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Somos a barbárie

Migrando Migrando longe para longe morrer a agrura das vidas desfeitas. Sequiosas. As embarcações exibindo a mais temível das escolhas. O mar mediterrâneo. Decompondo-se. A decomposição. O terrível exercício da decomposição Os planos e contra-planos das câmaras televisivas brilhando o declínio. A ferocidade anunciando-se-nos mar adentro, por trás das cortinas, até desaparecer… imensamente aquém da civilização. As longínquas mortes inscritas na longínqua promessa, perdidas na longínqua paisagem Aquém da existência Aquém de uma outra existência onde o humano não mais a vida morra, em diferido. As mortes dadas em diferido. Muitas, as mortes. Contudo não tantas quanto a indiferença que as acolhe Os pretensos estágios evolutivos irrompendo, prenhes, por dentro da primitividade A primitividade assolando as sociedades complexas. Selvajaria e barbárie irrompendo a civilização. A morte unindo. África, Ásia e Europa unidas pela morte. Os mortos do mediterrâneo unido os continentes

Como acordar para os dias?

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Como acordar para os dias sem o fétido cheiro das crianças, de todas as crianças mortas em nossos braços? Como transpor as suas mortes por dentro, bem por dentro, sem atolarmos no pavor o mito civilizacional? Onde procurar as primaveras? Onde encontrar as primaveras, em nós que somos a barbárie?

A escolha A escolha é entre morrer a vida em directo ou morrer a morte em diferido. Morrer a vida na guerra ou morrer a morte televisiva. Ser espectáculo de morte. Nados mortos boiando nas águas. No mediterrâneo. A morte diferida Nós, especulando Espectadores Espectantes Tudo é longe Tudo é tão longe dos écrans plasma, dos LCD preenchendo-nos os olhos. Tudo é entre o tempo real e o tempo ideal, como se nada fosse. Qual o tempo ideal? Quando o tempo real? Onde está a proximidade? Qual é a lonjura? Os mortos são-nos longe Afastamo-los de nós A morte é a peste que não queremos

Texto: Rui Carvalho

Fotografias:Virgílio Santos

A morte gangrena. A morte soletra o mundo. Nós não nos sabemos soletrar Somos inconsequentes. Inconsequentes, soletramos lemas. Palavras de ordem. O amor aos outros. Liberdade, igualdade, fraternidade Nada é igual a nada Não somos iguais Somos tão diferentes. Uns dos outros e de nós mesmos. A cada acordar já não somos os mesmos que antes se deitaram Não há proximidade Tudo é longe. Tudo é tão longe que já nada se vê. Menos ainda os milhares de mortes por afogamento no mar mediterrâneo Tudo é aquém. Tudo é aquém da impenetrável fortaleza. A civilização é impenetrável. A civilização rege-se nos impenetráveis códigos Somos a caridadezinha de supermercado Icemos a ponte levadiça! Síria, Afeganistão, Iraque são tão longe. Icemos a ponte. Icemos a ponte levadiça!

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