Revista Vox – volume 05

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Antes de partir, o misterioso amigo prepara uma omelete perfeita, fisgando o interesse de Daniel sobre seu talento culinário. Lucídio se propõe a cozinhar prometendo recuperar o ânimo do grupo. E começam os jantares fatais. É a partir daí que Verissimo acrescenta mais um tempero singular. Se já não bastasse fundir autor e narrador no protagonista, este passa a dar ares de onisciência para intrigar ainda mais o leitor que se apercebe. Repousa justamente em tal sutileza muito do subtexto que faz a história suplantar os limites da gula e da novela policial. Avançando para além da compreensão de um narrador protagonista (já contaminado por uma voz de autor), Daniel incorpora seu grupo e, por extensão, sua classe social e estilo de vida. No fracasso pessoal de cada um dos componentes do Clube do Picadinho está a decadência de uma burguesia impune, incompetente e aética – e a denominação de Anjos entra como reforço irônico. Mês a mês, o cozinheiro brinda um dos componentes com seu prato predileto, quase como marcando a hora de cada um deles para morrer. Mesmo diante da perplexidade do entorno, ninguém parece disposto a recusar o destino. Imagino que a aceitação da morte diante do prazer supremo à mesa possa ser vista como a consciência de que os regalos hipertrofiados da sociedade consumista nos encaminham para a iminente tragédia, mas, ao invés de isso servir de alerta, potencializa o gozo. Tanto que mais uma figura tão misteriosa quanto Lucídio, o cozinheiro, aparece para dar molho à trama: o paciente Sr. Spector. Este adia seus propósitos para o final, e não mais toco no assunto: jamais me perdoaria se estragasse a surpresa para quem ainda não leu. Como em toda obra do mestre Verissimo, terminamos a leitura plenamente saciados. Porém – olha a gula! –, fica desejo para mais. Se o autor terminasse a história e prometesse mais algumas páginas, essas com o risco de matar o leitor, penso que estaríamos tentados a prosseguir, potencializando o prazer. Afinal, como diz na epígrafe do livro, em sentença atribuída a uma máxima japonesa, “todo desejo é um desejo de morte”.

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