Boletim do Kaos #5

Page 12

FESTA INTERNACIONAL DO LIVRO DE PARATY

O ESPAÇO DA LITERATURA

da Redação

As luminárias têm camadas empoeiradas, diluindo e obscurecendo a iluminação. Uma pichação alerta para a luta de classes e para o tempo perdido atrás de um volante. Aqui e acolá a algazarra das crianças aprisionadas nos ônibus escolares. Brota uma sirene insistente. Impotente também. Também está trancada a ambulância. Pelos lados apertados os pedestres correm para não sufocar. São poucos os que se arriscam a morrer para chegar aonde precisam. Só eles conseguem se mover pela calçada minúscula, protegida por grades enferrujadas. O motorista calcula vinte minutos por quilômetro rodado dentro daquele túnel, e com todo esse tempo parado, ele começa a pensar nas vidas que levam os carros, nas fisionomias das pessoas com as certezas de aportar em suas casas sãs e salvas, nas motocicletas que passam na duvidosa liberdade de ir e vir em meio aos outros entalados... Mas um profissional sabe quantos mistérios se escondem enroscados naquelas avenidas palmilhadas dia a dia, cozinhando sob o fogo brando do tráfego lento. Pensando bem, até mesmo um sujeito casca grossa como ele sente o impacto desses problemas. É aqui onde as coisas mais simples de se conseguir podem ser muito difíceis de obter: a partir da vaga de uma garagem apertada, colocar a máquina em movimento acelerado junto aos outros apressados e contidos pelos complexos ritmos da modernidade; entrar e sair dos endereços indicados pelos GPSs atualizados mês a mês, já que há sempre alguma rua sendo construída ou devastada dos mapas nesta cidade sitiada e, em contexto arriscado, fazer uma entrega após a outra, incessante e insaciavelmente, com o cuidado e a logística necessários, quando toda a lógica econômica e matemática se perde com o furor desses elementos, bons e maus, dentro e fora dos veículos. São chuvas, passeatas, incêndios de grandes proporções, incidentes ridículos, confrontos, eventos esportivos e aleatórios, provocando e comprovando a teoria do caos. Tudo é provisório, mas o motorista é um profissional e por isso conhece melhor do que os outros a sina de dirigir para existir... Ou seria o contrário? Em sentido oposto também está tudo travado. Todos os destinos. Ele já está exausto disso tudo há muito tempo e ainda não tem a metade necessária para a aposentadoria. Tudo é muito frágil, ele sente na carne. E arriscado também, ele percebe. Muitos não conseguem... Mesmo um cara preparado como ele, pensando, sente que subitamente pode não conseguir avançar, que parece que vai encalhar, ficar paralisado ali. Sim, tudo aqui é frágil para caralho! Ele grita alto, incomodando os cidadãos distraídos pelos rádios com notícias do trânsito insuportável. Muitos não conseguem... E lhe ocorre que há tantos desencontros, ou mais encontros que não chegam a acontecer do que aqueles que acontecem de verdade, supondo que alguém ali teve algum encontro deste tipo. Ele desconfia de todos. E de si mesmo. Ele mesmo mal suporta que tenha feito o que fez no dia anterior... E nos últimos anos! Dirigir! Que piada. E ainda há essa gripe infectando todo o mundo, faz um frio úmido e todos respiram naquele túnel o ar que fica raro... Tudo, tudo é muito frágil. E tão pesado que ele acha que vai ceder naquele banco desconfortável... Desfalecer... Então uma buzina espremida logo atrás o desperta e ele acelera automaticamente. É para frear alguns metros depois, colado no parachoque da frente. FIM

Fernando Bonassi nasceu em São Paulo, em 1962. É roteirista de cinema e TV, dramaturgo, cineasta e escritor de diversas obras, entre elas: Um Céu de Estrelas (Ed Siciliano); Subúrbio e 100 Histórias Colhidas na Rua (Scritta); O Amor é Uma Dor Feliz (Moderna); Uma Carta Para Deus e Vida da Gente (Formato); Declaração Universal do Moleque Invocado (Cosac & Naify) e São Paulo/Brasil (Ed. Dimensão), ambos finalistas do Prêmio Jabuti nos seus anos de lançamento. Entre 1997 e 2007, foi colunista do jornal Folha de São Paulo. Atualmente, é roteirista do seriado Força Tarefa, da Rede Globo de Televisão.

Para os amantes da literatura, a Flip é um momento único. Em Paraty, todos aqueles que concordam que o país só vai crescer se apostar na educação colocam isso na prática e a literatura é tratada com o destaque que merece. Esse ano, o evento homenageou o escritor Manuel Bandeira, mas foram 34 autores, reunidos em 18 mesas, que movimentaram a festa. Flávio Moura, diretor de programação trouxe autores como o escritor português António Lobo Antunes; o jornalista americano Gay Talese e o jornalista brasileiro Mario Sergio Conti, grandes nomes do jornalismo literário. Temas polêmicos como o do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de Deus, um delírio, e a literatura chinesa do escritor Ma Jian e da jornalista Xinran conviviam no mesmo evento. O músico e escritor Chico Buarque foi um dos destaques, lendo trechos do seu novo livro: Leite derramado. Havia, também, nomes como Milton Hatoum, Cristovão Tezza, entre muitos outros. Os quadrinhos tiveram seu espaço com nomes de destaque da produção atual: os vencedores do Prêmio Eisner, Rafael Grampá, Fábio Moon e Gabriel Bá, e o quadrinista e artista plástico Rafael Coutinho. A festa teve conteúdo para todas as idades, com a Flipinha para os mais novos e FlipZona para os adolescentes. A literatura deveria ser tratada assim, no dia a dia, com destaques nos veículos e sendo incentivada a todo momento. Na Flip desse ano mesmo com muitos nomes os escritores da Litera-Rua ficaram de fora. E houve até poetas maloqueristas que foram impedidos de vender suas poesias, mas depois conquistaram seu espaço no evento, que teve muita coisa além da programação oficial. Como o sucesso da festa paralela, a “Off Flip”. Ainda não confirmado, deve vir por aí a Fliper, Feira Literária Internacional da Periferia. É o país com sede de literatura.

Xinran Com a abertura política da década de 1980 em seu país, a jornalista e escritora Xinran (1958, Pequim, China) criou um programa de rádio que, durante oito anos, firmou-se como via de expressão para mulheres chinesas vítimas de violência. Impossibilitada de publicar os relatos, mudou-se para Londres e, lá, lançou As Boas Mulheres da China (2002). Integrou a equipe do jornal inglês Guardian até 2008 e publicou suas colunas em O Que os Chineses Não Comem (2006). Também escreveu Enterro Celestial (2005) e Testemunhas da China (2008), no qual cidadãos chineses, já idosos, relembram os anos sob o governo de Mao Tse-tung.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.