As Cidades e os Desejos

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PONTE AÉREA Kah Dantas Tudo começou assim: ele era ninguém, a 3.000km, por quem eu desejaria me apaixonar. Coisa de encanto, de novidade geográfica, entende? E o que mais sucederia a um romance dessa natureza, senão a morte pelo costume? Então, veja você, ele me fodeu o corpo, nossa promessa implícita e, apaixonada pelas paixões e pelos pontos cardeais, deixei que me fodesse o coração também. Não era para ser e eu sabia disso. Não era para ser e mesmo assim foi. Entre uma e outra unha pintada, recordo. Ele todo de malas no aeroporto, as mãos suadas, tremendo, o coração feito tambor no peito. Uma graça! Era quase manhã na capital cearense e ele não tinha dormido no voo, nem dormiria nas horas seguintes aos primeiros abraços e beijos, no portão de desembarque, porque o universo não andava esperando, absolutamente, outra coisa de nós: ocupamo-nos primeiro com a geografia dos nossos corpos e, sem perceber, com aquela das nossas almas também. Recebi-o feito mulher e cidade, e virei fortaleza para abrigar a nós dois. A minha terra tornou-se dele também, e desbravamos suas estradas, ruas e calçadas turísticas de mãos dadas, apaixonados, deslumbrados e transtornados com a beleza do nosso engano. Abraçamos no litoral, na serra e no sertão; amamos com o vento, o frio e o calor. E ele me disse que se sentia em casa dentro de mim, na minha pele, no meu cheiro e no peso do meu corpo sobre o dele. Tínhamos ali uma amorosa tragédia espacial: na reciprocidade, nosso engano transformou-se em verdadeira ponte aérea. Voei de volta para os braços dele, para o meio da natureza de pedra, para os grafites coloridos impressos no cinza, para a narrativa dos carros, para uma temperatura mais amena. Apaixonei-me por cada metro de concreto e asfalto, pela Paulista no domingo, pelos pulmões esverdeados aqui e ali, pelos becos e pela mão dele continuamente embrulhando a minha, quando eu descobri, feito um carinho, que existia amor em SP. Vivemos um milhão de vidas em poucos dias, acredite, em cada mês de visita, quando ainda outra vez ele voltou, quando ainda mais uma vez eu retornei, encontrando-nos em nossos refúgios, urbanos ou naturais, ora ensolarados, ora nublados. Porque o amor não tem lugar no mundo e, ao mesmo tempo, são seus todos os lugares. Por amor estivemos em toda parte. E não houve deus, nos céus, na terra ou debaixo dela, que tenha escapado à inveja de querer viver sob a nossa pele, nossos suores e respiração; ou à cobiça destinada ao magnético encanto que nos lustrava os olhos e guiava os pés. A nossa própria divindade tomou forma assim: fazendo habitar em nós deuses embaixadores, amantes, aventureiros e citadinos, de peito sempre ansioso pelas nuvens. E pelo desembarque dos beijos e abraços. Pelo desejo mais atômico concentrado na nossa secreta umidade. Eu belisco meu lábio, veja só, e dou risada, quando eu penso que tudo começou assim: um ninguém, na outra ponta do mapa, por quem eu jamais desejaria me apaixonar. Não era para ser e eu sabia disso. Não era para ser e, mesmo assim, é todo.

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