Narrativas Angustiantes II: Ritual

Page 1

RITUAL

II

Salamandra Celestial

Damian Murphy

A Colina de Cinzas

Colin Insole

Simulacros

Forrest Aguirre

São Paulo, MMXXIII

Salamandra Celestial

Damian Murphy (tradução: Alcebiades Diniz Miguel)

6

Finalmente, ao compreendermos o segredo da Pedra Negra, ficará claro que o segredo do Templo é o segredo do homem, e aquele que compreender isso terá as chaves do Templo em suas mãos: para tal indivíduo será concedido o potestas clavium.

(The Configuration of the Templo of the Ka’bah, de Henry Corbin)

7

Forçar e Entrar

Marita ajoelhou-se próxima ao rio que corria veloz, sempre veloz, atravessando o coração da noite. Assim que prostrou-se na terra suave, orou fervorosamente para sua estrela. E tal estrela, sua secreta gnose, surgiu em todo seu esplendor diante dos olhos dela, espargindo linhas de força numinosa que quase chegaram a arrebatá-la. Percorreu, então, caminhos ascendentes, com a velocidade do sinuoso rio, na direção da luz delicada do firmamento. Era o lugar em que ela poderia ter acesso aos palácios celestiais e casas secretas, até mesmo ao coração oculto de localidades proibidas. Por fim, retornou para a terra e para o corpo que deixara, embora carregasse em seu peito uma flama secreta, velada. Teria a Palavra indizível se originado da língua dos anjos, no silêncio? Pois o volátil tornou-se fixo. O conhecimento secreto estava com ela, que sabia exatamente como proceder. Assim, dirigiu-se para a noite exterior, Marita. Nesse mesmo instante, Peter vagava pelas ruas e caminhos noturnos da cidade, em uma atividade exploratória semelhante ao que faria com o corpo muito amado e desejado. Buscava lugares ocultos, impérios esquecidos de beleza inaudita, as matizes amorosas de uma voz percebida nas próprias pedras. A obscura alma poética da cidade o saudava em todos os quarteirões, acompanhando seus passos por becos mal iluminados, por recantos desolados. Capella, a estrela transgressora, brilhava no céu, sacralizando os caminhos dos caminhantes e dos malandros. Guiado pela sutileza de tais emanações, Peter caminhava sem destino entre praças e ruas. Seria impensável para aquele jovem cortejar a musa urbana sem a indumentária adequada. Peter trajava o uniforme de um homem que pretendia manter-se invisível. Adornou-se em negro e cinza, de forma bem pouco notável, em trajes já desgastados mas que indicavam bom gosto. Os longos cabelos emprestavam um ar original para um rosto que, de outra forma, estaria marcado apenas pela passagem de sucessivos infortúnios. Ele encarnava a alma de um insaciável desejo de deslocamento.

O vento se intensificava e as folhas ficaram gradativamente mais esparsas aos seus pés conforme a avenida arborizada dava lugar para uma esquálida rodovia secundária. Através de docas de estocagem desertas, fábricas dilapidadas, nos arredores dos restos arruinados de uma velha escola, há muito fechada, Peter se dirige para o

9

A Colina de Cinzas

Colin Insole (tradução: Fábio Waki)

48

Quando estiver ferido e só, na planície afegã, E mulheres chegarem só para cortar o resto, Divirta-se com o rifle, exploda os miolos, E encontre seu Deus, feito um soldado.

(“The Young British Soldier”, Rudyard Kipling)

49

Julho de 1940

Ofegante e sem ar de tanto correr, James Bulverton quase perdeu a entrada para o caminho que levava à Colina das Cinzas. Mas um fio de memória de quase 30 anos antes o puxou à direção certa e ele escapuliu para longe da vista de todos, enfiando-se pelo túnel coberto por vegetação. Logo sentiu as cinzas macias e avermelhadas sob seus pés, cinzas que engoliam o som de seus passos, e inalou o odor terroso e queimado do solo—algo mais reconfortante do que pisar gramados de tomilho ou camomila. O caminho serpenteava em torno da parte de trás da colina e ele pôde escalar com mais facilidade até o patamar em forma de disco próximo ao cume, onde enfim também pôde descansar. Daqui, tal como os deuses em um grande teatro, ele tinha uma ampla vista da cidade, do mar, da escola e de toda a terra que se estendia pela região sul da Inglaterra. Sob o crepúsculo, as flores brancas e retorcidas de plantas trepadeiras, recobertas por doentias manchas amarelas e verdes, como se tivessem sugado e absorvido os produtos químicos do solo, pareciam as lâmpadas suaves que ficavam acesas na galeria do palco até que os atores aparecessem por ali. Mesmo as teias de aranha, presas em linhas por entre os arbustos, tinham um brilho metálico, como se hidratadas com cal ou enxofre.

Bulverton foi recompensado com um pôr do sol dourado e carmesim e com o cintilar rosa-salmão das ondas no Canal da Mancha. Mais do que tudo, ele ansiava pela beleza da colina sob a luz do luar, quando a noite fundia o cosmos às formas avermelhadas e mutantes sobre o páramo de cinzas.

Nos gramados abaixo, um apito soou, indicado o fim de um treino de críquete. Os rapazes se dirigiram ao pavilhão, como ovelhas dóceis de volta ao curral.

Então, resmungou:

— Pobres cordeirinhos que se perderam. Béé! Eia! Béé!

Um velocista fazia seus disparos na pista em círculo coberta—conhecida na escola como “a turfe”. Os responsáveis pela pista rigorosamente faziam reparos ao longo dela, todos os dias; os professores jamais permitiriam que a poeira vermelha se levantasse por ali e jamais admitiram que ela viesse a ser chamada de “Pista de Cinzas”. Ele reconheceu, em uma sacada, a silhueta ossuda do velho professor responsável por sua casa e irmandade,

51

Simulacros

Forrest Aguirre (tradução: Fábio Waki)

70

Mas, com toda certeza, para a época atual, que prefere o signo à coisa significada, a cópia ao original, a fantasia à realidade, a aparência à essência, essa mudança, na medida em que elimina a ilusão, é a aniquilação absoluta—ou pelo menos, pelo menos, uma profanação imprudente; pois nestes dias, apenas a ilusão é sagrada, enquanto a verdade, profana. Portanto, o que se sustenta-se é o aumento da sacralidade à medida que a verdade diminui, a ampliaçãi da ilusão nesse mesmo passo, de modo que o mais alto grau de ilusão passa a ser o mais alto grau de sacralidade.

(Essência do Cristianismo, Ludwig Feuerbach)

71

Avontade de cometer assassinato havia me escapado, mas eu não conseguiria escapar. Ou melhor, eu não escapei. A vontade de violência não era minha, mas, de repente, eu era eu mesmo. Permaneci, e observei. Eu, Títero, via seu rosto, via meu rosto à luz do luar que penetrava pela fina trama do tecido que cobria a porta em arco ao lado do quarto, e sabia que eu era, tão bem quanto ele sabia que ele era. Eu sabia, também, que eu não era ele, Jonas Ludolf, por mais que meu criador quisesse que eu acreditasse que eu era ele, que éramos um o outro. O mesmo, diferente, Um. Uma longa faca tremia em minhas mãos. Mas ela era apenas para o cachorro, que jazia inerte, do lado de fora, junto à porta que levava às escadas até este quarto, enrodilhado em seu próprio sangue coagulado. Não, minha arma haveria de ser o travesseiro de seda do qual Jonas Ludolf levantara a cabeça para olhar para mim, o novo eu, para ver a si mesmo ou, ao menos, para ver sua imagem em uma escultura viva.

A cor escorreu de seu rosto, desbotando de um tom quente e ruborizado a uma palidez que muito contrastava com o travesseiro de seda chinesa vermelha no qual deitava a cabeça.

“Quem? Quem é você?”

No espaço entre as questões, apreendi muito. Também entendi que havia muita coisa que não entendia. Minha memória estava permeada por buracos importantes; tantos, que comecei a me perguntar como é que eu sabia o que de fato sabia. Epistemologia assombrava os espaços vazios.

Eu havia acordado, muito como Jonas Ludolf neste exato momento, com um tremendo choque. Memórias se infiltravam em minha mente como sonhos efêmeros, incompletos, desprovidos de fronteiras contextuais. A sensação era a de que haviam sido despejados sobre minha cabeça por algum agente externo, por algum estranho que, embora familiar para mim, não o era para com meus desejos, minhas vontades, minhas necessidades. E, embora conhecimento preenchesse os interstícios em meu cérebro, um milhar de inevitáveis bolhas de dúvida emergiam ao mesmo tempo.

*

73

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.