TCC_CIDADE_RESIDUO_Antonio_Balbi

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CIDADE

RESÍDUO 1


AGRADECIMEN TOS

À minha família por suportar ao longo do processo, à Stela por continuar me dizendo que o tema do trabalho não era batido e que eu estava fazendo algo que acrescentasse lenha na discussão. Aos meus amigos do PRNCTR por não enlouquecer por completo com o isolamento social. á minha tia Marília pelas conversas e revisões. Ao meu orientador por deixar que eu seguisse as minhas curiosidades. Às minhas entrevistadas Rejane Paredes e Jaqueline Ruthwoski que me deram muita vontade de continuar pesquisando e acenderam a esperança de que tem que ser possível alterarmos a gestão de Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil do jeito que ela é hoje.

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ÍNDICE 4

RESUMO CAPÍTULO 1

PRA DEBAIXO DO TAPETE 1.1 1.2 1.3 1.4

ARQUEOLOGIA DO LIXO CIDADÃO CONSUMIDOR O NEGÓCIO SUJO PASSANDO O PANO

6 11 15 18 21

CAPÍTULO 2

RECONHECIMEN TO DE CLASSE 2.1 2.2 2.3

AUSÊNCIA DE DADOS ORGANIZAÇÃO DE CLASSE MOVIMEN TO NACIONAL

28 31 36 39

CAPÍTULO 3

A PELEJA DA APROVAÇÃO DA POLITICA REGULADORA 3.1

COMEN TÁRIOS SOBRE O TEXTO DA LEI 12.305 /2010

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CAPÍTULO 4

CONSIDERAÇÕES FINAIS

63

BIBLIOGRAFIA

71 73

LIS TA DE FIGURAS 3


RESUMO O trabalho busca fazer um panorama da evolução da cadeia produtiva da gestão de Resíduos Sólidos Urbanos ao longo da história da humanidade até os dias de hoje (2021), para entender como chegamos a esse ponto de colapso. O CAPÍTULO 1 PRA DEBAIXO DO TAPETE expõe a criação da indústria do plástico como desdobramento do fim da Segunda Guerra Mundial, no sub capítulo ARQUEOLOGIA DO LIXO aparece a história da limpeza urbana nas cidades do mundo, no sub capítulo CIDADÃO CONSUMIDOR é explicitada a atual conjuntura de minuição das funções do Estado e a consequente necessidade de ter renda para consumir e usufruir da cidadania. No sub capítulo O NEGÓCIO SUJO o enfoque é a comum associção entre crime organizado e a gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos. No sub capítulo PASSSANDO O PANO é apresentada a evolução do mercado de limpeza urbana no Brasil, desde a dependência que as cidades tinham no século XIX com as tecnologias das empresas européias, até o atual domínio do setor por empresas que antes eram do ramo da construção civil. O CAPÍTULO 2 RECONHECIMEN TO DE CLASSE trata das origens da catação no Brasil e no mundo, no sub capítulo AUSÊNCIA DE DADOS o enfoque é justamente a inexistência de dados acerca dos cidadãos marginalizados e a dificuldade de pensar políticas públicas sem informações precisas ou atuais. No sub capítulo ORGANIZAÇÃO DE CLASSE é apresentado o conceito de Economia Solidária, bem como o funcionamento do mercado de materiais recicláveis com enfoque nos catadores autônomos e na 4


formação de cooperativas e associações de catadores. O CAPÍTULO 3 A PELEJA DA APROVAÇÃO DA POLITICA REGULADORA aborda o trâmite dos mais de 100 projetos de lei que tentaram ser aprovados como Política Nacional de Resíduos Sólidos. No sub capítulo COMEN TÁRIOS SOBRE O TEXTO DA LEI 12.305 /2010 é feita uma análise cuidadosa do funcionamento da legislação, são realizados comentários acerca dos problemas que não são resolvidos no texto da lei, assim como as dificuldades reais de botar em prática. Para isso conversei com a Engenheira de Produção Jaqueline Ruthwoski que é fundadora e coordenadora do Observatório por uma Reciclagem Inclusiva e Solidária que articula cooperativas do país todo através do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis o MNCR, no debate das dificuldades e aprendizados no dia a dia das cooperativas. Entrevistei também a Rejane Paredes que é contadora do Instituto Lixo e Cidadania (ILIX) que é uma associação civil sem fins lucrativos, sempre tendo em conta os princípios do Movimento Nacional das Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), o ILIX tem viabilizado assistência técnica administrativa, financeira-contábil e jurídica às associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis do Paraná e de outros estados, garantindo a autonomia, autogestão e independência desses grupos. O CAPÍTULO 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS apresenta o cenário atual de desmonte das estruturas criadas pela Política Nacional dos Resíduos Sólidos, assim como a readequação de prioridades do governo federal desde o Golpe da Dilma até o desgoverno Bolsonaro. No fim são apresentadas proposições de mudança. 5


Estudar o lixo parece algo inverossímilno campo da história, entretanto, percebi que analisar as trajetórias do lixo implica, sobretudo, construí-lo historicamente, tornando-o visível onde, à primeira vista, ele não se faz presente. (MIZIARA, 2008).

CAPÍTULO 1

PRA DEBAIXO

DO TAPETE 6


O consumo é a mola propulsora da economia capitalista. Ao longo da história a humanidade desenvolveu e aperfeiçoou sistemas de produção e distribuição, dessa forma temos hoje um sistema globalizado, compramos no supermercado toda semana produtos que viajaram milhares de quilômetros para chegar ali. Quanta energia foi consumida? A embalagem do produto que você compra é mais uma a ser fabricada do zero ou foi reaproveitada? Essa embalagem tem um sistema de logística reversa operante? Acho que dificilmente você já se fez qualquer uma dessas perguntas, até por que estamos acostumados, adaptados a um sistema de distribuição que nos permite ter acesso apenas ao produto final. Uma pessoa hoje vê mais propagandas em um dia do que se via ao longo de um ano inteiro nos anos 50 . O poder de sedução do consumo é explorado ao extremo nas inúmeras campanhas publicitárias, que já nem são mais tão perceptíveis. 1

Durante a Segunda Guerra Mundial os militares americanos perceberam a utilidade do plástico para substituir matérias primas mais caras e pesadas como o metal e o vidro, sendo esse o primeiro impulso para se criar uma indústria a serviço da criação de novos plásticos. Figura 1 - Propaganda de soldadinhos, tanques e aviões de plástico 7 da Segunda Guerra Mundial


Com o fim da guerra, essa recém desenvolvida indústria pretendia continuar a existir e para tanto precisava se inserir na vida doméstica dos americanos. Até 1953 não existia nenhum produto nos supermercados que tivesse, na composição da sua embalagem, o plástico, portanto era necessário despertar o interesse na sociedade de abraçar essa nova invenção da ciência. Em 1955, a revista americana LIFE publicou na sua capa uma matéria intitulada Throway Living, traduzido livremente para Vida de Jogar Fora, na qual expunha as praticidades em termos de economia de tempo que os plásticos de vida única (que só podem ser usados uma vez) traziam para todas as donas de casa. Não ter que ficar lavando os pratos ou talheres, de fato, representava uma economia significativa no tempo dessas mulheres que começavam a ingressar no mercado de trabalho formal. É interessante pensar que a indústria do plástico associada à propaganda e à formação de opinião criaram a dependência que temos hoje. É difícil encontrar um único cômodo em nossas casas em que não exista algo feito de algum plástico. A partir dos anos 50 para o presente (2021) a ciência descobriu aplicações fascinantes do material, além de ter sido capaz de inventar novas composições dos polímeros que os permitem serem reaproveitados. A mentalidade da praticidade, no entanto, não foi revista, na verdade foi intensificada e a humanidade gera cada vez mais resíduos. A quantidade de resíduo produzida está diretamente associada à renda, ou seja, quem tem mais dinheiro tem acesso à uma variedade maior de produtos e, inseridos na lógica vigente, consomem mais. As novas descobertas de materiais 8


Figura 2 - Capa da revista "LIFE"de 1955: Vida de Jogar Fora, itens descartáveis diminuem tarefas domésticas 9


reaproveitáveis não foram implementadas às cadeias produtivas, por falta de interesse das indústrias produtoras em alterar seus negócios multibilionários que já estão muito bem estabelecidos2. O projeto de cidade que a humanidade pensou falhou, o futuro parece se encaminhar para uma realidade em que serão adicionadas todos os anos novas substâncias à composição do mar, terra e ar, confirmando assim a previsão de que de fato entramos numa nova era geológica: o Antropoceno. Nessa nova era o planeta sofre alterações irreversíveis causadas pelo eterno ímpeto consumista da humanidade. Como ficou claro acima, se ganha muito dinheiro ao perpetuar o mesmo sistema de geração, distribuição, varejo, consumo e descarte, ao mesmo tempo em que as consequências ambientais se tornam cada vez mais alarmantes. Ailton Krenak comenta sobre a ideia de Antropoceno no livro Ideias para adiar o fim do mundo: Vivemos em um período do Antropoceno enquanto resultado inconsequente das ações humanas, ainda que sob a crença de que temos capacidade de conhecer e controlar os desequilíbrios ambientais. O individualismo potencializado pela sociedade capitalista fez surgir um modelo de “civilização” doentia que só pensa em si, excludente, que destrói todas as demais formas de vida no universo. O narcisismo na sua forma social, se é que podemos definir assim. Nossa sociedade transformou a natureza em recursos e distanciou o homem da natureza levando ao limite o processo de coisificação humana. Fizemos da criatividade humana uma ferramenta a serviço da técnica, subjugados, transformamos o saber em coisa a serviço da produção de coisas, de mercadorias (KRENAK, 2019)

2 JONES, Francis. A promessa dos bioplásticos. 2020. Disponível em: https:// revistapesquisa.fapesp.br/a-promessa-dos-bioplasticos/. Acessado em: 26 de maio de 2021. 10


Muitas pessoas já tiveram a educação ambiental nos currículos das escolas, ou em propagandas obrigatórias, mas poucas de fato revisaram seus hábitos de consumo. A responsabilidade não é apenas dos consumidores, mas sim, em grande parte, da indústria que os abastece.

1.1 ARQUEOLOGIA DO LIXO É possível saber como uma sociedade se organiza ao analisar seus resíduos. No livro a História do Lixo, do pesquisador Emilio Maciel Eigenheer, o autor faz uma retomada de como a civilização lidou com o desabastecimento das cidades no decorrer do tempo. Os arqueólogos comprovaram que desde a pré-história as populações humanas optaram por segregar os restos malcheirosos da convivência comunitária. Com o desenvolvimento das primeiras grandes aglomerações humanas foram desenvolvidos sistemas que retiravam os dejetos dos núcleos familiares através de dutos subterrâneos, que os encaminhavam por meio de um curso de água para fora da cidade. Um dos exemplos mais famosos é a Cloaca Maxima construída pelo quinto rei de Roma Tarquinus Priscus, no século III d.C. que continua preservada até hoje.

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Figura 3 e 4 - Cortes e planta da Cloaca Máxima em Roma; Foto atual (2018) do antigo sistema de esgoto romano


Na idade média a limpeza das ruas era de responsabilidade do carrasco da cidade e de seus auxiliares. A ajuda de prisioneiros e prostitutas era também comum. Em 1624, em Berlim, passou-se a empregar prostitutas para a limpeza das ruas, dando continuidade a uma prática que, no caso de prisioneiros, estende-se pelo menos até o século XX. Tais dados são importantes para se compreender as origens da desqualificação do trabalho com lixo.3 No século XIX na cidade de São Paulo, de acordo com a historiadora Rosana Miziara em sua tese de Doutorado Por uma História do Lixo, com as epidemias de febre amarela, o lixo se tornou cada vez mais objeto de preocupações das autoridades, representando assim um perigo para a ordem pública e para a saúde. A população, no entanto, convivia com ele. Ao mesmo tempo que o lixo se torna perigoso, as atividades a ele relacionadas passaram a ser classificadas da mesma maneira. No século XIX, carroceiros, sucateiros e trabalhadores que viviam do lixo seriam considerados ameaça à ordem e perseguidos. A partir das cada vez mais frequentes epidemias, é perceptível a elaboração ou a articulação de algumas medidas para sanear a cidade. Entre elas, destaca-se a coleta do lixo, a construção dos cemitérios e o alinhamento das ruas e das casas. Se tornou necessário asfaltar as ruas, pois, segundo as autoridades municipais4, as várzeas da cidade precisavam parar de receber detritos. Essas medidas integravam um debate mais am3 EINGENHEER, Emilio Maciel. Lixo: A Limpeza Urbana através dos tempos. Porto Alegre: Campus, 2009. 4 2008.

MIZIARA, Rosana. Por uma história do lixo. InterfacEHS, v. 3, n. 1, Artigo 6,

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plo sobre o necessário saneamento da cidade. É importante salientar que a pavimentação das ruas está intimamente relacionada com a preocupação pela retirada do lixo, uma vez que elas se compunham com o barro, dificultando ou impedindo o bom trânsito da cidade. E esse é um fator importante, pois, como se verá adiante, as empresas de asfalto incorporarão no espectro de suas atividades, o recolhimento e o tratamento do lixo. Dessa forma é possível traçar um paralelo entre o desenvolvimento urbano e a necessidade de lidar com a quantidade de rejeitos dispostos irregularmente, alterando assim a lógica em que estamos acostumados a pensar sobre a gestão de resíduos, como se fosse uma consequência inevitável do nosso modelo de desenvolvimento, quando, na verdade, nosso modelo de desenvolvimento se organizou para mantermos a nossa produção de resíduos resguardada. Decisivo para os avanços na limpeza urbana foi o surgimento, na segunda metade do século XIX, da teoria microbiana das doenças, que refutava a secular concepção miasmática5 e 5

A formulação da teoria miasmática, que se consolidou a partir do século XVII, centrava-se sobre os fenômenos atmosféricos, recuperando o estudo das mudanças das estações, dos ventos etc. e sua influência sobre o corpo humano e a ocorrência de doenças. Mas, no século XVIII, pensava-se que o ar era composto de partículas que constituiriam elementos químicos. O miasma seria concebido como substância química, embora não estivessem estabelecidas as relações entre esses elementos e as ainda então denominadas emanações que corrompiam a atmosfera. Não se pôde especificar a natureza química dos miasmas. No século XVIII, predominavam a percepção olfativa, a ênfase nos miasmas e nos fenômenos atmosféricos. O ar, contudo, era pensado como um composto de substâncias químicas. Ao lado disso, a concepção de constituição epidêmica iria se aproximar também de aspectos geográficos, históricos e sociológicos característicos do pensamento higienista. Após o desenvolvimento da teoria dos germes e da bacteriologia, as tentativas de 13


trazia uma radical mudança na visão da saúde pública e da atenção em relação aos nossos dejetos. A partir da nova teoria começou a se dar grande importância à qualidade da água e, pela primeira vez, se estabelece a necessidade de se separar esgoto de resíduos sólidos.6 Nesse contexto surgem os lixões, locais distantes da convivência comunitária, que tiravam do campo de visão os resíduos produzidos. Com a Revolução Industrial e o consequente aumento exponencial na quantidade de novos produtos inseridos no mercado, o número de novos lixões também seguiu o mesmo crescimento. A tomada de consciência dos possíveis danos ambientais causados pelo descarte sem nenhum controle demorou muitas décadas para acontecer, sendo apenas nos anos 1970 que surgem os primeiros aterros sanitários regularizados em todo o mundo. Os aterros sanitários foram criados justamente para conter os danos irreversíveis que a decomposição da matéria orgânica misturada com os resíduos sólidos gerou aos lençóis freáticos, à composição do solo e à atmosfera, uma vez que como produto resultante da decomposição são emitidos gases de Efeito Estufa. Parece lógico que a gestão de resíduos deveria acompanhar o desenvolvimento tecnológico que todas as outras áreas resgatar uma abordagem sintética estariam inevitavelmente marcadas pela ideia de transmissão de agentes microbiológicos específicos e pelos conceitos que lhe sucederam, como portador, hospedeiro, resistência e imunidade. Vinculadas a esses conceitos, foram construídas representações de corpo que, como já analisamos, tenderam progressivamente a desconectar e a dessensibilizar as relações entre corpo e espaço.

6 EINGENHEER, Emilio Maciel. Lixo: A Limpeza Urbana através dos tempos. Porto Alegre: Campus, 2009. 14


da cadeia produtiva tiveram ao longo do século XX, no entanto hoje (2021), 49,9% dos municípios brasileiros ainda destinam todos os seus resíduos sem separação para os lixões, como aponta pesquisa realizada pela ABRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Urbana) no Panorama Abrelpe 2019.

1.2 CIDADÃO CONSUMIDOR Na atual conjuntura de minimização das funções do Estado está cada vez mais indissociável consumir para ser, de fato, cidadão, seja na área da saúde, educação, segurança ou alimentação. O acesso a uma grande variedade de produtos expostos nas prateleiras dos supermercados nos anestesia, afinal não conhecemos alternativas.7 E esse sistema está constantemente sendo aperfeiçoado para otimizar as receitas dos grandes conglomerados varejistas, dos produtores de alimentos ultra processados, do agronegócio e do setor das embalagens.8 No ritmo em que a humanidade vem produzindo e descartando, em 2050 haverá mais plástico do que vida marinha nos oceanos, conforme previsão da Fundação Ellen MacArthur, lançada em 20169. Ao perpetuar o mesmo sistema de produção e destinação final de rejeitos aceitamos que o futuro das cidades 7 BAUMAN, Zigmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 8 Deloitte Global. Global Powers of Retailing 2021, 2021. Disponível em: https:// www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/br/Documents/consumer-business/deloitte-global-powers-retailing-2021.pdf. Acessado em 27 de maio de 2021.

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Ellen MacArthur Foundation. The New Plastics Economy, 2016. Disponível

em: https://www.ellenmacarthurfoundation.org/assets/downloads/EllenMacArthurFoundation_TheNewPlasticsEconomy_Pages.pdf. Acessado em 27 de maio de 2021. 15


há de se tornar um grande lixão. As espécies não humanas sobrevivem há milhares de anos porque reaproveitam absolutamente tudo. Como provoca Wellington Cançado, em seu artigo“O que diriam as árvores”, a humanidade criou o conceito de natureza para poder subjugá-la10, comendo morros com o extrativismo e está terminando por não conseguir parar de engolir o planeta, de saciar seu desejo. As grandes cidades do sul global são o exemplo perfeito do fracasso do planejamento urbano. É necessário produzir cidades de outra maneira. Já não são mais aceitáveis as desigualdades, o descaso com o meio ambiente e as diversas formas de violências praticadas para a manutenção dos interesses das mesmas elites locais. No livro O Espaço Intra-urbano no Brasil, o urbanista Flávio Villaça expõe o controle que as elites locais exercem no Estado e na produção do espaço nas cidades. Elas buscam otimizar ao máximo o tempo de deslocamento dos seus bairros aos empregos e ao comércio, seguindo o mesmo raciocínio, influenciam aonde vão estar localizados os espaços indesejáveis da cidade, como os aterros e os lixões. A sociedade civil continua a acreditar levianamente na ideia de que é possível jogar algo fora. Veja bem, fora de onde? Só se for do campo de visão: os aterros sanitários e os lixões estão localizados nas periferias das cidades, o sistema de gestão de resíduos está invisibilizado, escondido, o caminhão de coleta domiciliar, por exemplo, passa à noite e de madrugada. Em sua tese de doutorado a autora Rosana Miziara busca 10

CANÇADO, Wellington. O que diriam as árvores? PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 11, página 118 - 125, 2017. 16


coletar fragmentos da história do lixo, a respeito do desenvolvimento dos serviços de limpeza urbana. Ela conta sobre uma pesquisa que contribui para entendermos as relações institucionais entre setor privado e público: Em 1971, as tão populares latas de lixo passariam a estar com seus dias contados. Nessa data uma experiência foi feita com sacos de polietileno, abrangendo mil residências, durante trinta dias, nos bairros de Bela Vista e Paraíso; foram utilizados sacos de 20, 60 e 100 litros. Juntamente com os sacos, foi entregue um questionário, no qual as pessoas teriam de apontar as vantagens e as desvantagens desse método de acondicionamento de lixo. (...). O resultado da pesquisa foi este: 76,9% dos entrevistados acharam que o saco de lixo poupa serviço para a dona-de-casa ou para o estabelecimento; 85,1% acharam que poupa serviço para o coletor; 93,3% julgaram que esse método é mais higiênico; 83,8% que é mais prático; 76,8% que é mais estético;82,9% que evita furtos.

Como consequência da pesquisa de satisfação, da articulação das empresas produtoras de plástico e das empresas de gestão de resíduos sólidos, os vereadores aprovaram a Lei nº 7.775, de 1972. Nela a Prefeitura tornou obrigatório o uso de saco plástico para acondicionamento do lixo nos locais de coleta noturna. As fases de implementação também revelavam os juízos de valor a respeito de quem é o dono do lixo: Primeiro, a novidade ficaria restrita às zonas onde se fazia a coleta noturna, ou seja, nas zonas centrais. O dado de que 82,9% avaliaram que ele evita furtos é revelador, mais uma vez, de que a suposta ação de catadores ainda era pouco aceita.

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(...) Era como se o lixo devesse pertencer exclusivamente às empresas coletoras. E, ainda, a preocupação com a padronização estética era algo que continuava presente nos discursos normativos. Essa tendência começou a se manifestar de forma mais contundente com a adoção das latas de lixo, no início do século XX. (...) A diferença é que o saco plástico parecia tirar os dejetos mais rapidamente do campo de visão. Diante dele, as latas, que já haviam sido sinal de civilidade, modernidade e higiene, passariam a ser consideradas sinais de atraso, velhice e falta de higiene (MIZIARA, 2008)

1.3 O NEGÓCIO SUJO O surgimento das máfias no mundo todo está quase sempre associado à gestão de resíduos. No livro Oltre Gomorra. I rifiuiti d’Itália, o mafioso Nunzio Perella descreve a fundação e o desenvolvimento da Máfia calabresa e da campana, a Camorra. Auxiliado pelo jornalista e ambientalista Paul Coltro, o livro conta os mecanismos criados e o aparelhamento da organização criminosa na política italiana. A droga já era. Meu negócio agora é outro. O lixo rende mais e ainda por cima é menos arriscado. Pra gente ele vale ouro, doutor! (PERELLA, 2006)

Foi assim que Nunzio Perrella – capo do bairro napolitano Traiano – começou a colaborar com a justiça italiana em 1992. Foi então que o procurador Franco Roberti notou pela primeira vez que a Camorra tinha um negócio novo, bilionário, maquiado e muito poderoso: os contratos firmados com o poder público. O processo resultante revelou como as milícias lucravam com a sujeira:

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Já estava tudo lá: empresas mafiosas disfarçadas, gestores públicos corrompidos pelas propinas, controles inexistentes, terrenos contaminados. Um sinal de alarme que não foi percebido pela política (PERELLA, 2006)

O negócio dos resíduos era gerido pelos empresários, que não queriam a Camorra por perto no começo. Foi Perrella quem abriu as portas, criando empresas fantasmas que transportavam material do Norte para descarregar no Sul, emitindo falsos recibos. "Todos os dias entravam cem caminhões de lixo e saía um repleto de dinheiro", diz o ex-mafioso. Os proprietários do aterro ganhavam 140 liras por quilo de lixo (0,14 euros): 25 iam para os políticos e de 10 a 15 liras à Camorra, isso resultou em bilhões em um curto intervalo de tempo. No Brasil temos nossas próprias máfias que também controlam um país paralelo, muitas delas estão associadas com o tráfico de drogas, armas e a gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU). A Operação Soldi Sporchi (dinheiro sujo, em italiano), deflagrada pelo 4.º Distrito Policial de Guarulhos em 2020, descobriu um esquema de associação do Primeiro Comando da Capital (PCC) com a prefeitura da cidade de Arujá, cidade com 90 mil habitantes na Grande São Paulo. De acordo com o delegado Fernando José Santiago, o esquema tinha a participação do vice-prefeito da cidade, Márcio José de Oliveira (PRB), que chegou a ser preso no dia 30 de 2020, junto com outros sete acusados de envolvimento no esquema que nasceu como uma forma de lavar dinheiro do tráfico de 19


drogas e agregou à organização criminosa os crimes surgidos pelo domínio da administração da cidade. A investigação revela que bandidos da facção não só dominaram o setor de saúde de uma cidade da Grande São Paulo, como também dominavam a coleta de lixo. E, assim, fraudavam licitações, empregavam seus protegidos no governo, ameaçavam concorrentes e até desviavam medicamentos comprados pelo município para misturar à cocaína vendida pelo grupo. Em Arujá, tudo começou em 2016, durante a campanha para prefeito, quando Gordo procurou o vice-prefeito da cidade, Márcio Oliveira. Gordo ofereceu a Oliveira dinheiro para a campanha do prefeito José Luiz Monteiro (MDB) em troca da promessa de caso a chapa fosse eleita, o traficante teria o controle dos serviços de saúde e coleta de lixo da cidade. De acordo com matéria publicada no jornal O ESTADO DE S.PAULO em 17 de Agosto de 2020, o criminoso do PCC entregou ao candidato o dinheiro, mas o vice teria se apossado da quantia. Após a chapa ser eleita o vice Márcio (PRB) foi coagido (com ameaças de morte) a fazer com que as licitações da prefeitura fossem fraudadas e direcionadas para empresas ligadas a laranjas de Anderson. A essa altura, Anderson já dominava 60 clínicas médicas e odontológicas em diversas cidades da Grande São Paulo que seriam usadas para lavagem de dinheiro. Primeiro, o traficante passou a dominar a coleta de lixo da cidade. Para tanto, o grupo de Gordo montou uma empresa: a Center Leste e a registrou em nome de laranjas. Para vencer a licitação, a organização criminosa coagiu outras empresas que 20


tentaram participar da concorrência. Em 2018, o grupo do traficante resolveu expandir seus negócios com a Prefeitura, passando a dominar dois institutos, usados como organizações sociais que deviam administrar um hospital e um posto de Saúde da cidade. Gordo não só conseguiu dominar as entidades, como empregou nelas parentes e conhecidos de pessoas ligadas à sua organização, dominando setores essenciais, como o responsável pelas compras. A investigação da polícia civil encontrou indícios de que o mesmo sistema está sendo implementado em pelo menos outros três estados do país. O caso descoberto em Arujá é uma das maneiras de utilizar o sistema de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos para benefício ilegal. O meio é perfeito para não levantar suspeitas, afinal ninguém quer sentir o cheiro de chorume.

1.4 PASSANDO O PANO Há um claro interesse em manter o sistema de gestão de resíduos do jeito que ele é hoje pois o histórico da prestação de serviços de Limpeza Urbana no Brasil demonstra um padrão de concessão que fortalece cada vez mais as mesmas empresas. No final do século XIX empresas europeias realizavam todos os serviços públicos do Rio de Janeiro: Eletricidade, Transporte e Limpeza Urbana, portanto determinavam o desenvolvimento urbano. Durante a Primeira Guerra Mundial, o país teve de se virar sem a ajuda dos seus amigos europeus, e começa, finalmente, a criar uma estrutura pública que permitia a execução dos serviços urbanos pelo Estado brasileiro. 21


Nos anos 1960, empresas de engenharia percebem o potencial lucrativo da gestão de resíduos domiciliares urbanos e começam a se estabelecer no setor, com concessões nas maiores cidades brasileiras. Em 1966 foi firmado o primeiro contrato da prefeitura de São Paulo com a empresa Terpa-Lipater. Samuel Ralize Godoy exemplifica na sua Tese de Doutorado “Economia Política dos Serviços de Limpeza Urbana” o crescimento das construtoras no setor: Em 1975, dois terços das áreas cobertas pelos serviços de limpeza já eram atendidos por cinco empresas privadas: Vega Sopave, Terpa-Lipater, Enterpa Engenharia, Jofege e Pavi-Obras — o restante das áreas era atendido diretamente pela prefeitura. Em 1977, os contratos da Terpa-Lipater foram repassados à Enterpa, que assumiu posição de liderança junto com a Vega Sopave — ambas já estavam entre as principais empresas de limpeza urbana no Brasil e concentravam a maior parte dos contratos com a prefeitura de São Paulo. Basicamente, Vega Sopave e Enterpa concentravam, juntas, 36% do volume de resíduos coletados em 1976, 40% em 1977, 74% em 1980 e 86% em 1985; nesse ano, a Companhia Auxiliar de Viação e Obras (Cavo), do grupo Camargo Corrêa passa a aparecer como a terceira principal empresa a operar no município, com 3% do volume, chegando a 16,1% em 1988. (GODOY, 2011)

Durante a ditadura militar as empresas passaram a dominar as concessões, e ter maior permeabilidade com o poder público. No final da gestão de Jânio Quadros (1986-1988), a prefeitura de São Paulo elabora uma licitação dos serviços de Limpeza Urbana com a duração de cinco anos e as empresas vencedoras dos contatos foram a Cavo, a Vega Sopave e a Enterpa. Com a redemocratização e a onda neoliberal tomando 22


conta nos anos 90, as concessões se tornaram cada vez mais frequentes e as empresas passaram a financiar campanhas eleitorais, além de se organizarem em associações do setor, que tem como função elaborar pesquisas científicas que otimizem a capacidade de processamento dos resíduos. Em cada concessão o valor recebido pela prestação do serviço é proporcional à quantidade de resíduo coletado. A meta é então sempre abocanhar a maior parcela do que é descartado. No final da gestão de Paulo Maluf (1993-1996), a prefeitura realizou uma nova licitação que iria se estender por mais cinco anos, e as vencedoras foram a Cavo, a Vega Sopave, a Enterpa, a Companhia de Projetos Ambientais do grupo Odebrecht, e a construtora OAS. Em 2001, durante a gestão da prefeita Marta Suplicy, explodiu na mídia casos de corrupção envolvendo empresas que prestavam serviços de Limpeza Urbana na cidade de São Paulo. Os grupos Loga (Vega Engenharia e Camargo Corrêa) e EcoUrbis (Queiroz Galvão, Heleno & Fonseca e Marquise) venceram os contratos, com duração de 20 anos e custo total de R$ 10 bilhões. O relatório do CADE apontou outra "coincidência" que configuraria o cartel: a vencedora do primeiro lote deu a pior oferta para o segundo, mesmo procedimento adotado pelo outro consórcio. Como havia a suspeita de loteamento de contratos em várias cidades, também foram incluídas na investigação outras empreiteiras: Cavo, SPL Construtora, Delta e OAS. Além de an23


tecipar os vencedores, o documento divulgado pela reportagem do jornal FOLHA DE S.PAULO, publicada em 10 de Julho de 2010, lista as compensações que seriam dadas aos perdedores da concorrência. No segundo semestre de 2001 foi realizada a maior Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o assunto, já haviam acontecido outras investigações em 1989 e 1993, com o intuito de apurar as denúncias envolvendo corrupção, superfaturamento e evasão de divisas cometidas pelas empresas Vega Sopave, Estre, Cavo. A comissão conseguiu apurar que as empresas enviaram para o exterior R$ 53 milhões entre 1992 e 1998. A Vega Engenharia Ambiental, que integra o suspeito cartel do lixo, foi a empresa que mais dinheiro enviou dinheiro para paraísos fiscais - R$ 25,5 milhões, só durante a gestão de Celso Pitta. A Enterpa Engenharia, R$ 421 mil e a Companhia Auxiliar de Viação e Obras (Cavo) R$ 180 mil. Como resultado desta CPI, foram cancelados alguns contratos e realizada uma nova licitação para contratar, por 24 meses, as empresas que prestariam os serviços de limpeza em regime de prestação de serviços. Foram contratadas as empresas Enob, Vega, Queiroz Galvão, Enterpa, Cliba, Júlio Simões Logística e SPL Construtora. Nesse contexto de cancelamento dos contratos vigentes, a prefeitura da Marta Suplicy elaborou a lei municipal n. 13.478, de 2002, que estabelece novas regras para as concessões ao diferenciar dois regimes de prestação de serviços de limpeza urbana: o regime público e o privado. No primeiro, a responsa24


bilidade é do poder público, com serviços classificados como divisíveis (coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos não perigosos ou de serviços de saúde) e indivisíveis (limpeza e conservação de bens de uso comum, varrição e asseio de logradouros públicos e outros serviços de zeladoria). Esses serviços são operados por meio de concessões (no caso dos serviços divisíveis) e permissões (no caso dos serviços indivisíveis), junto a consórcios formados por várias empresas. Com as regras alteradas foi elaborado um novo modelo de contrato de concessão dos serviços divisíveis. Em 2004 foi lançado um edital que previa a concessão por vinte anos. A alegação para a mudança do tempo era de que os investimentos precisariam ser feitos à longo prazo para que os contratos fossem interessantes economicamente para os gestores, e terem melhoras significativas na estrutura da operação logística. As empresas vencedoras foram a Loga S.A e a Eco Urbis Ambiental, responsáveis então pela coleta, transporte, tratamento e destinação final dos resíduos domiciliares urbanos de 2004 a 2024. No contrato existe a possibilidade de a concessão ser estendida por mais 20 anos, o que resultaria na gestão até 2044. Os contratos preveem que a Loga S.A receba R$ 9,77 bilhões (valor corrigido pela inflação) e a EcoUrbis R$ 10,2 bilhões (valor corrigido).11

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GENTILE, Rogério. Contratos de lixo em SP têm serviço fantasma de R$ 612 mi, diz auditoria. Rede Nossa São Paulo, 2017. Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/2017/04/13/contratos-de-lixo-em-sp-tem-servico-fantasma-de-r-612-midiz-auditoria/. Acessado em 28 de Julho de 2021.

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De acordo com os dados da Pesquisa Nacional do Saneamento Básico (PNSB), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existe uma relação direta entre o número de habitantes de um município e a porcentagem da participação da iniciativa privada na execução do serviço. Quanto maior a densidade populacional da cidade em questão, maior o nível de terceirização do serviço de limpeza urbana. Nos municípios com até 50 mil habitantes, 36,6% das entidades prestadoras do serviço são privadas, enquanto 63,4% são públicas. Nos municípios acima de 500 mil habitantes, esta relação se inverte: 26,6% do serviço são prestados por ente público, enquanto 73,4% estão a cargo da iniciativa privada. Nos municípios acima de 1 milhão de habitantes, a porcentagem de terceirização do serviço chega a 90% (IBGE, 2010). Dessa forma, constata-se que a iniciativa privada opera preferencialmente nas grandes e médias cidades, que possuem maior arrecadação de impostos e, portanto, melhores condições de financiar esse serviço. Conforme a Pesquisa Nacional do Saneamento Básico (PNSB), o orçamento do serviço de coleta e gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) pode chegar a 20% dos gastos do município (IBGE, 2010). O sistema de gestão de resíduos gera receita de 1 trilhão por ano no mundo todo. Acompanhando as projeções de crescimento da população mundial até 2050 que deve aumentar 26% em relação ao presente, a produção de resíduos deve aumentar cerca de 70% estima o Banco Mundial. No ano de 2010 foi aprovada no Congresso Nacional a lei federal 12.305 que, finalmente, regulamenta a Política Nacio26


nal de Resíduos Sólidos, depois de mais de vinte anos de tramitação e negociação entre os poderosos agentes envolvidos. O novo marco legal altera a logística do jeito que ela se estabeleceu (com o domínio irrestrito dos consórcios de empresas de Limpeza Urbana), e inseriu na cadeia produtiva outros agentes até então marginalizados: os catadores de materiais recicláveis organizados em cooperativas.

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CAPÍTULO 2

RECONHECIMEN TO DE CLASSE A aprovação da lei 12.305 só se concretizou com a intensa reinvindicação dos movimentos dos catadores organizados, que por sua vez só foram criados nos anos 2000. A gestão de resíduos urbanos é uma preocupação antiga das cidades, e os indivíduos que realizaram essas funções sociais sempre carregaram consigo o estigma de lidar com o que o resto da sociedade prefere esconder. Na sua passagem pelo Rio de Janeiro, Jean-Baptiste Debret, entre 1816 e 1831, descreve em suas anotações os hábitos da vida na capital do império: A repugnante tarefa de carregar lixo e os dejetos da casa para as praças e praias era geralmente destinada ao único escravo da família ou ao de menor status ou valor. Todas as noites, depois das dez horas, os escravos conhecidos popularmente como ‘tigres’ levavam tubos ou barris de excremento e lixo sobre a cabeça pelas ruas do Rio. Os prisioneiros realizavam esse serviço para as instituições públicas” (DEBRET, 1831)

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Figura 5 – Homens escravizados caminhando enquanto equilibram barris cheios de excrementos

Mais tarde os horários foram definidos para qual momento seria mais adequado para que os homens escravizados pudessem sair às ruas equilibrando as bostas da sociedade. Os primeiros registros a respeito do início da atividade da catação nas cidades revelam a figura dos trapeiros, que recolhiam trapos de roupas e começaram a diversificar as possibilidades de sobrevivência. Afinal a catação tem como principal meta a de manter seu praticante vivo. A ausência de assistência pós abolição da escravidão e a necessidade de ganhar dinheiro deram origem às primeiras ‘associações’ de reciclagem, em 05/01/1895 o Jornal do Commércio notícia a presença de catadores nas Ilhas de Sapucaia e do Bom Jesus, na Baía da Guanabara, para onde foi levado, por décadas, o lixo do Rio de Janeiro: Sabem vosmecês qual a industria mais curiosa do Rio de Janeiro? A do lixo, com laboratorio nas ilhas da Sapucaia e do Bom Jesus. Para ali vão todos os residuos da grande Capital. (...) Os lixeiros explorão aquelle monturo como se explora uma empreza vasta, complicada e rendosa. Uma verdadeira alfandega! São uns quarenta ou cincoenta, muito unidos e amigos, e que do Rio de Janeiro 29


só conhecem a Sapucaia. Dividem entre si, com todo o methodo e ordem, os variados serviços das diversas repartições do lixo. (...) Tudo alli é aproveitado, renovado, re-utilisado e reventido. Os viveres deteriorados servem para o sustento da corporação. O rancho é um alpendre, construido no meio da Sapucaia; sobre a mesa figurão as victualhas pescadas naquelle oceano de sujidades e cacos, restos de carne secca, trechos de bacalháo, raspas de goiabada, massas, frutas verdoengas ou semi-podres, E transformão tudo em dinheiro: Trapos, vendem às fabricas de papel; garrafas, às ditas de cerveja; ferros e metaes, às fundições; folhas de flandres, aos funileiros; cacos de louça e crystaes, às fabricas de vidro. De vez em quando dão sorte, fazendo achados extraordinarios. Os colxões velhos gozão naquellas paragens de uma reputação miraculosa. Especie de bilhete de loteria, gravido de alguma sorte grande...Há muitos avarentos que escondem a bolada em colxões velhos...Há lixeiros enriquecidos pelos colxões... são muito dóceis, trabalhadores e disciplinados... Vivem satisfeitos e tranuillos, só sahindo da Sapucaia para regressarem à terra, recheiados de libras. (EINGENHEER, 2008)

A esperteza de criar uma empresa que lidasse com o que foi descartado, para então não morrer de fome, impressionou o jornalista. A descrição revela um rancho construído em um vazadouro, atualmente conhecido como lixão, onde, depois de triados, os itens seriam revendidos às respectivas fábricas para que elas pudessem reinseri-los nas suas cadeias produtivas, estabelecendo assim cadeias de logística reversa.

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2.1 AUSÊNCIA DE DADOS

A publicação do livro “Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável” do IPEA em 2011, é um marco para a historiografia do lixo, pois apresenta dados até então desconhecidos sobre estes corpos invisibilizados. A catação é informal, ou seja, sem registro oficial, o que não facilita aos catadores uma série de direitos trabalhistas. O alto nível de informalidade dificulta o reconhecimento da sua existência pelos órgãos da administração pública e instituições de pesquisa. Estar fora dos registros oficiais é ainda mais preocupante quando se consideram as condições de risco para a saúde destes trabalhadores, uma vez que estão desguarnecidos de qualquer seguro social para o caso de algum acidente ou doença que lhes impossibilite de trabalhar por um determinado período. A fome é, para muitos, associada à catação, afinal existe uma interseccionalidade muito evidente entre a população em situação de rua e os catadores de materiais recicláveis. Muitos começam procurando o que comer dos restos, revirando sacos de lixo. A publicação lista os riscos a que estes trabalhadores são frequentemente submetidos:

A exposição ao calor, a umidade, os ruídos, a chuva, o risco de quedas, os atropelamentos, os cortes e a mordedura de animais, o contato com ratos e moscas, o mau cheiro dos gases e a fumaça que exalam dos re-

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síduos sólidos acumulados, a sobrecarga de trabalho e levantamento de peso, as contaminações por materiais biológicos ou químicos etc. (...)Estes, entre outros fatores, fazem com que esta atividade seja considerada como insalubre em grau máximo, conforme estabelecido na Norma Regulamentadora no 15, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), exigindo maiores cuidados em termos de equipamento de proteção e disponibilidade de locais adequados para o trabalho (IPEA, 2011)

Existem lacunas temporais de dados disponíveis sobre os catadores no Brasil e para tentar preenche-las achei pertinente olhar para a publicação do diário da catadora e escritora Carolina Maria de Jesus, de 1960, “Quarto de Despejo – o diário de uma favelada”. A própria vida da autora representa muito bem as mudanças que ocorrem na sociedade brasileira, como a necessidade sair do campo e buscar oportunidades nas cidades A escritora começou a trabalhar na infância, foi alfabetizada e estudou até o segundo ano primário, graças a uma instituição espírita. Em 1937 migrou para a cidade de São Paulo em busca de melhorias de vida. O motivo de sua saída de Minas Gerais foi a severa miséria que abatia os camponeses, parte causada pelo clima, parte pela exploração dos latifundiários Após peregrinar no interior das cidades do estado de São Paulo, chegou à capital e logo começou a trabalhar com diversas profissões, desde empregada doméstica até artista de circo. Como empregada, trabalhou nas casas de algumas famílias. Insatisfeita com o trabalho, Carolina decidiu tentar outro jeito de sobreviver e passou a trabalhar como catadora de papel nas ruas paulistanas.

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Em 1958 o jovem repórter Audálio Dantas visitava a favela do Canindé (a maior da cidade na época) para fazer uma reportagem sobre a instalação de playgrounds na comunidade e encontra a catadora de materiais recicláveis escrevendo um de seus manuscritos. Ela escrevia em cadernos que achava no lixo. Ao relatar sua rotina Carolina expõe cenas de uma Brasil que a maioria prefere fingir que não existe, logo no lançamento da matéria no Jornal, o jornalista Audálio censura alguns trechos dos escritos, alegando que seriam muito chocantes e perturbadores. O livro completo, sem correções ortográficas, sai em 1960 e vira best-seller em 38 países. Na Inglaterra, após a Revolução Industrial, surgiu o termo Scavenger que tem alguns significados: 1. Animal que se alimenta de outros animais mortos que não foi ele quem os matou; 2. Pessoa que se alimenta do que os outros seres humanos descartaram; 3. Pessoa que tem como fonte de renda para a sobrevivência a catação de lixo para vender. Em seu diário, Carolina reflete sobre a condição de extrema pobreza reverberando o termo inglês: Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos. (2005, p.37) Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.” (2005, p.48) O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. [...] E quando apodrecem jogam para os corvos e os infelizes favelados. (2005, p.29)

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“Os animais quem lhes alimenta é a natureza. [...] Eu penso isto, porque quando eu não tenho nada para comer, invejo os animais.” (2005, p.55)

No entanto é preciso pontuar que a categoria social dos catadores não é homogênea, mas sim marcada por uma forte diversidade entre seus integrantes e locais de trabalho. A publicação de 2011 do IPEA revela que a maior parte exerce a atividade em tempo integral há muitos anos, desde a infância e em algumas famílias essa atividade passa a ser seguida pelos filhos, geralmente por falta de qualquer outra opção. Outros a iniciam por situações emergenciais, como a perda do emprego, por exemplo. Existem também aqueles que intercalam a catação com outros trabalhos, ou então trabalham como catadores nos intervalos entre um e outro emprego eventual. Existem ainda catadores que seguem uma rotina de trabalho diária, enquanto outros possuem dinâmicas menos regulares, trabalhando uma quantidade de horas bastante variável por dia, ou mesmo trabalhando em dias intercalados. No quesito residência, parte possui residência fixa, outros vivem nas ruas ou em locais precários que exigem mudanças constantes; outros residem nos próprios lixões ou aterros, bem como aqueles que, embora possuam residência definida, dormem na rua ou no local de trabalho durante uma parte da semana, voltando para casa apenas eventualmente, geralmente nos fins de semana. A organização do trabalho também ocorre de diferentes maneiras: existem aqueles que trabalham sozinhos ou em família e aqueles que se agrupam em associações e/ou cooperativas no

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intuito de juntar forças por meio do trabalho coletivo. Em termos de locais de trabalho, há aqueles que trabalham em áreas específicas de coleta na cidade, passando em áreas residenciais e em empresas, caminhando a pé ou puxando suas carroças, disputando espaço com os agressivos carros, assim como há aqueles que trabalham em lixões ou aterros sanitários.

Figura 6 – Catadores fazem fila para terem a chance de pegar lixo vindo de caminhão no Lixão de Boa Vista, em Roraima.

Ao longo de todo o dia chegam no lixão caminhões com intervalo regular de tempo, numa logística operacional que funciona a todo vapor: concessionárias privadas controlam a coleta porta a porta, bem como a destinação final dos resíduos. Vale a 35


pena ressaltar que as empresas recebem em dinheiro uma quantidade proporcional à quantidade de resíduos que elas processam. As concessionárias que prestam serviço de Limpeza Urbana tem o único interesse de manter o mesmo fluxo de resíduos, de recursos, e com esse entusiasmo pelo lucro, os caminhões de lixo chegam nos lixões, para encontrar ali já formada uma fila de pessoas que esperaram sua vez para poder tentar achar o que comer e o que revender entre os restos de centenas de desconhecidos. A partir de 1982, durante a gestão da prefeita de São Paulo Luiza Erundina (PT) procurou-se em São Paulo organizar os catadores no sentido de lhes dar maior dignidade profissional e melhorar seus ganhos. Este trabalho se inicia por intermédio da Organização de Auxílio Fraterno (OAF) e culmina com a formação, em 1989, da primeira Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis a Coopamare.

2.2 ORGANIZAÇÃO DE CLASSE

Ao longo da história da humanidade a população de rua foi tratada predominantemente de maneira higienista, lidando com a situação de exclusão social extrema como se fosse esperada. A partir daí muito pouco ou quase nada se fez no sentido de efetivamente conhecer esta população e, assim, lhe direcio36


nar políticas adequadas. Justo (2010) destaca em sua pesquisa o caráter eminentemente heterogêneo desta população de rua seja em sua composição, origem, seja pelos motivos que levaram tais indivíduos às ruas e em uma perspectiva histórica:

Para Marx, o ‘mendigo’ dos primórdios da modernidade era fruto de dois processos: expropriação e legislação. Isto é, os ‘mendigos’ dos séculos XIV ao XVI eram ex-camponeses que perderam suas terras e migraram para as cidades e, então, foram enquadrados em leis que regulavam suas condutas nesse novo meio social. As leis estabeleciam quem podia mendigar, e quando. Estava em jogo a distinção entre o trabalhador e o vagabundo (JUSTO, 2008, p. 3)

Paul Singer publicou, em 2002, o livro “Introdução à Economia Solidária”, no qual buscou a razão que leva certos indivíduos a se unirem, formando cooperativas, que, segundo o autor, reproduz a própria lógica capitalista, uma vez que esta lógica tem como um de seus fundamentos básicos a existência de um exército reserva de operários, que assegura a oferta de mão de obra abundante, controlando assim os salários e aumentando o lucro do capitalista, detentor dos meios de produção. Os catadores autônomos conseguem catar até uma certa quantidade materiais e estão reféns de vendê-los aos sucateiros, que nada mais são do que intermediários que compram o material a um preço muito baixo e tem capacidade de estocagem muito maior, o que os permite acumular grandes quantidades

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para então revendê-los com uma margem de lucro muito maior para a indústria recicladora. A percepção dos catadores de lixo, na sua grande maioria em situação de rua, que ganhavam baixíssima remuneração na venda do pouco material que conseguiam coletar, era de que, ao se unirem, conseguiriam um maior montante de produtos a ser comercializado, aumentando o valor arrecadado. Este é um dos resultados práticos obtidos com a existência das cooperativas. Barros (2004), faz uma análise dos nomes pelos quais são tratados os moradores de rua e um histórico das políticas sociais dos anos 90 e aponta para a necessidade de se compreender a migração num novo contexto em que conceitos e noções como o de “exército industrial de reserva” e de “mobilidade de força de trabalho pelo capital” são insuficientes porque os ‘excluídos’ não cabem mais nestas noções, uma vez que o modo de produção capitalista está numa fase de aumento da produtividade sem geração de empregos Para Barros (2004) o homem que está fora da relação trabalho-capital é uma figura ‘fantasmagórica’, até mesmo para o pensamento. Por isso, ela afirma que “através dos moradores de rua e com eles é possível redefinir a compreensão da rua, da experiência urbana que significa e, mais ainda, de seu sentido na história”. Singer (2002) afirma que com a crise social das décadas perdidas de 1980 e de 1990, o país se desindustrializou, perdendo assim milhões de postos de trabalhos, acarretando desemprego em massa e acentuada exclusão social, a economia 38


solidária reviveu no Brasil Nos anos 1980, a Cáritas, entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), financiou milhares de pequenos projetos denominados PACs, Projetos Alternativos Comunitários. Uma boa parte dos PACs destinava-se a gerar trabalho e renda de forma associada para moradores das periferias pobres de nossas metrópoles e da zona rural das diferentes regiões do país. Parcela dos PACs acabou se transformando em unidades de economia solidária, alguns dependentes ainda da ajuda caritativa das comunidades de fiéis, outros conseguindo se consolidar economicamente mediante a venda de sua produção no mercado.

2.3 MOVIMEN TO NACIONAL Em novembro de 1999 aconteceu o 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel, em Belo Horizonte, MG. Seus participantes organizaram o 1º Congresso Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, realizado em Brasília nos dias 4, 5 e 6 de junho de 2001, que contou com a participação de 1.600 congressistas, entre catadores, técnicos e agentes sociais de dezessete estados brasileiros e os 3.000 participantes da 1ª Marcha Nacional da População de Rua, no dia 7 de junho do mesmo ano, no qual apresentam a toda a sociedade e às autoridades responsáveis pela implantação e efetivação das políticas públicas, as reivindicações e propostas que seguem: 1.1 – Garantia de que, através de convênios e outras formas de repasse, haja destinação de recursos

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da assistência social para o fomento e subsídios dos empreendimentos de Catadores de Materiais Recicláveis que visem sua inclusão social por meio do trabalho. 1.2 - Inclusão dos Catadores de Materiais Recicláveis no Plano Nacional de Qualificação Profissional, priorizando sua preparação técnica nas áreas de gestão de empreendimentos sociais, educação ambiental, coleta seletiva e recursos tecnológicos de destinação final. 1.3 - Adoção de políticas de subsídios que permitam aos Catadores de Materiais Recicláveis avançar no processo de reciclagem de resíduos sólidos, possibilitando o aperfeiçoamento tecnológico dos empreendimentos com a compra de máquinas e equipamentos, como balança, prensas etc. 1.4 - Definição e implantação, em nível nacional, de uma política de coleta seletiva que priorize o modelo de gestão integrada dos resíduos sólidos urbanos, colocando os mesmos sob a gestão dos empreendimentos dos Catadores de Materiais Recicláveis. 1.6 - Priorização da erradicação dos lixões em todo o país, assegurando recursos públicos para a transferência das famílias que vivem neles e financiamento para que possam ser implantados projetos de geração de renda a partir da coleta seletiva. (MNCR, 2001)

O documento ficou conhecido posteriormente como Carta de Brasília e expressa muito bem os anseios que os catadores tinham de estabelecer vagas de empregos formalizadas, assim como a criação de uma política reguladora. Pode se dizer que a partir da entrega da carta aos deputados, a organização do Congresso Nacional e as experiências ali vividas, forjaram o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

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Figura 7 -Ato do MNCR em março de 2006 em Brasília-DF

Fundado como consequência da organização de catadores de todo o país em prol de uma reivindicação comum de exigir a criação de uma política reguladora para o setor, o movimento organizou-se criando bases regionais de tomada de decisão em cada região do país, dessa forma podiam se organizar localmente e ainda manter os laços com o resto do Brasil. O movimento teve um crescimento rápido no número de membros, uma vez que já existiam inúmeras iniciativas de cooperativas, que se encontravam isoladas e desarticuladas, ou seja, incapazes de fazer com que fossem reconhecidas e levadas em consideração. Em março de 2006 o MNCR realizou uma grande marcha até Brasília, levando suas demandas para o Governo Federal, exigindo a criação de postos de trabalho em cooperativas e associações bases orgânicas do movimento. Esse evento se tornou um marco histórico da luta dos catadores no Brasil, cerca de 1.200 catadores marcharam na Esplanada dos Ministérios e levaram às autoridades suas reivindicações. A meta era a criação de 40 mil novos postos de trabalho para catadores e catadoras 41


de todo o Brasil.

CAPÍTULO 3

A PELEJA DA APROVAÇÃO DA POLÍTICA REGULADORA Uma análise sobre o histórico da Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil nos revela que, no ano de 1989, foi apresentado o Projeto de Lei do Senado Federal Nº 354/89, que dispunha sobre “o acondicionamento, a coleta, o tratamento, o transporte e a destinação final dos resíduos de serviços de saúde”. Essa proposta é entendida como a primeira iniciativa para a elaboração da Política de Resíduos Sólidos a nível nacional. Tal Projeto de Lei tramitou e foi melhorado na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei Nº 203/91), adquirindo o perfil de processo legislativo. Em 2006 ocorreu a aprovação de um substitutivo pela Comissão Especial da Política Nacional dos Resíduos e, em 2007, a proposta do Executivo Federal, que serviu de base à discussão final para a instituição da Política Nacional de Resíduos Sólidos, 42


foi submetida à apreciação do Plenário da Câmara dos Deputados. Nos quase 20 anos de tramitação daquele projeto inicial, que se viabilizaria na Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) cerca de 100 projetos relacionados ao tema foram pensados e tramitaram em conjunto. Tais projetos foram analisados por comissões especiais e alguns deles foram considerados inconstitucionais. Em 2008 foi criado o Grupo de Trabalho na Câmara dos Deputados para viabilizar a deliberação sobre a matéria. O pressuposto da logística reversa presente no texto, que prevê inclusive responsabilidades pós-consumo, encontrou resistência do setor industrial, o que prorrogou a aprovação do projeto de lei. Depois, a logística reversa foi considerada aceitável e, principalmente, aplicável, com compreensão da área empresarial e da área governamental do objetivo de prevenir e recuperar danos ambientais, com viés na responsabilidade social de uma sustentabilidade proativa integradora entre União, Estados, Municípios, empresas e cidadãos. A adequação do texto da lei às condicionantes apresentadas pelos setores industriais e a participação do MNCR, serviu de base para que a PNRS fosse aprovada em junho de 2010 pelo Congresso Nacional e sancionada, pela Presidência da República, na forma da Lei Nº 12.305 de 02 de agosto de 2010.

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3.1 COMEN TÁRIOS SOBRE O TEXTO DA LEI 12.305 / 2010 A Política Reguladora foi finalmente aprovada e estabeleceu as regras para o setor que, até então, era quase que exclusivamente dominado pelas poderosas empresas de engenharia civil que se estabeleceram no setor de Gestão de Resíduos. Com a aprovação da lei, as organizações de catadores em cooperativas e associações tiveram seu trabalho reconhecido e incluído na cadeia produtiva, ainda que só na teoria, pois no Brasil é comum o costume de algumas leis pegarem e outras serem apenas letra morta. A legislação apresenta seus princípios, objetivos e instrumentos, assim como as diretrizes para implementação de Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PGIRS) e as responsabilidades dos geradores e do poder público. Passados dez anos da publicação da lei 12.305 é possível identificar os problemas e insuficiências do seu conteúdo. Nesse capítulo vou comentar alguns aspectos da legislação desde a sua formulação e as problemáticas que impossibilitaram sua aplicação na prática. A realidade dos catadores no Brasil, mesmo depois da aprovação da PNRS, é bastante heterogênea, apresentando, em determinadas cidades e realidades, uma inserção na cadeia de reciclagem mais favorável e justa, ao mesmo tempo em que em outros contextos o trabalho infantil, a precariedade absoluta de trabalho, a desarticulação como coletivo de trabalhadores, a pobreza continuada e o estigma social continuam a ser a marca daqueles que se aventuram nas ruas e nos lixões em busca dos 44


valiosos materiais recicláveis. Dentre outras transformações e avanços, a PNRS estabeleceu novas responsabilidades e papéis para os atores de mercado no contexto da reciclagem. Essas mudanças não se restringem apenas às corporações prestadoras de serviços de limpeza urbana, mas também a todas as empresas que geram materiais que se constituem em resíduos no pós-consumo. Nesse rearranjo de forças, nem sempre o papel das empresas tem se pautado pela efetiva promoção da responsabilidade social empresarial ou da ética nos negócios, apesar dessa ser uma agenda de ação empresarial na sociedade brasileira já há algumas décadas. O segundo capítulo da lei é dedicado a estabelecer definições de conceitos fundamentais na área, que justamente por falta de regulamentação, poderiam ser interpretados de maneiras distintas, conforme fosse mais cômodo, a partir da PNRS ficam formalizadas as definições de: XV - REJEITOS: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada; (PNRS, 2010)

Ao estabelecer a definição de Rejeito acima a PNRS fica então determinado que teoricamente deveria se tentar reaproveitar o máximo possível todo e qualquer resíduo gerado, para que só então seja encaminhado para a destinação final, no entanto, na prática, isso não acontece. O principal motivo do não reaproveitamento são os con45


tratos de concessão dos Aterros e serviços de Limpeza Urbana que preveem o pagamento dos serviços proporcionais às quantidades de resíduos processados. Dessa forma não é interessante economicamente se desvencilhar do montante total de resíduos sólidos e orgânicos que compõe os lixos recolhidos, ao invés de triar e encaminhar cada parcela para reciclagem ou compostagem acabam misturando os dois e assim criando mais rejeito. XVI – RESÍDUOS SÓLIDOS: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível (PNRS, 2010)

A definição de Resíduos Sólidos elucida que tudo o que causaria algum dano ambiental ao ser descartado incorretamente é encarado como tal, e deve ser reincorporado à cadeia produtiva, se possível. Apesar da definição ser bem clara e objetiva, os esforços realizados pelas empresas que gerenciam a coleta porta a porta e a destinação final, para incentivar que cada residência separe os tipos dos seus resíduos é quase nula, ainda mais se compararmos os valores dos contratos firmados com as prefeituras com os gastos com campanhas publicitárias. I – ACORDO SETORIAL: ato de natureza contratual firmado entre o poder público e fabricantes, importadores, distribuidores ou comerciantes, tendo em vista a implantação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida do produto (PNRS, 2010) 46


O Acordo Setorial é a principal ferramenta jurídica para assegurar a criação de um compromisso firmado entre empresas de determinado setor com a finalidade de instalar uma cadeia de logística reversa, bem como metas de não-geração de produtos que não sejam passíveis de serem reaproveitáveis. XVII – RESONSABILIDADE COMPATILHADA PELO CICLO DE VIDA DOS PRODUTOS: conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei (PNRS, 2010)

A PNRS estabeleceu uma responsabilidade compartilhada entre todos os agentes da cadeia produtiva até os consumidores. Na prática, ao responsabilizar todos, o resultado acaba sendo o de não responsabilizar ninguém. Deveria (poderia?) ter sido adotada uma política de extensão da responsabilidade dos produtores. Indaguei a Jaqueline Rutkowski, Engenheira de Produção que coordena o Observatório por uma Reciclagem Inclusiva e Solidária, sobre o tema: Simbolicamente seria necessário você ter a lógica da responsabilidade compartilhada. Apesar de que na prática o sistema só funciona todos os atores fazendo a sua parte, na prática você precisa de todos os atores agindo. Mas é claro quando você tem um responsável se você tivesse colocado toda essa responsabilidade nos produtores por exemplo o foco fica fácil de cobrança e caberia ele, como é na Europa fazer com que os outros atores fizessem também a sua parte, mas hoje você não 47


tem ninguém. O Governo deveria como grande responsável pela política ambiental mas não faz. As empresas produtoras deveriam, mas isso também foi produto de um lobby delas, elas deixaram as coisas dessa maneira exatamente porque elas também elas se preocupam com sua imagem quando a questão do problema das embalagens, por exemplo, todas as vezes que tem essa coisa de limpeza de oceanos aparece lá 4, 5 marcas mundiais que são as campeãs da poluição, elas querem resolver o problema da imagem delas mas elas não querem assumir o custo da solução desse problema integralmente então elas fazem uma propaganda, mas por debaixo dos panos faz lobby para que a lei não impute a elas diretamente. (RUTKOWSKI, 2021)

A lei começa apresentando o ponto estruturante da dança de cadeiras entre os agentes que integram a cadeia produtiva da reciclagem. A partir desse momento todos passam a ser responsabilizados pelo ciclo de vida dos produtos, desde a fabricação do plástico, passando pela indústria que embala, o setor do varejo, até chegar aos consumidores e às empresas que prestam serviços de limpeza urbana e que realizam a destinação final dos resíduos para aterros e/ou cooperativas de reciclagem. As cooperativas vendem os produtos triados para as indústrias recicladoras Apesar de realmente precisar de um esforço conjunto para funcionar, a tentativa de responsabilizar a todos termina por não responsabilizar mesmo ninguém. Na Europa é comum que exista uma Responsabilidade Estendida do Produtor que acrescenta compromissos exclusivos à indústria produtora, sendo, afinal de contas, a mais poderosa e influente em termos de produção, im48


pacto ambiental e patrimônio financeiro. II – ÁREA CONTAMINADA: local onde há contaminação causada pela disposição, regular ou irregular, de quaisquer substâncias ou resíduos; III – ÁREA ORFÃ CONTAMINADA: área contaminada cujos responsáveis pela disposição não sejam identificáveis ou individualizáveis (PNRS, 2010)

Aqui a legislação se mostra interessada em reparar erros históricos para com a gestão inadequada dos Resíduos Domiciliares Urbanos (RSU), com a tentativa de tratar as terras contaminadas ao longo de muitas décadas. A mentalidade da praticidade de não ter que lavar e poder jogar fora (do campo de visão) criou também a ilusão de que não existem consequências para o descarte constante. Com o simples ato de separar, ou triar, como se diz no meio de gestão de resíduos, cada um em sua casa o que produz seria possível remanejar o fluxo constante que é enviado sem separação para os lixões, aterros controlados e sanitários. V – COLETA SELETIVA: coleta de resíduos sólidos previamente segregados conforme sua constituição ou composição (PNRS, 2010)

A legislação estipulou metas para o encerramento de todos os lixões do país, as datas, no entanto, foram constantemente sendo postergadas. O texto da lei estipula que é recomendado que as prefeituras contratem cooperativas de reciclagem para realizar a coleta seletiva porta a porta, mas não impôs medidas

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administrativas que obriguem alguma cidade a fazer isso, conversei com a Jaqueline Rutkowski a respeito da dificuldade de acabar com a destinação final inadequada e contratar associações de catadores para realizarem a coleta seletiva:

Na verdade o Ministério Publico tentou assegurar a aplicação da PNRS mas infelizmente só no tocante aos Lixões, se você pesquisar você vai ver que foram assinados uma série de Termos de Ajuste Conjunto de Conduta (TAC) no Ministério Público com vários municípios onde ainda existe um Lixão imputando ao prefeito a solução desse problema e isso de alguma forma fez com que alguns municípios começassem a mudar sua lógica. Agora é como eu penso, sabe nós temos um problema hoje eu acho grave de governança mesmo a forma como os nossos governos se organizam e a forma como a sociedade se exime de fiscalizar e de cobrar dos nossos políticos, sabe é uma coisa até angustiante porque a imprensa não ajuda né essa questão do Lixão, por exemplo, ela ficou em foco porque na época imprensa deu muito foco nessa coisa dos fins dos lixões, dos fins dos lixões e não foi capaz de verificar que obrigaria uma mudança total da forma como a gestão de resíduos deveria ser organizada e até hoje nem a imprensa nem a sociedade falam muito nisso. Mas de fato o poder econômico dessas empresas é muito grande, na hora “H” elas acabam emplacando a lógica delas, porque a gente sabe, há uma enorme uma corrupção na forma como as nossas eleições são feitas. A história do lixo é muito boa porque é um lugar bom para sumir dinheiro. Imagina você paga um contrato milionário por tonelada coletada, mas nenhum município tem balança de caminhão, então é tudo estimado, pensa no furo que é isso entendeu? Só os grandes municípios tem balança, e minimamente fiscalizam, então é um lugar fácil de fazer um caixa dois e sustentar um caixa dois dessa nossa po50


liticagem, mas eu concordo com você caminhos tem para gente tentar emplacar essa questão da contratação das cooperativas por exemplo ela não é exatamente obrigatória então o MP não pode obrigar o governo a prefeitura a contratar, a PNRS disse que é prioritário tá a lei permite contratar sem licitação que é uma facilidade e fala que prioritariamente a coleta seletiva deve ser feita com os catadores mas não obriga né então o ministério público, o que que a gente faz a gente é tentar mobilizar a sociedade via os fóruns municipais Lixo e Cidadania para ficar obrigando, tentar obrigar as prefeituras a contratar os catadores fazer a coleta seletiva com a participação deles. (RUTKOWSKI, 2021)

A discussão acerca dos problemas causados pelos nossos hábitos de consumo fica quase sempre restrita a especialistas da área de gestão de resíduos e não atinge a maioria das pessoas, que continuam alienadas de suas responsabilidades enquanto consumidoras e poluidoras, um importante passo para mudar o cenário atual reside na definição a seguir:

IV – CICLO DE VIDA DO PRODUTO: série de etapas que envolvem o desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos, o processo produtivo, o consumo e a disposição final (PNRS 2010)

Tal como os animais tem seus ciclos de vida, os produtos que a humanidade cria, também. Eles não evaporam como a maioria da população parece acreditar e dependem de uma bem estruturada cadeia logística para chegar às prateleiras dos supermercados. Vulgarizar seu ciclo de vida é estratégia indispensável para campanhas que busquem alterar a mentalidade dos consumidores. 51


Essa é a composição do lixo do brasileiro conforme levantou o Panorama ABREPE 2020, uma pesquisa anual realizada

Figura 8 - Gravimetria da composição dos RSU no Brasil em 2019

pela Associação de Empresas de Limpeza Urbana. A partir dela é possível potencializar o reaproveitamento de tudo que comumente vai parar no mesmo saco. Se não forem triados os resíduos vão se misturar e como consequência não será mais possível reaproveitar absolutamente nada, esse saco será levado até um lixão ou aterro sanitário e, ao se decompor, emitirá gases de efeito estufa. VII – DESTINAÇÃO FINAL AMBIENTALMENTE ADEQUADA: destinação de resíduos que inclui a reutilização, a reciclagem, a compostagem, a recuperação e o aproveitamento (PNRS, 2010)

O conceito de destinação final ambientalmente adequada é um dos pontos chaves para entendermos a grande mudança

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que a legislação traz. Define que todos os resíduos que são passíveis de serem reaproveitados devem ser encaminhados para a compostagem e reciclagem e apenas os rejeitos, que então não são passíveis de serem reaproveitados, é que devem ser encaminhados para aterros. No entanto percebemos que, na prática, como os contratos de concessão de prestação de serviços de Limpeza Urbana não alteraram seus mecanismos de remuneração que pagam as empresas de acordo com o peso dos resíduos processados, a composição do que é descartado na Gravimetria acima demonstra que quase a metade é matéria orgânica, que deveria ser reaproveitada, mas que pesa positivamente na balança das concessionárias. Durante a entrevista com a Jaqueline perguntei a ela a respeito dos problemas que as soluções generalizantes acarretam na administração pública: Eu acho que hoje para nós no Brasil o aterro ainda é uma boa solução, o Aterro Sanitário deixou de ser uma boa solução na Europa, mas ainda é uma boa solução por uma questão de território, a Europa não tem espaço físico, nós temos, o Canadá tem, Austrália tem, os Estados Unidos tem, aonde tem terra o Aterro ainda é a solução mais barata e muito eficiente. Só que pra você criar o Aterro Sanitário você precisa trabalhar com grandes volumes, até para ele ser economicamente viável, então ele não é uma solução para um pequeno município, ele é uma solução para consórcios de município, então eu não o vejo tecnicamente como um problema.

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O nosso problema é como nós aqui no Brasil acabamos aplicando essa solução, porque primeiramente por muitos anos a gente quis que cada município tivesse o seu aterro isso não é possível, nós teremos que trabalhar com consórcios de municípios para tratar esse lixo conjuntamente e isso tem sido politicamente muito difícil no Brasil. Eu acho que nós temos um características dos nossos políticos que são péssimos gestores, 99% deles não estão preocupados em resolver os problemas públicos estão preocupados com poder. Então isso dificulta muito que as soluções técnicas mais eficientes. De fato hoje essas empresas têm um poder imenso, hoje elas dominam para você ter uma ideia na área de Resíduos Sólidos do Ministério do Meio Ambiente, a Associação Brasileira de Empresa de Limpeza Públicas a ABRELPE foi quem elaborou o Plano Nacional de Resíduos Sólidos a partir do seu olhar, e dos seus interesses e agora, por exemplo, começa a fomentar a discussão dos incineradores de lixo que num momento em que a Europa está acabando com eles, por serem um grande vilão ao meio ambiente, mas empresas como a ABRELPE acham que poderiam obter o filão econômico. Então eu acho que assim o problema é sério é grave uma das formas de tentar quebrar essa lógica é exatamente a reciclagem porque a reciclagem é uma solução ambientalmente muito boa e tem se mostrado como como uma das bases da economia circular que é um conceito que tem sido crescentemente abraçado, até mesmo pelo status quo da economia tradicional. A reciclagem quebra também esse monopólio e traz outros atores aí para essa discussão então acho que não é uma coisa tão simples questionar os aterros é na verdade a gente fazer a discussão ambiental associada a questão da gestão de resíduos saber que pode mudar essa situação. (RUTKOWSKI, 2021)

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A PNRS estabeleceu outras responsabilidades para o setor de gestão de resíduos, deixou de ser exclusivamente uma operação logística que poderia ser realizada por grandes empresas sem maiores preocupações e passou a ser encarada como ferramenta de empoderamento e transformação social e econômica, conforme descrito nas definições a seguir: “X – GERENCIAMENTO DE RESÍDUOS SÓLIDOS: conjunto de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com plano de gerenciamento de resíduos sólidos, exigidos na forma desta Lei; XI – GESTÃO INTEGRADA DE RESÍDUOS SÓLIDOS: conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável;”(PNRS, 2010)

Nessas definições podemos ver a nova organização institucional pensada para o gerenciamento dos RSU, incluindo a necessidade de criar legislações municipais que possam dar conta de coordenar os agentes locais. XII – LOGÍSTICA REVERSA: instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada (PNRS, 2010)

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O conceito de Logística Reversa é um dos que mais atrasou a aprovação do texto da lei, uma vez que estabelece que todo o setor empresarial é responsabilizado a criar, a partir de acordos setoriais, cadeias logísticas que permitam a reinserção produtiva dos produtos até então descartados em aterros e lixões. XIV - RECICLAGEM: processo de transformação dos resíduos sólidos que envolve a alteração de suas propriedades físicas, físico-químicas ou biológicas, com vistas à transformação em insumos ou novos produtos;” (PNRS, 2010)

A reciclagem é definida como o processo de ressignificação de algo sem valor, o que foi descartado em produto economicamente explorável, sendo assim vetor da reinserção produtiva desses materiais. No seu 6º Artigo a lei dispõe sobre os princípios adotados, sendo os mais relevantes: III – VISÃO SISTÊMICA, na gestão dos resíduos sólidos, que considere as variáveis ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública; VIII – O RECONHECIMENTO do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania (PNRS, 2010)

Nos dois princípios podemos perceber a necessidade da existência de uma forte articulação entre várias secretarias nas prefeituras, bem como o diálogo frequente com as esferas estaduais e federais. Aqui a gestão dos resíduos sólidos é um serviço que pode ser encarado como mecanismo de reinserção social, 56


gerador de renda, um empreendimento solidário. No Artigo 7º são listados os objetivos: “II – NÃO GERAÇÃO, REDUÇÃO, REUTILIZAÇÃO, RECICLAGEM e tratamento dos resíduos sólidos, DISPOSIÇÃO FINAL AMBIENTALMENTE ADEQUADA DOS RESÍDUOS;”(PNRS, 2010)

A ordem das palavras representa a importância em termos de evitar a catástrofe ambiental iminente. A primeira: NÃO GERAÇÃO, impacta interesses econômicos tão poderosos que se empenharam em convencer a todos de que a reciclagem, sozinha, seria capaz de dar conta do ritmo de produção atual, além de lidar com tudo que já foi produzido até hoje. As indústrias tem que parar de produzir produtos do zero, assim como produtos de vida única, que não são passíveis de serem reaproveitados. Nesse sentido nada foi feito. A gente vê a Política Nacional de Resíduos Sólidos que tá há mais de 10 anos em vigor ela obriga os municípios a mudar gestão de resíduos e realizar a coleta seletiva ou seja retirar tudo não é rejeito do Aterro, a coleta seletiva deveria ser feita para tirar tanto o orgânico quanto tirar todos os recicláveis para que não acabem nos Aterros. Então você tá correto as empresas não têm, as empresas que não têm o menor interesse porque elas são pagas por tonelada coletada então quanto mais lixo se produzir melhor, ou seja, elas também não tem nenhum interesse em respeitar a hierarquia que tá na nossa lei que prevê como primeira ação reduzir a produção. Elas não têm nenhum interesse em reduzir muito menos em reutilizar e reciclar, elas agem ao contrário das recomendações. No meu ponto de vista caberia aos gestores e a sociedade também cobrar que esses contratos fossem diferentes e a gente se envolve muito pouco nisso também. (RUTKOWSKI,2021)

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A legislação prevê uma série de instrumentos econômicos que viabilizariam a reestruturação da cadeia produtiva da reciclagem: “CAPÍTULO V DOS INSTRUMENTOS ECONÔMICOS Art. 42. O poder público poderá instituir medidas indutoras e linhas de financiamento para atender, prioritariamente, às iniciativas de: I - prevenção e redução da geração de resíduos sólidos no processo produtivo; III - implantação de infraestrutura física e aquisição de equipamentos para cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda; IV - desenvolvimento de projetos de gestão dos resíduos sólidos de caráter intermunicipal ou, nos termos do inciso I do caput do art. 11, regional; V - estruturação de sistemas de coleta seletiva e de logística reversa; Art. 43. No fomento ou na concessão de incentivos creditícios destinados a atender diretrizes desta Lei, as instituições oficiais de crédito podem estabelecer critérios diferenciados de acesso dos beneficiários aos créditos do Sistema Financeiro Nacional para investimentos produtivos.” (PNRS, 2010)

Indaguei a Jaqueline a respeito dos instrumentos econômicos, de como eles funcionam na prática: “É uma falta de política de fomento da recicla-

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gem. Hoje nós não temos nem do poder nem tributário nem de organização da cadeia produtiva, por que a própria empresa recicladora, representada pelo o CEMPRE que ainda em 2000 por aí já afirmou que 90% do material que chega na indústria para ser reciclado passa pela mão dos catadores e o trabalho dos catadores, a forma como eles se organizam é muito barata, infinitamente mais barata do que o processo realizado pela central mecanizada de triagem. Essa central que tem aí em São Paulo ela pagaria se não me engano a organização de uns vinte galpões de catadores, você imagina você estaria dando emprego aí para quase 500 pessoas de uma forma muito mais barata pro município e muito mais eficiente, então a própria indústria recicladora deveria apoiar a organização dos catadores porque faria chegar na mão dela material reciclável mais barato tá, porque não temos mais nenhuma política de fomento a reciclagem e é por isso que eu te falo o que a gente precisa enxergar a questão ambiental associada à gestão de resíduos, para a gente fazer isso pega o exemplo da Europa que chegou na lógica de estabelecer grandes metas de reciclagem. Hoje está muito claro para eles que não tem sentido você continuar impactando a terra tirando recursos e simplesmente enterrar recursos naturais e jogar fora, que você tem um problema de gases de efeito estufa associado a Gestão de Resíduos que precisa ser tratada. Então hoje a Europa se agarra a economia circular como uma solução dos problemas ambientais e nós ao contrário, continuamos ignorando a questão ambiental solenemente, é só ver maravilhoso Ministro de Meio Ambiente, e como sociedade sabe que não é só uma questão de governo, o cara tá aí há dois anos e meio todo mundo fala mal dele e nada acontece, é uma coisa maluca. Agora é para mim a questão tributária a parte talvez mais visível do problema, é lógico se você tivesse uma política para fomentar reciclagem um dos itens necessariamente é a questão tributária, agora eu quero alertar também que tem um outro player aí nessa brincadeira que também é muito poderoso mais poderoso ainda que eu as empresas da gestão de resíduos que é a 59


indústria petrolífera o plástico que é o grande material descartado, é uma parte considerável do material reciclável, então também não interessa essa indústria simplesmente reciclar 100%, tem que fomentar mas nem tanto, é muita coisa em jogo. (RUTKOWSKI,2021)

O texto da lei apesar de ser muito bom na teoria não conseguiu ser incorporado na prática, muito dessa dificuldade se agravou com a mudança de orientação política que ocorreu no Golpe que a ex-Presidenta Dilma Rousseff (PT) sofreu em 2016. De lá pra cá as prioridades foram invertidas e os setores empresariais voltaram a ser priorizados em detrimento da organização de catadores. Assim os instrumentos descritos no capítulo III foram paulatinamente descontinuados: III - a coleta seletiva, os sistemas de logística reversa e outras ferramentas relacionadas à implementação da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; IV - o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis; IX - os incentivos fiscais, financeiros e creditícios;” (PNRS, 2010)

Com a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018, foi dada continuidade ao desmonte iniciado por Michel Temer (MDB), dessa forma toda a estrutura institucional construída a partir da publicação da PNRS em 2010, da Comissão Interministerial pela Inclusão Social dos Catadores criada como consequência, bem como todas verbas federais destinadas à criação de novas cooperativas de reciclagem representadas pelo programa CATAFORTE foram encerradas. Assim como a responsa60


bilidade que deveria recair sobre as grandes geradoras, sobre os municípios que ainda encaminham seus resíduos para lixões e aterros controlados foram também sendo afrouxadas. Hoje não existe nada, esses projetos CATAFORTE enquanto existia a Secretaria Nacional de Economia Solidária foram sendo construídas políticas públicas que beneficiavam toda economia solidária, os catadores inclusive, os catadores eram incluídos exatamente pela pujança que tinha a atuação deles. Por isso conseguiram projetos específicos muito bons esses programas como o CATAFORTE deram um impulso enorme por que por que ofereciam recursos para que as pessoas pudessem, as militantes todos aí que eu citei pudesse ter formas de trabalhar e fazer essa capacitação, e tinha recursos para que os municípios via PNRS no Ministério das Cidades extinto Ministério das Cidades e na Funasa os municípios poderiam fazer convênios com o governo para construir os galpões, e aí comprar equipamentos, e aí uma vez os catadores organizados em cooperativas eles podiam ir trabalhar nesses galpões. Hoje não existe nenhuma política pública de fomento a isso, nenhuma. Então na verdade hoje o Movimento Nacional dos Catadores eles estão tentando negociar dentro da lógica da Política de Logística Reversa com as empresas que são obrigadas a fazer logística reversa alguma forma de obter recurso para continuar esse apoio de organização dos catadores porque hoje não existe mais lugar nenhum, pra nenhuma prefeitura angariar recursos. Algumas prefeituras que conseguem ter uma visão um pouco mais decente acabam tentando ajudar via as políticas de assistência social, sabe porque os catadores hoje eles estão na categoria legalmente considerada vulnerável, então você consegue por exemplo acessar algumas políticas sociais para tentar capacitá-los colocar nos programas de capacitação de mão de obra e aí com isso consegue um pouco tentar organizar as cooperativas, mas hoje a situação eu tenho de dizer que é drástica o que a gente tá vendo é exatamente as empresas de Limpeza Pública fazendo uma ofensiva para que, para organizar centrais mecanizadas de triagem como tem são Paulo então para tentar retirar aquilo que for aproveitável mais valioso do lixo, e o resto incinerar, ou seja, eles estão com uma política para exterminar os catadores mesmo. (RUTKOWSKI,2021)

As empresas de construção civil que descobriram o potencial econômico da área de gestão de resíduos tiveram a grande sacada de criar uma estrutura institucional que garantisse a sua longevidade no setor. Para isso criaram associações de empresas da área que, por meio de financiamentos de campanhas 61


políticas, se embrenharam na administração pública. Para além dos vínculos econômicos, essas associações de empresas do setor, criaram departamentos próprios de pesquisa científica que estariam constantemente mobilizados para buscar melhorias técnicas que pudessem aprimorar a operação logística e como consequência aumentar a produtividade, os seus próprios lucros, a PNRS estipula como instrumento: VI - a cooperação técnica e financeira entre os setores público e privado para o desenvolvimento de pesquisas de novos produtos, métodos, processos e tecnologias de gestão, reciclagem, reutilização, tratamento de resíduos e disposição final ambientalmente adequada de rejeitos; VII - a pesquisa científica e tecnológica;

No entanto é dado de antemão a quem beneficiará tais pesquisas, mas não é mera coincidência que o próprio texto da legislação atue em favor das associações de empresas, afinal de contas a própria Política Nacional foi elaborada em parceria com as mesmas associações. Como o governo federal não dispõe de verba o suficiente para elaborar pesquisas nacionais que possam avaliar o setor, ele fica dependente do conteúdo levantado pelas empresas, se configurando assim um ciclo vicioso de influências que parece quase impossível de ser quebrado.

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CAPÍTULO 4

CONSIDERAÇÕES FINAIS Dez anos depois da publicação da PNRS, no ano de 2020, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, na gestão do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, é realizada a 1ª consulta pública revisando o texto da lei. O Planares é um documento que faz um panorama da situação atual e da evolução do setor de gestão de resíduos no Brasil. O documento estipula novos aportes financeiros e prevê novos e mais largos prazos. A contadora Rejane Paredes, do Fórum Lixo e Cidadania do Paraná, com quem conversei sobre o assunto explicou a mudança de prioridades que o Planares representou: “O Planares, não foge à regra. O plano foi construído pela ABRELPE, associação de empresas privadas, sem a participação social, com recorte nitidamente privatista, e apostando na queima dos resíduos. As audiências públicas realizadas regionalmente pelo Ministério do Meio

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Ambiente, como resposta a uma cobrança da sociedade organizada, foram eventos pré-forma. A própria estrutura do evento, realizado em plena pandemia, impedia a participação efetiva. Além disso, após quase um ano, o PLANARES ainda não foi publicado em sua versão final.” (PAREDES, 2021)

Apesar de a PNRS ter inserido formalmente uma grande massa de trabalhadores que operavam na completa informalidade, não foi dado tempo suficiente para que se estruturassem auxílios duradouros, sejam eles creditícios ou educacionais, no sentido de capacitar os catadores para que eles sejam capazes de fundar e, mais importante de tudo, manter funcionando uma cooperativa ou associação. Segundo dados do levantamento do IPEA no livro Situação Social dos Catadores de Materiais Recicláveis no Brasil, apenas 10% dos catadores brasileiros se encontram organizados. Pode parecer pouco, mas essa porcentagem representa uma dedicação hercúlea dos movimentos sociais da sociedade civil, sem os quais essa porcentagem nunca teria sido alcançada. Vale sempre ressaltar que a parcela da população que encontra na catação o seu sustento é sempre a mais vulnerável socialmente, uma vez que é a última opção para a sobrevivência, para não morrer de fome, catar comida nos sacos de lixo e encontrar também, comumente misturados no mesmo saco, os RSU. Uma cooperativa do ponto de vista jurídico é uma empresa como qualquer outra e demanda que seus administradores estejam aptos a lidar com toda burocracia costumeira. De acordo com a pesquisa Demografia das Empresas, lançada pelo IBGE 64


em 2014, que analisa todas as empresas do país, de cada 10 empresas, 6 fecham antes de completarem 5 anos de funcionamento, isso sem o recorte específico da população vulnerável, ou seja, mesmo as empresas formadas por pessoas que investiram capital e completaram o ensino superior não conseguem sobreviver no mercado brasileiro. Assim cada cooperativa que continua existindo é um símbolo de resistência, é um marco de afirmação, de emancipação, mas ao mesmo tempo, na maioria das vezes, acaba se tornando um passivo tributário e o que começou com o investimento publico em 2011, com a doação de equipamentos e reformas de galpões se tornou uma bola de neve burocrática que hoje, num cenário de completo desmonte das ferramentas de auxílio do estado, acaba por cobrar, com juros, tudo que foi conquistado. Os maquinários doados pelos programas governamentais do passado são vendidos para estancar o passivo que hoje só cresce. 76, 38 milhões de brasileiros estão atualmente desempregados no Brasil segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem em Domicílios a PNAD, e 19 milhões de brasileiros passam fome todos os dias no país, segundo dados de 2020 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Em comparação com 2018 (10,3 milhões) revela que são 9 milhões de pessoas a mais nessa condição. No atual cenário de crise generalizada da economia, no qual empresas não conseguem se manter por falta de auxílio dos governos municipais, estaduais e federais, por falta da correta coordenação da pandemia do novo Coronavírus, sem qualquer outra alternativa, muitas das famílias que perderam sua princi65


pal fonte de renda acabam nas ruas das metrópoles brasileiras. Neste contexto a população em situação de rua cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros em março de 2020. Sem qualquer perspectiva de mudança da postura do estado que caminha para privatizações generalizadas e cortes de investimento, é preciso achar outros caminhos para sair da crise. A sociedade civil precisa abandonar sua atitude passiva e ausente na discussão dos RSU que todos geramos diariamente. Já passou da hora de cobrarmos, não a invenção de novas ferramentas mirabolantes, mas, a simples aplicação da PNRS. Está evidente que as grandes empresas produtoras não serão coagidas pelo poder público a criar novas cadeias de logística reversa, ou a priorizar o reaproveitamento de insumos versus a produção do zero com matéria prima bruta. A mobilização terá de vir da sociedade civil, afinal de contas somos nós que consumimos, que todas as semanas selecionamos quais produtos levar pra casa das prateleiras dos supermercados. São os consumidores que optam por triar as embalagens ou por colocar tudo no mesmo saco, com um pouco de tempo e curiosidade é possível descobrir se existe uma cooperativa perto de você ou algum catador disposto a retirar seus resíduos na porta da sua casa.12 12 Lançado em 2017, o Cataki é o aplicativo que faz a conexão direta entre o gerador de resíduos e o catador de materiais recicláveis, uma iniciativa do movimento Pimp My Carroça e que conta com o apoio da Nestlé para expandir a atuação, aumentar a renda dos catadores e os índices de reciclagem no Brasil. Em 2019, eram 355 municípios atingidos. Em 2020, esse número saltou para 1088. E agora, até o fim de 2021, 66


A mídia e a sociedade civil podem pressionar as grandes corporações, mas são as empresas que poderão ser o vetor da mudança em termos de capacitação e investimento direto nas cooperativas e associações de catadores. Em São Paulo a cooperativa Vira-Lata do bairro da Vila Sônia estabeleceu um contrato com três grandes empresas para integrar uma cadeia produtiva de ciclo fechado que coleta, tria e reinsere os produtos nas cadeias produtivas, formando assim uma cadeia de logística reversa. A cooperativa (Vira-Lata) coleta sucata de ferro nas oficinas da Porto Seguro e comercializa o material com a Gerdau. Também realiza a coleta de embalagens de vidro dos produtos da Empresa Diageo, reecaminhando-os para empresas recicladoras para a produção de novas garrafas reutilizadas pela própria empresa. (DEMAJOROVIC et al, 2014)

Em 2014 a Gerdau já comprava toda a sucata ferrosa que a cooperativa recebia, incluindo as latas coletadas nos condomínios e postos de coleta seletiva dos supermercados. Rapidamente esta parceria representou um grande aumento do volume de sucata processada pela cooperativa e gerou um aumento substancial da receita com a venda desse material. Dados do Projeto Vira-Lata mostram que, em 2005, o volume de sucata coletado a meta é chegar a 1.500 municípios. Já são 299 mil downloads, com uma média de 754 chamados mensais. Os maiores volumes de cadastrados estão nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Curitiba, Brasília, Campinas, Belém e Porto Alegre. 67


foi de uma tonelada e a receita de R$ 837,00. Em 2007, o volume cresceu para mais de 80 toneladas e a receita superou R$ 29.000,00. Os bons resultados alcançados foram incrementados com a entrada da Porto Seguro neste fluxo em 2008. A partir de um projeto de coleta seletiva de material de escritório doado à Vira-Lata, a empresa passou a se concentrar no destino da sucata ferrosa de suas 180 oficinas em São Paulo conveniadas e mais 35 operadas diretamente. Até aquele momento, as oficinas tinham autonomia para vender materiais como para-lamas, amortecedores e portas de automóveis, muito valorizados no mercado secundário. A Porto Seguro temia que as peças pudessem ter como destinação final o mercado clandestino de peças de automóvel. A busca por uma solução deste problema, condizente com sua política de responsabilidade socioambiental, era travada pelo desconhecimento da empresa sobre o mercado dos recicláveis. Nesse contexto, a Vira-Lata foi fundamental, pois serviu como elo entre as duas empresas que enxergaram oportunidades até então desconhecidas. Se para a Porto Seguro, a presença da Gerdau era a garantia de uma destinação adequada e segura da sucata gerada nas oficinas, para a Gerdau era a certeza de receber um material de alto valor agregado em grande quantidade para sua produção de aço. O problema era que as empresas não tinham estrutura para fazer a coleta e não se interessavam em montar uma logística específica para viabilizar as atividades

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de transporte e separação do material. O Projeto Vira-Lata viabilizou este fluxo reverso ao garantir o transporte, a separação e o armazenamento do material. (DEMAJOROVIC et al, 2014)

A parceria direta entre grandes produtores (de embalagens, de alimentos, de carros etc.), grandes geradores (shoppings, supermercados, condomínios, comerciantes etc.) que tem a obrigação legal de reinserir seus produtos nas cadeias de pós-consumo, e as cooperativas e associações de catadores, é um começo promissor para a solução dos problemas de ambas as partes. Os resíduos de alto valor agregado, gerados pelas empresas e doados à cooperativa, são vendidos diretamente à indústria, eliminando os intermediários e elevando a receita dessas organizações, tornando a distribuição do valor gerado na cadeia de reciclagem mais justa. Corta-se assim os intermediários que compram diretamente de várias cooperativas por um valor reduzido e revendem para as indústrias recicladoras com uma alta margem de lucro. A cultura de parcerias dessa natureza ainda não está estabelecida no Brasil. As grandes empresas continuam travadas nos altos valores de elas próprias criarem seus sistemas de coleta e triagem que possam estabelecer as necessárias cadeias de logística reversa. A solução é mais simples do que parece: é preciso aprender com os catadores, assim como os catadores tem que aprender com a organização institucional das empresas. Esse intercâmbio de experiências é o que pode assegurar 69


que o elo mais fraco da cadeia da reciclagem, as cooperativas e associações de catadores, possa se expandir. A estimativa do MNCR é que existam cerca de 800 mil catadores catadoras em atividade no país, a maior parte dos catadores são do gênero feminino, cerca de 70% da categoria. As catadoras são responsáveis pela coleta de 90% de tudo que é reciclado hoje no Brasil. Há diversas estimativas de catadoras que variam entre 300 mil a 1 milhão de pessoas sobrevivendo da coleta de materiais recicláveis em 2019. Em 2020 foi registrado um aumento significativo de coleta seletiva na cidade de São Paulo. Com relação ao ano de 2019 o aumento foi de 17,4%, de acordo com os dados da prefeitura. Estima-se que o expressivo aumento na coleta de recicláveis, no entanto, pode estar associada à pandemia.

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