Revista Varal do Brasil - ed 30 julho de 2014

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Varal do Brasil

Ela me dizia, com um sentimento tão trágico quanto uma heroína martirizada comparável a Princesa Diana, que queria a confissão das minhas traições. Não tinha por que, era exaustivo e o dia estava acabando. Tantos motivos para a inutilidade daquilo. Aquela mulher doce, xingando sem nenhum constrangimento, se entregava aquela inquisição de corpo e alma, e eu querendo me livrar para jantar. Não fiz esforço para esconder isso e fui considerado um cara ainda menos confiável. Não sei como as crises anteriores se resolveram. Eu faço mágica, suponho. Tudo que ela queria era me ouvir essa confissão como se fosse o ultimo helicóptero de Saigon. Confissão. A palavra em si é ridícula, a ideia inútil. Desde quando confissão e verdade são a mesma coisa? Sempre achei injusto uma confissão ser tida como prova em tribunais. Tem tantos tipos diferentes de mentira, porque não há de ter tantos tipos diferentes de verdade? Escolhi a postura de ficar quieto. Nem se eu quisesse teria dito. Tudo que era verdade, quando dito para as mulheres que estive, parecia transparentemente falso. Quanto mais eu me esforçava para ser sincero, pior tudo ficava. Acabei me dando por vencido. Então, entre assumir ser um sacana infiel ou deixar tudo na eterna dúvida, tentei ao menos cooperar com minha imagem pública e não dizer nada. Alguma verdade há nisso, não há? “Eu só estava trabalhando nos projetos” disse. Elabore isso! Não, não. Só mentiras tem detalhes. Limitei-me a falar com tamanha solidez, como se a frase se encontrasse no Velho Testamento. Foram três horas mais ou menos ininterruptas de monologo nada amistoso, onde ela, com a empolgação, me informava todas as minhas falhas de caráter. Uma formulação precoce (e não necessariamente errada) atrás da outra, para em seguida me torturar com cada suspiro envolto de lagrimas. Volta e meia eu me pegava olhando para o pulso, mas havia deixado o relógio para arrumar. “Querida, tem algo que posso fazer por você?” Um silencio agora seria maravilhoso. Mas não. Ela reviveu cada ponto do relacionamento. Caçou todas as bruxas que pode. Moldou a história como uma faca que é minuciosamente afiada. Fez tudo que pode para não aceitar o fato de que coisas ruins acontecem. “Com o dedo de alguém, claro” respondia ela. Ironia não lhe servia bem, sugeri voltarmos para a apatia e o gelo. Dai em diante só restou-me

fazer de surdo enquanto ela gritava a sua calma. E de cego enquanto ela chorava a sua força. Ela queria me magoar de todos os jeitos, inclusive com o sentimento de superioridade que ainda não tinha. Nunca vi uma mulher com uma opinião mais equivocada sobre tudo. Quanta sensibilidade a flor da pele. Porque diabos mulheres tem tanta necessidade de serem sensíveis? Continuava sentado de frente para ela, como um monumento, uma estátua. Não respondia. Deixei tudo eternamente no ar, tal qual dita Miranda Warning. Será ele culpado ou inocente? Mantive a minha postura com firmeza e calma. Olhava para a minha taça de vinho. O vinho parecia mais negro que de costume. De repente, a taça se espatifou na parede. Meu coração foi a mil. Não que a situação de uma taça se espatifando por uma mulher magoada fosse inédita para mim. Ela não foi a primeira. Muito menos original. Continuou a destruir todos os copos, taças e xícaras da casa. Peças vindos de viagens nupciais, quadros comprados em momentos de felicidade extrema, até a jarra finíssima, presente de casamento, guardada desde o tempo das Cruzadas, se espatifou no tapete, sobre o qual eu mesmo já me arrastara com outras mulheres. Mas confesso que cheguei a pensar em tirar a faca do bolo de cima da mesa. Porém, esse excesso de silêncio produziu resultados muito mais nefastos do que se tivesse admitido. Se tivesse dito a verdade, pensei, não sei até que ponto nada daquilo teria acontecido. Creio que acabaria tudo igual, mas agora seria ela quem daria as cartas. Eu só seria o ser sensacional e nobre (para não dizer burro e vulnerável) com a verdade da traição. Ela não estava errada. Mas estar certo não vale de nada se você não puder defender sua opinião. Por fim, persisti na minha maldade e foi isso. Fui mais cruel do que precisava e do que pretendia ser, como resultado imposto por aquela afronta não tão injusta. Mazel Tov. Ela foi dormir soluçando no quarto e eu dormi calmamente no sofá, em meio à prataria quebrada como um campo de guerra, que, aliás, fiz questão de não recolher, ela cuidaria disso, se não se suicidasse ou me matasse durante a noite. Ou se o apartamento não pegasse fogo e terminasse em cinzas. Manhã seguinte, advogados contratados, amigos repartidos. E foi tudo.

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