Agradecia a sorte que tivera ao encontrar um trabalho que lhe daria, com toda a certeza, um futuro melhor.

Seguia, depois, a Rue de la Cité que percorria durante quinze minutos entre campos verdejantes cultivados, mas sem os cereais a que estava usado na sua aldeia; virava, em seguida, para a Rue du Bourg que o levava ao seu trabalho na Place de la Gare. Uma fábrica de queijo em tijolo vermelho rodeada de verdura era o que lhe dava a esperança de sobreviver naquela terra tão distante.

A fábrica de Gruyère era um espaço com história. Dentro de portas, era composto por várias salas. Surgiam divididas por paredes em madeira onde eram pendurados alguns dos utensílios necessários ao fabrico do queijo.

Na sala onde trabalharia o jovem português havia, dependurados nas paredes, alguns jarros em metal, umas cordas, umas pás em madeira muito compridas e umas peneiras com fundo em tecido.

Acedia-se a esse espaço descendo uma estreita escada em madeira dividida ao meio para distinguir os que subiam e os que desciam.

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No meio daquele espaço fora colocado um enorme caldeirão metálico ligado ao teto por um grosso gancho de ferro. Por baixo havia uma pequena fogueira.

Um homem de farto bigode enrolado na ponta, calças de suspensórios que se sobrepunham a uma camisa de manga recolhida até ao cotovelo, acolheu o novo funcionário com um "Bonjour."

José Amado esboçou um sorriso e inclinou a cabeça para a frente, cumprimentando aquele que lhe tinha dito alguma coisa que não percebera.

O homem repetiu o gesto de José Amado e dirigiu-lhe mais uma palavra acompanhada pelo encostar da mão ao próprio peito.

François. Zé Amado.

Respondeu o jovem aprendiz com a alegria de quem percebera o significado daquele gesto.

François era um velho empregado da casa, especialista no fabrico do queijo. Era ele o responsável por mexer o leite naquele grande caldeirão, com a enorme colher em madeira. Mantinha

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aquele gesto circular automático até ao momento em que o líquido branco se transformava numa pasta uniforme a que chamava "fromage en grains".

Devido à sua avançada idade, pedira um aprendiz a quem transmitisse os seus conhecimentos e desse continuidade ao saber que tinha recebido do seu mestre e este do anterior, durante tempos imemoriais.

Era um trabalho fundamental, de responsabilidade e de precisão; era necessário manter sempre o mesmo ritmo no movimento circular, misturar os ingredientes corretos que se encontravam nos jarros de metal que decoravam as paredes, medindo perfeitamente as quantidades. No momento certo tinha de ser levantado o enorme caldeirão suspenso, puxando uma corda, de forma a reduzir a quantidade de calor e obter o produto final de forma correta.

Sentia, o jovem aprendiz, as dificuldades da língua; não percebia nem o que lhe diziam os colegas de trabalho nem o que o alto mestre lhe dava como tarefa. Aprendeu, por gestos e observação atenta, tudo o que levava o leite àquele queijo que repousaria, depois, em altas prateleiras de madeira durante anos.

Depois de recolhido o "or" que com orgulho o velho François criara, era o mesmo transportado para uma sala acima daquela, onde um grupo de mulheres acomodava em peneiras de fundo

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em tecido que resultava, depois de bem espremido, numa forma circular achatada.

Repousavam, depois, aquelas formas numa velha sala escura onde dominavam as prateleiras em madeira que se estendiam da terra até ao teto lenhoso.

Aquela falta de diálogo não o incomodava muito, já que sempre estivera habituado a esconder-se no seu próprio espaço e nunca tinha sido pessoa de muita conversa.

Sempre foi considerado um bom funcionário, replicando facilmente a realização de todas as atividades que lhe eram atribuídas. Foi muito apreciado pelos colegas e pelo seu mestre que constantemente lhe dirigia um "Très bien!"; aceitava-o sem o perceber, mas julgava ser algo de bom pelo sorriso daquele velho homem alto e da palmada nas costas.

Muitas vezes, sendo do conhecimento de todos as dificuldades sentidas pelo jovem emigrante, recebia um pouco de leite ou mesmo um queijo que tinha saído menos composto das mãos mecânicas das mulheres.

Chegava a casa, no final do dia, sem antes deixar de voltar à capela para agradecer a superação de mais um dia de trabalho e de vida. Sabia que mais um dia passado correspondia a menos um para voltar à aldeia.

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Apresentavam, aqueles homens, o que tinham conseguido recolher ao longo do dia e juntavam o pouco que tinham comprado para a sobrevivência diária. Seguindo um novo calendário similar ao do das lavagens matinais, cozinhavam à vez e lavavam, na mesma bacia da higiene corporal, a louça utilizada; resumia-se a lavagem a um copo de cada um, um prato da sopa que era o mesmo da comida, quando havia, assim como um garfo e uma colher pessoais. Facas, por só haver três, eram partilhadas entre eles quando a refeição se enfeitava com um pedaço de carne ou peixe que milagrosamente saboreavam.

Ao fim de algum tempo, os colegas começaram a ter possibilidades para melhorar as iniciais refeições; no entanto, no dia em que o jovem se transformava em cozinheiro, o apetite dos convivas não era igual à dos outros dias. Acabaram por alocar o Zé à lavagem da loiça, permitindo, para bem de todos, que não dedicasse a sua atenção ao fogão. Os pratos típicos que dizia preparar eram unicamente apreciados pelo jovem Amado, ficando todos os outros com o estômago vazio por dificuldades em engolir o petisco preparado.

Aguentou aquela vida em terras distantes durante algum tempo, mas a fraca alimentação e as dificuldades em entender o que diziam as pessoas com quem convivia ao longo do dia, começavam a fazer com que pensasse em regressar à terra antes do tempo previsto.

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Juntava, todos os meses, a maior parte do dinheiro que recebia pelo trabalho realizado.

Conseguia, ainda, um pouco mais de rendimento com a venda

de

alguns

dos

queijos

malformados

que

recebia

pontualmente pelo seu excelente trabalho (conforme dizia aos seus colegas de residência).

Um dia, sabendo da partida de um grupo de portugueses em direção a Espanha, decidiu que tinha chegado a hora de regressar a casa. Atingira o limite das suas forças e sentia que afinal não era homem para aquilo. Para além disso, já tinha algum dinheiro junto que lhe permitiria começar uma vida mais desanuviada.

Com muita pena dos amigos que deixava e que o tinham apoiado todo aquele tempo, do seu mestre que tanto lhe ensinara na fábrica, partiu, numa manhã de muita chuva, com o grupo de regressados à terra.

Percorreu o caminho de regresso até Valladolid com os novos parceiros de viagem. Aí abandonaram a parte do trajeto feita sentados e palmilharam, durante quinze dias, o longo caminho até à pátria.

Na última parte da longa viagem seguiu, sozinho, para a sua aldeia onde chegou após cinco dias de longa caminhada.

Deparou-se com o velho castanheiro que surgia após um caminho em terra poeirento e ziguezagueante entre montes e vales.

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Respirou profundamente aquele ar que tanto desejara. Absorveu aquele odor característico a castanhas, madeira, cereal e terra.

Encostou a sua mão à enrugada madeira do tronco daquele velho amigo, encostou-se e deixou o corpo ir escorregando até que se sentou sobre as castanhas e os ouriços que revestiam o chão. Nem sentiu a picada dos ouriços de tão alegremente cansado que se sentia.

Tinha aprendido tanto em tão pouco tempo que se sentiu sábio. Conhecera mundos diferentes, pessoas estranhas, amigos novos e principalmente uma profissão paga que nunca tivera. Sentira-se um homem importante e útil pela primeira vez na vida.

Acima de tudo, tinha sobrevivido e conseguido voltar a casa, apesar de fraco.

Adormeceu, de cansado, ali encostado ao nome de uma princesa estranha que conhecera na sua infância, em frente ao fogo, nas histórias contadas pela mãe.

Foi acordado do seu sono cansado e reconfortante por uma massagem húmida na sua face óssea marcada pelo cansaço alegre do regresso a casa.

Abriu os olhos e viu aquele focinho negro e peludo de cão. Assustou-se admiradamente com aquela presença canina que se

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posicionara à sua frente, de língua húmida a sair entre os dentes afiados brancos.

Era um animal magro, como o homem que se encontrava à sua frente, de pelo comprido castanho maltratado e que ali se tinha sentado a guardar aquele sujeito cansado, não deixando que ninguém lhe fizesse qualquer mal ou o acordasse do seu descanso merecido.

Os seus olhos brilhantes e escuros da cor da noite mostravam a necessidade suplicante que tinha de encontrar alguém com quem estar. Acompanhava o olhar com o abanar de cauda frenético e com o arfar constante.

Aquele homem sempre habituado a estar na sua solidão, mesmo quando estava no meio de alguns companheiros, encontrara um companheiro para o resto da sua vida, um amigo que o acompanharia para sempre. Pedia em troca a única coisa que, apesar de desconhecida, era fácil Zé Amado dar: cuidado e carinho.

Acompanhado do seu novo fiel amigo, caminhou até à sua velha casa que se situava numa das pontas da aldeia.

Procurou a chave que normalmente a mãe colocava por baixo do vaso de cravos vermelhos do último degrau antes da porta de entrada.

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À imagem de sua mãe, também ele a tinha deixado nesse mesmo local secreto, conhecido dos vizinhos, quando partira à procura da sua nova vida em terras distantes; aí a encontrou coberta pelo vaso esverdeado que não era agora mais do que o depósito de um ser morto rodeado de ervas compridas.

Abriu a porta rangente e entraram. O primeiro que sentiu foi o cheiro de sua mãe misturado com o mofo que não conseguia, apesar de tudo, abafar o perfume corporal a flores que se habituara a reconhecer desde o nascimento.

A luz entrava pela janela aracniana por cima da velha pia, em pedra, de água de nascente que ali chegava depois de percorrer muitos quilómetros desde o monte; aquela claridade natural

transformava

a

atmosfera

num

mundo

repleto

de

pequenas partículas de pó que se elevaram com a sua chegada e se moviam irregularmente pelo ar em fios de luminosidade.

As teias de aranha da janela repetiam-se por todo o espaço da casa como um lençol tecido no mais fino tear e com os mais raros fios; enfeitavam as lâmpadas nos tetos e, em zonas mais húmidas, tinha nascido algum musgo.

O pouco mobiliário da casa estava agora coberto de um branco irrespirável que pairava logo que as janelas ou a porta deixavam a aragem passar.

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Os potes de tripé continuavam colocadas junto aos restos de madeira queimada da última fogueira acesa por si, para a preparação do costumeiro caldo.

Da parede do seu quarto pendia, ainda, a imagem da "Última Ceia" debotada pelo tempo e pela pouca luz que lá entrava. O velho crucifixo mantinha a sua posição sobre a mesa da cozinha onde eram tomadas as refeições na companhia da sua mãe.

Apesar de toda aquela sujidade desarrumada, Zé Amaro sentia-se confortável, sentia-se acolhido, sentia-se alimentado porque estava de volta à terra.

Passou alguns dias a recuperar dos tempos passados em caminhos de Portugal, Espanha, França e Suíça; recuperou da fraqueza acumulada e foi restituindo alguma organização àquele espaço agora só seu.

Reordenou os poucos bens que herdara da sua mãe e instalou os seus bens pessoais, que o tinham acompanhado na recém-terminada aventura, nos sítios que lhe pareciam mais adequados.

Com o dinheiro que tinha amealhado com o seu trabalho na fábrica do queijo e com o negócio de venda dos prémios que recebera pelo bom desempenho da sua aprendizagem, dirigiu-se à vila, uns tempos depois, e comprou um velho trator com máquina de arar.

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Restaurou o visual daquela máquina, já que a nível mecânico se preocupou em adquirir o que estivesse perfeitamente funcional.

Pintou-o, à mão, de uma cor entre o verde das ervas e o castanho do cereal pronto a ser colhido.

Que bela máquina! Nunca vi coisa tão bonita.

Aquele trator deixava o terreno como se, geometricamente, um pente tivesse passado naquele chão castanho.

Ficava sempre orgulhoso pelo trabalho realizado e reservava os últimos minutos da sua jorna para, do cimo do campo, apreciar a sua obra-prima riscada em castanho.

Respirava fundo do alto da sua máquina e ganhava vida nova, esquecendo todo o cansaço da atividade agrícola.

Recebia essencialmente um prato de comida, normalmente sopa, que o afastava da fome resultante da falta de jeito que demonstrava para cuidar da sua alimentação. Comia aquela sopa e bebia a sua pinga com a certeza de que aquele campo por si trabalhado seria o que melhor cereal produziria naquele ano.

Certo é que assim acontecia sempre.

É do carinho especial que dou à terra.

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Ela sente a minha dedicação e retribui com cereais dourados.

O cereal de alta qualidade que recebia após a colheita como paga, era utilizado, após a sua venda na vila, para aquisição de combustível que alimentasse a atividade do seu trator.

Quando não havia que fazer, lá tinha de recolher uns quantos vegetais, juntá-los à água e cozinhar um caldo que lhe matava a fome momentaneamente.

O seu novo amigo acompanhava-o em todas as atividades agrícolas e comia, receosamente quando o cozinheiro era o amigo, o pouco que com ele era carinhosamente partilhado. À noite era quem dava o alarme, juntamente com o outro cão da aldeia, quando sentia o cheiro a lobo, quando ouvia alguém que passasse após o pôr-do-sol, quando havia trovoada, quando a sede lhe secava o focinho ou quando ouvia o seu único companheiro de quatro patas ladrar ao longe.

Nunca encontrara companheira que estivesse à altura dos conhecimentos que tinha do mundo; na realidade nunca ninguém se tinha apresentado com vontade de aturar o seu constante mau-humor.

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Contentava-se com a sua vida solitária ao lado do seu novo e amistoso companheiro. Desconhecendo a totalidade da história da sua mãe, pensava que se ela tinha vivido sempre sem necessidade de nenhum companheiro que a apoiasse, também ele conseguiria ser feliz. Asseverava a si mesmo que, por vezes, era melhor estar sozinho do que com alguém que não tratasse bem dele. Era, claro, uma desculpa que arranjara para justificar a sua falta de jeito e apetência para conquistar a simpatia de qualquer uma das poucas moças que por ali morava ou que via admiradamente passar na feira.

O Zé Amado continuou com a sua vida na companhia do seu cão e dos seus vizinhos naquela aldeia perdida no meio de montes e vales.

Aproveitou, uns anos depois, a chegada de novos moradores a Castanheiro da Princesa para criar o seu próprio negócio.

Apoiou na recuperação da casa do Ti Laurentino onde viria a morar o seu filho emigrado em França. Este filho juntar-se-ia aos netos de Teresa que voltariam, uns anos antes deste, para cumprir o secreto desejo do falecido avô.

Tinha ajudado na construção das casas destes novos residentes, conseguindo ir sobrevivendo com algum dinheiro que recebia, mas principalmente com a melhor alimentação que tanto ele como o seu companheiro recebiam pelo trabalho realizado.

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Transformou o seu velho trator, que já não servia para o trabalho da terra, num meio de transporte turístico com atrelado de bancos em madeira, para os muitos viajantes que se deslocavam à pequena aldeia.

Contava-lhes a história daquele casal, o Ti Laurentino e a Ti Teresa, que se juntaram de mãos dadas e seguiram para o céu, num cavalo negro, numa reunião esperada por ambos há muito tempo.

Embelezava a sua história com uma ida ao cemitério onde mostrava, de forma solene, a campa dos dois unidos de mãos dadas numa imagem que os vizinhos lá tinham colocado em honra de ambos e agradecimento ao ato heroico de Laurentino.

À imagem do Senhor Padre José de Deus Oliveira que se devotara a Deus, também ele se tinha consagrado à sua terra, aos seus vizinhos e agora ao seu companheiro canino de caminhada.

Veio, o Zé Amado, a falecer com os seus respeitáveis oitenta e cinco anos.

Foi sepultado ao lado de sua mãe no cemitério junto à pequena Igreja da aldeia.

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O Ramiro

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VI O Ramiro sempre tinha sido um homem de muito calor e que se fazia acompanhar constantemente da sua mini Sagres para não ter de beber água que lhe fazia mal ao estômago fraco que dizia ter. Tinha um aspeto doentio e um físico atarracado.

O Doutor Pereira já o tinha mandado beber mais água e menos cerveja, por causa do fígado que começava a estar em muito mau estado; bastava olhar para a sua cor para saber que alguma coisa não estava bem.

O Ramiro abanava a cabeça, dizia que sim e que não beberia mais cerveja, só água. A mulher Albertina repetia o gesto do marido com a cabeça e o Doutor virava costas.

Depois não digas que não te avisei; continuas assim e não chegas aos setenta. Sim, Senhor Doutor. Ó Albertina! Cuida do homem antes que fiques viúva. Ele não me dá ouvidos. Eu bem lhe digo.

O homem passava a mão pela cabeça, esfregava o nariz e levantava as fartas sobrancelhas que marcavam a alta testa enrugada.

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As horas seguintes passava-as a dizer que ia beber um golo na bica de água fresca de nascente, mas depois, esquecido o recado do Doutor e o olhar complacente da mulher, retomava a sua mini Sagres.

Manuel Ramiro era um filho da terra que sempre ali tinha estado e o pouco do mundo que conhecia era a vila onde tinha de ir resolver questões de negócios relacionados com o café. Preocupava-o, especialmente, não haver falta daquela bebida no seu estabelecimento.

Conhecera a França pelas histórias que os pais lhe contavam tentando convencê-lo da sorte que tinha em poder fazer a sua vida naquela paz de mundo, longe da confusão dos grandes centros no estrangeiro.

Os pais tinham sempre tido muito cuidado com aquele filho único que, devido aos seus constantes problemas de garganta e ouvidos, nunca se desenvolvera convenientemente.

Tinha sido objeto de atenção exagerada; veio a revelar-se determinante, o excessivo cuidado, para a sua débil formação física e pobre resistência psicológica aos hábitos e problemas.

Limitava-se

a

ter,

como

objetivo

de

vida,

beber

constantemente para abafar o calor que sempre sentia e manter vivo o seu herdado negócio.

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Não entendia nada de agricultura e os únicos produtos retirados da terra que havia em casa eram aqueles que os vizinhos traziam para trocar por outros que tinha disponíveis no seu café.

Tinha nascido na pequena aldeia numa família de comerciantes que, depois de terem estado vários anos emigrados, tinham voltado para se estabelecerem em Castanheiro.

Haviam instalado aquele pequeno negócio de café onde vendiam ou trocavam alguns produtos de necessidade para os vizinhos.

Deixaram, pelo trabalho realizado em França, uma pequena pensão ao filho que lhe permitia viver confortavelmente sem se preocupar muito com o lucro que podia ter com o negócio caseiro.

Casou com uma moça da terra, a Albertina.

Aquela rapariga calada habituara-se a obedecer às ordens do pai que sempre a educara à base de umas bofetadas e de muito trabalho na terra. Desse tratamento do pai resultara uma mulher fraca e acanhada que obedecia cegamente à vontade do homem sem questionar o que quer que fosse. Só se atrevia a dizer alguma coisa que o contrariasse estando na presença de outras pessoas.

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Ramiro e Albertina eram primos afastados que viviam sozinhos e mantinham o seu café aberto todos os dias.

Não tinham filhos, apesar de Albertina ter engravidado quatro vezes, mas perdendo sempre os filhos antes do nascimento. Ou porque tinha batido num qualquer móvel, ou porque tinha feito muita força a levantar alguma carga, ou ainda por causa de ter sido picada por uma abelha que entrara em casa; assim justificava a perda da barriga de um dia para o outro, o choro durante uns dias e o excesso anormal de minis por parte do marido.

Os vizinhos achavam aquelas explicações muito estranhas, mas nunca as questionaram, pelo menos em frente à mulher.

Quando estavam sozinhas, as mulheres falavam daquelas situações, mas a conversa terminava sempre da mesma forma.

Não és médica, por isso não sabes o que se passa.

Foram sempre tentando ter um herdeiro, mas desistiram quando, na última vez que fora assistida, o Doutor Pereira lhes disse que não eram compatíveis e que os filhos nunca nasceriam ou se nascessem teriam problemas de saúde muito graves.

Ramiro, com a idade, transformou-se num homem triste e muito calado. Continuava a beber para esquecer as desgraças que a vida lhe tinha trazido, o olhar acusador da mulher que lhe

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fazia sentir que a culpa de não terem filhos era dele e da sua falta de força e a ideia de ser um homem incompatível (apesar de nunca ter percebido muito bem o que era isso de ser "incompatível").

Se calhar o problema é beberes tanta cerveja. Cala-te mulher, a cerveja nunca fez mal a ninguém. Então porque não consigo ter filhos? Pode ser por teres sangue fraco.

Assim tentavam empurrar as responsabilidades um para o outro, apesar de terem ouvido o Doutor dizer aquela palavra complicada que, também a mulher, à imagem do marido, não tinha entendido corretamente.

Toda aquela situação o fazia sentir menos homem do que os outros e achava sempre que olhavam para ele com desprezo; no entanto, e apesar de nada disso ser verdade, servia de justificação para o seu vício.

Os únicos momentos que faziam com que se sentisse um homem era quando, dominado o seu fraco espírito pelo álcool do dia, descarregava a sua frustração e desgosto na mulher. Esta calava-se no seu silêncio imposto, sentindo o medo, que achava natural, de perder o Ramiro que fora o único que lhe dera companhia ao longo dos anos.

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Convencia-se a si própria, no silêncio sofrido da noite, que mais valia estar assim do que sozinha. Pior do que tudo aquilo que sofria seria a reprovação, que pensava vir a receber por parte dos vizinhos, se o marido a deixasse

As pessoas da aldeia respeitavam o homem que ele era, ou pelo menos sentiam pena de ambos. Só não percebiam a necessidade que tinha de beber a toda a hora e a complacência da mulher relativamente àquele hábito do Ramiro.

Aquela situação fazia com que se lembrassem de um vizinho que também bebia muito e que acabara por morrer devido ao excesso de álcool. Tinham receio que viesse a acontecer o mesmo com aquele homem.

Tentavam, sempre, convencê-lo de que era muito melhor dedicar-se à água.

Sabes que é bem mais fresca do que a tua cerveja e que te faz bem melhor. Mas eu não consigo. Quando bebo a água fico logo com dores de estômago e só me apetece ir a correr para a sanita. Isso são ideias que tu meteste na cabeça para te enganares a ti mesmo. O Doutor já te disse que vai dar mau resultado.

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Também se der, que mal faz. Não tenho ninguém para cuidar e a vida está feita. Mas deixas a mulher sozinha, homem. A mulher sabe viver bem sem mim. Ela não precisa da minha ajuda. Não digas isso. Ela preocupa-se contigo e nós também. De mim ninguém precisa! Claro que precisamos. Deixa-te lá disso e vira para a água. Não consigo. Claro que consegues. Vamos ver como corre a vida. Quem tem de correr és tu. Se não te despachas, a vida passa por ti sem que a vivas. Vamos ver.

Aquele "vamos ver" era a resposta que sempre arranjava, mas que significava que dali a poucos minutos já estaria, de novo, agarrado à sua companheira engarrafada de sempre.

Pronto, lá voltou ele ao mesmo. Não há mesmo como mudar a figura. O rapaz vai acabar por morrer com a cerveja ao lado.

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Assim veio a acontecer uns anos mais tarde, deixando a sua mulher sozinha.

Esta solidão não se prolongou por muito tempo. A Albertina não conseguia fazer tudo o que dependia dela e decidiu que estava na hora, depois de já não ter o marido, de ter alguém para cuidar a seu lado. Precisava de uma pessoa que a ajudasse a tomar conta do negócio, que o desenvolvesse e que a apoiasse quando ficasse mais velha.

Não sabia muito bem onde arranjar essa pessoa, mas decidiu não ficar à espera que acontecesse. Iria pensar melhor no assunto e decidiria o que fazer da vida.

As próprias amigas lhe diziam insistentemente para mudar de vida e começar a pensar nela.

Agora que estás só e ainda és uma mulher bonita, tens de pensar na tua vida. Já tinha pensado nisso e vou resolver. Fazes bem. Se precisares da nossa ajuda basta dizer. Obrigado vizinha. Trata bem de ti e vamos lá a seguir em frente. Já sofreste tanto com o teu Ramiro que agora chegou a hora de pensares na tua felicidade.

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Vou decidir. Que Deus o tenha ao seu cuidado, que era tão bom-homem e sempre cuidou de mim. Cuidou de ti, mas não te deu uma vida fácil. Pois …

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O Senhor Doutor

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VII António Pereira tinha sido criado ali na terra depois de ser trazido pelo Senhor Padre que dissera tê-lo encontrado junto da sacristia da Igreja.

Foi educado em casa pelo clérigo, sem que lhe fosse permitido contacto com as outras crianças da aldeia ou mesmo com os adultos.

Não ia para a escola como os outros meninos da aldeia faziam todos os dias.

O Padre tratou de o ensinar, de o preparar para os exames e de o dotar de todos os conhecimentos que achou necessários para um futuro de sucesso.

Aquela criança, das poucas vezes que fora vista pelos vizinhos, mostrava características muito próximas das de uma moça que estivera a servir em casa do Senhor Prior, o que levava o povo a comentar a possibilidade de os homens, que torciam o nariz à explicação comunicada pelo Padre José naquela manhã em que trouxera a criança, terem razão.

Após dez anos afastado de sua casa, voltou homem feito. Depois de ter sido enviado para a cidade para tirar o seu curso, o Senhor Doutor, regressava para junto do seu velho pai orgulhoso, com a sua pequena mala debaixo do braço.

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Instalou-se, como tinha sido previsto, num anexo ao lado da residência paroquial onde montou consultório para acompanhar todos os seus doentes.

Todas as desconfianças passadas tinham sido esquecidas; para além do Padre José, já ninguém se recordava (ou se queria recordar) sequer da tal empregada que o Prior trouxera um dia para sua casa e que de lá tinha desaparecido tão misteriosamente como viera.

Tratava não só dos grandes como dos pequenos problemas que os de Castanheiro lhe apresentavam.

Arranjava, medicamentos

para

os

que

não

necessários

para

o

podiam

seu

bom

comprar,

os

tratamento

e

recuperação.

O Senhor Padre viria a falecer uns anos após o regresso do Doutor à terra.

No dia de partida daquele que o tinha adotado, o Senhor Doutor acompanhara-o, na cabeceira da cama, até que libertou o último suspiro. Foi ele quem, choroso, lhe cerrara os olhos e o cobrira com um lençol branco imaculado.

Acompanhara o corpo até ao cemitério, onde viera a ser sepultado junto de Laurentino e Teresa.

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O Local fora escolhido pelo próprio Doutor por reconhecer, aqueles companheiros de morada eterna, como um casal sereno e unido que daria um descanso em paz ao seu benfeitor.

O Padre José tinha-lhe deixado bastantes bens. Aceitara-os por saber que sempre tinha sido considerado como um filho para aquele homem que vivera sozinho.

Essa herança recebida permitia que não tivesse de se preocupar em receber dinheiros sempre que cuidava dos mais necessitados. Sentia aquele gesto como uma forma de compensar os habitantes da aldeia pelo carinho que sempre lhe tinham dispensado a ele e pelo cuidado que tinham demonstrado com o homem que o recebera e criara.

Por ali continuara para além da morte do Padre José de Deus Oliveira, acompanhando as moléstias dos habitantes da aldeia e ajudando as mulheres a ter os poucos filhos que por ali iam nascendo.

Por vezes tinha de se deslocar a uma aldeia vizinha que não podia contar com os mesmos cuidados próximos que os de Castanheiro tinham.

Sempre recordou, como o momento mais duro da sua vida profissional, aquele dia em que não conseguira salvar uma das suas doentes; tinha sofrido uma queda de um banco de cozinha, quando espreitava o marido que trabalhava no campo.

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Tivera, naquele fatídico dia, dado a terrível notícia a um homem já marcado pelo trabalho e pela idade, mas sempre dedicado àquela mulher que, para além dos filhos emigrados, era a sua razão de viver.

Recordava, especialmente, a aparência do marido ao chegar a casa e ver a sua companheira de uma vida estendida, branca e quieta, na cama.

Recordava como o cabelo negro daquele homem era totalmente branco no dia em que foi devolvida à terra a sua mulher.

Num belo dia de outono pintado de castanho e amarelo, aproximou-se de um velho castanheiro que cobria algum do terreno circundante com os seus muitos frutos e ouriços.

As folhas projetavam as suas sombras sobre umas palavras escritas irregularmente no grosso tronco daquela árvore; estes registos foram um chamamento para que se aproximasse.

Leu os quatro nomes registados: Teresa, Laurentino, Felicidade e Madalena. Associou os de Teresa e Laurentino àquele trágico acidente a que assistira.

Questionou um dos seus vizinhos com mais idade sobre quem seriam a Felicidade e a Madalena.

Respondeu-lhe, contando uma longa história.

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Ó Senhor Doutor, Felicidade foi uma princesa amada por um cavaleiro que aqui escreveu o seu nome com a espada. O homem nunca chegou a conhecer aquela dama com vida. Só recebeu um bilhete escrito, mas depois de ela estar morta. Em relação à Madalena, é o nome de uma moça que veio para a aldeia servir na casa do Senhor Padre. Ele, que Deus o tenha, disse-nos que era uma moça que tinha encontrado numa outra vila e que, como precisava de alguém que lhe lavasse a roupa, arrumasse a casa e cuidasse da comida, a tinha contratado.

O Doutor Pereira não se lembrava de nenhuma mulher em sua casa. Para além de se não lembrar, não encontrava nenhuma memória dessa existência entre os vários bens que o Senhor Padre tinha deixado aquando do seu falecimento. Marcou essa admiração com um franzir de testa.

O Senhor Doutor não se lembra dela, porque se foi embora antes de vossemecê ter vindo para a casa do Senhor Padre. Mas o Padre José nunca me falou de nenhuma mulher que tivesse estado lá em casa! Não sei Senhor Doutor, mas a Dona Madalena tratou da casa do Senhor Padre durante uns tempos e depois nunca mais ninguém a viu aqui no lugar. Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que o Senhor Prior disse que recolhera

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Vossemecê ali à porta da sacristia da Igreja. Foi mais ou menos nessa altura, alguns meses antes talvez, que se deixou de ver a Dona Madalena por estas bandas. Aqui na terra todos acharam muito estranho aquele desaparecimento tão rápido. A minha senhora até chegou a dizer-me que lhe parecia que a moça tinha uma barriguinha grande antes de ter desaparecido.

Cala-te, mulher! Não levantes falsos testemunhos que vais pro rabudo! Não me digas isso, homem! Não é por mal!

Mas lembra-se de mais alguma coisa relativa a essa senhora que diz ter vivido lá em casa? Não Senhor Doutor, não me lembro de muito mais. Foi já há muitos anos e a minha cabeça não é como era. Sabe de alguém que conheça mais sobre esse assunto e que me possa contar melhor essa história? A única pessoa que lhe poderia falar desse assunto era o defunto Senhor Padre, que Deus o tenha. Para além dele, mais ninguém se deve lembrar disso. Que pena. Acho tudo isso muito estranho. Pois é, Senhor Doutor. Mas pergunte por ai.

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Ali serviu o dedicado Doutor Pereira, naquela pequena aldeia, onde acabou por falecer sozinho como estivera grande parte da sua vida, com aquele mistério registado na sua memória.

Foi colocado junto ao Padre José, ao lado de Teresa Violante e Manuel Laurentino.

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O fogo

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VIII Um dia acordou Laurentino com uma gritaria no largo da igreja perto de onde estava plantada a sua casa.

Deu um salto da cama e ouviu, no escuro do quarto, que havia gente a tentar tocar o sino da torre e a gritar por socorro com toda a força que tinha.

Sacudiu o pó da roupa, vestiu-se e foi ver o que se passava sem sequer arranjar os cabelos brancos.

Olha o fogo lá em cima! Está tudo a arder! Vai chamar toda a gente, ou arde tudo! Vamos ficar aqui todos queimados!

Rapidamente Ti Manel percebeu de onde vinha aquele fumo

negro,

aquele

calor

alaranjado

e

aquele

ruído

medonhamente crepitante das silvas e das árvores.

No cimo da alta Cumieira estava tudo a arder intensamente e o vento empurrava, com fortes rajadas, aquele inferno com a genica de uma praga mortal que ameaçava colheitas, madeiras e vidas.

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Começaram os homens a organizar a defesa da igreja e do cemitério onde estavam os seus, onde estava a Teresa do Manuel e todos os que tinham partido ao longo dos anos. Seria, também, aquele o primeiro terreno a ser atingido pelo fogo se continuasse a andar com tanta vida.

Um dos mais novos da aldeia, o Zé Amado, com os seus trinta e cinco anos de experiência, decidiu que seria melhor chamar os bombeiros para lhes dar uma mão, porque sozinhos não conseguiriam fazer nada daquele fogo.

Lá foi a correr para ligar do café do Ramiro que acordara atordoado com o fumo que lhe entrava pela janela do quarto que mantinha aberta por causa do calor natural que sempre tinha.

O Ramiro já tinha ligado aos bombeiros da vila e recebera resposta.

Segue já para aí a nossa força toda.

O comandante tinha tocado a sirene que se ouvira até no café do Ramiro, ecoando entre os montes, e poucos minutos depois, seis homens estavam prontos a cumprir a missão e entravam no carro de luzes coloridas ligadas e sirenes gritantes.

Na aldeia, os homens começaram a pegar em baldes e em enxadas; gritavam para as mulheres irem buscar água à fonte para

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começarem a tratar do lume e evitar que chegasse perto das colheitas e das casas. A Igreja estaria salva, tanto pelo trabalho desenvolvido, como pela direção que o fogo começara a tomar.

Começaram a atalhar ao fogo, mas pouco tempo depois viram que não conseguiam salvar os campos e decidiram deixar que ardessem por não ser o mais importante.

Reuniram-se perto das casas e das hortas que tinham atrás das casas para defenderem aquilo que lhes era mais vital e que deviam defender a todo o custo.

Molharam copiosamente a vegetação à volta das casas, das quinze casas habitadas que se amontoavam num curto espaço no centro da aldeia, mantendo um olho no fogo e outro na água que nunca mais chegava.

Raio das mulheres; onde foram buscar a água? Assim não vamos conseguir vencer este fogo! Mulher, ó mulher! Vamos lá com isso.

As mulheres corriam o mais que podiam da fonte para as casas e das casas para a fonte, tentando que a água estivesse sempre pronta para os homens não se queixarem e para o fogo não lhes acabar com tudo o que tinham construído ao longo das suas vidas.

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O fogo chegava-se cada vez mais para junto da povoação, trazido velozmente pelo vento que, ora o ajudava com toda a sua força, ora o mandava para a esquerda ou para a direita, deixando os homens indecisos nas áreas a molhar.

Os homens despejavam os baldes ao ritmo das viagens das mulheres.

As mulheres corriam de um lado para o outro ao ritmo das suas cansadas pernas e do caudal da bica de água de nascente da fonte.

Naquelas horas de aperto, parecia-lhes que a água iria acabar em breve; enchia os baldes sem respeitar nem o desejo das mulheres, nem a necessidade dos homens, nem mesmo a rapidez de avanço do terrível incêndio.

Isto vai arder-nos tudo! Não vamos conseguir atalhar a tudo. A água não chega para tudo.

Nesse momento Ti Manel parou. Olhou à sua volta. Algo de estranho o invadiu. Um sentimento de vazio ocupou o seu espírito trazendo-lhe uma calma inesperada.

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Debatido com aquela realidade, seria melhor tentar defender a sua e as outras casas ou não valeria a pena e deveria desistir? Seria melhor deixar arder tudo e partir para junto da sua Teresa que lhe ocupava a cabeça e o coração todos os dias?

Por breves momentos manteve-se naquela indecisão, até que o Zé Amado lhe deu um grito e o acordou daquele sono acomodado.

Oh homem! Acorda e pega ai no balde! Temos de ajudar todos e ainda assim somos poucos. Vamos lá, vamos.

Tinha de defender o que ainda podia e ajudar os vizinhos a salvar os seus haveres.

Voltou a usar a agitada enxada como costumava antigamente.

Limpou o silvado que ocupava o terreno junto de algumas das casas.

Outros seguiram o seu exemplo ao som faiscante do fogo que cada vez se aproximava mais e lhes tirava as forças a cada balde entornado e a cada bramir de enxada que se enterrava na terra.

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Os bombeiros chegaram num carro algumas horas depois, percorrido o longo caminho estreito de terra perdido entre montes.

As mulheres não tinham pernas que aguentassem ir de novo à fonte.

Os homens molhavam o chão mais com o suor do seu corpo do que com a água que as mulheres iam trazendo.

O fogo cercava a povoação por duas das frentes e começavam a sentir que aquele seria o seu fim; viram-se a ser apanhados pelo fogo e a partir junto com as suas casas e os seus campos.

Correu-lhes o corpo a angústia de ninguém ficar para contar aquilo que se tinha passado e como tinham lutado até ao fim. Invadiu-os a imagem das lágrimas, do sofrimento dos filhos, dos netos, dos familiares chegando à aldeia negra e vendo as suas vidas queimadas sem explicação.

Os bombeiros ligaram as mangueiras ao depósito do carro e começaram a distribuir água por tudo o que era fogo ou que poderia vir a ser consumido em breve.

Decidiram salvar as casas habitadas e depois, se fosse possível e ainda houvesse forças nos seus corpos, ir para os campos tentar salvar o que ainda não estivesse queimado.

Por pouco tempo se apegaram àquele desejo, pois viram que aquilo não ia ser fácil.

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Certos de que seriam poucos para fazer frente àquele inferno de chamas, mandaram o Ramiro ir chamar mais gente dos bombeiros e mais carros com água.

Os bombeiros eram homens como aqueles da aldeia; como o Ramiro, como o Amado e mesmo como o Manuel, que se dedicavam ao cultivo das terras, ao comércio na vila ou ao serviço municipal e que largavam tudo o que estivessem a fazer quando a sirene do posto tocava.

Vestiam as suas roupas vermelhas, calçavam as suas botas gastas, colocavam os seus capacetes de viseira e lá seguiam para o combate, cumprindo o serviço de defender a vida dos outros, colocando, muitas vezes, as suas próprias em risco.

Recebiam, no final do dia, uma "bucha" de pão, às vezes com queijo, outras seco, e um copo de leite que ajudava a limpar a garganta e evitava que o pão de centeio se amassasse na boca.

No fim do mês, se houvesse muitas saídas para o fogo, ainda ganhavam um pouco de dinheiro que os mantinha com uma vida de carne duas vezes por mês e arroz em vez das diárias batatas.

Como diziam os vizinhos, eram uns "lordes". Quando havia a festa do padroeiro em qualquer uma das aldeias, eram estes bombeiros que levavam ao ombro o andor principal, o do Santo da terra, e acompanhavam a procissão com música.

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No fim recebiam uma percentagem do dinheiro que era colocado nos andores dos outros santos, como esmola ou como pagamento de promessas. O do Santo da terra ficava para o Senhor Padre sobreviver e fazer as obras, sempre necessárias, da igreja.

O Ramiro volta esbaforido. Disseram-lhe que não tinham mais ninguém e que se conseguissem chamar mais gente ainda ia demorar algum tempo para poderem apoiá-los.

Vamos ter de ser só nós a defender o que é nosso.

Os outros bombeiros disponíveis tinham sido chamados para outra aldeia, do outro lado da Cumieira, que padecia do mesmo mal daquela e em que as casas e as pessoas estavam também em risco.

Tinham de ser eles a atalhar àquele incêndio porque não havia mais ninguém para os apoiar.

As forças eram já poucas. O desespero instalava-se entre os bombeiros.

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Ti Manel olhou à sua volta. Viu choro, lágrimas e desespero. Viu homens de mãos na cabeça, mulheres de olhos no chão e bombeiros desesperados.

Parou de novo. Virou as costas à sua casa e deu de cavar mais perto das casas dos vizinhos.

A água concentrou-se junto das zonas cavadas por ele à volta do terreno das casas dos vizinhos e lá foram desviando a vontade que aquele fogo trazia de transformar em cinza toda a vida daqueles homens e daquelas mulheres.

Lutaram todo o dia e toda a noite. Nem deram por isso. Só viram que o dia tinha passado quando o fogo se apagou e de repente tudo ficou escuro.

O fogo, entretanto, seguia o seu caminho de morte mas já para longe deles, deixando um rasto de cinza e de pequenos pedaços de madeira acesos.

Os bombeiros desligaram a água. Desapertaram os casacos agora negros. Tiraram os capacetes. Entraram no seu carro e voltaram para a vila sem mesmo ter vontade de comer ou beber o que quer que fosse.

Os homens, cansados, olhavam para as mulheres exaustas e benziam-se.

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Uns abraçavam-se com lágrimas tristes de alegria. Outros sentavam-se no chão de mãos na cabeça. O Ti Manel acendeu o seu cigarro, atirou-o para o canto da boca, cuspiu um pedaço de tabaco que se lhe prendera na língua, virou-se e viu, um pouco mais adiante, a sua casa negra e fumegante.

Tinha conseguido ajudar todos os seus vizinhos a defender as suas casas e os seus terrenos próximos como queria; não conseguiu, no entanto, guardar o que era seu.

No meio de tantas lágrimas e de tanta alegria, os vizinhos nem sequer tinham reparado naquele homem que sacrificara, também ele, a sua vida para defender as dos outros. Aquele homem que no momento em que todos estavam a caminho da rendição, não os deixou serem levados pelo cansaço animando-os com o seu exemplo.

Naquela madrugada ninguém foi para casa com medo que o fogo voltasse para levar o que sobrara e mantiveram-se por ali com os baldes cheios de água e as enxadas chamuscadas prontas para o hipotético ataque.

Olhavam para tudo o que tinha sido queimado ali à volta das casas e para lá nos campos de cultivo dos cereais, agora anormalmente nus.

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Nesse dia o Ramiro não viu o sol entrar pela janela do seu quarto, nem sentiu o mesmo calor que de costume o afligia. Foi, no entanto, buscar uma mini Sagres para ele e para todos os seus vizinhos.

O Zé Amado pegou num naco de pão de centeio que ainda lhe restava do que tinha recebido e ali se prepararam para tomar o mata-bicho.

Com a primeira bocada de pão, os olhos centraram-se numa figura curva, fumegante e quieta que se plantara ao seu lado.

Ti Manel não tirara os olhos da sua casa queimada e só naquele momento os vizinhos davam por aquela desgraça que paralisara o homem.

Saciada a sede com aquela visão, satisfeita a fome com aquela imagem, todos se dirigiram cabisbaixos para junto daquela sombra de homem.

As mulheres, que se mantinham em pé, sentaram-se frias no chão ainda quente e húmido.

Os homens estenderam a mão ao amigo que os tinha ajudado sacrificando o que era seu.

Ti Manel sorriu e abanou a cabeça em sinal de afirmação agradecida.

Afastou-se de todos e entrou no que fora um dia a sua casa, a casa que seu pai construíra, onde vivera com a sua mulher

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Teresa, onde criara os seus dois filhos e recebera o neto em momento de festividade.

Olhou em volta o negro das suas paredes caiadas; atendeu ao céu que se via através do que fora já o seu telhado de colmo; atirou os olhos ao chão e baixou-se.

Pegou num pedaço de madeira negra que tinha trabalhado na sua juventude e que guardava o único retrato da sua Teresa queimado numa das pontas.

Encostou-o ao peito e saiu pelo local onde um dia o pai tinha colocado, com as suas próprias mãos, uma porta que agora jazia naquele chão de cinzas; uma porta onde a escultura em madeira de uma mão fechada que ele próprio fizera de um galho do castanheiro, com a navalha que recebera pela sua passagem a adulto, já não estava pendurada e desaparecera no meio da favila.

Pôs a sua enxada escurecida ao ombro, acendeu mais um cigarro que encaminhou com a língua até ao canto da boca, afinou o seu assobio e seguiu para a bica de água fresca de nascente.

Os vizinhos observaram aquele afastar arrastado do Laurentino até ao momento em que desapareceu ao longe no caminho cinzento fumado.

Não conseguiu recolher nem uma, nem duas maças, porque tudo estava queimado, até a sua árvore da porta de casa, aquela que o alimentara todas as manhãs desde há muito tempo.

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Bebeu da água quente da bica de água fresca depois de afastar com as mãos algumas faúlhas queimadas, caídas dos pinheiros, que lá boiavam. Passou um pouco daquela mesma água pela cara negra e estendeu-a da testa até à nuca, sentindo a sua humidade reconfortante correndo pelas costas.

Andou pelo meio daquele deserto negro e quente sem conseguir dar uma cavadela em terra castanha.

Sentou-se no mesmo sítio onde pela primeira vez vira a sua Teresa que tomava conta do rebanho de cabras da aldeia.

Nesse dia, vira-a a cuidar do seu pequeno rebanho, tinha-lhe atirado uma pequena pedra maldosa e tinha fugido para se esconder atrás duma meda de cereal seco.

A Teresa, sentada num grande penedo, vira-o pelo canto do olho a esconder-se, mas olhara para o lado, encobrindo um sorriso nos lábios rosados. A face tinha ficado da cor do fogo e percebera, naquele momento, que aquele era o rapaz com quem queria ficar e viver, até porque já andava de olho nele há algum tempo.

O pai António não queria que ela falasse para aquele moço que não tinha onde cair, mas ela não conseguia resistir a espreitar de relance sempre que pressentia que passava por perto. Muitas vezes até fazia de propósito para passar à porta dele, gritava ao rebanho de forma a ser ouvida pelo rapaz, sem ligar à direção das cabras.

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A mãe Maria encolhia os ombros e dizia-lhe, em segredo, que o pai só queria que ela se portasse bem e escolhesse o rapaz que a fizesse feliz e cuidasse dela.

Faz como eu fiz quando conheci o teu pai. O teu avô também

não

queria,

mas

teve

de

ser

como

Deus

determinou.

Os vizinhos encontraram, um dia depois, a enxada do Ti Laurentino, encostada a um grande penedo gasto pelo tempo e escurecido pelo fogo.

A desgraça infernal tinha passado ao lado do velho castanheiro onde estavam inscritos três nomes e não lhe tinha tocado, como que por milagre.

Ao lado da enxada permanecia, também, um pedaço de cigarro sem filtro apagado.

Do Laurentino nunca ninguém soube mais nada. Dizia-se que tinha seguido a Teresa que o viera buscar para perto de si, ali junto ao castanheiro da princesa e do cavaleiro.

Comentou-se mesmo que Laurentino teria partido naquele cavalo negro em companhia do ilustre ginete; este tê-lo-ia levado de volta para junto da tranquila Teresa, aia da sua princesa desde

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que caíra daquele banco de cozinha quando a ele subira para ver o seu amor a trabalhar no campo através da pequena janela alta da cozinha.

O Senhor Padre elogiou aquele homem e a vida que tinha levado. Registou a luta que tinha dado na defesa da sua terra, da vida dos seus vizinhos e garantiu que naquele momento estaria ao lado da mulher que sempre tinha sido a sua vida. Garantiu que estaria já ao lado de Deus a gozar das bênçãos de uma vida pura dedicada à terra e aos outros.

O Senhor Doutor falou do amor daquele homem por aquela que tinha sido a única companheira de uma vida. Lembrou o dia em que tinha dado aquela notícia tão triste ao Laurentino e a dor que, por instantes, sentira no seu olhar antes de o ter centrado num corpo apagado.

Os filhos, quando regressaram, não conseguiram dizer nada e choraram a partida do pai. Confortaram-se com a imagem daquele homem de mão dada com a sua mulher.

Os netos prometeram, naquele mesmo dia em que lhes foi comunicada a triste notícia, que voltariam àquela terra que era a sua e que talhariam, com a navalha do avô, os seus nomes no castanheiro da aldeia.

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Ti Manel olhara para a Teresa, para a sua companheira de todos os dias de uma longa vida e que se aproximava dele numa brancura radiante que lhe feria os olhos depois de um dia e uma noite de fumo quente e pesado.

Olhara para cima e estendera-lhe a mão que começara a sentir cada vez mais confortavelmente apertada. Sentiu a segurança de quem parte para o desconhecido na companhia de uma confiança experimentada por anos de convivência.

Sorrira para ela pela primeira vez e sentira de novo o terno sorrir da sua Teresa que tanto o acalmava e lhe dava força nos dias cansados do campo e da procura da sobrevivência diária da família.

Experimentara, de novo, aquele aperto no peito que sentira aquando da limpeza do cemitério da igreja e que nunca o tinha levado a visitar o Doutor Pereira. Tinha, na realidade, sabido o motivo daquilo que sentira no momento em que depositara o seu olhar na nívea Teresa.

Partira pelo azul do chão queimado daquela sua terra.

Voltara a ser aquele homem feliz que sempre tinha sido na companhia da mulher com quem tinha casado e partilhado os seus anos de cabelo negro.

Voltara a ser aquele homem completo que renascera com a visita dos seus filhos e neto.

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A nova Castanheiro

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IX Hoje em dia, Maria de Lurdes, Maria do Carmo e António Joaquim estão em Castanheiro da Princesa.

Reconstruíram a casa de família. Terminaram a recuperação, ao longo do tempo nas férias de agosto, de três das casas abandonadas pelos que tinham partido e que se emparelhavam com aquela dos avós.

Mantiveram os pequenos terrenos cultiváveis nas traseiras das residências, copiando os seus antepassados na produção dos produtos consumidos no quotidiano.

Trouxeram a restante família consigo e estabeleceram-se na aldeia onde já chega a estrada pavimentada e com ela os vários visitantes vindos de todos os lados.

Maria de Lurdes chegou acompanhada por um amigo; era um belga que conhecera na sua cidade natal. Este rapaz tinha visto a reportagem televisiva sobre aquela pequena aldeia e colocara, nas redes sociais, um pedido para que quem fosse daquela região de Portugal o contactasse. Manifestara o seu interesse em ir àquele local na companhia de um residente que tivesse conhecimento da história.

Maria de Lurdes vira aquela solicitação no seu perfil e respondera oferecendo-se para falarem e decidirem da melhor forma de cumprir aquele desejo de ambos.

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Após terem falado, o belga teve conhecimento da intensão de Lurdes regressar às origens e ficar a residir numa casa que começara a recuperar.

O belga oferecera-se para a acompanhar, se lhe fosse permitido; queria sentir, no próprio local, tudo a que tinha assistido através dos meios de comunicação. Não pensara em ficar a residir permanentemente no povoado, mas, com o tempo e o apego às pessoas, mudou de ideias e intenções.

Maria do Carmo e António Joaquim voltaram juntos. O irmão mais velho, com a memória que guardara das histórias da aldeia contadas em casa pelo seu pai, convencera a irmã a acompanhá-lo e recomeçarem a vida naquele local familiar de origem.

António deixou o seu emprego e Carmo, como estudante-trabalhadora, recolheu os documentos necessários para concluir o seu último ano de formação em Portugal e despediu-se do seu emprego temporário.

O mais velho trouxe consigo a noiva; era uma moça de segunda geração de emigrantes espanhóis que se identificara com a imagem da gente de Castanheiro que lhe fora transmitida pelo António e que se aproximava em muito daquela de onde eram originários os seus avós.

Estas cinco pessoas chegaram à pequena aldeia perdida no meio de montes e vales e sentiram, de imediato, todo aquele

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ambiente natural dominado pelo velho castanheiro que os acolheu na sua chegada.

Traziam, consigo, a esperança e a vontade de recuperar a mística e os costumes dos homens e mulheres que tinham construído aquele povoado e nele se tinham mantido enquanto fora possível devido à idade ou à necessidade de procurar vida diferente.

Terminaram

o

restauro

das

casas

onde

viveriam;

aproveitando as estruturas existentes abandonadas por antigos moradores entretanto falecidos, tinham mantido os materiais e as formas originais das moradas.

Mantiveram a ausência de modernização que era característica dos naturais, pretendendo que a terra fosse o principal meio de sobrevivência diária.

A Maria de Lurdes, aproveitando a sua formação escolar concluída na cidade, dedica-se ao ensino dos meninos e das meninas que vão chegando com as suas famílias. Ensina num velho palheiro transformado em escola, evitando que tenham, os alunos, de ser transportados para fora da aldeia para estudarem.

Pessoas que conheceram a história de Laurentino e Teresa Violante, depois de passar nas televisões e de dar origem a um

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documentário sobre a vida das pessoas nas aldeias do interior, começaram a dirigir-se para lá.

Ficara, após essa publicitação, conhecido e desejado por muitos aquele lugar.

Alguns dos que viviam nas grandes cidades rumaram ao interior para começarem uma nova vida e fugirem ao bulício da metrópole.

O café do Ramiro e da Albertina tem agora, ao lado, um pequeno mercado que fornece todas os habitantes do lugar.

A Albertina tinha tratado dos negócios, com a ajuda de um moço que perfilhara, até ao seu falecimento devido à sua farta idade.

O Ramiro, como dissera inúmeras vezes o Doutor, acabara por ser vítima das suas mini Sagres, que o escondiam da realidade, uns anos antes de Albertina.

O Senhor Doutor alargou o seu consultório com a autorização do novo Senhor Padre, que veio para Castanheiro da Princesa, depois da partida do seu antecessor que se juntou aos fiéis nos terrenos da Igreja.

Casara com uma moça da vila que trouxera para sua casa com a desculpa de tratar da marcação das consultas e da organização da economia do Doutor Pereira.

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Continua a tratar dos seus doentes. Agora, com mais atenção à idade, limita-se aos velhos residentes sobreviventes à passagem do tempo e à necessidade de sair daquele mundo rural.

Conhece as doenças e queixas desses resistentes como as suas próprias e muitas vezes já nem precisa de os observar para saber o que se passa de errado.

Recusa-se a tratar dos mais recentes residentes por apresentarem doenças e males "modernos" a que ele não se habituou.

Esses

residentes

deslocam-se

à

vila

para

serem

observados no Centro Médico ai instalado.

O Zé Amado é agora um velho solteirão, ainda muito mal-humorado, mas que gosta de mostrar aos novos habitantes, transportando-os no seu velho trator, os montes e os campos da região. Conta-lhes a história daquele casal, o Ti Laurentino e a Ti Teresa, que se juntaram de mãos dadas e seguiram para o céu.

Caminha com o auxílio de uma bengala talhada de um ramo do velho castanheiro. A dificuldade de locomoção resultara de um acidente que sofrera com o seu trator quando arava orgulhosamente a terra de um vizinho. No entanto, essa limitação física desaparece totalmente quando se instala no seu velho trator turístico e circula pela aldeia guiando os visitantes. Nesses momentos continua a manter o grande orgulho que demonstrava quando, antigamente, terminava o seu pentear da terra.

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Mantém em funcionamento a pequena fábrica de queijos que montou com os conhecimentos adquiridos na sua aventura no estrangeiro; a esses conhecimentos adicionou a experiência da terra na criação das ovelhas que lhe davam aquele leite com sabor a flores e a pureza.

Na fábrica trabalham duas mulheres e um rapaz que um dia chegaram a Castanheiro e que apreciaram aquela atividade ancestral. Fabricam o queijo que é distribuído à comunidade como pagamento pelo leite que é recolhido das ovelhas que, em rebanho comunitário, continuam a viajar para o pasto em montes e vales sob vigilância de um pastor e dos seus dois cães.

O filho Justino e a filha Lurdes terminaram antecipadamente a sua vida ativa no estrangeiro e voltaram também para junto dos filhos, vivendo na mesma casa que era dos pais.

Restauraram todas as memórias que foi possível e que tinham sido levadas pelo fogo e foram acrescentando as suas próprias. À falta de retratos dos pais juntos, colocaram a enxada do Laurentino perto da fotografia de canto queimado colada ao pedaço

de

madeira

trabalhada.

Juntaram

as

imagens

instantâneas tiradas naquele último agosto em que tiveram a companhia do desgostoso pai Laurentino.

O Justino dedica-se à conservação do espaço envolvente, orientando os novos residentes na recuperação das antigas residências. Transmite-lhes o sentimento da gente da terra e conta-

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-lhes as tradições recebidas dos mais antigos e da sua própria curta experiência como morador.

Criou um pequeno museu com objetos recolhidos dos espaços queimados pelo trágico fogo; organiza e mantem esse espaço como testemunho de um povo e das suas tradições.

A Lurdes, na companhia do seu companheiro, instalou uma pequena empresa de venda de sementes e outros produtos agrícolas, pequenas máquinas necessárias ao trabalho da terra e apoiam os vizinhos na preparação dos espaços para cultivo.

Quem chega à aldeia, continua a ver o velho castanheiro dominar a paisagem, as casas em pedra com telhado de colmo e os campos cultivados a pintar a paisagem.

Continua a não haver antenas nos telhados e o fumo cobre ainda as casas durante todo o dia, no inverno, e no final da tarde, nos dias de verão.

Quem hoje se dirigir a esta pequeno renovado povoado do interior do país, pode ainda ver as marcas de um povo, testemunhadas no peito da milenar árvore que domina toda a região.

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Recorrem à fresca água que brota da velha bica de nascente, transformada agora em local simbólico da originalidade da terra e da vivência em comunhão com a natureza.

Continuam a juntar-se, em comunidade, uma vez por semana, para contar, aos mais novos residentes, as histórias do passado à volta da fogueira.

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