SÍMBOLOS E MITOS NO FILME “O SILÊNCIOS DOS INOCENTES” [Retirado do antigo fórum “Sapientia”, que fazia parte da HP do Olavo de Carvalho – www.olavodecarvalho.org] Este livro (Dialética Simbólca) transcreve - sem alterações a não ser em detalhes de estilo - a apostila distribuída aos ouvintes das três palestras que, sob o título “Interpretação Simbólica do Filme O Silêncio dos Inocentes”, pronunciei na Escola Astroscientia, do Rio de Janeiro, em julho de 1991, quando o filme ainda estava em cartaz. Algumas cópias foram também distribuídas a gente de cinema e da imprensa; mas circunstâncias fortuitas, adversas, impediram que se fizesse então uma edição regular, a qual agora se empreende graças à generosa colaboração de Stella Caymmi e Ana Maria Santos Peixoto. A premiação do filme com cinco Oscars, agora em abril de 1992, é uma boa ocasião para recolocá-lo em debate, procurando, pela segunda vez, ir um pouco além dos comentários rotineiros e banais (quando não francamente errôneos) que foram a única reação da crítica nacional quando da sua exibição por aqui. Este livro pertence a um gênero anacrônico, e certamente suscitará alguma estranheza da parte de um público acostumado a receber, sob o rótulo de “crítica de cinema”, coisa inteiramente diversa. É que, quando eu tinha dezoito anos - há duas décadas e meia, e em outro Brasil -, não era pecado escrever ensaios longos a respeito de um filme; não era pecado pensar, investigar, tentar aprofundar o sentido de um filme. Ensaios como este eram a toda a hora publicados na imprensa, e nós, jovens aficionados, tão logo terminava a sessão corríamos em busca das palavras sábias de Luís Francisco de Almeida Salles, de Paulo Emílio, de Guido Logger, de Alex Vianny; de todos quantos se dedicavam ao ofício de ajudar-nos a compreender a arte do cinema; ofício que hoje sofre o estigma da reprovação, a não ser quando exercido discretamente e dentro do gueto universitário. As páginas de crítica nos jornais são para outra coisa, e pensar em público tornou-se indecente. Lamento ferir o decoro: é que, decididamente, pertenço a outra época. Olavo de Carvalho
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I. Terror e piedade O Silêncio dos Inocentes (“The Silence of the Lambs”) é bem mais do que o thriller habilmente realizado ou do que o drama passional que a crítica brasileira viu nele. Se toca tão intensamente o coração da platéia, é menos pelo fascínio macabro do tema, pela destreza quase alucinante da direção ou pelas interpretações memoráveis de Anthony Hopkins e de Jodie Foster do que pelo simbolismo profundo da sua fábula. Mesmo quando passe despercebido pela consciência do espectador, esse simbolismo não pode deixar de atingi-lo no âmago da sua condição humana, pela força de uma linguagem universal. Seu alcance simbólico eleva o filme de Jonathan Demme à categoria de grande obra de arte. Como toda grande arte, este filme desencadeia conseqüências que se prolongam para muito além do gozo estético imediato, e reverberam em benefícios psicológicos de longa duração. Nunca, desde M, o Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, ou Vergonha, de Ingmar Bergman, esteve o cinema tão perto de realizar um intuito equiparável ao da tragédia grega, que, nas palavras de Aristóteles, era o de inspirar “terror e piedade”, ou, mais precisamente, a piedade por meio do terror: purificar a alma do homem e incliná-lo ao bem pela visão do absurdo e do mal inerentes à ordem cósmica. Mas, para desfrutar plenamente dos ganhos que esta obra nos traz, é necessário ultrapassar o puro impacto estético da primeira hora e aprofundar uma consciência intelectual do seu significado. O educador que mostra e adverte, dirigindo a atenção do espectador para os pontos significativos e as estruturas profundas, prolonga assim e potencializa o trabalho do artista, abrindo os canais para o seu encontro com a alma do público.