Relações Entremuros

relações

EN TR E

MUROS

ana cecília ferraz | ensaio teórico | 2018

relações ENTREMUROS o impacto das cidades fragmentadas na dinâmica da vida pública brasileira a partir dos anos 80

Ana Cecília Oliveira Ferraz orientadora | Carolina Pescatori

Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Ensaio Teórico 2018

Ferraz, Ana Cecília Oliveira

Relações Entremuros: o Impacto das Cidades Fragmentadas na Dinâmica da Vida Pública Brasileira a partir dos anos 80.

Ensaio Teórico. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília: Brasília, 2018.

85 pgs.

E

nsaio Teórico apresentado ao departamento de Teoria e História da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de Brasília (FAU-UnB) para submissão à banca avaliadora como parte da conclusão do curso e obtenção de outorga de grau como arquiteta e urbanista.

“Se o urbanismo se responsabiliza pelo tratamento da cidade, responde pela vida e pela sobrevivĂŞncia do homem.â€?

Robert Auzelle

Resumo

E

ste trabalho aborda as cidades fragmentadas e dispersas; a reprodução de modelos de moradia horizontais e que fragmentam o tecido urbano; e a morfologia dos espaços públicos.

Pretende-se compreender os efeitos da inserção de barreiras físicas e opacas nas cidades e seus impactos sociais, subjetivos, afetivos, inter-relacionais, de orientabilidade e de pertencimento, partindo do entendimento que a vida pública é responsável por formar cidadania e é o local do exercício democrático. A partir de um contexto histórico-social-econômico da dispersão urbana e a relação dos condomínios horizontais com esse processo de expansão, parte-se para uma análise crítica dos motivos das moradias segregadas, que se materializam nos muros e afetam o direito à cidade. Essa barreira é a expressão de aspectos relativos à propriedade, à segurança, ao medo, à discriminação e ao individualismo e, como objeto já inserido na identidade urbana brasileira, é de extrema importância para compreensão da dinâmica das cidades e, então, também de seus cidadãos. O foco do trabalho é nos espaços públicos, que atualmente estão comprometidos em sua essência devido aos diversos interesses individuais que atuam sobre o tecido urbano, afetando os imaginários coletivos da cidade e sua diversidade e performance como as conhecemos.

P

alavras-chave: muros, segregação, espaços públicos, dispersão urbana, condomínios.

introdução capítulo 1 | a segregação na cidade contemporânea

1.1 | o panorama histórico-social-econômico 1.2 | a questão dos condomínios 1.3 | o sistema empresarial e as parcerias público-privadas

capítulo 2 | a urbanização brasileira e a fragmentação do espaço urbano

2.1 | dispersão urbana e condominialização 2.2 | A incorporação dos muros no modelo

capítulo 3 | espaços públicos tradicionais

3.1 | elementos de percepção do espaço público

3.2 | heterogeneidade, política e espaço público

3.3 | o resultado da fragmentação da cidade no espaço públic capítulo 4 | conclusão bibliografia

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Photo by Tania Malréchauffé on Unsplash. Domínio público. Edição autoral

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| Introdução

A vida afeta todos os corpos. No entremeio da vida, tem-se o lançamento do corpo no mundo, sujeito a todas as intempéries e combinações de acontecimentos no meio nos quais o corpo se insere. A cidade é a cena, mas os agentes são os cidadãos.

O sentido de participação e as sensações de afeto e pertencimento geradas pela inserção na vida urbana tendem a induzir um efeito de cuidado para com a cidade. O tecido urbano fragmentado - efeito observado a partir do fracionamento da livre circulação dentro da cidade por barreiras físicas e um modelo de ocupação extenso que gera espaços menos adensados - dissolve a relação do corpo com o espaço, gerando lacunas residuais de fluxo (e não mais de permanência), alterando a vida pública e, consequentemente, os cidadãos que nela vivem. Lançar-se no mundo e participar ativamente da vida pública urbana é reconhecer-se enquanto cidadão. Estar sujeito aos acontecimentos entre esquinas, quarteirões, olhar de dentro do ônibus, observar o que se passa embaixo da sua janela, ouvir os barulhos entre fachadas e todas as demais combinações possíveis do viver na cidade é de fato participar da vida que o cerca.

A dinâmica da vida pública fluida é determinante para o convívio e a heterogeneidade da cidade. Tecidos urbanos fragmentados tendem a segregar os sujeitos e os locais de acontecimento dos eventos múltiplos do cohabitar. A inserção de barreiras físicas carrega pesos conceituais além de seus tijolos: a sensação de liberdade e segurança, preconceito e a necessidade de distinção de propriedade e espaço social. Esses são os principais assuntos dos estudos sobre os novos tipos de empreendimentos imobiliários e tipos de moradias, que se apresentam em diversas formas, como afirma o psica| 13 |

nalista Christian Dunker (2015, p.59): Há condomínios de luxo e condomínios de pobreza, condomínios institucionais e condomínios de consumo, condomínios de educação e condomínios de saúde. Em todos eles, encontramos traços semelhantes de racionalização: fronteiras, muros, regulamentos e catracas.

A experiência sensorial entremuros desperta grande desconforto ao caminhar pelos espaços residuais, longos e monótonos, o sujeito que se encontra na face externa dos fortes privados sente estar com o inesperado e o “resto” reservado para si.

A vida pública não deve ser baseada em restos.

Assim, este trabalho debate a exclusão de parte da população do direito à cidade frente à necessidade de outras partes da população de cercamento para segurança, tomando-se como objeto de estudo a barreira física já instalada como elemento da arquitetura, da paisagem, da cultura e como parte da identidade da cidade brasileira. Procura-se compreender como e em quais âmbitos da cidadania a fragmentação do tecido urbano lesa. Serão analisadas as esferas social, afetiva, subjetiva, de orientabilidade, inter-relacional e de pertencimento de forma associada, partindo do entendimento de que é no espaço público em que são fortalecidos todos esses aspectos, em uma relação direta do indivíduo com o outro, com o espaço e com a sociedade. Pois, como afirma Habermas, “o espaço público é o lugar do discurso político. Para que esse ‘lugar’ opere uma atividade pública é necessário que se estabeleça, em primeiro lugar, uma copresença de indivíduos” (HABERMAS, apud VIANNA, 2005, p. 64).

Para Josep Montaner e Zaida Muxi (2014), as cidades fragmentadas aconteceram dentro de uma tendência de globalização especialmente a partir do último quarto do século XX. Nessas cidades, os autores identificam o privilégio dos desejos individuais e setoriais em detrimento da coletividade e da integração social: Evidenciam-se as crises de um modelo urbano marcado pela funcionalização de todo o território, pela difusão e dispersão das áreas urbanas que compõem um mosaico de fragmentos sem relação entre si. Essa situação é reforçada pela perda do espaço público em benefício de interesses setoriais e individuais, que se apropriam da memória e da herança coletiva, re| 14 |

duzindo-as a meras cenografias. (MONTANER; MUXI, 2014, p. 115).

Maria Encarnação Sposito e François Ascher analisam que o processo de mudança nas configurações sócio-espaciais ocorre invariavelmente nas cidades, sejam médias, grandes ou regiões metropolitanas e a análise dessas mudanças é pertinente apesar das especificidades de cada processo: “a escala da vida cotidiana mudou, vivemos sobre territórios mais estendidos, mais diversificados, não frequentamos mais os mesmo lugares, não nos deslocamos mais da mesma forma.” (ASCHER apud SPOSITO, 2013, p. 10).

Estas mudanças de comportamento das pessoas e das formas de urbanização estão relacionadas aos novos processos de segregação socioespacial, dos quais o muro é a principal materialização e impacta diretamente na vida pública. Para compreender os muros, é preciso analisar o contexto de surgimento desse modelo de segregação enquanto processo e não somente como barreira física. O muro e a delimitação de propriedade são características históricas, que incluem aspectos além das disciplinas da Arquitetura e do Urbanismo. Aqui não pretende-se investigar essa necessidade, mas sim compreender como esse elemento passa a fazer parte da organização do tecido urbano contemporâneo e, portanto, das relações entre as partes da cidade. Certamente há diversos sentidos e possibilidades de signo atribuídos para os muros. O que se busca neste trabalho, entretanto, é analisar o papel contemporâneo da produção de locais cercados. Como colocado por Filgueiras (2016, p. 80), O muro, assim como a paisagem ou o lugar, adquire uma carga simbólica, evolui e sofre transformações. A paisagem atual, ou maneira como se enxerga a paisagem hoje em dia, é diferente daquela de cinco séculos atrás, da mesma maneira como o lugar ou como o muro é. Cada um desses conceitos ou elementos são reflexos da própria sociedade naquele período específico.

Essa análise estende-se à fala de Sposito e Góes (2013, p. 243) que entendem que os muros atuais possuem um papel contrário ao momento histórico em que faziam, de fato, parte essencial da cidade. Diferentemente dos muros medievais, que protegiam a cidade para a população, a barreira contemporânea “protege” um morador do outro.

A inserção das barreiras no espaço urbano e a divisão da população | 15 |

gera distanciamentos sociais e segregação, cujo conceito é discutido por Ramos (2002, p.138) como (...) uma hierarquização na distribuição dos grupos sociais ou “categorias sociais” nos espaços territoriais do município, decorrente de sua maior ou menor capacidade de acesso às áreas residenciais mais nobres, portadoras de equipamentos públicos e privados; essa capacidade é determinada socialmente pela modalidade de inserção dos grupos sociais na produção social, opondo, de um lado, grandes e médios proprietários de meios de produção, circulação e troca da riqueza social, e, de outro, pequenos proprietários, executivos, trabalhadores intelectuais, trabalhadores braçais, prestadores de serviços, autônomos e desempregados.

Compreende-se que o processo de condominialização - a reprodução em massa do modelo dos condomínios - é um dos maiores agentes do isolamento espacial presente hoje nas cidades, descrito por Ramos como uma hierarquização do espaço. Para a antropóloga Cristina Patriota de Moura (2010, p. 209), o condomínio denomina uma organização espacial e social, que (...) aponta para parcelamentos de solo formados por unidades domiciliares, que muitas vezes se destacam de outros parcelamentos por possuírem muros perimetrais comuns e áreas de circulação interna próprias, de acesso restrito. Há também, em geral, associações de moradores que impõem determinadas regras de conduta internas a esses espaços. (grifo nosso).

Este trabalho não pretende se limitar somente à análise do casos dos condomínios, já que o objeto de estudo são os muros e suas implicações na vida pública. Assim, a leitura acerca do processo de cercamento é espacial, social e de dinâmica, não se prendendo à esfera jurídica de conceituar o que é um condomínio e suas regulamentações1. Por vezes, então, pode-se esten-

1 É importante ressaltar a colocação de Sposito e Góes acerca da regulação jurídica no caso dos condomínios brasileiros: “No plano do senso comum, no caso brasileiro, os espaços urbanos murados e controlados por sistemas de vigilância, quando residenciais e voltados à construção de edificações unifamiliares, são chamados de condomínios horizontais e, muitas vezes, comercializados sob esse rótulo, ainda que grande parte deles não atenda à legislação vigente no país para esse tipo de empreendimento e, tampouco, seja uma gleba de propriedade condominial.” (SPOSITO; GÓES, 2013, p. 134). | 16 |

der as lógicas de segregação presentes na questão dos condomínios às glebas parceladas e muradas.

Essa configuração espacial segregacionista está inserida dentro de uma lógica de dispersão urbana, processo descrito por Nestor Goulart como “a extensão dos tecidos urbanos por vastos territórios, separados no espaço, mas mantendo estreitos vínculos entre si, como partes de um único sistema urbano” (REIS, 2006, p.12). Compreender este processo é fundamental para estabelecer o contexto de consolidação dos muros na paisagem e, finalmente, analisar as relações entremuros.

Assim, o estudo divide-se em quatro momentos principais. No primeiro capítulo será estabelecido um panorama histórico-social-econômico do contexto de mudança do tecido urbano: o aceleramento da urbanização, o crescimento das cidades, o rodoviarismo e a violência e pobreza urbanas. No capítulo 2 será realizado um histórico sobre os processos de dispersão urbana e condominialização no Brasil a partir dos anos 1970, momento em que se fortalece a nova forma de organização urbana e a fragmentação do território.

Também serão analisados os aspectos dessa organização da malha territorial que incorpora os muros, buscando conceituar um padrão nas formas e técnicas principais da condominialização e fortificação dos empreendimentos imobiliários produzidos na época, que se estendem e se afirmam até os dias de hoje. O capítulo irá focar principalmente em reunir as principais causas especuladas pelos autores estudados para o surgimento e consolidação dos muros nas cidades.

Depois de compreendidas as bases de formação dos muros, o capítulo 3 buscará primeiramente estabelecer os princípios de vida e espaços públicos de qualidade, “as condições para o individualismo e anonimato, permitindo as diferenças e ajudando a construir a idéia de um espaço pertencente a todos.” (FREITAS, 2013, p. 43), norteado pelos impactos da segregação citados anteriormente. Por fim, busca-se perceber quais os resultados da fragmentação do tecido urbano na convivência democrática e heterogênea na cidade, cruzando os aspectos padrões dos modelos de segregação e homogeneidade analisados no capítulo 2 com os parâmetros de coletividade e morfologia postos no 3.

Não será realizado um estudo de caso específico por pretender-se desenvolver uma reflexão teórica mais ampla sobre as cidades brasileiras e | 17 |

os processos que levam à produção dos muros, apesar das especificidades e a riqueza dos processos individuais de cada local à sua maneira histórica de desenvolvimento e apropriação do espaço. Como colocado por Caldeira (2000, p. 11), é possível perceber uma direção comum das diversas produções segregatórias: Embora a segregação tenha sido sempre uma característica das cidades, os instrumentos e regras que a produzem mudaram consideravelmente ao longo do tempo. Obviamente, também mudam de cidade para cidade, conferindo a cada uma sua identidade particular. No entanto, é possível identificar padrões de organização e segregação espacial e seus instrumentos. Esses padrões constituem repertórios dos quais as mais diversas cidades tomam elementos para moldar seus espaços.

No debate acerca dos condomínios, este trabalho não pretende se limitar à uma tipologia específica mais presente nas cidades brasileiras (condomínios equipados com extensivos aparatos de segurança, altas densidades e variabilidade de usos) mas também abarcar as gated communities2, locais em que “seus muros e grades impedem o acesso público a ruas, calçadas, parques, praias, rios, trilhas e áreas de recreação – sendo esses recursos que sem os muros ou portões seriam abertos e compartilhados por todos os cidadãos de uma localidade.” (BLAKELY; SNYDER apud MOURA, 2010, p.

210). Como colocado por Sposito e Góes (2013, p. 5), a principal característica que une todas essas tipologias é a veia segregatória: Ser um produto imobiliário resultante de um planejamento que visa à maximização de lucros, ter como característica o fechamento e o controle de acesso àqueles que não são seus moradores, ser um valor que se agrega preço ao produto, estar associado à idéia de segurança e qualidade de vida são traços comuns a diversos tipos de empreendimentos. São menores as diferenças quando se atenta para os públicos-alvo e para as formas de segmentação, que podem ser econômicas, mas também políticas, étnicas, culturais etc. (grifo nosso).

2 Termo em inglês cunhado pelos pelos urbanistas norte-americanos Edward Blakely e Gail Snyder no livro Fortress America. Gated Communities in the United States para descrever unidades residenciais com limites definidos por muros ou cercas e uso de instrumentos privados de segurança. A tradução se dá como comunidades fechadas. | 18 |

Ou seja, o objetivo final de análise engloba

quaisquer tentativas de cerceamento de circulação de uma parcela da população que interferem invariavelmente na qualidade dos espaços públicos.

Dessa forma, espera-se alcançar uma reflexão acerca da extensão dos efeitos que o modelo de urbanização atual tem na qualidade das cidades e, consequentemente, na vida dos seus habitantes:

“Em que medida novas formas de produção do espaço urbano que confluem para a constituição de novos habitats interferem no direito de todos à cidade?”

(SPOSITO, 2013, p. 8).

O olhar sobre o assunto tende a tornar-se distorcido quando se está inserido no objeto; porém, este ensaio procura se debruçar sobre as relações entremuros não só como pesquisa mas principalmente como objeto de cidadania em busca de mudanças na vida pública. | 19 |

| A segregação na cidade contemporânea 01

1.1 | O panorama histórico-social-econômico

A mudança nas formas de tecido urbano tradicional para modelos de cidades dispersas é um processo conhecido ao redor do mundo e deriva dos grandes desenvolvimentos históricos mundiais. Pode remeter-se com mais precisão desde a Revolução Industrial, ponto decisivo na narrativa das cidades, que têm sua configuração rural alterada pelos novos modos de produção .

É possível traçar um paralelo entre as problemáticas percebidas nas cidades atuais e o processo de industrialização das cidades no século XIX e consequente concentração e espraiamento vistas no século XX. Questões como o excepcional aumento populacional, o aumento do mercado de trabalho nos centros urbanos e as novas possibilidades construtivas e de mobilidade transformaram profundamente o processo de organização das cidades: Foi no século XIX que o aumento exponencial da população, particularmente da população urbana, implicou em transformações profundas na organização espacial das cidades, inicialmente as européias, mas posteriormente, também as norte-americanas e latino americanas, o que refletiu fortemente no pensamento urbanístico. (SILVA, 2016, p. 21).

Bernardo Secchi afirma que a história do século XX se divide em duas sequências: primeiramente um processo de concentração gradual, seguida da fragmentação da megalópole (SECCHI, 2009, p. 34). A difusão da mobilidade, com trens, bondes e rodovias criam pressão nos centros das cidades, que como escape, se expandem em áreas de periferia. Entretanto, em um movimento contraditório, essas mesmas áreas contribuem com o aumento dos problemas da cidade densa, como os grandes congestionamentos e a poluição - pois suas maneiras de implantação não priorizam inserções urbanas de | 20 |

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qualidade. Esses problemas aumentam, também, a demanda por infraestrutura urbana, como áreas de estacionamento, redes de coleta e abastecimento e acessibilidade, que intensificam a competição pelo espaço nas cidades e alteram a relação entre espaços construídos e vazios, transformando, assim, a paisagem urbana e sua relação com o indivíduo (SECCHI, 2009, p. 36-37).

Concentração e dispersão nas grandes periferias metropolitanas, nos suburbs, na ‘cidade região’, se tornam fenômenos autocontraditórios, cada um causa de seu oposto. Eles fazem com que a cidade esteja constantemente à procura de um equilíbrio espacial e temporal entre sua própria função e a infraestrutura que permite uma atuação completa, fazem com que a cidade seja perenemente instável. (SECCHI, 2009, p. 38).

Essa nova organização orienta os projetos de foco urbano e social, surgindo, já naquele momento, propostas que contornavam o processo latente de decadência na qualidade de vida nas cidades. É possível comparar as semelhanças entre as correntes das cidades-jardim do século XIX e o processo de dispersão urbana nas cidades atuais: E as origens da dispersão, tão crucial ao entendimento da cidade de hoje, estão no século XIX, na formação e crescimento da cidade da Revolução Industrial, quando a intensificação do processo de urbanização atinge níveis inéditos e de consequências duradouras, que culminam na cidade esgarçada e fragmentada do século XXI. (SILVA, 2016, p. 22).

Grandes nomes da história do urbanismo, como o Barão de Haussmann e Le Corbusier nascem a partir da crise urbana advinda da Revolução Industrial, oferecendo modelos urbanísticos cujos cernes é a dispersão em si, vendo a volta da cidade verde, da proximidade com a natureza (aqui em termos mais econômicos do que bucólicos) e de menores densidades como a solução para os problemas que marcam as sociedades urbanas. Uma das mais famosas expressões desse sentimento nostálgico em relação ao organismo ruralista é a cidade-jardim de Ebenezer Howard. O autor do projeto, no final do século XIX e começo do século XX, já citava o equilíbrio entre as vantagens da vida urbana e o prazer do campo, ponto chave dos empreendimentos afastados realizados atualmente por grandes empresas urbanizadoras (SILVA, 2016, p. 56).

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Desse ponto em diante na história da sociedade, é possível perceber diversos modelos diferentes de ideário de vida residencial e metropolitana, cenário cultural que leva à compreensão das mudanças na forma de urbanização como um todo, que abrangem várias lógicas: O tempo e as diferentes situações locais e culturais produziram uma grande variedade de soluções tanto em um como em outro setor, mas algo as uniu e é impossível pensar em uma forma sem pensar na outra. Elas são as duas faces de uma cidade na qual as diferenças e as distâncias entre ricos e pobres estão dramática e progressivamente crescendo. Mas também são lugares onde uma sociedade de desiguais representa não somente ela mesma, mas também constrói a própria identidade. (SECCHI, 2009, p. 62)

Bernardo Secchi coloca a busca de uma nova ordem espacial, expressa pelos projetos análogos às cidades-jardim, como as new-towns e as cidades satélites, como a “‘moralização’ da cidade do século dezenove”. A descentralização, separação ou reaproximação de partes complementares ou incompatíveis funcional ou socialmente - é o motor transformador das paisagens urbanas (SECCHI, 2009, p. 64-65). Diante dessas modificações mundiais que percorreram o século XX, estudiosos pontuam um avanço lento do período, em termos de urbanismo, diferentemente de outras disciplinas que consideram-o um século longo. Bernardo Secchi analisa mudanças no imaginário coletivo que, diante das extensas e diversas transições que emergem, (...) o século vinte, dominado por uma expectativa que lentamente se dilui em temor, parece colocado entre dois extremos: a espera angustiada de um crescimento indefinido e desmesurado da cidade e o temor de seu desaparecimento, de sua dissolução ou transformação em formas de ocupação nas quais se torna difícil prever as caracterísitcas, o sentido e o destino. (SECCHI, 2009, p. 19).

Resumidamente, Secchi descreve o século XX como um ponto em que diferentes ideais giram ao redor da liberdade individual e coletiva, construídos materialmente no espaço da cidade: “assegurando níveis de bem-estar mais elevados, um quadro de vida radicalmente diferente do passado, uma cidade que, devido as suas dimensões e pelas relações espaciais que instaura, facilite a coesão e a relação social.” (SECCHI, 2009, p. 26).

Secchi põe em perspectiva o processo europeu de expansão e disso| 23 |

lução da cidade, sendo importante realizar a analogia dessas transformações no contexto brasileiro, que ocorrem anos depois, em formas muito similares. Em ambos os casos, é aplicável a consideração de Gottdiener, que vê as mudanças sócio-espaciais como um resultado dialético de fatores políticos, culturais e econômicos que se manifestam através da linha de frente dos padrões de desenvolvimento imobiliário que congregam a intervenção do Estado, formas de acumulação de capital e a manipulação dos mercados de terra. (GOTTDIENER, 1997, p.

235).

O autor descreve, ainda, o crescimento urbano em suas bases regidas pelo capital e pelos interesses privados. Durante períodos favoráveis à expansão da cidade, os investimentos e a produção de espaços descentralizados são rápidos e desordenados, visando lucros. Porém, durante momentos de recessão, o espaço agora consolidado não segue a ser investido e a iniciativa privada busca outros locais que ainda estão abertos à esse modelo de expansão. Essa lógica é regida através das parcerias público-privadas, que se articulam na produção de subsídios de infraestrutura como rodovias e flexibilização de zoneamentos (GOTTDIENER, 1997, p. 260), de uma maneira que Embora nem todos esses investimentos sejam produtivos e, portanto, constituam uma fonte de mais-valia ao melhorar o design do espaço enquanto força de produção, o desenvolvimento ocorre sob o signo do crescimento. Por conseguinte, o investimento no setor da propriedade tem a aparência de produtividade e progresso. (...)

Devido aos muitos interesses que envolvem esse processo em torno da negociação dos custos de crescimento, são difíceis de prever os resultados, e a forma de espaço é mantida como penhor de um processo que não exige coerência nem racionalidade. (GOTTDIENER, 1997, p. 260-261, grifo do autor).

No Brasil, a conjuntura de mudança das formas de relações no tecido intra-urbano tem como origem primeira o crescimento da urbanização ao longo da segunda metade do século XX. Nestor Goulart cita que a população urbana brasileira cresceu 800% no período de 1950 a 2005, passando de 17 milhões de habitantes para 153 milhões (REIS, 2006, p. 77). Esse cres-

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cimento gera demandas de espaço sobre o tecido urbano, ao mesmo tempo em que o mercado imobiliário, sob uma lógica de livre regulação, aumenta os preços dos terrenos localizados nas áreas centrais das cidades.

Essas demandas não são supridas com políticas de planejamento urbano para gestão adequada do espaço disponível também por falha nas políticas de Estado. Os problemas urbanos das cidades tradicionais começam a surgir, como o sub-dimensionamento da infraestrutura urbana disponível causado pelo adensamento que surge com a verticalização, movimento atrelado às políticas de rodoviarismo - que permitem a expansão da urbe -, política adotada especialmente durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). O espaço urbano não é mais suficiente para a necessidade da população urbana que crescia cada dia mais nas cidades brasileiras. Dessa forma, começam a surgir as regiões metropolitanas1 e a dispersão das áreas periféricas das cidades centrais consolidadas (REIS, 2006, p. 77).

Em seguida, com a chegada da infra-estrutura e, por consequência, da urbanização, as regiões metropolitanas passam por um processo de descentralização em relação ao centro urbano consolidado, em que são criados diversos centros mais autônomos (possíveis graças à infra-estrutura dos transportes e da mobilidade). Assim, como coloca Nestor Goulart, “Nesse esquema descentralizado, o foco de interesse já não é o centro tradicional mas o sistema de vias, que dá acesso a várias regiões.” (REIS, 2006, p. 87). O autor ainda cita que a dispersão urbana acontece por causa do rodoviarismo, que surge como suporte às atividades rurais do interior mas por fim também estimula a descentralização (industrial e urbana), que passam a competir em espaço com as atividades agrícolas, apesar de possuir caráter de integração mais um atributo contraditório do processo da urbanização dispersa.

1 Com região metropolitana, entende-se que há uma relação de dependência à uma centralidade, a cidade tradicional. Quando surgem, ocorre um processo de concentração de usos e setores, como indústrias e grandes instituições que se concentram em áreas de periferia para atender a um centro. Nahon (2003) se refere ao termo periferia como uma combinação entre o espaço e a condição social dos habitantes, cabendo para tratar locais próximos ou distantes do centro, já que é um espaço produzido socialmente, em uma marcação das áreas urbanas segregadas, ainda dentro do espaço do tecido urbano (Trindade Jr., 1998, p. 124 apud Nahon, 2003, p. 8). Ambas diferenciam-se da dispersão urbana, característica por estar localizada em extensões ralas após o perímetro urbano consolidado. | 25 |

O transporte rodoviário, pelo contrário, tem caráter altamente integrador, permitindo a custos relativamente baixos a pavimentação das vicinais, que têm um efeito de capilaridade sobre as áreas adjacentes, levando a uma relativa homogeneização do território, em termos de aproveitamento das terras agrícolas, como da exploração imobiliária. (REIS, 2006, p. 94).

Essa lógica contrastante característica do processo de dispersão urbana possui várias outras formas, como descritas por Sposito e Góes (2013, p. 10) como:

1. “União” (participação da globalização) versus “separação” (da cidade e da sociedade);

2. “Homogeneização” (das áreas de convivência e das parcelas abarcadas) versus “diferenciação” (tentativas de segregação com barreiras);

3. “Insegurança” (a violência e o medo potencializado) versus “segurança” (comercializada nos empreendimentos fortificados);

4. “Crescimento das cidades” (aumento da área e da densidade urbanas) versus “enfraquecimento das relações entre citadinos” (por causa da construção de barreiras);

5. “Intensificação da urbanização” (aumento da infraestrutura urbana) versus “difusão e diluição do fato urbano” (declínio da cidade como é conhecida);

6. “Encolhimento e enfraquecimento do Estado e de suas agências” (descréditos às instituições públicas e mais participação de iniciativa privada) versus centralidade do Estado (na expectativa de resolução dos problemas).

Uma das maiores críticas ao processo de dispersão é a maneira dispendiosa com que é tratada a infraestrutura. Com a transferência de atividades para áreas não consolidadas, além do investimento monetário em urbanização, sem falar na degradação ambiental, têm-se as áreas previamente instaladas - como os edifícios de fábricas localizados em zonas industriais ou locais densos - que tornam-se desativadas e abandonadas. Deve-se pensar não só na manutenção e ressignificação de prédios como em toda uma importante infraestrutura por trás que também é abandonada. Bernardo Secchi | 26 |

(2009) analisa esse processo de abandono nas grandes cidades européias a partir dos anos 1970: O que tinha sido lentamente acumulado durante quase dois séculos de crescimento e desenvolvimento, ou seja, partes inteiras da cidade do século 19 e do início do século se encontram privadas de uma função e de um papel, com graves consequências nos níveis de ocupação, sobre o desenvolvimento demográfico e sobre a geografia social, funcional e simbólica da cidade toda. (SECCHI, 2009, p. 75-76).

Já na década de 1990, com as novas possibilidades de comunicação e mobilidade, a progressão do abandono citado por Secchi (2009) se intensifica, em um estilo de vida cada vez menos dependente do centro urbano e mais autônomo dentro dos próprios locais dispersos e segregados.

Deve ser considerado que a popularização do automóvel, do telefone e mais recentemente das várias tecnologias de comunicação digital, que se inauguraram em sequência espetacular nas últimas décadas, propiciaram uma reorganização geográfica das atividades citadinas, constituindo um dos fatores que permitiu que seus tecidos se dispersassem pelo território (BRITO, 2009, p. 22 apud FREITAS, 2013, p. 46).

Um grande exemplo dessa população globalizada e conectada descrita por Secchi se materializa na adoção do modelo dos condomínios, que contribuem na ressignificação do espaço urbano tradicional e estimulam ainda mais a individualização contemporânea.

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1.2 | A questão dos condomínios

Primeiramente, é importante contextualizar que o foco de análise deste trabalho se dá nos condomínios horizontais. Apesar de serem aplicadas diversas questões igualmente, entre verticais e horizontais, incluindo a adoção de muros e aparatos tecnológicos de segurança, os condomínios horizontais possuem mais impacto na distribuição e arranjo do solo. Seus terrenos grandes incluem áreas de uso comum, mesmo que sejam somente vias e calçadas - elementos que aumentam a demanda por terreno e, consequentemente, o perímetro murado.

Entende-se que os maiores agentes da dispersão urbana enquanto modelo de interesse econômico no Brasil - principal causa do aumento exponencial das transformações no tecido urbano - são as incorporações imobiliárias. Goulart (2006) registra que, em um momento de fragilidade financeira da população, com a inflação crescente a partir dos anos 1940, o mercado imobiliário muda de configuração: os lotes aumentam seus preços (também por causa do aumento populacional) e o sonho da casa própria fica cada vez mais distante. Os imóveis, antes construídos para aluguel via investimentos privados, passam a fazer parte de uma lógica condominial para venda, sistema viável economicamente somente para as grandes empresas (REIS, 2006, p. 168).

Com a economia instável, um modelo de cidades mais adensadas era melhor para o mercado, já que os valores dos terrenos se tornavam mais acessíveis devido à disponibilidade de infraestrutura urbana (REIS, 2006, p. 168). A partir dos anos 1970, com o aumento da | 28 |

Photo by Raphaël Biscaldi on Unsplash. Domínio público. Edição autoral.

mobilidade, o ideal de moradia para as classes média e alta volta a ser nas áreas mais afastadas do caos urbano, ideário que cria o movimento migratório para o “campo” - intensifica-se, assim, a dispersão urbana.

É necessário pontuar que a dispersão urbana não deriva somente da platônica fuga do caos urbano pelas classes ricas, mas também da consolidação das indústrias fora dos centros urbanos, que estimula a produção de habitação para os trabalhadores em áreas próximas ao emprego. Todo esse sistema de espraiamento torna desejável a aquisição de casa própria por todas as classes, porém, somente as pobres dependem do sistema público de transporte dentro da lógica da cidade difusa (CALDEIRA, 2000, p. 218).

Além disso, o meio de abandono do aluguel pelas classes de baixa renda é muito particular. Teresa Caldeira, em seu importante livro Cidade de Muros, descreve como a urbanização da periferia em São Paulo deveu-se, majoritariamente, à iniciativa privada até os anos 1970, após a liberação, a partir de 1940, pelo governo para venda de lotes nas áreas afastadas e sem legislação adequada. Os trabalhadores compravam um lote muitas vezes fruto de processo de grilagem, fraude ou desrespeito às leis urbanísticas - com dimensões menores que as mínimas exigidas ou falta de infraestrutura urbana básica. Diversos políticos, em períodos de eleição, adotavam campanhas de fornecimento de serviços básicos urbanos em troca de votos, procedimento responsável por grandes áreas urbanizadas que expandiram a cidade de São Paulo e suas regiões metropolitanas (CALDEIRA, 2000, p. 220-221).

Especialmente nessa fase, as classes média e alta viviam em habitações verticalizadas no centro da cidade, sob respaldo de planos urbanísticos e infraestrutura de qualidade.

No momento em que é revertida essa lógica centro-periferia de separação das classes baixa e média e alta, a urbanização dispersa se torna um processo marcante não somente em São Paulo, mas também nas grandes cidades brasileiras (com suas específicas diferenças temporais). As áreas afastadas tornam-se objeto de cobiça da população abas| 30 |

tada e, então, do mercado (ou vice-versa). Com essa valorização dos terrenos, os grandes empreendimentos que passam a construir condomínios horizontais - murados, para se isolar dos antigos moradores da periferia - levam infraestrutura urbana e valorizam a área, afastando a população pobre e suas possibilidades de auto construção de residências para as favelas ou cortiços (CALDEIRA, 2000, p. 231). Tem-se uma nova distribuição social, econômica e uma nova lógica de segregação: “Não é mais a linha demarcadora dos bairros que define a topografia de classes, mas sim a capacidade de arcar com a melhor infra-estrutura privada intra-muros.” (NAHON, 2003, p. 10).

“Não é mais a linha demarcadora de bairros que define a topografia de classes, mas sim a capacidade de arcar com a melhor infra-estrutura privada intra-muros.”

(NAHON, 2003, p. 10).

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1.3 | O sistema empresarial e as parcerias

público-privadas

Deve-se, ainda, considerar a herança histórica que leva aos projetos espraiados de iniciativa privada em dois momentos. Primeiramente, projetos nas novas cidades européias no pós-guerra guiados sob os preceitos do Movimento Moderno: bairros-jardim, ruas em cul-de-sac e centros de comércio, organizados em grandes territórios com significante papel paisagístico. Em segundo, projetos realizados entre os anos 1960 e 70 em diversos países do ocidente que buscavam dinamicidade para áreas de reurbanização nas grandes cidades. Em grandes glebas concedidas pelo Estado, eram propostos locais de usos diversos em articulação com estações rodoviárias ou de metrô, além de estacionamentos. “Essas articulações levaram à necessidade de uma gestão comum, de formas condominiais ou similares, que se aproximavam das soluções depois adotadas em projetos de iniciativa privada…”

(REIS, 2006, p. 173), modelo que já tendia à adoção das áreas comuns como jardins e serviços e que levaram à formas de gestão condominial. Como cita Goulart (2006), esses são os “precedentes práticos para a ação empresarial, na fase de formação de grandes empresas de desenvolvimento urbano e na urbanização dispersa.” (REIS, 2006, p. 173).

A organização condominial mais comumente se apropria dos preceitos da Carta de Atenas e do Modernismo para guiar seus projetos, apesar da inserção privada: [o zoneamento da Carta de Atenas] se ajustava ao ideal de cidade sem acaso, do individualismo, da segregação e do consumo” (MONTANER e MUXI, 2014, p. 116). Uma das principais características desse tipo de organização nega o princípio moderno do zoneamento de usos, além dos modelos implementados no Brasil seguirem padrões de segregação ao uso público - conceito oposto aos ideais da corrente estilística. Esse padrão

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deixa clara a intenção da iniciativa privada que o adota: vender um modelo de vida urbana que já não conseguia mais ser fornecido pelo Estado às classes média e alta (REIS, 2006, p. 162). O formato de organização dos empreendimentos é capitalista, como nota Nestor Goulart (2006): Os empresários do setor são em geral engenheiros, arquitetos e administradores, com experiência consolidada em edificações e contratos para execução de obras públicas, que ampliam suas áreas de atuação. Passam a realizar empreendimentos de maior porte, com parcelamento do solo, projetos urbanísticos, infra-estrutura, edificações para habitação, escritórios e setores de comércio e serviços. (...) a atuação das empresas se amplia e diversifica, de modo a controlar todos os fatores com interferência nos empreendimentos, para maximizar a valorização dos produtos e conseqüentemente os lucros. (REIS, 2006, p. 175-176)

É possível perceber uma influência do Modernismo na definição de paradigmas de conjuntos urbanísticos. Foi através dele que surgiram os primeiros exemplares que viriam a ser os precedentes dos empreendimentos realizados atualmente: conjuntos que combinavam as cidades-jardim, com suas áreas verdes extensas à técnicas de redução de custos, com a inclusão de áreas coletivas, além da verticalização. Os conjuntos possuíam cunho social, com um senso de comunidade, buscando oferecer às famílias de baixa renda serviços antes acessíveis somente às classes mais abastadas. Contudo, esse modelo foi ressignificado pelo mercado imobiliário atual, que visa as classes média e alta, utilizando os espaços coletivos para segregação ao invés de integração social (REIS, 2006, p. 155-156).

O fato dos empreendimentos se localizarem em áreas não urbanizadas também é uma estratégia empresarial, já que as terras são mais baratas e, assumindo as obras de infraestrutura, podem ser menos dependentes dos serviços estatais.

Esse sistema forma diferentes centralidades com os característicos vazios intersticiais, já que “as empresas do setor imobiliário conseguem controlar o processo de formação de valor, pela produção de centralidades, decorrentes da própria execução do projeto (REIS, 2006, p. 176). O autor também afirma que o objetivo do modelo espraiado são justamente os novos centros: aumentam o valor econômico das unidades à venda e tornam possível o comércio dos empreendimentos (REIS, 2006, p. 159), em um bruto | 33 |

sistema de contínua viabilização de diferentes localidades, deixando como resíduo células desconexas entre si. Esse arranjo mercadológico flerta com o esgotamento do tecido urbano para alimentar esse sistema, em uma caminhada que muitos estudiosos vêem como o fim do conceito de “cidade”.

Silva (2016) defende que a dispersão é mais um processo de transformação do tecido urbano como o conhecemos do que algo inevitável: Defendemos que a dispersão não determina o fim da cidade, pois esta não se trata de uma ruptura, mas de uma transformação para uma constituição espacial mais complexa e heterogênea morfologicamente e sócio culturalmente, não se resumindo apenas à dualidade entre espaços compactos ou dispersos, mas formando uma gama quase infinita de composições que ora tendem mais à diluição, ora mais ao adensamento. (SILVA, 2016, p. 34).

Goulart (2006) também defende uma visão menos fatídica sobre o modelo vigente de urbanização, argumentando que Não existe uma forma certa e outra errada de tecido urbano que seja a única a ser considerada como correta. Os padrões estão sempre em mudança. Não podemos incidir no erro de críticas subjetivas sobre as mudanças que estão em curso, visando imobilizar os padrões urbanísticos do século XX. Estes são tão transitórios como os demais. Todos os tecidos urbanos se desmancham sobre o território e no tempo. (REIS, 2006, p. 61)

Ainda assim, é necessário refletir sobre os impactos sociais do processo em curso no Brasil que marca uma cultura e uma sociedade: diante dos padrões de expansão e as alterações nas formas de viver dentro da cidade dispersa, qual o legado para as pessoas que nela vivem? De que maneira esse modelo urbano altera as relações humanas? De que forma passam a ser definidas as interações sociais em um tecido segregador?

A indagação do destino das cidades, da sociedade e do indivíduo constrói uma articulação “entre arquitetura, urbanismo e as outras ciências sociais, a sociologia e a economia em primeiro lugar; em uma nova geografia das disciplinas, suas relações recíprocas e organizações hierárquicas, a cidade criou como que uma espécie de submissão.” (SECCHI, 2009, p. 33). Essa relação é importante para compreender as mudanças urbanas muito além das correntes estilísticas, em uma conjuntura de interesses que giram ao redor do sujeito inserido no espaço. | 34 |

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| A urbanização brasileira e a fragmentação do espaço urbano 02

A cidade fragmentada possui quatro características principais, resultantes especialmente do processo de dispersão e das tendências mundiais e locais, como a globalização, as intercomunicações, a mobilidade rápida e a insegurança urbana. Salgueiro enumera algumas características importantes da cidade fragmentada dispersa: - é um território policêntrico onde se assiste à perda da hegemonia do centro e à multiplicação de “novas centralidades” - aparecem áreas mistas, muitas vezes megacomplexos imobiliários que reúnem habitação, comércio, escritórios e lazer, ou comércio, indústria e serviços, sinal evidente de negação do zoneamento funcional associado à cidade industrial; - surgem enclaves socialmente dissonantes no seio de tecidos com uma certa homogeneidade morfosocial, base de uma nova organização em que há contiguidade sem continuidade; - cresce a dessolidarização do entorno próximo porque os indivíduos e as atividades participam cada vez mais em redes de relações (movimento e troca de informações) à distância, fonte dos fluxos complexos que cruzam o território, e que no geral não valorizam nem se exercem na proximidade imediata porque as novas acessibilidades libertaram muitas localizações dos constrangimentos da proximidade. (SALGUEIRO, 2001, p. 116 apud SPOSITO; GÓES, 2013, p. 294).

Essas questões serão explicitadas ao longo do trabalho, compreendendo a relação dessas configurações com a vida e os espaços públicos.

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2.1 | Dispersão urbana e condominialização

O modelo de urbanização a partir dos anos 1970 nas cidades brasileiras de grande e médio porte se dá graças à expansão da ação de empresas urbanizadoras, empreendedores individuais e, especialmente, grileiros (agentes que comercializam loteamentos irregulares). Essa mudança foi resultado não somente de massiva publicidade por parte dessas empresas urbanizadoras mas também pela busca por uma dinâmica de vida “alternativa” aos problemas das cidades em largo processo de urbanização, como a queda na qualidade de vida e os congestionamentos, aliados à um processo de mercado que oferece terrenos maiores e mais baratos em contrapartida à infraestrutura urbana local menor.

Nestor Goulart (2006) se refere ao processo de dispersão urbana em duas escalas distintas. A primeira é de âmbito metropolitano, cujo espraiamento (conceito utilizado como sinônimo de dispersão por muitos autores) se dá sob a forma de pólos ou núcleos, caracterizado pelos vazios intersticiais1 - modelo chamado de nebulosa urbana (MUNARIN e TOSI, 2001, apud REIS, 2006, p. 13), macrometropolização (SANTOS, 1989) ou ainda de urba-

1 Sposito e Góes (2013, p. 56) afirmam que os vazios intersticiais são constituídos pelos espaços entre o tecido urbano constituído e as novas áreas em processo de urbanização. Esses espaços “juridicamente ainda são rurais, visto que não foram loteadas, mas que, do ponto de vista social, são ‘vazios urbanos’ visto que têm pouco de uso agropecuário e se encontram apenas aguardando melhores condições de mercado para seu parcelamento, reforçando práticas especulativas que cada vez mais orientam as formas de produção do espaço.” | 37 |

nização dispersa pelo próprio autor2. A segunda escala ocorre no âmbito do tecido urbano, “ou seja, a escala na qual se definem as relações físicas e jurídicas entre espaços públicos e espaços privados, em que se definem as ruas e praças, as quadras e lotes, a propriedade (ou posse) do espaço urbano, sua produção material, bem como sua apropriação, uso e transformação.” (REIS, 2006).

O foco deste ensaio se dá na segunda escala, nos espaços dentro da cidade consolidada, pois é na escala do tecido urbano em que são definidas as relações públicas e privadas, seus acessos e as organizações dos espaços sob a perspectiva coletiva, como colocado por Goulart. “É no tecido urbano que se concretizam as formas de desigualdade na apropriação e uso dos espaços, as formas de segregação social” (REIS, 2006, p. 59). É no modo de organização do tecido urbano que se definem as relações entre o geral e o particular; entre o público e o privado; entre o coletivo e o privado; entre o projeto dos espaços coletivos e públicos, definidos no urbanismo, e os projetos dos edifícios (públicos ou privados). É também nessa escala que se definem os fundamentos jurídicos da propriedade privada urbana. É nela também que se estabelecem os limites e as possibilidades dos espaços dos diferentes segmentos sociais e as condições de uso do urbanismo e da arquitetura, com sentido de símbolos políticos, como cenários de afirmação social dos segmentos politicamente relevantes. É onde se definem visualmente e materialmente as desigualdades sociais, a segregação e os privilégios. (REIS, 2006, p. 154).

Ainda assim, é necessário contextualizar o processo de expansão para compreender as mudanças do modelo de urbanização tradicional e, então, analisar suas repercussões sobre a organização territorial, espacial e social.

A dispersão urbana necessita, ainda, ser diferenciada das áreas de subúrbio brasileiras. Goulart (2006) se refere às áreas recentes como correspondentes à fase da dispersão urbana por carregarem características típicas 2 Sposito (2013, p. 43-44) ainda cita os termos suburbanização, exurbanização, periurbanização, urban sprawl, cidades-região e outros, todos aplicáveis no entendimento do conceito de dispersão urbana.

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dos novos empreendimentos, como atrativos à industrialização, comércio e serviços e predominância residencial das classes média e alta.

Um dos principais exemplos da mudança do processo de expansão e dinâmica das cidades são os condomínios, que abarcam tipologias comerciais, como shoppings centers e empreendimentos de escritórios; e tipologias residenciais, como os condomínios verticais e horizontais.

Um dos fenômenos mais interessantes e aquele que produziu as mudanças mais importantes na maneira de morar das classes média e alta foi a disseminação dos condomínios fechados. Esse é um tipo de empreendimento de múltiplas residências, sobretudo edifícios [no caso de São Paulo, analisado pela autora], invariavelmente fortificados, com entradas controladas por sistemas de segurança, normalmente ocupando um grande terreno com áreas verdes e incluindo todo tipo de instalações para uso coletivo. (CALDEIRA, 2000, p. 242).

Porém, as mudanças no tecido urbano ocorrem em diversos setores funcionais, como explicitado por Nestor Goulart, que pontua que restringir a análise da dispersão urbana somente aos condomínios horizontais e loteamentos fechados pode limitar a perspectiva de um processo muito mais amplo que esses setores.

O processo é muito mais complexo. As mudanças no tecido urbano revelam uma ampla gama de setores de atuação do mercado imobiliário, uma multiplicidade de formas de tecido urbano, muito além dos conceitos de condomínios horizontais (como existem no Brasil) e de loteamentos fechados. Os empreendimentos imobiliários, com nova escala, com áreas maiores e usos mistos, envolvem setores como hotelaria, escritórios, serviços, lazer, áreas esportivas, indústrias, comércio em várias formas (inclusive shoppings e hipermercados), com as mais variadas combinações. (REIS, 2006, p. 58).

Ainda assim, o efeito da inserção dos muros na produção arquitetônica e urbanística dos locais fortificados é visto especialmente no uso residencial, sendo, então, o foco deste trabalho.

Todavia, assim como os elementos de encerramento se tornaram símbolos de status para a população de meados do século XX, da mesma maneira isso continua acontecendo nos dias de hoje. A necessidade de marcar a presença no meio urbano, como forma de se inserir em certo estrato social, sempre fez

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com que os elementos da arquitetura, que eram aparentes ao público, fossem usados para comunicar. Se a fachada foi o elemento de expressão arquitetônica desde o período colonial, a partir das últimas décadas do século passado, o muro passa a fazer esse papel em grande parte das residências (FILGUEIRAS, 2016, p. 57).

Historicamente, a mudança na organização urbana no Brasil é mais perceptível a partir dos anos 1970. Anteriormente, as partes específicas do tecido urbano se limitavam à pública ou privada, sob formas de gestão simples. Com as mudanças na economia, as formas de mercado (e, portanto, de oferta) se diversificaram e adaptaram os espaços para as novas demandas da população urbana (REIS, 2006, p. 60). A nova estruturação social fundiu moradia, trabalho, lazer e cultura em espaços únicos numa organização que necessita de infraestrutura muito maior, sendo resolvida em formas diferentes porém não muito variadas de coletivismo, de caráter condominial ou não: “propriedades coletivas, uso coletivo, gestão coletiva” (REIS, 2006, p.

45).

Goulart (2006) coloca as necessidade coletivas e privadas sob uma perspectiva que permite perceber que a organização de espaços para uso coletivo em locais privados faz parte da estrutura histórica da população brasileira: desde igrejas a edifícios de uso misto com espaços abertos ao público no térreo na Bahia do século XIX e no Rio de Janeiro do século XX (REIS, 2000, apud REIS, 2006, p. 60 e 61). Porém, a estrutura de mercado é o grande fator diferencial do modelo da época para o vigente: Para que fosse possível esse esquema de produção do que chamamos de conjuntos urbanísticos, era necessário que existisse uma pessoa ou entidade, com propriedade ou posse de uma área de dimensões maiores e com poder de decisão (...). No período colonial eram as ordens religiosas; no período de 1930 em diante eram os órgãos estatais, que aplicavam políticas habitacionais de interesse social. Em Brasília era a Novacap, como agência do Estado. Agora, a partir de 1970, são os empresários, que assume o papel de promotores de projetos de desenvolvimento urbano (...).” (REIS, 2006, p. 61).

O autor ainda frisa que “O importante no caso não é procurar precedentes históricos mas reconhecer, em todas as épocas, a necessidade e a existência de formas de espaços urbanos de uso coletivo, distintas dos espa| 40 |

ços públicos, das ruas e praças.” (REIS, 2006, p. 60).

O modelo de condomínios horizontais se espalhou nas principais cidades brasileiras, reforçando o fenômeno da dispersão urbana. Esses condomínios, que associam o modelo novo de moradia à grandes áreas verdes e espaços de uso comum para os condôminos, necessitam de grandes lotes, que não estão disponíveis nas áreas tradicionalmente valorizadas - e ocupadas por aqueles que podem arcar com os custos desse modelo - da cidade. Assim, são geradas, nas novas áreas de ocupação territorial, demandas sociais, políticas e econômicas, tais como: infraestrutura urbana, pavimentação, redes públicas de abastecimento e coleta, segurança, regularização e mobilidade, recursos que dão apoio à dispersão. Todos esses investimentos sugerem uma descontinuidade dos modelos tradicionais de urbanização (registrados especialmente até os anos 1980). Assim, identifica-se uma pulverização de centralidades, característica da dispersão urbana e da formação de novas periferias.

A dispersão urbana trata, enfim, das formas de expansão da cidade que ocorreram a partir da segunda metade do século XX, (...) e sendo reconhecida por muitos pesquisadores como irreversível, global, mas também como problemática, ambientalmente dispendiosa, socialmente excludente, culturalmente empobrecida, resultado de um modelo de urbanização privada que visa à ampliação de lucros particulares e a especulação imobiliária (SILVA, 2016, p. 23).

É possível perceber na dispersão de residências dois padrões de ocupação do território urbano: o das classes de baixa renda e o das rendas média e alta. No primeiro caso, os bairros residenciais afastados do centro tradicional acompanham o movimento do mercado de trabalho da indústria. Nestor Goulart (2006) descreve como a descentralização industrial para áreas periféricas e ao longo das rodovias acontece graças às novas possibilidades de infraestrutura de abastecimento de água, energia, serviços de coleta e comunicações, além da oferta de terrenos maiores por preços menores. Com esse processo, ocorre nas proximidades das obras das indústrias uma oferta de loteamentos populares, visando o mercado residencial dos trabalhadores. Após a finalização das obras, com o movimento populacional gerado ao longo das construções, os trabalhadores deram origem às favelas, com aproveitamento dos materiais residuais das obras das indústrias. O | 41 |

padrão de ocupação do território se dá de forma irregular e corresponde a grande parte do processo de dispersão, marcado por uma ausência de gestão coletiva, mesmo nos locais de loteamentos regulares (REIS, 2006, p. 126).

No caso das classes média e alta, o processo de dispersão urbana residencial envolve motivações especialmente ligadas à questão do custo e da qualidade de vida. Como já citado anteriormente, nas áreas em processo de adensamento urbano a oferta de terrenos maiores a preços mais baixos é comum graças à infraestrutura urbana precária. Independente do local de trabalho, as novas áreas de urbanização são atrativas, já que essas classes contam com mobilidade privada.

Sposito e Góes (2013, p.52) pontuam que até os anos 1970 a dispersão é fundada especialmente sobre um modelo centro-periferia, em que as áreas urbanas se expandem pela população mais pobre, que se via excluída da possibilidade de usufruir dos meios de consumo coletivo como infraestruturas, equipamentos e serviços. Essas pessoas, nesse momento, ocupavam áreas afastadas resultantes de programas habitacionais do Estado ou de parcelamento de iniciativas privadas e se locomoviam na cidade sem transporte privado e sem acesso ao público, que muitas vezes não atendia aos locais sem urbanização .

David Harvey (1980) pontua que a escolha do local de moradia para as classes pobres tem relação direta com a distância até o local de trabalho, enquanto a elite não tem que se preocupar com dinheiro gasto com transporte. Esse lógica obriga a população pobre a viver no centro (quando não possuem acesso aos programas populares de moradia), local com os terrenos mais caros - o que leva à economizar no tamanho da moradia, que muitas vezes não é suficiente em espaço para a família, ou em áreas irregulares, como as favelas, enquanto a parcela rica se afasta do centro, com melhor qualidade de vida (em termos de paisagem) e ocupando lotes de menor custo, utilizando automóveis particulares para se deslocarem diariamente3. As3 Essa lógica determina, então, que “a estrutura espacial da cidade mudará se as preferências do grupo rico mudam” (HARVEY, 1980, p. 117). O autor cita, ainda, que “ é perfeitamente factível encontrar o rico vivendo no centro da cidade e o pobre localizado nos arrabaldes.

Nesse caso, os pobres são obrigados a ajustarem-se, por exemplo, trocando tempo por custo de distância de modo que gastam grandes quantidades de tempo caminhando para o trabalho para gastar menos em custos de transporte” (HARVEY, 1980, p. 117). | 42 |

sim, Tudo isso significa, atualmente, que o grupo rico pode sempre forçar preferências sobre o grupo pobre, porque ele tem mais recursos para aplicar, tanto para custos de transporte como para obter solo, qualquer que seja a localização de escolha.

(HARVEY, 1980, p. 117).

No momento que essa lógica centro-periferia se inverte, em algumas cidades, as áreas afastadas ocupadas previamente pela parcela pobre da população passam a competir em espaço com os novos empreendimentos voltados às classes média e alta. Assim, os condomínios de luxo passam a fazer fronteira com favelas ou bairros populares, por exemplo, e erguem seus muros sob a justificativa da segurança, aumentando ainda mais a divisão social. Sob essa nova configuração espacial, ressignificam-se os conceitos de cidade e também de periferia (no sentido atribuído de área de moradia dos pobres).

Além das motivações econômicas, é possível perceber um padrão de busca de qualidade de vida, vendido ostensivamente pelas grandes empresas urbanizadoras como o “novo morar”. Esse conceito de status associado ao fugere urbem4 é comumente baseado na busca por segurança e privacidade para as famílias dos novos bairros. E para alcançar esse novo padrão desejado, “Entraram em uso os empreendimentos em áreas consideradas até então rurais, quase sempre isoladas entre si, todas elas cercadas, como loteamentos fechados ou condomínios horizontais.” (REIS, 2006, p. 130) como nota Nestor Goulart, ao perceber o movimento migratório em São Paulo ao longo dos anos 1970 e 80 - padrão replicado no resto do país. Os padrões dos condomínios e essa associação de status serão abordados mais a fundo no segundo tópico deste capítulo.

Outra característica marcante que diferencia o modelo condominial das áreas de subúrbio é a variabilidade de oferta de usos além do residencial dentro do mesmo empreendimento. Essa multiplicidade de usos, dentro dos loteamentos fechados, conceituada também como uma descentralização de serviços aliada ao processo predominantemente residencial dos condomínios horizontais, sugere um funcionamento autônomo de periferias que

4 Expressão do latim que significa “fugir da cidade”. | 43 |

antes eram dependentes de núcleos centrais. Assim, é possível perceber uma separação dessas localidades em relação ao núcleo urbano consolidado.

O padrão de ocupação que oferece a multiplicidade de serviços dentro dos grandes empreendimentos faz parte de uma estratégia para atrair usuários, que, já isolados do tecido urbano consolidado, necessitam de uma infraestrutura local de grande porte para sua manutenção no próprio empreendimento. Essa infraestrutura engloba necessidades locais que já não fazem parte da demanda a nível urbano e estatal gerada pela dispersão, mas sim da própria privatização, como áreas de estacionamento, limpeza e segurança.

(REIS, 2006, p. 91).

Essa multiplicidade é colocada por Ramón López de Lucio (1998) como uma especialização de fragmentos do território, que geram novas centralidades e a privatização do espaço público (LÓPEZ DE LUCIO, 1998, apud REIS, 2006, p. 35). Essa privatização ocorre pela tendência dos condomínios e empreendimentos privados de grande porte das classes média e alta a assegurar todos os serviços que seriam de ordem pública para dentro dos condomínios de forma privada, como parte dos custos condominiais (REIS, 2006, p. 148). Tal modelo de organização busca criar conjuntos com centralidade própria, injetando valor no solo urbano construído mais do que com condomínios isolados sem ofertas de serviço no próprio local. A lógica de construção e venda dos condomínios é explicitada por Goulart (2006): [utilizando] glebas isoladas, fora do tecido urbano e sobretudo as mais afastadas, constituindo formas de urbanização dispersa, os empresários têm a possibilidade de promover um jogo importante com o valor dos terrenos. Comprando áreas maiores, a baixo preço, com um mix adequado de modalidades de utilização podem fazer com que as formas de ocupação de alguns terrenos terminem por valorizar extraordinariamente os remanescentes, de modo que o conjunto possa ser comercializado, a curto prazo, com valores elevados. É como se os empresários pudessem realizar, em poucos anos, a valorização que o adensamento de usos provoca nos tecido tradicionais, ao longo de um século. (REIS, 2006, p. 160).

Com essa estratégia, os empresários urbanizadores tomam controle da lógica de uso de solo, além de parâmetros econômicos mas também na organização espacial, definindo normas urbanísticas e de padrão arquitetônico próprias, desvinculadas do tecido urbano em que se inserem - permi| 44 |

tindo uma alteração nessa mesma lógica de acordo com o mercado e não mais por políticas públicas (REIS, 2006, p. 160). Caldeira (2000) pontua que além da alteração da paisagem, essa regulação privada do espaço urbano gera espaços caóticos na cidade - ruas e calçadas (quando existem) estreitas e sem regulação de infraestrutura (CALDEIRA, 2000, p. 247).

Essa atuação é prejudicial à consolidação e regulamentação de normas de urbanização que abarque todas as classes e não somente as inseridas pelo modelo dos empreendimentos, além de voltar para dentro dos condomínios, ou seja, para dentro dos muros, os espaços de definição social - reforçando, novamente, a segregação característica da urbanização dispersa.

A difusão de um modelo com alta variabilidade de usos e massiva infra-estrutura confere, também às áreas dispersas, características metropolitanas, como observado por Francesco Indovina (2003, apud REIS, 2006, p. 131). A complexidade da urbanização dispersa é notada no fato da codependência entre os locais afastados de habitação e o afastamento das ofertas de serviços, como explicado por Goulart (2006): (...) a vida cotidiana se organiza na dependência de grandes centros comerciais e de serviços, situados a grandes distâncias, geralmente nas proximidades dos grandes eixos rodoviários, ou seja, também eles descentralizados. De outro, porque essas áreas isoladas são instaladas com disponibilidade de completa infra-estrutura, que até então só seria disponível em núcleos centrais (...). Mas agora a infra-estrutura, o comércio e os serviços, com níveis elevados de sofisticação, são também eles descentralizados. (REIS, 2006, p. 131).

É necessário, ainda, pontuar a dispersão dos serviços de comércio, que numa lógica de ampliação da produção, seguem o processo de descentralização das indústrias. Assim, é possível notar um padrão de concentração em áreas dispersas, em um grande movimento contraditório que tem por fim dar suporte aos grandes empreendimentos urbanizadores residenciais. A gestão do comércio passa a se assemelhar às formas de condomínios, passando de áreas livres públicas para espaços coletivos de ordem privada, como os shoppings centers (REIS, 2006, p. 140-141).

Eles [os novos conjuntos de edifícios] seguem o mesmo padrão arquitetônico e de planejamento dos condomínios fechados, e se não são necessariamente murados como os complexos

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residenciais, certamente são fortificados e utilizam extensos serviços de segurança para manter à distância pessoas indesejadas - e para controlar seus próprios trabalhadores. Como mundos autossuficientes, esses arranjos são extremamente versáteis e podem ser instalados em qualquer lugar onde o terreno seja barato o suficiente para tornar o investimento lucrativo. Como ocorre com os complexos residenciais, eles estão sendo instalados em regiões que antes eram pobres.

(CALDEIRA, 2000, p. 251).

Essas localidades são dotadas de grande infraestrutura própria e buscam centralizar uma diversidade de serviços ao máximo como forma de maior aproveitamento desta estrutura em um só local. Há, também, os locais de especialização, que concentram uma área de comércio ou empresariais específicas. Em qualquer um dos casos, são locais desconexos do contexto da cidade e geram demandas de suporte a nível urbano, como pavimentação e redes de abastecimento e coleta, mas não devolvem o investimento à cidade, restringindo seus usos à uma parcela da população que já dispõe de mobilidade privada, além de reforçar o processo da dispersão e os vazios intersticiais entre esses grandes empreendimentos - caminhos para a segregação e negação do espaço público: As fronteiras tendem, assim, a formar hiatos de uso em suas redondezas. Ou, em outras palavras, devido ao uso supersimplificado da cidade em certo lugar, em grande escala, elas tendem a simplificar também o uso que as pessoas dão às áreas adjacentes, e essa simplificação de uso – que significa menos frequentadores, com menos opções e destinos a seu alcance – se autoconsome. (JACOBS, 2000, p. 178).

Esse movimento de autossuficiência dos novos locais de urbanização pode conferir um status de edge city5 aos empreendimentos - centros urbanos criados que cumprem as funções básicas do cidadão urbano: habitar, trabalhar, circular e recrear, circundados por extensas áreas verdes. Seria a volta da cidade-jardim, se não fossem concebidas em espaços fechados e controlados que ferem o espaço público livre e democrático.

5 Conceito criado pelo escritor e jornalista estadunidense Joel Garreau, que na tradução significa cidade às margens.

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Uma grande crítica de diversos autores como Goulart, Solà-Morales, Vittorio Gregotti e Zygmunt Bauman ao modelo de urbanização vigente é a dissolução entre os espaços antes públicos ou privados a locais de interações seletivas - conceituado por Bauman como mixofobia (medo de misturar-se).

A tendência, como nota Goulart, é a adoção do caráter de condomínio em todas as situações nas quais há a inserção de infraestrutura e serviços nos empreendimentos privados (REIS, 2006, p. 46). A questão é o progressivo abandono do espaço público: “Muitos autores importantes e muitas experiências destes últimos trinta anos puseram em evidência a crise do espaço público: o seu progressivo abandono tem como fenômeno simétrico o de sua progressiva privatização” (GREGOTTI, 1994, apud REIS, 2006, p. 46). O autor ainda estabelece a relação intrínseca dessa estrutura segregadora à violência, preconceito e obsessão por segurança, hoje conceitos aproveitados pelas empresas urbanizadoras para vender o estilo de vida dos condomínios.

Nesse modelo de segregação, os muros são incorporados no processo de expansão urbana como uma separação física palpável e não mais baseada em distâncias (centro-periferia),

adotada por uma população discriminatória e obcecada por segurança (CALDEIRA, 2000, p. 231).

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2.2 | A incorporação dos muros no modelo

O novo modo de habitar das classes média e alta pode ser entendido como a fusão de dois movimentos marcantes na cultura brasileira: a busca por espaços livres e o desejo de presença da natureza; e a necessidade de serviços e de áreas de lazer e esporte, antes encontradas em empreendimentos de lazer especializados. Como colocado por Sposito (2013, p. 10), Compreender as escolhas dos citadinos exige reconhecer essas tendências (onde e como morar, como de deslocar, que espaços frequentar, que percursos realizar) revelam esse mosaico de codeterminação entre a cidade e suas novas práticas espaciais.

Anteriormente às grandes rodovias dos anos 1970 e 80, as famílias mais ricas possuíam uma residência permanente nas áreas tradicionais da cidade e outra destinada ao lazer, em áreas mais afastadas. Com o aumento da mobilidade, a inversão desse padrão se tornou comum, valorizando a qualidade de vida dos locais suburbanos1 (REIS, 2006, p. 134 e 135).

Porém, a explosão do novo modo de habitar se populariza entre a classe média justamente pelos impactos negativos do crescimento da mobi-

1 É preciso ressaltar que a junção entre lazer e morar não torna a acontecer somente no modelo disperso dos condomínios horizontais mas também no processo de verticalização das cidades, onde passa-se a reservar áreas comuns como piscinas e academias nos edifícios residenciais nos bairros consolidados.

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lidade: o aumento da poluição, dos congestionamentos2 e do adensamento intensificam o “caos urbano”, incentivando a busca por melhor qualidade de vida. Como pontuado por Nestor Goulart, essa parcela da população não busca atendimento à serviços básicos de infraestrutura urbana, como as classes baixas, mas elevação de seu padrão (REIS, 2006, p. 149). A gestão pública não é capaz de fornecer as melhorias esperadas, gerando um nicho de mercado para empresas urbanizadoras, que atendem às necessidades de lazer, natureza, segurança e comodidade ao mesmo tempo em que desrespeitam as leis de uso e ocupação do solo, zoneamento, preservação ambiental e histórica.

Com as necessidades políticas de regularização desses locais, a gestão pública passa a fornecer a infraestrutura urbana necessária para consolidação dessas novas áreas, incentivando ainda mais a dispersão e irregularidade dos grandes empreendimentos residenciais.

A produção habitacional da elite nesse momento, segundo Secchi (2009), é baseada especialmente na obsessão pelo conforto. Os espaços buscam dar uma dimensão ao cotidiano, ao habitar e a articulação entre os equipamentos necessários para prover o desenrolar do dia-a-dia da forma mais prática possível. O conforto se expressa em todas as relações entre o sujeito e o espaço no qual se insere - seja dentro do seu espaço privado do habitar, seja todo o local circundante externo (SECCHI, 2009, p. 181-185).

O conforto citado por Secchi é grandemente associado com a presença da natureza. Como explicado por Filgueiras (2016), o campo possui um símbolo atrelado de fuga e descanso. Em um contexto de elevada urbanização, o campo passa a ser possível intramuros: A liberdade que o campo simbolizava, a fuga da desordem e do descontrole da cidade, agora passa também a ser representado pelo quintal, pelo jardim da residência, pelo espaço privado. Um lugar cuja liberdade e isolamento são garantidos pelo muro. (FILGUEIRAS, 2016, p.82).

Em suma, os moradores de tecidos dispersos, com o fluxo de mobilidade, serviços, comércio e indústrias, têm atualmente a possibilidade de

2 Harvey aponta que, em Baltimore, os locais que mais sofrem com os congestionamentos possuem, também, a maior quantidade de moradias vagas (HARVEY, 1980, p. 120).

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acesso a todas as ofertas características de cidades urbanas consolidadas e ao mesmo tempo do campo em locais com organização própria, coletivista e segregada do restante da sociedade (REIS, 2006, p. 151).

O espraiamento suburbano é um crescimento canceroso, em vez de um crescimento saudável, e está destruindo a vida cívica (...). Suburbanitas sentem o que está errado com os lugares em que habitam. Trânsito, tempo de locomoção diária, e grandes distâncias de locais de compras, trabalho e lazer estão altamente cotados entre suas reclamações. Mas todos esses inconvenientes poderiam ser mais suportáveis se os subúrbios não fossem tão carentes da maioria dos sinais de comunidade (...). A estrutura do subúrbio tende a confinar as pessoas a suas casas e carros; ela desencoraja caminhadas, passeios e interações com vizinhos. O subúrbio é a última palavra em privatização, talvez, inclusive, sua consumação letal, e ainda soletra o fim da vida civil autêntica (DUANY e PLATER-ZYBERK, 1992, p. 1 apud MOURA, 2010, p. 212).

A opção por morar em uma área afastada é ainda mais contraditória ao analisar os depoimentos contidos nos livros Cidade de muros, de Teresa Caldeira e Espaços Fechados, de Sposito e Góes. Diversos moradores entrevistados pelas autoras citam que apreciam o distanciamento do centro da cidade e do caos urbano, mas dão indícios que desejariam um acesso mais próximo de serviços amplos e diversificados. Em suma, pode-se perceber que a moradia dispersa possui suas bases na busca pelo afastamento das diferentes classes sociais presentes na cidade consolidada e não necessariamente dos atributos da cidade em si.

Uma das principais diferenças no que tange à convivência entre as formas de tecido urbano tradicional e a criada pela condominialização é a distinção entre público e privado. No primeiro caso, a separação dos espaços é clara, enquanto dentro dos locais fortificados são criados espaços de convivência coletiva, porém, segregados do restante da sociedade e portanto, dos espaços de sociabilidade.

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Blakely e Snyder (1997) listam 3 categorias principais da motivação

ao cercamento. A primeira são as comunidades3 que oferecem serviços e atividades de lazer protegidos pelos muros, seguidas pelas tipologias voltadas às elites, que se destacam na organização hierárquica e marcam seu prestígio social. A terceira categoria (mais frequentemente vista nos empreendimentos da classe média no Brasil), é motivada pelo medo do crime, em que os muros são vistos como elementos de segurança (BLAKELY e SNYDER, 1997, p. 4), muitas vezes inseridos em uma lógica de ostensiva segurança privada, com aparatos físicos e tecnológicos que distanciam os sujeitos externos aos muros cada vez mais da realidade interna. Os autores pontuam, ainda, que essas categorias refletem valores sociais, como a separação do resto da vida em sociedade, o desejo de substituir serviços públicos à modalidades privadas e a necessidade de vida junto à similares (BLAKELY; SNYDER, 1997, p. 5).

A vontade subconsciente (ou mesmo consciente) de separação de classes tem origem em imaginários coletivos4 muito além dos abordados neste estudo, mas que são de grande importância para compreender as razões de ainda serem (re)produzidos modelos segregatórios que constroem a identidade da cidade e da sociedade. Bernardo Secchi (2009) e Teresa Caldeira (2000) assinalam que a concentração de parcelas pobres da população sempre causou desconforto, especialmente em momentos marcados por doenças que assolaram grandes cidades, como a lepra, a peste e a varíola - desordens sociais que, acompanhadas à sujeira e à promiscuidade, associaram-se ao crime e fixaram medos no imaginário coletivo (CALDEIRA, 2000, p.214 e SECCHI, 2009, p. 62). Esses casos geraram políticas de exclusão específicas, como nota Caldeira: Além de controlar os pobres, a elite começou a separar-se de-

3 No caso dos autores, há a abordagem sobre o viés da construção do senso de comunidade nos subúrbios, tipicamente americano. Caldeira (2000) pontua que em São Paulo os incorporadores imobiliários não procuram dar um caráter aos empreendimentos de vida comunitária, mas apenas como um local residencial socialmente homogêneo (CALDEIRA, 2000, p. 309). Essa análise pode ser estendida de forma geral às cidades brasileiras.

4 Sposito e Silva descrevem o imaginário coletivo como “elemento constitutivo da origem social, não como reflexo da realidade, senão como parte integrante dela, que define as estruturas de significados fixadas em processos históricos e culturais concretos, nos quais as pessoas dão forma e sentido à sua existência” (SILVA, 2004 apud SPOSITO, 2013, p. 14). | 51 |

les. Temendo epidemias - assim como temem o crime hoje - e identificando os pobres e suas condições de vida a doenças e epidemias, os membros das elites começaram a mudar-se das áreas densamente povoadas da cidade para regiões um pouco afastadas e com empreendimentos imobiliários exclusivos.

(CALDEIRA, 2000, p.214).

E Secchi, ao perceber a combinação de padrões e mecanismos habituais aplicados na organização do espaço: A escolha de lugares inacessíveis, bem defendidos por barreiras naturais, construções de fossos e muralhas, mecanismos jurídicos que limitam o acesso, a saída ou o trânsito, definem o estatuto especial de determinados lugares ou territórios. O catálogo dos mecanismos não é infinito; ao longo da história eles são aperfeiçoados e ajustados, é dada a eles uma importância e uma prioridade diferente; principalmente, eles são combinados e justificados diversamente. (SECCHI, 2009, p.63).

Essas exclusões são conceituadas por Bauman como mixofobia - o medo de misturar-se. Essa aversão é a manifestação conceituada aos espaços plurais e democráticos, à variedade de pessoas e estilos de vida, que são expandidos e mais amplamente abarcados na cidade com o fenômeno da globalização. A materialização desse medo se dá na formação de espaços e configurações locais e urbanas que buscam a desintegração da vida comum e a conformação de locais homogêneos e controlados (BAUMAN, 2009, p.

22). O autor ainda coloca que esse medo decorre da insegurança gerada pela participação diversa no espaço coletivo, retirando-se das ações de alteridade (BAUMAN, 2009, p. 22).

Quanto mais tempo se permanece num ambiente uniforme – em companhia de outros “como nós”, com os quais é possível “se socializar” superficialmente, sem correr o risco de mal-entendidos e sem precisar enfrentar a amolação de ter de traduzir um mundo de significados em outro –, mais é provável que se “desaprenda” a arte de negociar significados e um modus convivendi. (BAUMAN, 2009, p. 23).

Bernardo Secchi frisa, no entanto, que a segregação de um território não é causada somente pelo medo, mas atuam nela também tradições científicas e profissionais, especialmente as políticas urbanas (SECCHI, 2009, p.

65). É através do discurso do medo do crime que grupos sociais se separam | 52 |

e privatizam a segurança (com guardas contratados e aparatos de identificação e triagem), reproduzindo a sensação de perigo5 e mascarando preconceitos raciais e de classe (CALDEIRA, 2000, p. 9-10).

O medo e a fala do crime não apenas produzem certos tipos de interpretações e explicações, habitualmente simplistas e estereotipadas, como também organizam a paisagem urbana e o espaço público, moldando o cenário para as interações sociais que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamente vai se cercando de muros. A fala e o medo organizam estratégias cotidianas de proteção e reação que tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu universo de interações. (CALDEIRA, 2000, p. 27).

Sposito e Góes (2013, p. 164-165) notam que a participação da violência enquanto agente causador de segregação é, na realidade, uma “insegurança urbana” e não a violência urbana em si. Os diferentes tipos de crime são simplificados e adequados à um discurso generalista que encobre certas questões que, além de não serem resolvidas pelos muros, reforçam a discriminação e isolamento de certas classes sociais. As autoras citam ainda, Carrión e Nuñez-Vega, que analisam que “a percepção de insegurança é três vezes maior que os casos de violência”6 (SPOSITO; GÓES, 2013, p. 166). Entende-se, então, como o imaginário coletivo gera um sentimento de violência que é da cidade e não na cidade (SPOSITO, GÓES, 2013, p. 168), ficando mais claro o entendimento do processo do isolamento.

É importante notar, como colocado por Caldeira (2000), que a fala do crime não é somente um discurso abstrato mas também uma materialização nos muros, cercas elétricas e câmeras de vigilância. Os portões com acesso controlado geram práticas de suspeita e fazem parte de uma comercialização de força de segurança privada muitas vezes violenta e de práticas ilegais (CALDEIRA, 2000, p. 44-55-90). Todos esses elementos de organiza5 Teresa Caldeira em seu livro Cidade de Muros conceitua conversas, piadas e comentários cotidianos sobre o crime como fala do crime. A autora nota que essas narrativas fazem o medo se proliferar, reforçando estereótipos no imaginário coletivo e legitimando aparatos de isolamento como proteção.

6 A pesquisa dos autores refere-se a Quito.

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ção em grupos segregados alteram a condição do espaço público como local de exercício da democracia. A autora observa que a fragmentação dos tecidos urbanos pode ser entendida como uma tentativa da elite de retomar o controle sobre grupos marginalizados que ascenderam politicamente na luta pelo direito à cidade. Os muros funcionam para “estigmatizar, controlar e excluir aqueles que acabaram de forçar seu reconhecimento como cidadãos, com plenos direitos de se envolver na construção do futuro e da paisagem da cidade.” (CALDEIRA, 2000, p. 255).

Além disso, o próprio modelo de expansão segregado e marginalizador contribui para a reforçar a mixofobia e a produção do crime. Gottdiener (1997) coloca que O desenvolvimento desigual, especialmente o acesso inadequado ao emprego e salários aceitáveis, causa patologias sociais, como o crime. Alguns desses problemas se manifestam no espaço e afetam tanto o próspero como o menos afortunado. (GOTTDIENER, 1997, p. 271).

Percebe-se que a questão da segurança dentro da urbanização dispersa e fragmentada é um ciclo vicioso. Além de todos os efeitos palpáveis do crime no espaço, tem-se ainda questões que permeiam sobre os imaginários coletivos, como a suspeita constante. Ela é reforçada por uma “‘política do medo constante’” (PEREIRA, 2016, p. 60), alinhado com a fala do crime descrita por Caldeira. A mídia e o mercado da arquitetura da segurança alimentam a desconfiança sobre o estranho, incentivando enclausuramentos e a perda da empatia cívica - comum à vida pública: Para que essa situação se legitime basta a ação dos próprios indivíduos que se enclausuram, evitam a rua e giram suas chaves nas trancas de suas diversas fronteiras de passagem, renovando em cada ação a presença do risco e o cultivo do medo. A mixofobia, assim, se expande, tornando-se processo naturalizado no ethos urbano ao mesmo tempo em que reforça o paradoxal conflito do indivíduo que vê a diferença simplesmente naquele que parece extrapolar seu núcleo comum, mas, ao mesmo tempo e de forma também paradoxal, anseia a segurança de uma homogeneidade artificialmente elaborada.

Os impactos disso são expressos nas cidades – da arquitetura à paisagem –, nas interações nas ruas e, principalmente, nos espaços públicos. (PEREIRA, 2016, p. 60).

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Além disso, há que se considerar que o universo do crime também inclui o fracasso das autoridades legais de ordem (como a polícia e o sistema judiciário), que reforçam a práticas dos meios individuais de proteção e justiça como único modo capaz de driblar os “perigos” aos quais as pessoas estão expostas na cidade. “Ou seja, para se sentirem seguras, elas têm de construir muros.” (CALDEIRA, 2000, p. 98), interpretação reforçada por Blakely e Snyder (1997, p. 3): Os desenvolvedores de condomínios fechados veem si mesmos como provedores de segurança. A população idosa é alvo desses empreendimentos desde os anos 70 (...) Aqueles tidos com necessidade de muros agora também incluem os pais com filhos que moram fora, que são mais prováveis de realizarem viagens por longos períodos, e famílias de renda dupla, em que ninguém permanece em casa durante o dia. Segurança é vista como liberdade não só do crime mas também de incômodos como vendedores e agentes eleitorais, adolescentes arteiros e estranhos de qualquer tipo, mal-intencionados ou não. De acordo com nossa pesquisa, entre os comitês de associações comunitárias que pensam que experienciam menos crime que as áreas ao redor, a maioria crê que o portão é a razão. ( tradução livre7).

Seria excessivamente simplista reduzir o crime e a segurança à questão dos muros. Gehl (2015, p. 97) destaca que “simples soluções individuais urbanas de prevenção à criminalidade não ajudam muito em locais onde a sensação de insegurança tem profundas raízes nas condições sociais.”.

Além de ser um tema extremamente complexo, Holanda faz a análise de que Primeiro, o inimigo pode morar dentro de casa (...) Em segundo lugar, esquecemos que a violência, mesmo deixando de existir em determinados lugares, não deixará de existir na ci-

7 Tradução nossa de “The developers of gated communities see themselves as providing security. The elderly have been targeted for gated communities since the 1970s (...) Those seen in need of walls now also include empty nesters, who are likely to be away on long vacations frequently, and double-income families, in which no one is home during the day. Security is viewed as freedom not just from crime, but also from such annoyances as solicitors and canvassers, mischievous teenagers, and strangers of any kind, malicious or not. According to our survey, among those gated community association boards that think they experience less crime than the surrounding area, most believe that the gate is the reason.”

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dade, que é utilizada por todos - inclusive pelos habitantes de condomínios fechados. Se não atacadas em suas causas - que não são obviamente espaciais, como querem alguns deterministas mais afoitos - elas continuarão a existir, só que em outros lugares. (HOLANDA, 2000, apud FREITAS, 2013, p. 46).

O crime, nesse contexto de lógica separatista entre as parcelas da população, acaba por criar um efeito reverso na segurança dos espaços públicos. Além da colocação de Holanda que não é o muro ou o aparato de segurança inserido no contexto que resolve o problema da insegurança, é necessário compreender também que essa própria reprodução massiva de proteção individualista fragmenta ainda mais a cidade, insere mais barreiras visuais e prejudica o espaço coletivo e a vigilância comunitária, que é reforçada pela presença de pessoas, pela interação entre as fachadas e pelo tratamento adequado das áreas térreas. Como colocado por Santos (2018): É comum a idéia de espaços construídos com o princípio de proteger o indivíduo e não mais de integrá-lo a comunidade. As consequências da busca por segurança é um paradoxo. Pois, a sensação de insegurança e o medo fazem com que espaços “protegidos” nas cidades sejam cobiçados. A criação desses espaços aumenta a fragmentação e a segregação socio-espacial da cidade, provocando assim uma maior sensação de insegurança. (SANTOS, 2018, p. 7).

A divisão do trabalho de observação, cuidado com a cidade e a inversão da segurança gerada pelos muros é descrito de maneira que “quanto mais nos separamos de nossas vizinhanças imediatas, mais confiança depositamos na vigilância do ambiente” (GUMPERT; DRUCKER, 1998 apud BAUMAN, 2009, p. 13) e também por Blakely e Snyder: Por fim, proteção da violência e outras atividades criminais dependem largamente da vigilância ativa dos cidadãos companheiros. Nós somos interdependentes. Muros, portões e outras barreiras, como Peter Marcuse diz, são “a segunda melhor solução”: nenhuma solução que negue o problema tem grande longevidade. Claro, muros são somente medidas temporárias no máximo. Qualquer um que deseja entrar em tal ambiente consegue e entrará. Nosso campo de trabalho e as análises de estudos locais não proveem nenhuma evidência de qualquer redução permanente do crime em áreas muradas de segurança. Portões e cercas não são impenetráveis aos criminoso sérios e eles não fazem nada para reduzir o crime | 56 |

que surge dos residentes. Infelizmente, a maioria dos crime é cometido por pessoas locais que conhecem suas vítimas. Se os muros não protegem, se ele não constroem bairros melhores e se ele não reforçam a vida cívica, eles valem a pena?

(BLAKELY; SNYDER, 1997, p. 10-11, tradução nossa8, grifo nosso).

Os modelos elitizados de oferta de serviços exclusivos e privativos típicos dos condomínios murados buscam, além da separação clara de classes e propriedades - apesar de muitos locais dividirem seus muros com áreas pobres - falsear uma vida pública dentro do espaço privado, construído entre cercas elétricas e câmeras de segurança. Os empreendimentos reproduzem espaços de convivência, numa tentativa de segregar interações típicas de locais públicos em ambientes restritos e socialmente homogêneos (CALDEIRA, 2000, p. 258).

Essa reprodução de espaços de coletividade, dentro de uma lógica de condomínio, está inserida em um modelo de leis, normas e direitos particulares à cada empreendimento, desconexas das leis urbanísticas locais. Por gerirem células “autônomas”, os condomínios criam um sistema de organização que qualifica e altera o próprio local sob a gestão dos condôminos, que escolhem se fazem parte ou não do sistema a partir das ofertas e garantias oferecidas pelos empreendimentos como parte de um “pacote” - segurança e limpeza privadas, contato com a natureza, espaços de lazer e esporte, serviços de babá, entre outros.

O caso das urbanizações fechadas (...) é especialmente grave por constituir um atentado contra a vida pública e comunitária , e é um precedente prejudicial à justiça. A urbanização

8 Tradução nossa de “Finally, protection from violence and other criminal activity largely depends on the active vigilance of fellow citizens. We are interdependent. Walls, gates, and other barriers, as Peter Marcuse says, are “second best solutions: No solution that denies the problem has great longevity. Surely, walls are only temporary measures at best. Anyone who wishes to penetrate such an environment can and will. Our field work and analysis of local studies provide no evidence of any general permanent reductions of crime in walled security areas. Gates and fences are not impenetrable to the serious criminal, and they do nothing to reduce crime arising from residents. Unfortunately, most crime is committed by locals who know their victims. If walls do not protect, if they do not build better neighborhoods, and if they do not bolster civic life, are they worth it?

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fechada se governa de acordo com suas próprias normas internas - o estatuto do condomínio -, rejeita as leis estatais e municipais e evita contribuir com seus impostos para as obras coletivas da porção municipal onde está radicada. (MONTANER; MUXI, 2014, p. 89).

O modelo de garantia de serviços por meios privados e não mais de ordem governamental representa um desafio para a gestão pública dos espaços, uma vez que a organização intra-muros passa a ser tão autônoma que deslegitima a presença de autoridades públicas (CALDEIRA, 2000, p. 11).

Além das questões sociais dos condomínios, deve-se também analisar o tratamento urbanístico e arquitetônico aos quais são submetidos os conjuntos. Pelo viés prático de isolamento, há a adoção de ferrenho fechamento ao exterior: os muros. Eles tornaram-se expressões típicas da identidade brasileira em uma estratégia de proteção e reação à insegurança, sendo caracterizados por “muros altos, cercas eletrificadas e guarita de controle de acesso à entrada” (FREITAS, 2013, p. 44). Esses elementos reforçam a separação entre dois mundos: o público heterogêneo e o privado homogêneo.

O autor Nestor Goulart (2006) compara a aparência externa dos condomínios com presídios (REIS, 2006, p. 181). Esse padrão das cidades dispersas carrega em sua imagem os traços de sua segregação: “elas [as estratégias de proteção] estabelecem diferenças, impõem divisões e distâncias, constroem separações, multiplicam regras de evitação e exclusão e restringem os movimentos.” (CALDEIRA, 2000, p. 9). Como colocado por Jacobs (2000, p.

177), “As fronteiras são quase sempre vistas como passivas, ou pura e simplesmente como limites. No entanto, as fronteiras exercem uma influência ativa.”. Essas operações trazem à perspectiva do pedestre a quem servem: as classes média e alta.

O espaço “privê” com seus muros e dentro deles as casas grandes e suntuosas, as avenidas amplas, as áreas verdes particularizadas, o comércio local, a possibilidade do controle dos vizinhos, são símbolos que expressam a significação do espaço fechado e privativo, que na busca estrutural da segregação do espaço são sinônimos de grandeza e poder para fechar um espaço (BARROS, 1996, p. 74 apud FREITAS, 2013, p. 45).

Para adentrar os enclaves fortificados deve-se primeiro adquirir permissão e passar por uma seleção, passando por um processo de “identificação, triagem e controle de circulação” (CALDEIRA, 2000, p. 319). Os espa

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ços retiram o direito à livre circulação e obrigam os cidadãos a se submeterem a um sistema de controle e vigilância, “em uma negociação constante de barreiras e suspeitas” (CALDEIRA, 2000, p. 319). A cidade torna-se restritiva, marcada por exclusões; e a experiência urbana deixa de ser convidativa e afetuosa - “sinais de distância social [como bens, propriedades e distâncias físicas] são substituídos por muros concretos” (CALDEIRA, 2000, p. 325).

Em consonância à aparência carcerária colocada por Goulart, Montaner e Muxi descrevem que “De certo modo, o bairro fechado não deixa de ser uma versão voluntária e luxuosa de uma prisão.” (MONTANER; MUXI, 2014, p.

89).

As entradas e saídas, administradas e vigiadas por um complexo sistema de segurança privado aos empreendimentos, dão acesso à um sistema de circulação interno que busca reproduzir as grandes avenidas bucólicas européias: canteiros centrais arborizados, caixa viária larga, sinalização diferenciada e elementos de controle de velocidade. Curiosamente, em muitos condomínios pode-se ainda encontrar as vias internas com o desenho em cul-de-sac, em uma geometria que torna a rua ainda mais particular “pois não oferece passagens, assim, é acessada apenas a quem compete por ela circular.” (FREITAS, 2013, p. 52).

Além de restringir o uso das vias internas dos locais fortificados, os muros ainda possuem o efeito de transformar as ruas externas em locais de quase exclusiva circulação de veículos e não mais como espaço democrático de encontros fortuitos - característica primordial de espaços públicos de qualidade: “Substituindo as ruas como estrutura vertebral da metrópole, as rodovias foram configuradas contra o espaço público tradicional da rua, tornando-se a negação de sua essência.” (MONTANER; MUXI, 2014, p. 117).

Todos os elementos que se encontram dentro do cercamento não possuem integração e troca de olhares com o exterior. A rápida expansão urbana e reprodução do modelo dos condomínios geralmente não é acompanhada pela oferta de infraestrutura urbana e as calçadas e vias externas não são adequadas para circulação, além de serem margeadas por muros fora da escala humana equipados por itens de segurança privada.

Diante de uma organização própria, os empreendimentos possuem identidades visuais (além dos aparatos hostis de vigilância) que marcam os locais de acordo com a imagem que procuram passar sobre o status e a | 59 |

desça para pegar pizza e outras encomendas. o boy não pode ficar solto pelo condomínio

Entrada e saída: atenção com os portões do condomínio

não permitir a saída de visitantes que carregue objetos ou pacotes, sem autorização do morador visitado

77% dos crimes foram realizados com a entrada de bandidos pela porta da frente

garagem com clausura

controle de acesso rigoroso

ao receber visitas de pessoas que não sejam íntimas, prefira utilizar as áreas comuns do seu condomínio, de preferência à vista dos funcionários do empreendimento

evitar permitir que os empregados domésticos ou crianças possam autorizar o acesso de visitantes

S E G U R A N Ç A

Na entrada e saída de pessoas do condomínio, somente abrir o portão após verificar se não há suspeitos nas proximidadas

portões

autorização restrição

ao abrir o portão da garagem, identificar o motorista e observar se não há ao atender visitantes, risco de entrar alguém junto na ausência de claunão fique do lado de fora do prédio ou perto da grade, onde o bandido pode te render

sura, o porteiro deve manter os portões fechados e as pessoas do lado externo do condomínio

desconfie das aparências controle remoto e botões de pânico

qualidade do morar no local. Com a oferta de serviços e as grandes glebas ocupadas, as incorporadoras possuem a preocupação de implantar traçados adequados para melhor regimento interno do conjunto, com tratamentos paisagísticos e de atendimento e distribuição dos serviços de forma prática.

Entretanto, o cuidado com a estética dos condomínios é majoritariamente baseada em modismos, que caem em padrões de repetição e marcam a paisagem dos novos tecidos urbanos (REIS, 2006, p. 163), em um processo de tratamento monumental da arquitetura (além da adoção de nomes aristocráticos para os conjuntos), com formas que contrariam a essência da disciplina: servem mais à decoração marketeira9 que à funcionalidade (REIS, 2006, p. 172).

Com suas frequentemente elaboradas guaritas e entradas arquitetônicas, os portões promovem diferenciação de produto e clareiam suas identidades em um novo mercado tumultuado e competitivo. Além disso, quando um significante atributo como um campo de golfe ou um lago faz parte do empreendimento, o portão controla o acesso e garante aos compradores que suas cortesias serão somente deles. (BLAKELY; SNYDER, 1997, p.3, tradução livre10).

Apesar de monumentais, os tratamentos arquitetônicos dos condomínios ainda possuem um caráter de comunidade feliz e familiar: “Enquanto os centros terciários, formados desse urbanismo tarde-capitalista, adotam as formas da alta tecnologia, a moradia adota uma imagem tradicional, embora ambas se baseiem no máximo controle tecnológico.” (MONTANER; MUXI, 2014, p. 123). Como explicitado por Bauman (2009), A guerra à insegurança, aos riscos e aos perigos está em curso dentro da cidade; nela, os campos de batalha são nitidamente delimitados, e as linhas de frente são “demarcadas”.

9 Que faz jus ao marketing.

10 Tradução nossa de “With their often-elaborate guardhouses and entrance architecture, gates provide product differentiation and clear identity in a crowded and competitive new home market. Also, whenever a significant recreational feature such as a golf course or lake is part of a development, the gate controls access and assures buyers their amenity will be theirs alone.”

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Embora assumam formas muito diversas, e seus designers se esforcem para assimilá-las ao panorama das cidades – “normalizando” o estado de emergência no qual os moradores, viciados em segurança, vivem o dia-a-dia –, as trincheiras fortificadas e os bunkers destinados a separar e manter distantes os estrangeiros, barrando seu acesso, se transformam rapidamente num dos traços mais visíveis da cidade contemporânea. (BAUMAN, 2009, p. 30).

A configuração de oferta de terreno, áreas verdes e serviços possui impacto na paisagem e na dinâmica urbana, como notado por Goulart (2006): o autor cita alguns impactos desse modelo de ocupação, discorrendo sobre suas falhas já percebidas na época. Primeiramente, o grande loteamento cercado que dá origem ao empreendimento dificulta a implantação do sistema de circulação de pedestres e carros, já que é um obstáculo na malha urbana. Em seguida, o autor nota que as migrações rurais estão se esgotando, diminuindo, assim, os índices de expansão das áreas metropolitanas. Dessa forma, os preços dos empreendimentos caem, desvalorizando o local e desestimulando a plena ocupação das áreas: consequentemente, a viabilidade econômica da grande oferta de serviços passa a ser questionada e o modelo, esgotado.

Apesar disso, a segregação ainda possui impactos sócio-político-ambientais que não serão esgotados ou contornados tão cedo. A discriminação e a exploração da terra marcam um tempo na contemporaneidade, sendo mais preocupante ainda a crença de que os muros protegem os “murados” de todos esses impactos, como se fossem, de fato, desconexos da malha urbana e da sociedade (MONTANER; MUXI, 2014, p. 90).

A cidade, dividida por fronteiras de todos os gêneros, não será mais “uma”. Se ela não é, efetivamente, mais que uma acumulação de enclaves, residenciais, comerciais, de lazer etc., ela não é mais cidade, como tendem a sublinhar certos autores. Ela, então, não seria mais somente segregada, seria igualmente fragmentada, o que significa que não haveria mais relações entre os diferentes fragmentos que a “compõem”, os “enclaves” que se ignoram mutuamente.” (CAPRON, 2006, p.

15 apud SPOSITO; GÓES, 2013, p. 295).

Sposito e Góes (2013) também analisam algumas facetas do cercamento voluntário, de extrema importância para compreensão da crítica à

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esse modelo de moradia: 1) Denota privatização indevida de espaços que deveriam ser, por princípio jurídico, propriedade pública, ou seja, negam o direito à propriedade (...)

2) Nega a cessão ao uso público e de direito de todos, de porção de glebas que, por processo de parcelamento, passam da condição jurídica de rurais a urbanas, denegando, em outras palavras, o direito à apropriação; 3) Inviabiliza o direito de ir e vir, porque nem todos podem circular por esses espaços, ou ir de um ponto a outro da cidade passando por eles; 4) Impede a constituição plena desses espaços como suporte e condição da esfera pública, quando filtra, por meio de sistemas de controle e vigilância, o direito à frequência a tais espaços; 5) Revela a tendência à individualização da sociedade, visto que, esses espaços, de um lado, procuram reproduzir o espaço da cidade com suas ruas, calçadas e áreas de lazer e, de outro, negam-na ao desejarem a produção de espaços de estar entre os seus. (SPOSITO; GÓES, 2013, p. 157).

Dessa forma, é possível compreender as bases de interferência ativa dos muros na cidade, relacionando-se desde sua inserção no modelo de expansão até as questões mais subjetivas. Sua função enquanto componente do espaço urbano não deve necessariamente ser reduzido até sua completa dissolução, porém, é possível perceber que o muro não atua mais como elemento secundário mas já se insere muitas vezes em papel de protagonista. É importante pensar sua atuação e suas formas de articulação com o espaço que o cerca (ou que ele cerca), de maneira que retome-se o pensamento do urbano coletivo e, portanto, democrático.

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Domínio público. Edição autoral.

03

| Espaços públicos tradicionais “A cidade se realiza realmente em uma espacialidade em geral chamada de “espaço público” (PEREIRA, 2016, p. 10).

Entende-se por espaço público tradicional aquele que surge dentro uma formação urbana “normal”, conceito explicitado por Bernardo Secchi em seu livro A cidade do século vinte: O termo normal pode ser interpretado em pelo menos duas acepções muito próximas entre si: a primeira se refere à tradição da construção urbana pòs-renascimento (sic) e principalmente entre o século XVIII e XIX, cidade que alguns consideram a mais alta expressão da cultura urbana. (...) A segunda acepção se refere ao uso do termo na geometria, em que normal está para ortogonal: a cidade normal faz muitas vezes e redutivamente referência a uma malha ortogonal. (SECCHI, 2009, p. 79).

Françoise Choay aborda a cidade como o “local ou suporte estático de uma tríplice comunicação engajando a troca de bens, de informações e afetos.” (CHOAY, 1999, p. 69). É colocada também como a união entre o território físico (urbs) e a comunidade de cidadãos que nele habitam (civitas) (CHOAY, 1999, p. 69). Sem território não há população e sem população não há cidade. Essa articulação entre os elementos constituintes da dinâmica societária é fundamental para compreender a necessidade de promover tecidos urbanos de dinâmica qualidade.

Os espaços plurais e democráticos constituídos pela ordem pública são de extrema importância para a constituição da cidade, pois é neles justamente em que é constituído “o domínio do espaço como fonte de poder social” (LEFEBVRE, 1974 apud GOMES, 2002, p. 170). | 65 |

A democracia deve ser entendida como processo que implica a criação de espaços de caráter múltiplo para a atuação dos sujeitos políticos coletivos que tomam como princípio “a cidadania ativa, através da participação popular como possibilidade de criação, transformação e controle sobre o poder, ou os poderes”. (BENEVIDES, 1996, p. 20 apud GOMES, 2002, p. 171).

Garantindo o local onde as manifestações políticas e de cidadania são expressas, garante-se também a participação social na construção do espaço público, democratizando as relações sociais e, consequentemente, a vida coletiva e a cidade (COUTINHO, 1984 apud GOMES, 2002, p. 171). A cidade ainda deve ser pensada e repensada, analisada e experimentada pois, como colocado por Lucas Brasil (2016), a globalização caminha para uma completa urbanização e a maioria da população mundial já vive em áreas urbanas. Dessa forma, a cidade já é parte da memória e do imaginário coletivo, sendo quase impossível dissociar-se dela (PEREIRA, 2016, p. 10).

Para a criação de espaços diversos e inclusivos são necessários elementos que dêem espaço para o exercício da coletividade. Os atributos colocados por Jane Jacobs em seu clássico livro “Morte e Vida das Grandes Cidades” (1960) são, mais essencialmente, características primárias de desenho e configuração urbanas. Nos locais colocados neste estudo, é possível perceber que já há um padrão de urbanização, com tipologias e elementos de densificação definidos. Porém, outros elementos de caráter integrador mais facilmente introduzidos em locais afastados são ainda renegados pela parcela da população que ali reside, como os equipamentos e serviços coletivos: “A presença maior ou menor desses serviços e infraestruturas e sua qualidade caracterizam o grau de segregação socioespacial” (BARBOSA e RAMOS, 2002, p. 113). É possível inferir que a rejeição da instalação de serviços voltados ao uso coletivo é uma característica literal da vontade segregatória.

Em contraponto ao modelo de cercamento, regido pelo coexistir, há locais em que a ausência de delimitação entre espaços públicos e privados é muito tênue, criando uma situação de coabitar. Essa circunstância pode ser vista em favelas, por exemplo. Segundo Gomes (2002), as ruas acabam tornando-se uma extensão das casas (especialmente pela falta de espaço no interior), sendo usadas para atividades domésticas. Quando essa lógica é seguida pela maioria dos habitantes, diante da organização espacial da favela, | 66 |

a vida privada não é de fato privada, sendo compartilhada entre todos os moradores: “A proximidade espacial cria um conhecimento mútuo, uma intimidade forçada mas não consentida, que acaba por diluir os limites do espaço privado, reduzido na sua condição de espaço de intimidade e da individualidade.” (GOMES, 2002, p. 181).

A fragilização de uma vida reservada compromete a liberdade individual (HARVEY, 1992, apud GOMES, 2002, p. 181) e os espaços públicos, já que o anonimato e o desconhecido são elementos essenciais para a manutenção de vida urbana.

A importância que os moradores das favelas conferem ao espaço privado revela que eles o percebem, a princípio, com o mesmo sentido que tinha esse espaço originalmente na pólis grega, conforme salienta Arendt (1983), ou seja: como lugar necessário para o pertencimento ao corpo político. Para os gregos, a propriedade privada, portanto, não tinha o significado moderno de enriquecimento, mas o sentido de oferecer um lugar ao mundo ao indivíduo, imprescindível para sua existência. (GOMES, 2002, p. 181).

Ainda segundo a autora, o processo de apropriação e urbanização dentro das favelas também segue uma lógica de privatização, que é, no entanto, voltada para suprir a carência principal de habitação. Os moradores muitas vezes são relutantes com a criação de espaços públicos como quadras de esporte e praças, pois acreditam que as áreas livres da favela poderiam ser ocupadas por aqueles desabrigados. Além disso, há um temor sobre a tomada do espaço por bandidos e traficantes, que muitas vezes “privatizam” esses equipamentos e, consequentemente, tornam o local inseguro e sem função pública (GOMES, 2002, p. 180).

É possível perceber, então, que um desenho urbano de qualidade com uma delimitação entre público e privado que seja compartilhada e acessível por todos é essencial para a manutenção da dinâmica da cidade e de seus cidadãos.

Um espaço humano favorável ao homem deve fazer com que se alternem o dentro e o fora, o fechado e o aberto, o público e o privado, a solidão e os encontros, o imenso e o minúsculo, o íntimo e o vasto, o pleno e o vazio (...) Poder-se-ia multiplicar ao infinito esses casais de termos contrários e complementares. Eles não se opõem como as faces de uma moeda: ao con-

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trário, cada um deles pode conter uma parte - um aspecto, um germe - do outro. (AUZELLE, 1972, p. 136).

O livre acesso não se caracteriza, porém, somente com a queda das barreiras físicas. Mais que isso, as diversas partes da população devem se sentir parte da conformação dos espaços, livre de suspeitas e vigilâncias carregadas de preconceitos. A acessibilidade, então, diz respeito à democracia, como pontuado por Serpa: [a acessibilidade] está estritamente vinculada, na demarcação dos territórios urbanos, à alteridade, contrapondo uma dimensão simbólica (e abstrata) à concretude física dos espaços públicos urbanos. Pois, a acessibilidade não é somente física, mas também simbólica, e a apropriação social dos espaços públicos urbanos tem implicações que ultrapassam o design físico de ruas, praças, parques, largos, shoppings centers e prédios públicos. Se for certo que o adjetivo “público” diz respeito a uma acessibilidade generalizada e irrestrita, um espaço acessível a todos deve significar, por outro lado, algo mais do que o simples acesso físico a espaços “abertos” de uso coletivo. (SERPA, 2013, p. 16 apud PEREIRA, 2016, p. 91).

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3.1 | Elementos de percepção do espaço público

No que diz respeito ao desenho e disposição de elementos (disciplina essencial para garantir a acessibilidade social), Jane Jacobs (2000) afirma como elementos que conferem diversidade urbana são essenciais para a manutenção da segurança urbana, contato do público e a interação de usos, tais como a variação de usos, a mistura de edifícios de diferentes idades e a produção (com esses atributos) de uma determinada densidade urbana.

Seja de que espécie for, a diversidade gerada pelas cidades repousa no fato de que nelas muitas pessoas estão bastante próximas e elas manifestam os mais diferentes gostos, habilidades, necessidades, carências e obsessões. (JACOBS, 2000, p. 159).

A autora também argumenta que a definição clara entre os espaços mantém a liberdade da cidade e da população - sem que essa definição seja marcada por barreiras: Onde não existem calçadas e espaços públicos vivos, e quando os relacionamentos em público começam a se intrometer na vida privada e a requerer a convivência entre vizinhos, a liberdade da cidade está ameaçada (...) Quando não há vida pública, as alternativas a compartilhar muito podem ser não compartilhar nada, suspeita e medo dos vizinhos. Em suma, para Jacobs, tanto traçar linhas e fronteiras no espaço da cidade como estender o privado no público ameaçam os valores básicos de uma boa vida pública urbana. (CALDEIRA, 2000, p. 304, grifo nosso).

Jan Gehl (2015, p. 19) coloca que “Em cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis, o pré-requisito para a existência da vida urbana é oferecer boas oportunidades de caminhar.” (grifo nosso). Com as tipologias exclusivas | 69 |

e afastadas do espaço urbano vivo e diverso, é possível perceber que a própria tipologia cercada reforça a insegurança urbana que busca repelir, transformando o caráter do espaço público e das configurações sociais e espaciais.

A idéia de espaço público remete a não-restrição de usuários e se destina a abrigar pessoas de diversos padrões econômicos, culturas, ideologias e, por este motivo, ele é considerado, por natureza, democrático. Entretanto, a difusão de modelos arquitetônicos e padrões comportamentais enclausurados como os observados nos condomínios, tem revelado uma lógica onde o sentido de público perde a importância. Junto à diminuição da importância dos lugares públicos das cidades, também tem diminuído a interação entre as pessoas e, ao final, o espírito democrático destes espaços. Diante de tantos malefícios, o grande dilema é saber como restabelecer a dimensão pública sem esbarrar em fórmulas anacrônicas ou exclusivistas. A mídia, que possui um papel fundamental neste contexto, enfatiza principalmente os benefícios da vida em grupos selecionados, com áreas de lazer privativas e convívio entre iguais. (NAHON, 2003, p. 107).

Todos os elementos da paisagem urbana possuem um atributo, um valor característico que confere importância à sua presença. Nenhum elemento é mais essencial que outro e a qualidade do espaço está diretamente ligada à conformação entre cada um deles: no espaço não não só as posições das coisas são importantes por si só, mas na relação que têm umas com as outras. Afinal, é exatamente isso que vai, de forma efetiva, configurar o espaço. (...) Esse espaço social, mais figurativo que tangível, é difícil de se perceber porque está incrustado nos tijolos ao mesmo tempo que ocupa os vazios da praça, da rua, dos jardins. (PEREIRA, 2016, p. 71, grifo do autor).

Segundo Kevin Lynch (2011), um dos principais elementos de construção de um cenário urbano é dado pela legibilidade do espaço. Uma paisagem, no caso, da cidade, deve possuir componentes que permitam um espaço visualmente apreensível e, portanto, compreendido. Para uma identificação, são utilizados sensações e sentidos corporais, como o olfato, o tato, cor, forma, luz e cinestesia (LYNCH, 2011, p. 3-4).

Esses atributos promovem orientação do corpo vivo no espaço, traduzindo-se no conceito de topoceptividade. Além da necessidade de reco-

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nhecimento da inserção do indivíduo e orientabilidade, uma leitura clara do espaço faz parte da formação de imagens que se tornam presentes na bagagem de compreensão da dinâmica dos corpos, em um sentido de reconhecimento dos locais de forma emocional, “outro estado de percepção que surge como resultado da equação entre o conhecer e o reconhecer-se” (FILGUEIRAS, 2016, p. 76). Essa bagagem é importante pois torna possível a um sujeito, inserido em um local, saber interpretar e agir sobre o espaço elemento também de segurança.

Essa relação do sujeito com seu lugar no ambiente tem relação com a própria estética. Como colocado por Lynch, “Um ambiente bonito tem outras propriedades básicas: significado ou expressividade, prazer sensorial, ritmo, estímulo, escolha.” (LYNCH, 2011, p. 12).

No caso específico de reconhecimento de localidades, além dos sentidos mencionados anteriormente, há de se considerar também os elementos próprios de desenho arquitetônico e urbano. Os espaços podem ser caracterizados pela forma, gabaritos, inserção no lote, detalhes, texturas, materiais, tipos de usos, seus habitantes e estado de conservação. Em casos de homogeneidade dessas características, é provável uma perda da referência local e de falta de reconhecimento da identidade do lugar, podendo formar, assim, espaços genéricos. A genericidade faz com que o sentido da inserção de uma certa forma em um certo espaço perca sua relação íntima, a qualidade específica do tratamento dos ambientes para seus locais.

A organização dos elementos da paisagem deve funcionar como símbolo da vida urbana e a própria forma da cidade, segundo Lynch, pode expor a circulação, os usos dos espaços urbanos e os principais pontos focais (LYNCH, 2011, p. 101). A cidade deve dar a possibilidade de visualização e compreensão: Se um limite puder ser atravessado visualmente ou pelo movimento, ele poderá ser mais do que uma simples barreira dominante - desde que seja, por assim dizer, estruturado em alguma profundidade com as regiões de ambos os seus lados.

Ele então deixa de ser uma barreira e torna-se uma costura, uma linha de intercâmbio ao longo da qual duas áreas estão “costuradas”. (LYNCH, 2011, p. 111).

Gehl (2015) sugere atributos para às residências em alternativa à fachadas

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opacas e barreiras visualmente desestimulantes para a boa articulação dos espaços internos e externos: No caso de residências, muitos tipos de vedação parcial podem ser empregados para possibilitar o contato visual e, ao mesmo tempo, garantir que as pessoas não possam olhar para dentro. A proteção pode se dar por telas ou pelo paisagismo, ou pode manter os passantes à distância por meio de escadas, jardins e canteiros estrategicamente colocados. (...) Assim, tem-se uma bela vista da vida urbana, enquanto se garante que ninguém olhe para dentro. (GEHL, 2015, p. 151).

Bernardo Secchi (2009) lê alguns dos elementos descritos por Lynch na articulação dos espaços das cidades antigas, que, segundo o autor, promovem uma sensação de conforto do espaço público, elaborado a partir do equilíbrio entre espaços construídos e não construídos, da orientação dos edifícios, sua materialidade, atributos dispostos em uma dinâmica de dimensões que permite ao sujeito ler a paisagem, reconhecê-la enquanto tal e apreciar a mudança dos elementos ao longo do tempo, sob uma construção emocional do espaço (SECCHI, 2009, p. 104-105).

A íntima relação entre os ambientes dispostos na paisagem urbana permite um entendimento acerca da conexão desses elementos, que, interligados, formam um conjunto entendido como a cidade e o território. Ao contrário dos espaços segregados, uma disposição de qualidade dos atributos que constituem a esfera pública promove uma leitura sobre os estatutos que regem aquele local, ou seja, público e privado são bem definidos e se conectam com o lugar no qual estão inseridos.

O autor, utilizando Siena como exemplo, pontua que a qualidade da dinâmica dos espaços da cidade se dá pois “Siena se constituiu por meio de uma interpretação individual contínua sobre uma mesma estrutura do espaço coletivo; em oposição, a cidade moderna se constituiu como tentativa de dar uma interpretação coletiva a exigências individuais.” (SECCHI, 2009, p. 111).

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3.2 | Heterogeneidade, política e espaço público

A colocação de Secchi leva a uma compressão do porquê a tomada do indivíduo como medida dos espaços é mais efetiva que a criação de comunidades. Young (1990) descreve o senso de comunitarismo como a negação da diferença entre os sujeitos, formando espaços socialmente homogêneos que tendem a ser locais de discriminação (YOUNG, 1990, apud CALDEIRA, 2000, p. 305), como descrito por Caldeira: No contexto de crescente medo do crime e de preocupação com a decadência social, os moradores não mostram tolerância em relação a pessoas de diferentes grupos sociais nem interesse em encontrar soluções comuns para seus problemas urbanos. Em vez disso, eles adotam técnicas cada vez mais sofisticadas de distanciamento e divisão social. Assim, os enclaves fortificados - prédios de apartamentos, condomínios fechados, conjuntos de escritório ou shopping centers - constituem o cerne de uma nova maneira de organizar a segregação, a discriminação social e a reestruturação econômica em São Paulo. Diferentes classes sociais vivem mais próximas umas das outras em algumas áreas, mas são mantidas separadas por barreiras físicas e sistemas de identificação e controle.

(CALDEIRA, 2000, p. 255).

Idealmente, a cidade deve ser um espaço heterogêneo que “exemplifica as relações sociais de diferença sem exclusão” (YOUNG, 1990, p. 227 apud CALDEIRA, 2000, p. 304). A autora, assim como Jacobs, entende que o anonimato é essencial para a preservação da democracia, em uma experiência de alteridade inconsciente. Como colocado por Brasil, “não pode exercer a indiferença é não poder ser diferente.” (PEREIRA, 2016, p. 93, itálico do autor). Bauman (2009) compreende que é nos espaços públicos em que a convivência humana atinge “sua mais complexa expressão, com alegrias, dores, | 73 |

esperanças e pressentimentos que lhe são característicos.” (BAUMAN, 2001, p. 34).

As cidades devem buscar também Diferenciação do espaço social baseada na multiplicidade de usos; erotismo, entendido de modo amplo como uma “atração pelo outro, o prazer e a excitação de ser tirado de uma rotina segura para encontrar o novo, o estranho e o surpreendente.”

(Young 1990:241); e publicidade, que se refere ao espaço público como sendo por definição um lugar aberto e acessível a todos e onde sempre se corre o risco de encontrar aqueles que são diferentes (Young 1990:238). (CALDEIRA, 2000, p. 305).

Bauman (2009, p. 37) coloca que erguer fronteiras é a legitimação da busca por evidenciar as diferenças, em um processo de esclarecimento de classes, posses ou qualquer outra marca de hierarquia social. É justamente por causa das barreiras que essas separações ficam claras, compreendendo-se, em parte então, o porquê da obsessão dos muros e suas bases discriminatórias. Para Lefort (1988), “a democracia é instituída e mantida pela ‘dissolução das marcas de certeza’” (LEFORT, 1988, p. 19 apud CALDEIRA, 2000, p. 307). A abertura dos espaços públicos é uma das grandes marcas de um regime democrático, pois permite e conduz à convivência de grupos socialmente diferentes, criando bases para o exercício da cidadania e da coletividade, em que os cidadãos se reconhecem e se respeitam mutuamente (CALDEIRA, 2000, p. 307).

Espaços públicos de qualidade são tão importantes para a cidadania porque influenciam e comandam a qualidade das interações sociais que nele acontecem (CALDEIRA, 2000, p. 302). Assim, locais que negam esse ambiente de troca e base coletiva não só estão negando a sua própria participação política na cidade como também prejudicam esse exercício a todos que foram excluídos das comunidades muradas.

As cidades devem possuir e fortalecer suas bases de livre acesso, circulação e participação para enveredar na construção de tecidos urbanos que se alinhem às necessidades das populações tradicionalmente excluídas que buscam se erguer no processo difícil de globalização. Como colocado por Bauman, A uniformidade do espaço social, sublinhada e acentuada pelo isolamento espacial dos moradores, diminui a tolerância à di| 74 |

ferença; e multiplica, assim, as ocasiões de reação mixofóbica, fazendo a vida na cidade parecer mais “propensa ao perigo” e, portanto, mais angustiante, em vez de mostrá-la mais segura e, portanto, mais fácil e divertida. (BAUMAN, 2009, p. 25).

“Enquanto nossas cidades crescem, a distância entre os homens aumenta.”

(DOXIADIS, 1966 apud SANTOS, 1997, p. 21). | 75 |

3.3 | O resultado da fragmentação da cidade no espaço

público

Auzelle descreve como a disposição dos elementos do espaço é uma representação literal de uma ideologia, especialmente porque diante de uma lógica de capital envolvido na produção desse espaço, ele é administrado e explorado por grupos particulares. Citando Rousseau, o autor deixa claro como a construção da cidade escancara a luta de classes e a questão do direito à cidade: “O primeiro homem que cercou um terreno e disse isto me pertence, e achou pessoas suficientemente simples para nele acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. A partir daí, quantos crimes, quantas guerras, quantos assassinatos e quantos horrores!” (ROUSSEAU apud AUZELLE, 1972, p. 115, itálico do autor).

A questão da segregação diante deste discurso envolve compreender como o modelo das cidades fragmentadas brinca de forma quase jocosa ao direito democrático do espaço. Reservam-se os grandes terrenos à elite e destina-se a falta de infraestrutura aos pobres, em uma lógica de mercado que não se esgota por uma inteligência das incorporadoras de venda; mas que esgota os cidadãos, como pontuado pelo autor: O poder do capital industrial expulsa cada vez mais a pequena burguesia para longe do centro das cidades; e é também essa mesma força que dá ao mercado imobiliário a forma como conhecemos… (...) É preciso ver que o capitalismo industrial obriga o homem a viver num espaço desmembrado, tende a desintegrar e a corromper cada um dos espaços da vida diária, e que os espaços assim produzidos têm capacidade de romper, de cem maneiras - no plano econômico e o plano político - a plenitude e a unidade da pessoa: onde a coisa reina, o ser se anula. (AUZELLE, 1972, p. 116).

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Então, em um modelo que trata de maneira dispendiosa a infraestrutura urbana, negando o livre acesso dos espaços igualmente entre todos os cidadãos - seja criando barreiras físicas, seja com as grandes distâncias - já é, por si só, um modelo discriminatório. E deve-se ressaltar que a parcela da população que de fato adotou e incentivou essa lógica espacial também está inserida no processo de decadência dos espaços públicos - “o trabalho, a educação, o lazer e o fornecimento continuam dependendo da grande cidade que se abandonou.” (MONTANER; MUXI, 2014, p. 123) - e da urbanidade, importante atributo colocado por Holanda (2010) para mensurar o tratamento adequado do espaço: Urbanidade é um atributo social que implica visibilidade do outro, negociação de papéis e frágil fronteiras entre eles, mobilidade social, estruturas societárias mais simétricas etc. Para seu florescimento a urbanidade precisa de uma arquitetura com determinados atributos: espaço público bem definido, forte contiguidade entre edifícios, frágeis fronteiras entre espaço interno e externo, continuidade e alta densidade do tecido urbano etc. (HOLANDA, 2010, p. 1).

A ausência desses parâmetros na dinâmica urbana conduz a estilos de vida que exaurem a população. A produção espacial das cidades nega a própria vida urbana e a necessidade da presença ativa de pessoas no espaço para que a cidade seja capaz de promover uma vida mais feliz. Como colocado por Auzelle, Ensina-se às crianças os escândalos da Idade Média, quando os artesãos trabalhavam de doze a quatorze horas por dia. Mas quem já não viu, a partir das quatro horas manhã, as estações superlotadas de um rebanho sombrio, ou as filas de espera nas paradas do ônibus? Às nove horas de trabalho diário, que constituem a jornada da maioria dos habitantes dos subúrbios, acrescentam-se três horas, às vezes quatro, gastas em transportes (...) O trabalhador suburbano “viaja” sempre numa espécie de peregrinação sincopada: paradas, corridas, empurrões, amontoamentos e, através da janela do veículo onde ele se encontra, se ao menos seu olhar pode divisar alguma coisa, vê sempre desfilar ante de si um espaço geralmente incoerente, horrendo, deprimente. (AUZELLE, 1972, p. 117).

Essa forma de morar conduz a população a reduzir seu permanência em espaços públicos somente durante o tempo de deslocamento de um encla-

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ve a outro, do condomínio murado ao shopping center (empreendimento importante e diretamente relacionado à peregrinação das novas áreas residenciais). Termina-se, então, ressignificando a experiência urbana às vias de circulação de automóveis. Por outro lado, todos os trabalhadores do condomínio passam a experienciar a cidade sufocados pelos muros que os obrigam a contornar espaços antes livres e conectados: “Nesse árido espaço residual, as interações humanas se reduzem a um conflito entre automóveis e pedestres” (BAUMAN, 2009, p. 35).

Lefebvre pontua que as tendências anti-segregacionistas são utópicas, pois o caminho natural da cidade é a segregação. O autor discorre que as as causas sociais e políticas, as estratégias de classes (de forma inconsciente ou não) direcionam para a separação, ou seja, a segregação não é produzida por acaso. A relação para com a cidade e as liberdades urbanas revela o aspecto democrático ou não na maneira de organizar e gerir a construção espacial aqui estão diante de nossos olhos, projetados separadamente, os grupos, as etnias, as idades e os sexos, as atividades, os trabalhos, as funções, os conhecimentos. Aqui está tudo o que é necessário para criar um mundo, a sociedade urbana ou “o urbano” desenvolvido. Mas êsse (sic) mundo está ausente, essa sociedade só está diante de nós em estado de virtualidade.

(LEFEBVRE, 1969, p. 93).

Ainda assim, Lefebvre (1969, p.93-95) assinala que a preocupação sobre a gestão da cidade é uma “obsessão” exatamente das pessoas à margem da organização. Como citado anteriormente, apesar de o destino das cidades englobar todos que nela vivem, a luta pelo direito à cidade não é uma luta coletiva. A classe “privada da vida urbana” possui, então, um problema prático e político em sua vivência na cidade.

O urbano é a obsessão daqueles que vivem na carência, na pobreza, na frustração dos possíveis que permanecem como sendo apenas possíveis. Assim, a integração e a participação são a obsessão dos não-participantes, dos não-integrados, daqueles que sobrevivem entre os fragmentos da sociedade possível e das ruínas do passado: excluídos da cidade, às portas do “urbano.” (LEFEBVRE, 1969, p. 93).

Sposito e Góes (2013, p. 169) questionam: “se autoridades e segmentos médios, além da elite, optam por residir nesses espaços fechados, o interesse | 78 |

pelo exercício da cidadania resta apenas aos pobres e despossuídos?”

É possível compreender o processo histórico colocado por Nestor Goulart sobre a cidade dispersa: enquanto a parcela marginalizada lutava por acesso à urbe, as elites buscavam uma elevação de seu padrão de vida. Milton Santos, sobre esse aspecto, coloca que Forma-se, dessa maneira, uma classe média sequiosa de bens materiais, a começar pela propriedade, e mais apegada ao consumo que à se cidadania, sócia despreocupada do crescimento e do poder com os quais se confundia. (SANTOS, 2015, p. 67).

Retoma-se ao modelo de habitações segregadas porém coletivas, com uma gestão ainda contraditória e discriminatória. É partindo da cidade e da problemática urbana que se revela essa dualidade constitutiva, com seu conteúdo conflitante.

Que resulta disso? Sem nenhuma dúvida, fenômenos paradoxais de integração desintegrante que incidem especialmente sôbre (sic) a realidade urbana.

Isto não quer dizer que esta sociedade se desintegra, que ela cai aos pedaços. Não. Ela funciona. Como? Por quê? Êsse (sic) que é o problema. Isto também significa que êsse (sic) funcionamento não deixa de se fazer acompanhar por um enorme mal-estar: sua obsessão. (LEFEBVRE, 1969, p. 94-95, grifo do autor).

Apesar da civilidade entre os moradores de enclaves fortificados, suas experiências de vida comum são restritas, pela lógica do próprio modelo disperso. O transporte, inclusive dentro dos condomínios, é individualizado (o que é uma das bases para a viabilização da dispersão) e os espaços de socialização se dão em outros locais segregados, como os shoppings. Como afirma Santos (1997, p. 22), “(...) a proximidade física não elimina o distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não-funcionais. (...) Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros”.

As interações são desvinculadas da rua e limitam-se, em sua maioria, à privacidade do lar - o que fragmenta todas as populações, dentro ou fora dos muros (GOTTDIENER, 1997, p. 271-272).

O espaço, habitação do homem, é também o seu inimigo,

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a partir do momento em que a unidade desumana da coisa inerte é um instrumento de sua alienação. (SANTOS, 1997, p.

23).

A mudança no modelo vigente de urbanização depende necessariamente, então, de uma articulação das classes sociais com capacidade para mudar espaços com a classe marginalizada, que é o alvo da segregação. Sem uma ou outra, faltam o “sujeito” e o “objeto” e a separação persiste (LEFEBVRE, 1969, p. 104).

Persiste, ainda, a contradição entre a separação dos espaços com o fim de socializar um grupo de pessoas. Essa característica, citada por Lefebvre mas aqui aplicada na produção dos muros e dos enclaves fortificados, tem direta relação com os diversos direitos do homem, constituídos sobre bases democráticas. Especialmente nas habitações isoladas, a urbanidade foi negada para reformulação dos espaços antes promovidos pelo público, como o direito à natureza e ao lazer. Atualmente, as habitações cercadas englobam, em sua maioria, espaços restritos de áreas verdes e locais para recreação, como uma forma de fugir da própria cidade na qual se inserem. A expansão das cidades para acomodar essas tipologias destrói, aos poucos, o próprio espaço de tranquilidade que buscam: O urbano assola o campo; êste (sic) campo urbanizado se opõe a uma ruralidade sem posses, caso extremo da grande miséria do habitante, do habitat, do habitar. O direito à natureza e o direito do campo não se destroem a si mesmos? (LEFEBVRE, 1969, p. 108).

Diante dessa exploração da terra e esgotamento de um modelo limitado em sua forma e sua expansão, a cidade - o tecido urbano consolidado - entra em conflito com o direito à natureza citado pelo autor. O direito à natureza de uma parcela da população toma o direito à cidade de outra e esse processo de expansão prejudicial à vida urbana é mascarado pelo prazer que alguns crêem encontrar na segregação, se esvaindo do próprio local e da própria sociedade das quais fazem parte (LEFEBVRE, 1969, p.107-109).

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (LEFEBVRE, 1969, p. 124).

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Milton Santos (2007, p. 63) cita, ainda, o direito ao entorno, que é tomado pelas “mudanças brutais que se operam na paisagem e no meio ambiente, sem a menor consideração pelas pessoas”. Ele pode ser entendido tanto como o direito às áreas previamente livres da periferia das cidades quanto o direito à cidade em si e aos espaços públicos, que são privatizados juntamente aos espaços de lazer: “Quem não pode pagar pelo estádio, pela piscina, pela montanha e o ar puro, pela água, fica excluído do gozo desses bens, que deveriam ser públicos, porque essenciais.” (SANTOS, 2007, p. 64).

É possível relacionar a negação do direito à cidade com a produção de não-lugares descrita por Marc Augé: “um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não lugar” (AUGÉ, 2012, p. 73 apud SANTOS, 2018, p. 7-8). As cidades muradas, que caminham para a destituição de espaços públicos constituídos pela diversidade do urbano, produzem uma sensação de falta de pertencimento e, portanto, ausência do habitar. Para Cacciari, O habitar não tem lugar lá onde se dorme e por vezes, se come, onde se vê televisão e se diverte com o computador de casa; o lugar do habitar não é mero alojamento. Só uma cidade pode ser habitada; mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser habitada, ou seja, se não “der” lugares.

(CACCIARI, 2010, p. 35).

Atualmente, os mútuos isolamentos criados pela disposição de uma sequência de muros no tecido urbano conforma uma condição de coexistir mais que coabitar, visto que a segregação leva à fragilização dos laços inter-pessoais e, então, à indiferença. Seria, então, errôneo intitular as cidades fragmentadas como cidades, pois “regulamos nossas relações na base do direito privado. Mas sendo assim, quer dizer que nos ‘movemos’ no contexto de algo que nos obstinamos a chamar de cidade, mas ‘moramos’, habitamos num condomínio.” (CACCIARI, 2010, p. 51). A questão do habitar refere-se não à moradia ou a cidade, mas sim na relação entre esses locais e seu entorno - o que é subvertido pelos espaços residenciais murados (SPOSITO; GÓES, 2013, p. 97).

O declínio da cidade como a conhecemos, em um sentido grego e moderno, advém da perda da fronteira. Assim como é necessária uma delimitação de espaços públicos e privados, conhecer os limites da cidade é

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essencial para manutenção da identidade e seu reconhecimento enquanto ordem e lugar de seus cidadãos (podendo aplicar-se aqui os atributos de paisagem constituídos por Lynch).

A cidade está em todo lado; ergo, a cidade já não existe. Já não habitamos em cidades, mas em territórios (...) A própria possibilidade de fixar limites à cidade parece, hoje, inconcebível, ou melhor, reduziu-se a uma questão puramente técnico-administrativa. Chamamos a cidade a esta “área” por razões absolutamente ocasionais. (CACCIARI, 2010, p. 54).

A segregação e a construção dos muros aqui analisada é descrita por Cauquelin e Filgueiras como uma simples inversão de valores - não é mais ‘exterior interior’ e sim um “interior exterior”. A aspiração ao afastamento ainda está presente. Contudo, os locais de selvageria a serem evitados, não são mais o campo e sim a própria cidade: “Esses locais, diz Lucrécio no livro V (39-42), está ao nosso alcance evitá-los” (CAUQUELIN, 2008, p. 47). (FILGUEIRAS, 2016, p. 82, grifo nosso).

A crença na vida pública e comum à cidade como selvageria incentiva e conduz à segregação e a perda de uma sociedade democrática. Aspira-se uma vida privada e isolada, em uma atitude cesariana de se “lavar as mãos” e não assumir responsabilidade com a participação cidadã. Bauman (2001) compreende esse processo de declínio da sociedade de forma geral como “modernidade líquida”. Os preceitos modernos de igualdade e democracia passam a ser incertos e distorcidos, chegando a um status de crise da cidade e do corpo social como os são conhecidos (BAUMAN, 2001 apud PEREIRA, 2016, p. 11).

Entretanto, Filgueiras promove a análise dos muros de outras maneiras: se o objeto intramuros é desconexo do contexto urbano, a barreira se torna o objeto da própria fuga ao invés do objeto que delimita o local para o qual se foge dentro: A “fuga para o muro” seria, portanto, a apropriação de sua materialidade de maneira a explorar outros aspectos que não a barreira. Com a “fuga para o muro”, seria possível enxergar uma resolução para o conflito que transforma vias públicas em corredores murados inóspitos e perigosos. Tal recurso abriria espaço para perceber as ações artísticas no muro

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como reflexos das transformações do universo da arte das últimas décadas do século XX. (...) Quando o observador passa a enxergar o muro como suporte e não como barreira, ele seria transportado, durante o instante de experimentação de uma obra de arte, de uma pichação, de uma propaganda, etc., para outra realidade, o que poderia resultar no mesmo alívio ou crítica que se buscava na “fuga da cidade”. (FILGUEIRAS, 2016, p. 99).

É possível pensar, então, em uma apropriação artística dos muros já consolidados como forma de reação à barreira segregatória - o autor coloca, ainda, que os muros exclusivamente defensivos e sem outras intenções de ser um objeto comunicativo podem ser caracterizados por não-lugares.

Por outro lado, diversos autores, como Blakely e Snyder (1997), pontuam que é necessário um desenho urbano que aproxime as pessoas, promova interação face-a-face, promovendo segurança (e mais importante, a sensação de segurança) sem o uso de barreiras. Jan Gehl (2015) declara que Quando os urbanistas ambicionam mais do que simplesmente proporcionar espaço suficiente para circulação, para o desafio, muito mais importante, de possibilitar que as pessoas tenham contato direto com a sociedade em torno delas. Por sua vez, isso significa que o espaço público deve ser vivo, utilizado por muitos e diferentes grupos de pessoas. (GEHL, 2015, p. 63).

Como colocado por Milton Santos, “A proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura social.” (SANTOS, 1997, p. 22). Podem ser adicionados atributos que aumentem a presença de pedestres nas ruas e diminua a velocidade dos carros: “esses mecanismos sociais são mais efetivos que elementos adicionais como portões.” (BLAKELY; SNYDER, 1997, p.

11, tradução nossa1). A vigilância comunitária promove, ainda, o sentido de pertencimento: se a presença do sujeito na rua o faz sentir como elemento da cidade, ele tende a se sentir responsável e afetado pelo que acontece no espaço público. Os condomínios murados, ao contrário, com seus aparatos de segurança privada, retiram a responsabilidade dos moradores de pre-

1 Tradução nossa de “these socially based mechanisms are more effective than additional hardware like gates.”

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zar pelo bem-estar dos espaços comuns (NEWMAN, 1972, apud BLAKELY; SNYDER, 1997, p. 11). Essa ausência de senso de participação altera o sentido de cidadania e de corpo político, como colocado por Freitas: A interiorização das atividades em espaço fechados, privados ou restritos altera a idéia de espaço público, que deixa de ser o local de encontro com o diferente, com a mistura, com as trocas. O caráter democrático do espaço público perde sua força, uma vez que os muros restringem a cidadania, onde cada qual pertence ao meio e adquire sua parcela de responsabilidade social. O espaço público, hoje, deixa de ser o lugar do encontro, da vida social, e restringe-se cada vez mais exclusivamente ao papel de circulação, como uma simples travessia.

(FREITAS, 2013, p. 44).

E, ainda, por Goulart: Uma parte importante das críticas aos loteamentos fechados e a todos os projetos que levam ao aumento da segregação social concentra-se na condenação da redução dos espaços de convivência e uso público, adequados para a consciência social e a formação da consciência cívica, isto é, concentra-se na condenação dos esvaziamentos dos espaços públicos ainda existentes. (REIS, 2006, p. 69).

Nesse quesito é importante ressaltar porque a maior crítica deste e de muitos outros trabalhos é focada nos muros e não em outras formas de barreiras, como grades, portões e até mesmo barreira invisíveis, como rodovias. Todas elas, de certa forma, ainda permitem o engajamento, pois não invisibilizam os espaços em seus interiores (ou, no caso das rodovias, os espaços depois delas).

Como colocado ainda por Bauman (2009), essa desconexão do indivíduo gerada pela ausência do contato com o plural e as questões que cercam quaisquer processos de civilidade, Pode-se supor que não adquiriram pela cidade em que moram nenhum interesse, a não ser dos seguintes: serem deixadas em paz, livres para se dedicar completamente aos próprios entretenimentos e para garantir os serviços indispensáveis (não importa como sejam definidos) às necessidades e confortos de sua vida cotidiana. (BAUMAN, 2009, p. 14).

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Um dos maiores impactos sociais da segregação atinge o senso de

democracia do espaços públicos. Como citado por Blakely e Snyder, Quando os serviços públicos e até o governo local são privatizados, quando a responsabilidade comunitária acaba nos portões de subdivisão, o que acontece com a função e a própria idéia de democracia? Em suma, essa nação pode cumprir seu contrato social na ausência de contrato social? (BLAKELY; SNYDER, 1997, p. 1, tradução nossa2).

Citando Boaventura de Souza Santos (2002), Sposito e Góes (2013, p. 171) apontam que atualmente vive-se uma “crise do contrato social” (itálico das autoras), em que questiona-se “a profunda diferenciação entre o que é aceitável e inaceitável para diferentes moradores de uma mesma cidade”.

Essa análise complementa-se com o viés entendido previamente neste trabalho que a segregação advém muitas vezes de questões discriminatórias e não de uma violência real: Privatização, cercamentos, policiamento de fronteiras e técnicas de distanciamento criam um outro tipo de espaço público: fragmentado, articulado em termos de separações rígidas e segurança sofisticada, e no qual a desigualdade é um valor estruturante. No novo tipo de espaço público, as diferenças não devem ser postas de lado, tomadas como irrelevantes, negligenciadas. Nem devem também ser disfarçadas para sustentar ideologias de igualdade universal ou pluralismo cultural. O novo meio urbano reforça e valoriza desigualdades e separações e é, portanto, um espaço público não-democrático e não-moderno. (CALDEIRA, 2000, p.12, grifo nosso).

Como colocado por Bauman (2009), A aguda e crônica experiência da insegurança é um efeito colateral da convicção de que, com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível obter uma segurança completa. Quando percebemos que não iremos alcançá-la, só conseguimos explicar o fracasso imaginando que ele se deve a um ato mau e premeditado, o que implica a existência de algum delinqüente. (BAUMAN, 2009, p. 9).

2 Tradução nossa de “When public services and even local government are privatized, when the community of responsibility stops at the subdivision gates, what happens to the function and the very idea of democracy? In short, can this nation fulfill its social contract in the absence of social contact?”

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Ao chegarmos na compreensão que os enclaves fortificados alteram a dinâmica da vida pública, especialmente em seus termos democráticos, é possível concluir que a produção habitacional dispersa e descontínua caminha para uma sociedade discriminatória e excessivamente capitalista, em que até mesmo a segregação é comercializada: O principal articulador dessas lógicas é o capitalismo contemporâneo, que transformou, por exemplo, o consumo em identidade, o emprego em incerteza, a segurança em produto – conduzindo o discurso do medo –, a comunidade em segurança, o controle em negócio.

Ainda que o sistema capitalista seja fator gerador das dinâmicas da modernidade, é imprescindível entendê-lo também como um sistema alimentado pelas forças que a operam. (PEREIRA, 2016, p. 52-53).

Como colocado, ainda, por Montagner e Muxi (2014), Paradoxalmente, o movimento fluido, livre, sem travas, líquido, de capitais e mercadorias encontra correspondência com o aumento das fronteiras, dos muros e das cercas para evitar a passagem de pessoas: liberdade de movimento para capitais, fronteiras para os seres humanos. (MONTANER; MUXI, 2014, p. 92).

Seja em habitações isoladas ou nos condomínios de luxo que dividem muros com favelas, a segregação é presente e cada vez mais, “A própria existência vivida mostra a cada qual que o espaço em que vivemos é, na realidade, um espaço sem cidadãos.” (SANTOS, 2007, p. 65).

As condições existentes nesta ou naquela região determinam esa (sic) desigualdade no valor de cada pessoa, tais distorções contribuindo para que o homem pase (sic) literalmente a valer em função do lugar onde vive. Essas distorções devem ser corrigidas, em nome da cidadania. (SANTOS, 2007, p. 140).

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“Não me pergunte o que a cidade pode fazer pelo seu edifício, mas o que o seu edifício pode fazer pela sua cidade!”

Jan Gehl

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| Conclusão

Conforme colocado por Sposito e Góes (2013, p. 280), é possível perceber, então, a segregação não somente como um conceito mas também como um processo que atua sobre o espaço em diferentes escalas (do macro ao micro, da moradia à cidade) e dimensões (das relações interpessoais, do sujeito com o espaço entorno e de uma parcela da população com o espaço consolidado).

O processo de dispersão urbana e a segregação socioespacial são encadeamentos da história da urbanização inerentes à globalização e à expansão da diversificação da sociedade nos meios de morar, trabalhar e recrear. É importante notar que há momentos dessa história que não são passíveis de serem desfeitos e nem o devem ser. É necessário, então, utilizar dos modelos vigentes de produção do espaço para tomar os caminhos da história da urbe. Segundo Ramos (2002), a hierarquização das estruturas de equipamentos urbanos e serviços coletivos e a segregação socioespacial serão mudadas quando as políticas urbanas tomarem direções mais sociais, utilizando instrumentos de democracia para reverter a lógica elitizada e capitalista de distribuição do espaço (RAMOS, 2002, p. 140).

Montaner e Muxi descrevem a contínua fragmentação das cidades como um perigo ao futuro das cidades. O urbanismo enquanto prática de expansão produz malhas urbanas sem consciência plural, visando lucro e homogeneidade, para uma parcela restrita da população que não representa e não abarca a diversidade de necessidades urbanas presentes atualmente na sociedade. É um urbanismo que continua sendo pensando por homens e para homens, um homem que circula com pressa dentro

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de seus SUVs com ar-condicionado, fazendo com que persista o padrão machista descrito por Le Corbusier: um homem modelo, musculoso e de 1,82 metro de altura. Em suma, um urbanismo sem multiplicidade de protagonistas, ancorado em concepções duais e antagônicas e baseado em um modelo familiar em declínio. (MONTANER; MUXI, 2014, p. 127).

Como colocado por Gottdiener, a produção de espaço atual não possui bases justas e se funda em uma organização pautada por interesses privados e lucrativos, que geram um ciclo vicioso de dependência do crescimento (uma análise análoga à perspectiva de morte das cidades enquanto espaço relacionado com um limite). Esse crescimento é descrito pelo autor como desordenado e causa direta da distribuição desigual dos espaços da cidade (GOTTDIENER, 1997, p. 259-260).

A análise dos impactos - sociais, políticos, afetivos, inter-relacionais; de orientabilidade e pertencimento - é importante pois questiona a produção vigente dos espaços da cidade e, consequentemente, do regime democrático que tem base na esfera pública: A democracia ainda é possível nessa nova cidade de muros?

Que tipo de comunidade política corresponderá à nova esfera pública fragmentada em que os interesses são expressos privadamente (...) e na qual se torna difícil defender o bem comum? (CALDEIRA, 2000, p.339).

Zygmunt Bauman discorre sobre a dicotomia da vivência citadina: Todos sabem que viver numa cidade é uma experiência ambivalente. Ela atrai e afasta; mas a situação do citadino torna-se mais complexa porque são exatamente os mesmos aspectos da vida na cidade que atraem e, ao mesmo tempo ou alternadamente, repelem. A desorientadora variedade do ambiente urbano é fonte de medo, em especial entre aqueles de nós que perderam seus modos de vida habituais e foram jogados num estado de grave incerteza pelos processos desestabilizadores da globalização. Mas esse mesmo brilho caleidoscópico da cena urbana, nunca desprovido de novidades e surpresas, torna difícil resistir a seu poder de sedução. (BAUMAN, 2009, p. 23).

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A pluralidade é estimulante, mas o caos exaure; a vida no campo é bela mas não é justo direcionar essa qualidade de forma segregada, exigindo, ainda, acesso equitativo à infraestrutura.

Como colocado ainda por Caldeira (2000), erguer muros é compreensível pois as mudanças societárias atuais acontecem em uma velocidade que prejudica a assimilação e o posicionamento coerentes com o futuro desejado para as cidades. Aqui não pretende-se concluir que os responsáveis pelo declínio da cidade são as famílias que adquirem uma casa própria em um condomínio (apesar de estar inseridas no sistema) - as liberdades individuais ainda existem e o direito à propriedade também. Porém, é preciso refletir sobre os tipos de espaços que estão sendo gerados dentro dessa reprodução massiva de muros que parece não questionar e fazer questão do seu espaço na cidade. Em que ponto os espaços públicos serão os vazios intersticiais? Deve-se repensar o estímulo à intolerância à discriminação e produzir espaços seguros mas também democráticos, tendo em mente que não é possível se dissociar de onde está inserido e é preciso lutar por esse espaço - enquanto cidadãos, seres políticos e, acima de tudo, humanos.

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