A produção televisiva do crime violento na modernidade tardia

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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públicos de segurança. A arbitrariedade policial deixou de vitimar militantes políticos anti-regime, em boa parte pessoas de classe média com certo nível de instrução, para foca os mais vulneráveis e indefesos em termos sociais e econômicos: o pobre, o trabalhador rural e os sindicalistas, os grupos minoritários, crianças e adolescentes abandonados, a população de rua (ADORNO, 1995; PINHEIRO, 1997). Além do problema da violência ilegítima do Estado, outro problema relacionado ao conflito nunca fora devidamente resolvido: a violência disseminada no tecido social. Desde a sociedade agrária tradicional brasileira, a violência esteve incorporada regularmente ao cotidiano dos homens livres, libertos e escravizados, apresentando-se, via de regra, como solução para os conflitos sociais. A despeito da instauração da República Constitucional no final do século XIX, a violência permaneceu enraizada como modo costumeiro, institucionalizado e positivamente valorizado - isto é, moralmente imperativo - de solução de conflitos decorrentes das diferenças étnicas, de gênero, de classe, de propriedade e de riqueza, de poder, de privilégio, de prestígio. Permaneceu atravessando todo o tecido social, penetrando em seus espaços mais recônditos e se instalando resolutamente nas instituições sociais e políticas em princípio destinadas a ofertar segurança e proteção aos cidadãos (ADORNO, 1995, p.301).

Com a volta ao constitucionalismo democrático, foram eliminadas algumas graves violações contra os direitos humanos cometidos pelos regimes militares; porém, os governos civis não tiveram êxito em proteger os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Permaneceu precário o regime da lei em muitos países latinoamericanos e ampliaram-se as oportunidades de envolvimento de policiais, tanto civis como militares, com essa delinquência violenta, dados os atrativos financeiros oferecidos pelo tráfico de drogas, sequestros e outros delitos (ADORNO, 1993). Por intermédio de uma dramatização amplamente divulgada nos meios de comunicação, construiu-se um novo mito – análogo à noção de que o homem brasileiro seria cordial e pacífico, ignorando o histórico quadro de conflito e violência irrestritos - uma imagem maniqueísta da sociedade que tratou a violência essencialmente como um produto urbano e a vinculou diretamente à delinquência nas classes baixas, confundindo-a com o crime ordinário, de rua; dissimulando, assim, a violência promovida pelo Estado, a violência no campo, a violência doméstica. Ao contrário do que acontecia durante o regime militar, a violência


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