Revista Alabastro, ano 1, v. 1, n. 2, 2013

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Alabastro: ISSN 2318-3179 S達o Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013


Comissão Editorial CORPO EDITORIAL / EDITORS: Prof. Dr. Rafael de Paula Aguiar Araújo: Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP (2009) e Coordenador de Curso da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (raraujo@fespsp.org.br) Rafael Balseiro Zin: Bacharel em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (rafaelbzin@hotmail.com) EDITORES ASSISTENTES / ASSISTANT EDITORS: Alessandra Felix de Almeida: Graduanda em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (dona@alealmeida.com) Caterina de Castro Rino: Graduada em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (caterinarino@gmail.com) Evandro Finardi Sabóia: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (evandrofsaboia@gmail.com) Lívia de Souza Lima: Graduanda em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (livdesouzalima@gmail.com) Ricardo Vianna: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ric_vianna@yahoo.com.br) Thiago Duarte de Oliveira: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (prof.thiduarte@gmail.com) Thiago Henrique Desenzi: Graduando em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (thiago.desenzi@gmail.com) DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING: Alessandra Felix de Almeida (dona@alealmeida.com)

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ISSN 2318-3179 São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013

Sumário Nota dos Editores

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Rafael de Paula Aguiar Araújo e Rafael Balseiro Zin

Apresentação Darcy Ribeiro Irene Maria Ferreira Barbosa

7 -8

Convidado Especial O exílio interior ou onde cala o sabiá Flávio Aguiar

9-18

Dossiê Darcy Ribeiro Maíra sob a perspectiva estatal: a visão institucional e o tratamento legal dos índios Paulo Mendes de Carvalho Guedes e Marcos Veríssimo de Souza Junior

19-27

Darcy Ribeiro: antropólogo, educador e político Karina Lima

28- 34

Sexualidade, erotismo e proibição em Maíra Risoleta Pacola e Cecílio Henrique

35-42

Maíra: a liturgia do sacrifício indígena Ednilson Esmério Toledo da Silva e Tabata Pastore Tesser

43-49

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O Mal-Estar na Civilização em Maíra Evandro Arruda Carneiro da Silva

50-58

Os rios profundos e Maíra: a utopia de integração harmoniosa a partir da proposta de Ángel Rama Elise Aparecida de Souza e Anelito de Oliveira

59-73

Artigos O Sol é para Todos: uma reflexão a partir do III Plano Nacional de Direitos Humanos Larissa Rodrigues Vacari de Arruda

74- 83

A liberdade de informação e suas questões polêmicas Maria Cristina Barboza

84-93

Dilma e o subproletariado: uma análise sobre a corrida presidencial de 2014 Camila Camargo

94-101

Descrição do atendimento prestado por Instituições Socias de cuidados a saúde do Idoso Juliana F. Cecato, José Maria Montiel, Daniel Bartholomeu e José Eduardo Martinelli

102-109

Discussões no Conselho: da cultura de Estado à cultura de Mercado – Um estudo sobre a ação do Conselho Federal de Cultura (1974 - 1990) Renata Duarte

110-123

Ocupar e Resistir Anderson Alves de Medeiros, Cláudio Dias Bezerra, Luciana Nunes Rotondi e Steff Cordeiro de Oliveira

124-136

Uma interpretação dos ritos fúnebres da Assembleia de Deus Carlos Jose Jesus Freire de Sá

137-152

Ensaios Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuição à discussão sobre democracia Christoph Hess

153-156

Sartre: a consciência de ser visto Rafael Trindade

157-168

Tradução Por que a política da competição é mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot Lívia de Souza Lima

169-171

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Nota dos Editores

É com satisfação que oferecemos a vocês, leitores, o segundo número da ALABASTRO – Revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Dando continuidade às comemorações dos 80 anos da FESPSP, nesta edição, preparamos um Dossiê temático com alguns trabalhos que versam sobre aspectos da vida e obra do antropólogo, escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997), ex-aluno da Escola de Sociologia e Política, formado em 1946, e que ficou conhecido internacionalmente por sua militância em relação às populações indígenas e ao contexto da educação no Brasil. Os documentos que compõem essa primeira parte tomam como arrancada para a reflexão a obra Maíra, publicada, originalmente, em 1976. Os trabalhos contam, também, com um texto de apresentação de Irene Maria Ferreira Barbosa, docente de Antropologia no curso de Sociologia e Política da FESPSP, e com o ensaio de Flávio Wolf de Aguiar, pesquisador e docente de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. A segunda parte da Revista, por sua vez, é composta por demais trabalhos, tais como artigos, ensaios e tradução de texto, que abordam variadas questões referentes ao eixo de pesquisas sobre Estado e desenvolvimento no Brasil. Além disso, informamos que o processo editorial desta segunda edição traz algumas novidades, que julgamos por bem compartilhar. A principal delas é a atribuição do registro ISSN (International Standard

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Serial Number) à ALABASTRO, sigla em inglês para Número Internacional Normalizado para Publicações Seriadas. Essa identificação é de suma importância para a visibilidade e o reconhecimento da Revista, pois torna o título da publicação único e definitivo. Ao mesmo tempo, o uso do ISSN confere vantagens ao processo editorial, uma vez que possibilita rapidez, produtividade, qualidade e precisão na identificação e controle da publicação seriada nas etapas da cadeia produtiva editorial. A outra novidade é que esta edição é fruto de uma renovação da Comissão Editorial, que dispõe, agora, de novos integrantes. Vale frisar que a realização de um projeto editorial como este, de cunho pedagógico, e que objetiva estimular e tornar pública a produção de conhecimento feita por jovens pesquisadores, de diferentes instituições universitárias do país, somente se torna possível graças ao empenho e dedicação de todos os envolvidos no processo. Por esse motivo, registramos aqui os nossos agradecimentos e as boas vindas aos novos membros. Com vocês, leitores, dividimos a alegria desta experiência. Boa leitura! Rafael de Paula Aguiar Araújo Rafael Balseiro Zin

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Apresentação

Darcy Ribeiro por Irene Maria Ferreira Barbosa Docente de Antropologia, no curso de Sociologia e Política, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Escrever sobre Darcy Ribeiro não é tarefa fácil, pois ele mesmo já escreveu quase tudo a seu próprio respeito. Sua “personalidade trepidante”, como diz Antonio Candido, declara que gosta muito de escrever e falar sobre si mesmo, como pode ser observado nas obras: Confissões (1997), Testemunho (1990), Diários Índios (1996) e em alguns romances em que suas próprias experiências parecem fazer parte do cenário, como em O Mulo (1981) e Utopia Selvagem (1982), obras com as quais nos deliciamos com as narrativas exuberantes de suas interessantes peripécias. A riqueza do personagem é imensa! Para nós, hoje, na Escola de Sociologia e Política, temos algumas razões para nos lembrarmos de um dos mais brilhantes alunos desta casa, quer seja pela comemoração de seus 80 anos de fundação, ou pelas atividades decorrentes da leitura de uma de suas obras de literatura não científica mais preciosa: Maíra (1976). Para mim, especialmente, trata-se de uma obra prima, carregada de conhecimentos antropológicos magistralmente construídos num cenário de ficção muito verossímil, uma vez que as experiências científicas do autor lhe permitiram uma certeza a respeito do pano de fundo de onde a obra foi construída. Os cuidados científicos e políticos envolvidos nas relações entre índios e colonizadores e a grande tragédia da colonização, ficam nitidamente aqui traçados por Darcy Ribeiro. Esses aspectos foram muito explorados por várias escolas literárias,

mas nenhuma produziu o impacto de despertar nos alunos deste atual primeiro ano, ainda com poucos conhecimentos teóricos de Antropologia, tanto interesse na leitura e compreensão de uma obra considerada difícil, como um todo, rica de aspectos nem sempre tão óbvios em uma leitura apressada, mas que exigem grande empenho e interesse. A dedicação e a seriedade com que a leitura do livro foi feita pelos nossos alunos provocaram discussões e debates nos corredores e intervalos de aula. Com isso, um grande número de textos sobre etnologia indígena foi mobilizado como leitura complementar, para ajudar o aproveitamento da leitura da obra. Daí o surpreendente resultado dos trabalhos que estão aí publicados para serem conhecidos. Maíra, como experiência literária, traz ao nosso conhecimento as enormes dificuldades impostas pelo processo colonizador e, de certa forma, a falta de perspectiva das populações indígenas, a despeito das entidades que foram criadas para sua preservação. Darcy Ribeiro lida com um aspecto “do sagrado” e nos mostra como sua preservação é indispensável para a integridade indígena. A leitura de Maíra, portanto, constituiu uma experiência única para iniciar um curso de Antropologia. A outra grande razão para incluir o nome de Darcy Ribeiro neste momento está na importância que a Escola, com seus 80 anos, representou para sua formação. Ele mesmo se

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Apresentação

Darcy Ribeiro Irene Maria Ferreira Barbosa

orgulhava em dizer que teve a melhor formação possível no seu tempo, pois teve em São Paulo o melhor ambiente e as orientações mais competentes que se podia ter na área de Ciências Humanas, até então. Darcy Ribeiro sempre mostrou muito orgulho de ter estudado na então Escola Livre de Sociologia e Política, considerando que, naquele momento, São Paulo contava com os melhores pensadores e cientistas sociais. Em suas Confissões, ele nos conta que conheceu Donald Pierson em Belo Horizonte, enquanto membro do movimento estudantil no Diretório Central de Minas, e teve a oportunidade de convidar personalidades para dar conferências aos estudantes. Assim, Pierson passou vários dias com ele visitando de modo encantado as cidades históricas de Minas, que não encontravam nada parecido nos Estados Unidos. Dessa amizade, Pierson convida Darcy para conhecer São Paulo e recruta outro grande aluno para recebê-lo e acompanhá-lo: Oracy Nogueira, personalidade tão diferente de Darcy, mas com quem manteve uma amizade sólida e duradoura. Mais tarde Darcy conheceu nomes importantes da vida cultural paulistana, alguns comunistas ativos que influíram muito em sua formação e nos rumos de sua trajetória política e acadêmica. No entanto, entre todos eles, recorda com carinho especial de Donald Pierson, pois com o americano, além de ter aprendido as técnicas de pesquisa de campo, reconhecia-o como um professor sistemático, disciplinado e que fazia tudo de maneira muito séria: “(...) tinha encantamentos por estudos urbanos e estudos de comunidade e principalmente pela grande novidade da época que era a ecologia”. a

alemães, todos antinazistas, coisa raríssima! Entre eles estavam Émille Willems, “que dava aulas elegantíssimas de Antropologia”. O melhor professor que teve, porém, foi o poeta prussiano Herbert Baltus, apaixonado por índios brasileiros, com quem frequentou seminários de pós-graduação em etnologia brasileira por três anos, oportunidade em que discutiu a monografia de Egon Schaden sobre a mitologia heroica dos Guarani e o ensaio fantástico de Florestan Fernandes sobre a organização dos Tupinambá. “Com Baltus aprendi muito, sobretudo a fazer meu seu ideal científico de estudar a natureza humana pela observação dos modos de ser, de viver e de pensar dos índios do Brasil”. É, portanto, nada menos que admirável a transfiguração do menino, que, destinado a boiadeiro em Montes Claros, abraçou um ideal científico desse porte. Há, ainda, muitas outras histórias interessantes que nos ajudam a compreender a grande paixão de Darcy por tudo o que fazia. Além delas, suas obras estão aí, a nos desafiar e nos deleitar, e a continuar a despertar nos jovens pesquisadores, que pouco sabem de sua trajetória, uma curiosidade saudável, conveniente e apaixonante. É, assim, um prazer muito grande apresentar os trabalhos temáticos feitos pelos alunos de primeiro ano a partir da leitura de Maíra de Darcy Ribeiro. Porque recupera a vitalidade literária e o conhecimento erudito de uma realidade que, como imaginava ele, ainda está aí a desafiar índios sobreviventes.

Ainda na Escola Livre, Darcy reconhecia importância dos excelentes professores

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Convidado Especial

O exílio interior ou onde cala o sabiá Flávio Aguiar

Flávio Wolf de Aguiar (Porto Alegre, 1947) foi professor de Literatura Brasileira da USP (1973-2006), tendo orientado mais de quarenta teses e dissertações de doutorado e mestrado, e tem mais de trinta livros publicados, como autor, coautor ou organizador. Atualmente é editor da TV Carta Maior e vive em Berlim, onde é correspondente de publicações brasileiras.

Los dioses no mueren de repente. (Fernando Ortiz) Maíra, de Darcy Ribeiro, é o romance de um encontro fortuito e de muitas errâncias trágicas. Narrado a partir de diferentes pontos de vista, ele se desdobra na construção de solilóquios, monólogos, diálogos, pregações, pensamentos, na recompilação de notas, relatórios, e até na intervenção de uma terceira pessoa onisciente que no capítulo “Egosum” se revela a mais precária das personas narradoras. O espaço fundamental da narrativa é o da vida tribal dos mairuns, uma tribo ficcionalmente criada pelo autor, onde se condensam, segundo seu próprio depoimento, crenças, mitologias e cosmogonias de diferentes culturas nativas do território brasileiro, às margens do rio Iparanã, na floresta amazônica vista como última fronteira ou fronteira última do avanço predador de uma civilização desembestada, herdeira de todos os prejuízos do empreendimento colonial e promotora de todos os aspectos de barbárie do capitalismo. Os mairuns, entretanto, não comparecem ao romance como um tipo genérico de tribo; conforme se desvelam para o leitor sua

mitologia, suas crenças, a voz mesma de seus espíritos, de seu criador, eles tornam-se uma tribo particular, um povo ameaçado, embora ali estejam como personagens de um drama que não é só o deles, mas de todos os povos da América na mesma condição. O que quero dizer com isso de se tornarem uma tribo é que o autor não os reduz à condição genérica de tipos, mas ao contrário, os individualiza e com eles dialoga de igual para igual, evitando os escolhos das diferenças de linguagem que caracterizaram muito do regionalismo brasileiro, ou da representação pitoresca, que também caracterizou, na literatura, muitos comparecimentos, às suas páginas, das classes populares ou de populações remotas em relação aos centros urbanos. Maíra, o personagem que dá o título ao romance, é parte do mundo criado a partir de um deus velho, e na criação ele é uma espécie de força vital que anima os homens, chegando a coabitar com seus corpos, corações e mentes. Os mairuns são o povo de Maíra, e a presença desse deus-espírito num homem é um momento único para ambos, que assim se revelam mutuamente, se encaixam no mesmo plano da existência. Esse momento separa a mitologia mairum da cristã,

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Convidado Especial

O exílio interior ou onde cala o sabiá Flávio Aguiar

pois nesta, se o seu deus se encarna no plano da existência humana, ele, supostamente, permanece com um pé no céu. O homem corre o risco de destruição; o deus cristão não, pois é eterno. Mas os deuses e os espíritos mairuns desaparecerão, se os mairuns desaparecerem, e estes são seres fadados à essa desaparição. Assim Maíra atinge um plano mitológico, narrando também uma história de deuses, do ponto de vista de sua agonia. Essa narração se situa na linha divisória de um confronto terminal de culturas e de religiões, simbolizada na evocação litúrgica da estrutura de Maíra. O próprio Darcy Ribeiro declarou que o romance lembrava uma missa. Ora, a missa cristã tem dois núcleos fundamentais: a liturgia da palavra e a da eucaristia. Na missa, a liturgia da palavra é composta pela evocação do Verbo divino, pelo sermão, pela lembrança dos mortos e dos vivos. Já no romance a liturgia da palavra é a da narrativa, que combate a letargia da consciência, num escritor que segue a tradição de empenho da literatura brasileira com os aspectos civilizados da civilização e contra sua barbárie consentida e potenciada. A liturgia da eucaristia, na missa, centraliza a rememoração e revivescência de um sacrifício, que se imprime na consciência, renovando-a pela memória. Mas na liturgia do romance o ser divino que morre é o do outro; ou pelo menos ele agoniza, com a consciência de sua provável morte, como no capítulo “Maírañee”:

desaparecimento do outro, quando então a treva retornaria e os poderes infernais engolfariam a existência. Interpretações mais ousadas da cosmogonia cristã também apontam uma reciprocidade entre Criador, Criação e Criatura, mas ela não pertence ao dogma canônico. De certo modo aquele processo agônico já começou, mas tragicamente os mairuns não têm outra possibilidade a não ser a de estarem agora em oposição a um mundo terrível que, entre outras barbaridades, dispôs a sua capital no altiplano (Brasília) que encerra a boca do inferno e da treva. A chegada da civilização põe este povo - pelo menos na consciência ilustrada de seu profeta, o Avá/Isaías, à beira da aniquilação absoluta, do fim da história. Essa chegada da civilização, com seus novos dominadores e dominados, é a chegada do Brasil a seus confins. Se o Brasil é a terra das palmeiras, onde canta o sabiá, imagem que é a contra-facção do próprio poeta que canta a sua terra, aqui, neste confim, ele ameaça perder a voz, porque se é verdade que os destruídos serão os mairuns, isso significa que essa civilizaçãoBrasil perdeu a sua alma (nome, aliás, de uma personagem que morre no romance) e está, portanto, mais que morta, reduzida à condição de alma penada, fantasma de si mesma, corpo sem ñee, ou seja, portadora de uma palavra destituída do seu espírito. O romance, portanto, morde a cauda, e o drama mairum é o drama universal, de um ser humano que talvez tenha chegado ao limite de sua existência.

“Um mundo despovoado de mairummairuns não estará, coitado, de mim também despojado?”

Para a consciência mairum, com que dialoga o ponto de vista do romancista, a trajetória do protagonista humano (porque há o protagonista divino, Maíra, acompanhado de seu irmão Micura, o gambá noturno) que é esse Avá/Isaías, é também um sinal dessas enormes mudanças que deverão ocorrer no plano universal. Os padres da missão enviaram Avá a Goiás e a

Portanto, na consciência mairum construída no romance há reciprocidade entre os planos humano e divino; um não existe sem o outro, e o desaparecimento de um acarreta o

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Roma para ele fazer-se padre; depois de uma ausência de uma dezena e meia de anos ele volta a seu lugar de mairum, movido pela dúvida sobre sua vocação e sua identidade. Nesse meio tempo Brasília cresceu, sobreveio a ditadura, o mundoBrasil mudou inteiramente. Ele não é mais Avá, mas não é inteiramente Isaías, seu nome de batismo; é Avá/Isaías, prisioneiro da passagem, condenado a uma espécie de exílio interior, alma errante de ambos os lados do espelho. Ele não é um aculturado no entanto; é um transculturado, destinado a ser algo além das culturas cujo confronto desigual lhe deu origem, o símbolo da contradição entre os dois mundos em que viveu, mas onde não vive mais. Numa delas, é o ex-tuxaua que não é mais, e faz assim deslocar-se o eixo sucessório no reino mairum, prenúncio de desgraças tanto quanto a morte de Alma, no parto, e dos gêmeos que dera à luz, um símbolo vivo de que o mundo vai perdendo sua substância. Do outro lado é o ex-futuro-padre, símbolo de uma conversão que não se completa, sinal de que o mundo já perdeu a sua substância. Neste outro mundo, espaço intermediário que é o seu, Avá/Isaías é o sinal da cruz: um mundo não pode subsistir sem o outro, embora o mais forte possa aniquilar o mais fraco. O da civilização que avança parece indestrutível perante o maírum; mas a destruição deste é o sinal de que o primeiro, como já disse, perdeu a alma, morreu antes de matar. Façamos uma pausa, para discutir o que é esse símbolo transculturado. O termo vem do livro Cuntrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, publicado em 1940 pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz, e procura descrever o processo de construção de um novo perfil da sociedade ocidental, em Cuba, a partir da transposição da cultura do tabaco para o plano da produção mercantil, e da implantação na ilha da cultura do açúcar, trazida pelos europeus junto com a escravidão. Diz o sociólogo

então que houve neste jogo uma transculturação do tabaco, que, além de sair da ilha e da América para o resto do mundo, deixou o plano religioso em que era preferencialmente consumido para tornar-se saboreado enquanto hábito refinado de consumo. Mas esta transculturação aponta para outra, pois a sociedade ocidental que operou a transculturação do tabaco já não é mais a mesma que iniciou o processo; os europeus que ocuparam as Américas tornaram-se “outros”, se desgarraram de sua cultura original. E neste processo complexo formou-se algo que não existia antes, não coincidente com os termos que lhe deram origem. Por isso Ortiz cria o termo transculturación, que se opõe ao de aculturation, então muito em voga nos Estados Unidos, onde ele se encontrava. Para ele este último termo está carregado de etnocentrismo, supondo uma cultura “superior” que absorve elementos de outra “inferior”, modificando-os sem se modificar. Transculturação supõe, sem negar as desigualdades de condição, como a existência de culturas dominantes e de outras dominadas, uma troca, e modificações no interior mesmo da dominante. Algumas décadas mais tarde o crítico uruguaio Ángel Rama retomará o termo, ampliando o seu uso. Ao retomá-lo, particularmente em seu livro Transculturación narrativa en América Latina, escrito a partir de meados da década de 70, Rama faz um reparo a seu emprego pelo sociólogo, Diz o primeiro que este tem uma compreensão demasiadamente mecânica do processo, como se este fora o resultado apenas de transposições inevitáveis e inconscientes. Rama acentua então, ao situá-lo na literatura, os aspectos seletivos da transculturação, afirmando que esta se opera num processo complexo que envolve tanto a aceitação como a rejeição, e que, portanto, pode ser mais volitiva do

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que parece à primeira vista. E estende o uso do conceito para caracterizar também os processos de modernização que, em diferentes projetos econômicos, políticos, ideológicos e culturais, caracterizam a vida das sociedades latinoamericanas a partir sobretudo da segunda metade do século XIX. Esses projetos, de que muitos escritores foram pontas-de-lança ou críticos, ou ambos, operariam seus aportes a partir da visão de duas civilizações em confronto: a moderna e a atrasada. E procurariam desenhar uma outra via, pelo menos os mais criativos, trasnsculturando elementos de uma e outra, de modo a garantir a prevalência da primeira sem perder de todo a identidade construída na segunda. Se observarmos a obra de Darcy Ribeiro de encontro a esta moldura, podemos pensá-la como construída a partir da consciência trágica de uma transculturação emperrada, pelo menos em seu plano humano. Como já repetiu em algumas de suas obras, inclusive em sua última, O povo brasileiro, Darcy Ribeiro vê a constituição do Brasil, inicialmente, nos primeiros tempos coloniais, como fruto de uma intensa e extensa mestiçagem, que deu origem ao mameluco (de que Juca, o regatão, é símbolo no romance, e este sim, um tanto quanto estereotipado, a meu ver, um pouco distante da vivacidade que caracteriza outros)1. Porém, passado este primeiro momento, que se distribuiu desigualmente, no tempo, ao longo do território do futuro Brasil (antes no litoral do que mais a dentro; antes mais ao norte do que mais ao sul, por exemplo) divisões irremediáveis voltaram a se implantar. O Brasil assim construído, e depois de tornado mais complexo com a mestiçagem do negro e dos demais imigrantes, não aceita mais o índio; e o imenso cortejo de culturas diferenciadas, agora reduzidas à condição de indígenas, não têm outro remédio senão nela permanecerem como uma espécie de fantasmas de si mesmas. Um

índio, portanto, jamais deixará de sê-lo: não se integra nem se entrega. Pode, eventualmente, se desagregar, pela bebida, prostituição, ou outra maldição qualquer que a civilização lhe traga. Ao mesmo tempo o brasileiro, do outro lado, jamais chegará a virar índio, além de não querê-lo, quase sempre. Alma, a companheira fraternal de Isaías, que com ele vai ao território do Iparanã, em busca de uma nova existência, e que se torna uma espécie de fornicadora livre e sagrada para os mairuns, encontra ali a morte, e a de sua prole, por não saber nem poder ser índia na hora do parto. Ninguém a ajuda, ninguém grita por ela, ninguém segura seus cabelos, nem mesmo Avá que, de certo modo, é de fato responsável por sua morte. De um lado e doutro das divisas culturais, para quem ouse atravessá-las, só há, ao fim e ao cabo, o desamparo. Por que então, mais acima, falei de Avá/Isaías como um transculturado? Porque não estamos, aqui, falando sobre o plano da existência. Tudo isto poderá ser a expressão mais lídima da verdade para o personagem real, evocado no mesmo romance, o “Avá que era Bororo e se chamava Tiago”, naquele capítulo autobiográfico “Egosum”, e que teria inspirado o personagem fictício. Mas no plano da fabulação romanesca Avá/Isaías de fato viaja entre os dois mundos, embora no plano da ação do romance ele permaneça como um símbolo da impossibilidade. A sociedade brasileira empurrou os primitivos habitantes dessas terras para o exílio em sua própria pátria: fê-los índios. Fantasmáticamente, eles agora nos visitam na literatura, como símbolos constantes do nosso próprio desencontro conosco mesmos e mais ainda: frequentemente como símbolos aceitos da própria sociedade nacional. A sociedade que aceita um índio como símbolo de si mesma não é mais a mesma do ponto de partida. Por um lado,

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é mais perversa, pois aceita em efígie o que recusa em carne e osso; de outro, reconhece, graças à sua própria literatura, ainda que às vezes tenuamente, seu próprio malestar2. Digamos que descrevi até aqui a ação do romance vista pelo ângulo mairum. Poderíamos vê-la pelo outro lado, pelo lado brasileiro. Uma conclusão é a de que ela se torna bem mais prosaica, mas não menos interessante. Temos aí um romance histórico e político, além de uma história de amor que não se completa, e por isso traz a morte para uma das personagens envolvidas. Do lado brasileiro, vê-se a história descrita por um escritor agnóstico, da ocupação predatória dos espaços da floresta, com sua fauna, sua flora, suas águas, suas terras e seus povos. Essa ocupação se exprime numa polifonia exasperada (expressão já usada por Walnice Nogueira Galvão em relação a Os sertões) de vozes, tonalidades e modalidades desencontradas: a raivosa do regatão, a exaltada do beato Xisto, o flautim das namoradas, a perplexa de Alma, a estranha de Isaías, a alegórica dos personagensdeuses, a fria dos relatórios, e sobre todas paira o silêncio impune e criminoso do Senador Andorinha, artífice da ocupação predatória. No tempo da ditadura, sonhava-se em transformar a floresta em pastagem; ainda hoje este sonho nos persegue e nele somos nós, os brasileiros, o gado de corte. Enquanto o mito mairum construído evoca a agonia dos deuses, o romance brasileiro que o enquadra denuncia a destruição criminosa das culturas para a implantação de um sistema mais eficaz de exploração do homem pelo homem. Há, neste plano romanesco, uma visão irônica de um processo efetivo de transculturação: dos Epexãs, povo irredutível da região, só ficará o nome, escolhido pelo Senador para batizar aquelas terras. De uma cultura para a outra gente vira lugar: índio é paisagem.

Nas muitas vezes em que os índios vieram em socorro da literatura brasileira, predominaram por vezes as tonalidades da idealização (entre os românticos, por exemplo), ou da ironia (entre os modernistas, por exemplo). A idealização promovida pelos românticos vinha do ardor em construir uma imagem-símbolo da sociedade nacional. Redefiniam, eles, estimulados por seus pares europeus coevos, os passos dados por alguns árcades, como Basílio da Gama, n’O Uraguay, que idealizaram o índio, mantendo-o como estranho ao processo civilizatório, só passível de incorporar-se a este se vencido ou reduzido. Estão neste panteão nacional às avessas Cepé e Cacambo, mais aquele do que este, entre os primeiros dos índios levados à condição de exilados em sua própria terra. Cacambo de certo modo é o sinal da contradição: ao parlamentar com Gomes Freire, no poema de Basílio, argumenta que a troca do Sacramento pelas Missões é prejudicial aos portugueses, pois os índios deverão deixar as terras outrora ocupadas, e estas sem eles e o seu trabalho de nada vale. Ao contrário de Cepé, guarani detido em sua certeza da guerra, Cacambo é índio, mas dá lição ilustrada de economia e argumenta como uma burguesa sensatez de espírito. Foi ele, assim, talvez, o nosso primeiro Isaías/Avá bem acabado, agitando-se sem saída entre as duas culturas em confronto, pelo menos no plano da fabulação. Há algo de árcade em Maíra, vendo o índio diante da civilização; há o fato novo de que ao tempo de Basílio não havia nada parecido com uma nova sociedade nacional brasileira, a não ser talvez em embrião, nem o fato de que a literatura dessa sociedade emergente tomaria o índio como símbolo de sua diferença. Nesse novo deslocamento do índio para fora dos contornos da sociedade brasileira há também a retomada e a extensão de uma contribuição de raiz modernista,

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pois se Macunaíma permanece o símbolo álacre de uma sociedade sem caráter definido, sua viagem o conduz, afinal, de volta para os confins e mesmo para o além dessa sociedade. Do final da Segunda Guerra para cá se acentua o traço desse sentimento de que o índio, se não representa o Brasil, mas a ele confronta, o seu drama de excluído sim representa o conjunto de dramas da sociedade brasileira, cujo eixo construtivo foi a permanente exclusão de suas benesses dos que são recrutados para a construção dessas mesmas benesses. Deste sentimento o conto Meu tio, o iauaretê, de Guimarães Rosa, publicado em 1961 na revista Senhor seria um dos primeiros frutos literários. Retomando a linha do monólogo dialogante explorada em Grande Sertão: veredas, o conto o situa num plano de exasperação onde não há espaço para a carga de evocação lírica presente naquele romance. Não há qualquer esperança para o narrador-personagem de Meu tio…, que é um caboclo mestiço, sem lugar na sociedade tribal de sua mãe e de impossível aceitação por parte da sociedade brasileira de seu pai. E a consciência do antropólogo Darcy Ribeiro estaria também entre as que exprimem este malestar fundacional que medrou em nossa cultura. Estas últimas linhas querem ressaltar que, se Maíra se prende muito de perto à consciência militante do antropólogo e político Darcy Ribeiro, e a seu empreendimento de historiador da causa índia no Brasil e alhures, este romance também está solidamente ancorado na experiência literária corrente no Brasil. E ressalte-se que não só quanto à questão do tema indigenista; também quanto à questão do ponto de vista. Em suas confissões sobre o romance. Darcy afirma que o escreveu em dois exílios e uma prisão. Ou seja, os limites desse romance são o golpe de 64, pois Darcy diz que a primeira versão nasceu em seu primeiro exílio no Uruguai;

o exílio em seu próprio país a que a população se viu condenada pelo regime oriundo do golpe; o novo exílio provocado pelo prolongamento da ditadura, que leva o autor a Lima, no Peru, quando a versão definitiva teria encontrado sua forma; e o declínio da própria ditadura, pois o romance é publicado em 76, quando já medra a política da “distensão lenta, segura e gradual” do governo Geisel, e as oposições começam a luta pela anistia. Entre os momentos das sucessivas gestações do romance, pois Darcy diz que a cada exílio ou prisão o reescreveu sem a posse das versões prévias, e sua publicação, se processa uma desilusão da intelectualidade brasileira e uma disfunção penetra suas narrativas, ou talvez um novo corpo de funções desagregadoras. Entre a geração de 30 e essas lindes do golpe de 64, afirmou-se uma narrativa de grandes angulares no romance que tinha por estro medir-se com a história brasileira, fosse numa visão nacional ou regional. São exemplos dessa inclinação romances tão díspares como o já mencionado Grande Sertão ou O tempo e o vento. A pluralidade de vozes, se existe, como é o caso do último, converge para uma permanente consciência ou esforço de construção de um ponto de vista integrador que constantemente se afirma: O tempo e o vento é um romance solidamente escrito a partir de um ponto de vista que afirma, apesar de tudo, o avanço da história humana ainda que numa visão cética, irônica e desencantada. Grande Sertão é narrado por uma voz desdobrada que se detém sempre no avesso da dúvida; mas dela emana, sempre, o grande poder evocativo da palavra humana que resgata, para um plano superior da memória, aquilo que se perdeu no labirinto da existência. Celebra, assim, positivamente, o mistério dessa e nessa mesma existência. O último rebento dessa grande angular de vocação integradora talvez tenha sido Quarup, onde as hesitações do

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protagonista e a evocação do rito indígena, se já evidenciam as irremovíveis distâncias implantadas na sociedade brasileira e a crise das utopias que logo vão eclodir nos projetos ideológicos, ainda desembocam numa espécie de esteira cujo destino é resgatar o passado em direção ao futuro afirmativo. Este passo se consolida na visão final do Nando encourado, que parte para a luta armada como se fora armado cavaleiro, levando consigo a esperança do encoberto, em seu nome de guerra que evoca o companheiro desaparecido, amor mítico de Francisca que ele, Nando, substituiu no plano da existência: o Levindo desaparecido, aquele que, parodiando Fernando Pessoa, não veio e por isso mesmo foi vindo à nossa memória e nos criou, também espelho do recorrente sebastianismo de que somos herdeiros. Se tomarmos o caso de Callado, autor de Quarup, vemos que há um oceano de diferenças entre este caudal histórico que ainda comparece às páginas desse romance e a progressiva fragmentação do ponto de vista narrativo que vai se alastrando em seus outros romances, sobretudo em Reflexos do Baile, que é do ano de 1973. Não há apenas uma fragmentação técnica da voz narrativa; mas há um dilaceramento da consciência do narrador, que não dá mais conta da profusão divergente de pontos de vista expressos nos documentos, notas, bilhetes e tantos outros meios expressivos que compõem a colcha de retalhos em que se transformou o tecido da narração. Muito da narrativa brasileira se fez tecendo-se com a história, empenhando-se na construção de uma literatura e de uma sociedade nacional civilizada. A barbárie implantada no coração do Estado, e assim exposta sem pudores, levou este empenho às lindes do desespero. Construir a sociedade nacional era também construir uma possível monstruosidade. Do casamento deste sentimento de ceticismo em relação à tradição de nossas letras

com técnicas de desconstrução do ponto de vista, tidas como características da narrativa polifônica moderna, nasceu um livro como Reflexos do Baile. E outro como Maíra. Este nasceu, portanto, também como resultado de uma transculturação, como a via ou lia Ángel Rama que, aliás, dedicou seu livro aqui mencionado a dois antropólogos, sendo um deles Darcy Ribeiro, e nele analisa longamente o romance de um terceiro, José Maria Arguedas. Vendo a impossibilidade de diálogo eficiente entre os universos culturais em confronto, o que condena um à disparição e o outro, o sobrevivente, à contínua perversão, fazendo-o permanecer numa espécie de inferno anômico onde vale tudo, o narrador entrega, por assim dizer, esse diálogo à sorte ou ao azar do confronto entre estruturas míticas antevistas desde a presença humana em ambas as culturas. Por isso a estrutura litúrgica da missa ao mesmo tempo contém e dialoga com a evocação dos mitos mairuns reconstruídos, como se dessas estruturas que evocam tempos arcaicos e seus sacrifícios pudesse emanar, para além das consciências dos personagens e a do narrador, que navega entre as deles, alguma esperança de salvação e de porto ou, pelo menos, âncora, que pudesse servir de ponto de referência. No já referido capítulo “Egosum”, o antropólogo Darcy, transformado em personagem do narrador Darcy, pratica algo semelhante, que pode ilustrar o que quero dizer. Conta ele como, transgredindo todas as normas, as suas, de antropólogo, e as da comunidade que o hospedava, ficou na taba para ver o inharon, ou seja, o índio furioso, pela perda de um ente querido, e que se torna uma ameaça para todos, pois tem o direito de destruir o que quiser. Darcy conta como, ao deparar-se então, frente a frente, com o índio enfurecido, ficaram ambos pasmos e cristalizados pelo espanto, naquele momento absolutamente não previsto

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de completa nudez de um diante do outro e de uma cultura diante da outra. Ao invés de agredilo, o inharon nada fez, até que ele, Darcy, voltasse ao mato e desaparecesse, quando retomou o seu papel de furioso. E ele, Darcy, por sua vez, retomasse o seu papel de antropólogo. O ato herético do antropólogo e hóspede espelha a dupla heresia do narrador agnóstico, que toma da missa para elaborar sua narrativa; e mais, toma da missa cristã para evocar a morte do outro deus. Quem sabe, assim, devolvendo a missa e o mito cristão a uma de suas raízes, que é a de absorver mitos e ritos criados a partir de uma adoração solar sacrificial, e de relê-los num contexto de substituição simbólica. Mas o narrador Darcy impõe uma operação transculturadora também na estrutura da missa evocada, pois aqui o emprego da liturgia religiosa não se destina a absorver a cultura do outro, mas sim a construir a voz do deus agonizante. Estamos longe, portanto, das operações de incorporação de elementos da cultura indígena promovidos, por exemplo, pelos jesuítas em seus serviços e autos nos primeiros tempos da colonização. Ou mesmo do casamento idealizado de mitos promovido por Alencar no alto da palmeira onde Peri e Ceci partejam o Brasil, conjugando o mito de Tamandaré com o de Noé, embora a operação de Darcy esteja mais próxima desta do cearense do que daquela dos jesuítas. Mas o que importa sublinhar é que é com toda esta tradição que Darcy dialoga, na tentativa de manter o empenho humanista da literatura de uma sociedade cujos agentes se compraziam na potenciação da barbárie no âmago da mesma civilização que construíam. Todas estas tantas linhas do romance convergem para o personagem que, nele, espelha o romancista: o contraditório Avá, imagem de uma transculturação empreendida no plano da fábula e emperrada no plano da existência. Não

mais um mairum, mas um índio; não mais um futuro chefe, mas um aprendiz de feiticeiro; não mais um seminarista, mas um fantasma de cristão, Avá entrega-se, no final, a um empreendimento que espelha o do escritor, suas contradições, dificuldades e heresias. Está ele reescrevendo a Bíblia em mairum, o que, de certo modo, lembra essa reescrição da liturgia sacrificial católica pelo antropólogo-narrador. Sua companheira de empreendimento, esposa do pastor protestante que disputa com a missão católica e o beato Xisto a safra local de almas, reclama que ele enxerta demasiadas contribuições mairuns no texto sagrado. Precariamente, como o escritor, Avá planta com e nas palavras um novo tempo: o tempo da escrita para a língua mairum; um tempo mairum para a palavra cristã. Assim o livro termina, entre tantos outros dizeres de seu capítulo final, escrito numa polifonia de consciências narradoras em que estas se sucedem sem interrupção por parágrafos, por um encontro, não mais fortuito, mas precário, entre línguas, entre oralidade e escrita, que tenta resumir e reescrever, por assim dizer, a errância trágica dos personagens. É uma nota tênue de esperança, de uma espera: só que não se sabe muito bem do quê: a espera por uma esperança, no fim de contas e de contares. Nota pessoal Queria concluir este esboço com uma nota estritamente pessoal, uma heresia do ponto de vista acadêmico, mas pertinente, do ponto de vista de um ensaio. As observações sobre a liturgia da missa que aqui faço me foram inspiradas, além de pelo romance, pela visita que fiz à Catedral de Abidjan, na Costa do Marfim, em 1996. É uma catedral extraordinária, cuja estrutura lembra, de fora, a imagem da virgem, de braços abertos sobre a cidade, com seu manto

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cadente por detrás, que são, respectivamente a torre e o corpo da igreja. Ao mesmo tempo, visto de certo ângulo, esta virgem de braços abertos aparece como a imagem de um elefante de corpo e tromba erguidos, numa atitude de solene desafio diante da civilização que o extinguiu naqueles arredores - ou o confinou em reservas. Assisti ali a uma missa com casamento. O noivo e a noiva, em trajes ocidentais, desapareciam diante da profusão de cores das vestimentas tradicionais dos chefes e parentes das aldeias presentes; as damas de companhia da noiva eram adolescentes nuas e pintadas da cintura para cima. E o coro da igreja desencadeou uma chuva de cantochão, barroco, jazz e músicas tradicionais africanas, cada uma com seu espaço e individualidade, naquele meio em que, reunindo-se três africanos, tem-se um coral de Capela Sixtina. Essa visita coroou, de certo modo, a sensação que carreguei comigo das diferenças e semelhanças entre esses dois lados do Atlântico. Percebera vagamente a diferença na culinária, saboreando os cozidos de lá, que misturam de tudo, peixe, camarão e lagostim com carne, charque, verduras e inhames daqui levados, mas onde cada ingrediente conserva sua mais absoluta individualidade para o paladar. Vira depois que as estruturas políticas e funcionais locais guardavam um modus vivendi com a estrutura das aldeias, lá chamadas de villages, onde muitas coisas da macropolítica eram debatidas e até mesmo decididas. Com isso, contemplando um dos extensos quartéis onde ficam permanentemente estacionadas duas divisões do exército francês, dei-me conta de que ao contrário daqui, onde houve essa miscigenação ao mesmo tempo absorvente e excludente, lá houvera uma espécie de superposição, colocandose as estruturas de raiz ocidental sobre as estruturas familiares tradicionais, sem, no entanto, desmanchá-las ou absorvê-las completamente.

A muitos brasileiros foi dado redescobrir o Brasil, por contraste, do alto da Torre Eiffel, ou da solenidade de alguma ruína europeia, ou de algum quadro outonal dos tempos préimpressionistas. A mim foi dada a oportunidade - encontro fortuito nas errâncias - de relê-lo desde dentro da Catedral de Abidjan. E pude ver então que só poderíamos mesmo nos tornar o país do churrasco (hoje um prato nacional), que reuniu à grelhada ibérica o hábito indiático de comer grandes nacos frescos, mal e mal passados na brasa, em meio às correrias de perseguição e fuga, com a gordura e o sangue suavizados pela farinha de mandioca; da feijoada, onde o restolho vira iguaria; e do futebol, onde pontapé se dá com sutileza.

Notas: 1

Penso que o mundo “brasileiro civilizado” se retrata em Maíra de modo bem mais esquemático do que o indígena. Personagens como o regatão, seu Elias da Funai, o Major Nonato, e outros são um tanto tipificados e caricaturais, não têm a mesma vivacidade e independência de um Avá, um Jaguar, Maíra, Micura e outros. A exceção é Alma, cujas complexidades e vai-vens são exuberantes.

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Este mesmo processo atingiu, por exemplo, o jagunço de Canudos. Vivo, era um inimigo; morto, mas entronizado na literatura expiatória, é a própria “rocha viva da nacionalidade”. Que se pense também nos gaúchos platinos, perseguidos na pampa, mas imortalizados na gauchesca como símbolo da literatura nacional. Quanto à diferença entre “plano da ação” e “plano da fabulação”, estabeleço-a porque pode, de fato, haver diferença de sentido entre ambos os planos. Pelo primeiro entendo aquele do destino dos personagens enquanto ficções que imitam seres vivos; pelo segundo, entendo o seu papel na construção do mito, ou seja, na construção do enredo vista como a construção de uma estrutura em que os elementos se relacionam uns aos outros e podem ser lidos em molduras éticas, metafísicas, simbólicas. Nem sempre o destino do personagem num plano coincide com sua situação no outro. Por exemplo: n’Os sertões, no plano da ação os jagunços morrem e o Exército vence. Mas no

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plano da fabulação acontece o contrário: o que permanece é a integridade do jagunço; o que se condena, e portanto se perde, se exclui, é a violência das Forças Armadas. Ninguém falará do livro de Euclides como o construtor do “mito do soldado”, mas sim do “mito do jagunço”. No plano da ação, Peri e Ceci desaparecem na linha do horizonte, antes que suas almas compareçam perante o Criador, como diz a jovem, mais realista do que o nativo; no plano da fabulação, dão origem a toda uma nação: não morrem, mas mudam o sentido da história. Nesse plano, quem tem razão é Peri: “Ceci viverá”. O que é verdade, pois antes de Alencar não havia Cecis, havia só Cecílias; e hoje em dia quase toda família brasileira tem pelo menos uma tia ou vó Ceci. (E talvez um cão chamado Tupi). A literatura pode, assim, transculturar aquilo que na vida real não o é, ou, ao criar a imagem de um impasse na vida do personagem, romper esse mesmo impasse no plano da fabulação. Isaías é um índio perdido fora e dentro de si mesmo. Não será ele, em sua diferença, um pouco a imagem de todos nós, e do próprio escritor? Como o espelho, a literatura se desdobra em avessos. Isso não a faz menos realista, mas sim a faz mais interessante.

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Dossiê Darcy Ribeiro

Maíra sob a perspectiva estatal: a visão institucional e o tratamento legal dos índios Paulo Mendes de Carvalho Guedes Marcos Veríssimo de Souza Junior Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Introdução Isaias: “Este é o único mandado de Deus que me comove todo: o de que cada povo permaneça ele mesmo, com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso dever, nossa sina, não sei, é resistir, como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos mais. Todos inviáveis, mas presentes. Cada um de nós, povos inviáveis, é uma face de Deus. Com sua língua própria que muda no tempo, mas que só muda dentro de uma pauta. Com seus costumes e modos peculiares, que também mudam, mas mudam por igual, dentro do seu próprio espírito”. (RIBEIRO, 2007, p. 44).

O livro Maíra de Darcy Ribeiro escrito em 1977 trata da questão indígena e da complexa relação com o dito homem branco ou do povo brasileiro. Maíra termina a sua história sem uma resposta contundente sobre a morte de uma de suas personagens principais, Alma, que, segundo o livro, foi encontrada morta na praia com dois fetos sobre o corpo. O livro de Darcy Ribeiro não trata profundamente de como o estado lida com estas questões jurídicas e institucionais do índio, mas nos dias de hoje a questão é latente e da mesma forma do livro um pouco longe de estar completamente fechada.

Durante a narrativa da história o texto levanta diversas questões que não são respondidas. Boa parte delas é direcionada a relação entre o Estado brasileiro e o povo indígena. Dentro destes questionamentos três tópicos reais se destacam ao decorrer do romance. Seriam eles: a instituição FUNAI, o órgão Ministério Público e o ordenamento jurídico brasileiro. Podemos extrair nos diálogos entre os personagens perguntas acerca da morte da personagem Alma e de como eles deveriam agir ou como o estado iria agir nesta situação, principalmente se o culpado fosse um índio, estes diálogos passam por comentários sobre estes três tópicos, que não são claros no texto ou que, devido às atualizações legislativas, mudaram no contexto atual. Considerando estas lacunas faz-se necessária uma investigação mais aprofundada do tema proposto neste trabalho. Esta investigação procura, nos tópicos a seguir, conceituar a atuação da instituição federal Funai (Fundação Nacional do Índio), do órgão Ministério Público, que é o responsável por tratar das questões indígenas no âmbito jurídico, e pelo o ordenamento jurídico brasileiro relacionado ao índio e a sua atuação na sociedade, exemplificados na atuação das leis como Estatuto do Índio (lei federal nº 6001/1973), Constituição Federal de

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1988, Código Civil atual (2002) e antigo código civil (1916), código penal e as normas da OIT (organização internacional do trabalho) da qual o estado brasileiro é signatário, que versam sobre povos e tribos indígenas. Considerando também, o projeto de lei que versa sobre o novo estatuto do índio, que ainda não está em vigor, tramitando nas casas legislativas do congresso nacional desde 1991. A atuação do estado através destas três esferas é motivo de dúvidas, críticas e elogios no contexto social, politico, antropológico e jurídico, que em situações dos dias atuais tem se resumido em noticias breves e superficiais, principalmente no meio midiático. Este trabalho propõe, enfim, colaborar para o debate utilizando o controverso romance de Darcy Ribeiro, Maíra, e as suas interrogações. O Ministério Público e os índios No futuro, depois de demarcas e registradas as glebas da faixa do Iparanã, a partir do limite seco delas, o senador requererá outra faixa no interior e continuará assim, mata adentro, colonizando a mataria, até o fundo do Brasil. (RIBEIRO, 2007, p. 282) É verdade que há poucos índios, mas que diferença! Estes marcham para a civilização, sem romantismos rondonianos: vestidos, calçados, limpos. As meninas têm até certa graça, apesar das carinhas obtusas, silvestres. E se são poucos aqui, ainda menos são no Posto. Numerosos eles só são mesmo na aldeia, que se mantém tão-só pela obstinação da Funai e pelo jogo de interesses recíprocos quem sabe inconscientes, entre protegidos e protetores. Jogo no qual estes últimos são os verdadeiros beneficiários. (RIBEIRO, 2007, p. 307)

O Ministério Público, diferentemente do que muitos têm por certo, não é um órgão do Poder Judiciário. Muito embora funcione junto a este, prestando-lhe colaborações, atuando

como representante da lei e dos interesses coletivos e difusos (de terceira geração), não está subordinado a nenhum dos órgãos desse Poder, nem do Legislativo ou Executivo. Além de órgão de defesa da sociedade, atua também na defesa de interesses estatais. É o legítimo órgão promotor da justiça e da defesa social, cuja função precípua é tornar efetivo o direito de punir os infratores da lei penal, apesar de subsidiariamente atuar em outras searas das mais diversas maneiras. Tais funções estão previstas nos artigos 127 e 130 da Constituição Federal de forma genérica, o legislador optou por versar mais detidamente em outros textos legislativos as especificidades dessas funções, textos aos quais faremos referência neste trabalho. Dos inúmeros excertos extraídos do livro Maíra que abordam a questão da proteção dos povos indígenas, dos quais transcrevemos apenas alguns, podemos observar que a proteção dos índios não se trata de um problema de fácil solução. Tal afirmação é corroborada pelas recorrentes reportagens veiculadas pelas mídias que envolvem as questões indígenas, a exemplo do afamado caso da Reserva Raposa Serra do Sol, julgado pelo STF. É importante ressaltar que o Ministério Público não atua exclusivamente na proteção dos povos indígenas, tutela também interesses de outras populações consideradas hipossuficientes, tais como as comunidades extrativistas, ribeirinhas, ciganas e quilombolas. No caso emblemático da Reserva Raposa Serra do Sol, podemos observar a atuação de diversos órgãos e entidades do governo. Primeiro, a reserva foi demarcada pelo Ministério da Justiça por meio da Portaria nº 820/98 (reformada pela Portaria 543/2005), homologada pela Presidência da República. Muito se discute, em Maíra, sobre o papel do Ministro da Justiça, ao qual o investigador desejava enviar o caso, a fim de livrar-

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se da intrincada e trabalhosa apuração dos fatos. As terras da reserva são ocupadas pelos índios Pemons e Capons, de origem brasileira, guianesa e venezuelana, e estende-se aos territórios dos três países, o que torna a celeuma concernente à demarcação extremamente dificultosa. Ainda, produtores de arroz da região disputam as terras com os índios e invasores de propriedade. A desocupação da reserva, que tem base legal no Decreto nº 1.775/96, foi determinada em 2007 pelo Supremo Tribunal Federal e, em 2008, a Polícia Federal perpetrou a Operação Upatakon II, efetiva retirada dos não indígenas da região, à qual se seguiram enfrentamentos que até hoje se estendem, sendo considerada a região ainda instável.

órgão. Com efeito, o discurso oficial superestima a qualidade de sua atuação, o modo como vem exercendo suas atribuições, afinal, a despeito de não ser órgão vinculado a um dos três poderes, é componente do quadro oficial do Estado brasileiro. É de grande interesse exibir sua atuação de forma romanceada, sob um prisma político e propagandístico. É também conveniente aos partidos políticos governistas omitir seus gargalos, as falhas na atuação, o que prejudica grandemente o desenvolvimento desse órgão. A propósito, medidas atentatórias aos seus poderes vêm sendo editadas, como observamos pela PEC 37, recém-vetada, que visava a desautorizar o órgão a investigar na condição de polícia judiciária, tolhendo suas atribuições.

O papel do Ministério Público se destaca em casos como esses, já que o escopo do órgão é assegurar aos referidos povos demarcação, titulação das terras, bem como saúde e educação, registro civil, autossustentação, preservação cultural e a tão cara autodeterminação, positivada no artigo 4º, inciso III, da CF, cuja tutela é feita com observância das características antropológicas e consuetudinárias dos povos. Ademais, atua o MP na promoção do desenvolvimento sustentável. A atuação se dá primordialmente por meio de ações civis públicas, termos de ajustamento de conduta e recomendações a órgãos governamentais (FUNAI, FUNASA, INCRA).

Como enunciado pelo sociólogo Peter Berger, a visão estatal da realidade (oficial) é apenas uma dentre as inúmeras oriundas de diversos segmentos da sociedade, cada qual dotado de um sistema interpretativo próprio. Sendo assim, não é sensato restringirmo-nos à visão oficial, devemos buscar em outros segmentos sociais, mesmo nos “submundos”, como preconizavam os sociólogos da Escola de Chicago, as muitas leituras sociais para desenvolver uma noção mais próxima da realidade. Esse processo de aquisição de consciência sociológica deve então passar pelo crivo de três dimensões: a desmitificação, a nãorespeitabilidade e a relativização de valores. Com efeito, é isso que devemos fazer apontar que a relação entre índios e MP nunca foi pacífica. A morosidade dos órgãos públicos, problema inerente aos serviços públicos brasileiros, agrava conflitos entre índios, posseiros e empreiteiras, por exemplo. Apenas quando se torna assunto de interesse eleitoreiro, ou seja, quando noticiadas pela grande mídia, são prestadas assistências antropológica, militar, judicial, social e sanitária aos povos em conflito, fato ilustrado pela questão

No âmbito das políticas públicas, o MP tem também autuação bastante intensa. É o responsável pela proposição de políticas de educação e saúde (garantia do atendimento pelo SUS) para as comunidades, pela mediação de conflitos de posse de terras etc. Reveladas as características, áreas e meios de atuação do MP, depreendemos uma visão ampla, porém acrítica e descontextualizada desse

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da construção da Usina Belo Monte. Acresçase a isso o meandroso jogo político brasileiro, assolado pela interferência de interesses privados emanados de toda sorte de políticos e agentes investidos em cargos públicos, os quais atentam contra a celeridade e a idoneidade das decisões estatais, como observamos no trecho referente aos interesses de um senador na demarcação de terras indígenas. Enfim, feitas as devidas considerações quanto às condições de atuação do MP, bem como a oposição à limitação ao discurso oficial, revelemos a mais importante concernente ao livro Maíra; trata-se da função de tornar efetivo o direito de punir do Estado, porquanto o MP é órgão de acusação dos violadores da lei penal. De acordo com os artigos 56 e 57 da Lei nº 6.001, de 1973, que regula as normas penais atinentes aos povos indígenas, na hipótese de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e o Juiz aferirá o grau de integração do silvícola antes de cominá-la, assunto que será aprofundado em outro tópico deste trabalho. A atuação da Funai Pelo que vejo a coisa está muito bem urdida e justificada para que os índios fiquem na aldeia como índios e os agentes nos Postos como seus remotos tutores. O resultado é que eles jamais se integrarão nos usos e costumes da civilização. Mas é também que os funcionários da Funai não perderão seus empregos de burocratas-afazendados à custa da Fazenda nacional. (RIBEIRO, 2007, p. 27) Agora as únicas presenças civilizadoras em toda esta imensa zona são, em primeiríssimo lugar, o senhor Oliveira e os trabalhadores por ele contratados que tiram daqui anualmente e exportam uma produção avaliada em vários milhões. Num segundo lugar muito medíocre,

seu Elias, que aqui representa o governo federal através da Funai e cuja ação já apreciamos no seu justo valor. Em terceiro lugar, mas numa posição de honra, vem a missão Católica de Nossa Senhora do Ó, que labuta há quarenta anos para catequisar os mairuns e outros selvagens, e tem colhido bons frutos. (RIBEIRO, 2007, p. 176)

Outra entidade de proeminente vulto na intermediação entre sociedades civil e indígenas é a Fundação Nacional do índio (Funai), constituída pela Lei nº 5.371, de 1967. A Funai é um ente da administração indireta, uma fundação, cujo regime jurídico é feito pelo Decreto-lei 200/67. Neste texto legislativo, em seu art. 5º, IV, encontramos a qualificação da FUNAI: trata-se de uma fundação pública dotada de personalidade jurídica de direito privado, por meio de uma autorização legislativa (Lei nº 5.371), com o escopo de desenvolver atividades que não exijam execução por órgãos de direito público. Goza de autonomia administrativa e patrimonial, tem seu funcionamento custeado por recursos da União – porquanto é entidade vinculada à tutela administrativa do poder federal – e é hierarquicamente organizada, contando com um quadro pessoal próprio. Essa entidade tem competência para promover a educação básica dos índios, demarcar, assegurar e proteger suas terras, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamentos dos povos. Além disso, é responsável por defender as comunidades indígenas, como observamos no recente episódio da retirada dos índios que ocuparam fazendas em Sidrolândia, a 70 km de Campo Grande; a Justiça anulou a liminar que determinou a retirada da comunidade porque nem o Ministério Público nem a Funai foram consultados. Apesar do nobre propósito a que se destina, qual seja, a proteção das terras, da

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população e da cultura indígena, a Funai, bem como o MP, não está isenta de críticas. O comentário da página 27 do livro (“Mas é também que os funcionários da Funai não perderão seus empregos de burocratas-afazendados à custa da Fazenda nacional”) é endossado por recorrentes e inúmeros ataques à instituição. Os mais pertinentes são os que versam sobre a falta de credibilidade da entidade e de seus funcionários, tidos muitas vezes como parasitas do Estado brasileiro. Há diversas denúncias atinentes a improbidade administrativa, desvio de recursos e cooptação de lideranças indígenas, o que vem degradando paulatinamente a imagem dessa instituição. Sem embargo, a Funai é ainda fundamental para a proteção das comunidades indígenas, seja atuando ao lado do MP no resguardo dos interesses dos índios, seja participando dos julgamentos das cortes na qualidade de amicus curiae. Darcy Ribeiro aponta para a sobressalente importância do papel da Funai em diversos momentos de Maíra, como no excerto transcrito, do qual inferimos ser tal entidade muitas vezes a única representação do governo brasileiro no território dos índios, “Num segundo lugar muito medíocre, seu Elias, que aqui representa o governo federal através da Funai e cuja ação já apreciamos no seu justo valor.” Ordenamento jurídico brasileiro e a questão indígena Se alguém matou essa mulher – e se não foi o tal Isaías –, seria um deles. E se for um deles, é como se ela não tivesse morrido, porque, conforme fui advertido, os selvagens são irresponsáveis perante a lei civil. Mas estará na mesma condição o tal Isaías, que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? O senhor Elias acha que a incapacidade jurídica dos índios não é total, mas relativa. Tanto que

podem ser julgados e castigados por seus crimes. Mas adverte que os juízes são sempre inspetores da Funai e que a punição se cumpre obrigatoriamente num Posto Indígena, mantido para isso. Será verdade? Não me parece razoável, nem crível. Sobretudo aplicado esse código esdrúxulo ao tal Isaías. Ele se converteria, nesse caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o braço e o rigor da lei se lhe aplicassem como é devido. (RIBEIRO, 2007, p. 98)

O tratamento legal dado às comunidades indígenas no Brasil é algo nebuloso e bastante segmentado. O romance, Maíra, relata esta falta de clareza em diversos trechos. Um deles, reproduzido acima, traz consigo algumas dúvidas sobre o aspecto legal do indígena, e suscita outras questões, além das escritas, sobre o tema. A primeira questão a ser respondida é sobre a capacidade civil do indígena. Será realmente que os índios são irresponsáveis perante o código civil brasileiro? Para responder esta questão, vale salientar que a época em que a obra foi escrita o código civil vigente era de 1916, que sofreu alterações e atualizações em 2002 (atual em vigência no país). A diferença é que a redação do código civil de 1916 tratava o chamado “silvícola” (povo que vive na floresta, selvagem ou índio) como relativamente incapaz, ou seja, para determinados atos o índio precisaria ser tutelado, esta tutela seria especificada em outras leis assim como os atos a serem tutelados. O atual código não avançou muito sobre o assunto, porém retirou esta parte, da incapacidade do índio, e acrescentou que uma lei específica tratará sobre o assunto (Parágrafo único do artigo 4ª do código civil atual). A resposta à questão trazida pelo texto, sobre a responsabilidade civil do indígena, é: depende. Depende de outras leis especificas, como estatuto

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do índio, por exemplo. O estatuto do índio é uma lei federal, com 68 artigos, de 1973, que funciona para tratar das mais diversas questões correlacionadas com o povo indígena. Esta lei especifica, traz conceitos como as definições de índio para o estado brasileiro, questão territorial, trabalhista, penal e outras conexas a esta realidade. É importante salientar que para o legislador do estatuto, o índio era uma espécie de homem em evolução ou em progressão que precisava ser integrado a civilização, como mostra o artigo primeiro do estatuto: “Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Partindo deste pressuposto fica mais fácil entender as demais questões do estatuto, como a divisão em fases da integração do índio. No estatuto o índio é dividido em três momentos de integração, o primeiro é o isolado, ou seja, aquele que não tem nenhum ou apenas pouco contato com a dita “comunhão nacional”, o segundo é o chamado “em vias de integração”, que, como o nome já diz, estão se integrando a cultura da civilização e dependendo dela aos poucos e o terceiro é o integrado, que, ainda conservando parte da cultura indígena, está totalmente integrado a cultura do país podendo reconhecer todos os atos da vida civil. Considerando estas informações, conseguimos responder com maior tranquilidade a duas questões trazidas no trecho, transcrito acima, do livro Maíra. Podemos responder que o índio não é irresponsável perante a lei civil, porém esta responsabilidade será medida levando em consideração a fase de integração em que o índio se encontra, adaptando ou excluindo

uma possível consequência legal de um ato civil relacionado com indígenas. Conseguimos dar uma resposta à indagação do major Nonato no trecho: - Mas estará na mesma condição o tal Isaías, que resolveu regressar do estrangeiro quando estava a ponto de tomar ordem? Segundo o entendimento do estatuto, a resposta é não, pois Isaias, como mostra o enredo, está totalmente integrado à civilização, portanto capaz de exercitar e entender todos os atos da vida civil. Logicamente, esta questão na realidade deverá ser avaliada por um Juiz competente caso a caso. Outro ponto importante é com relação à questão penal do índio, ou seja, como ele será tratado caso cometa algum ato que seja considerado ilícito. Em outra passagem do livro vemos um questionamento sobre isto: Ramiro: Era só o que faltava... Que é que eles têm a ver com isto? Ou você pensa que os índios mataram a gringa e depois caíram naquele berreiro pagão só para impressionar o suíço? Nada disso! Vou mandar é pro ministro da Justiça, general Cipriano Catapreta. Faço um serviço limpo e ponho a morta na mão de quem é competente para apurar. Apurar, inclusive, se os índios foram os culpados. Só o general-ministro pode sair desta. O Código Civil declara que os índios são pródigos – como os menores, os alienados e as mulheres casadas –, quer dizer, irresponsáveis perante a lei; quer dizer: inocentes. (RIBEIRO, 2007, p. 36)

Como dito anteriormente, este texto tem que ser analisado com base na mudança do código civil, porém, como o assunto do trecho diz respeito a um crime, a aplicação ideal está disposta no código penal brasileiro. Pelo menos deveria, pois o código penal não trata da questão indígena especificamente. Uma passagem importante da lei penal esta no artigo 26 que diz que: caso o autor da ação seja “inteiramente incapaz de entender o

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caráter ilícito do fato” ele será isento de punição, esta passagem do código penal, por vezes, é utilizada para tratar da questão do índio, mas não encerra o problema, fazendo com que a leitura de outras leis seja necessária, como, novamente, o estatuto do índio e outras normas. Os artigos 56 e 57 do estatuto do índio tratam da questão criminal do indígena. O texto da lei mostra que, caso se comprove que um indígena foi o autor de um ato ilegal (que tenha consequências penais), um Juiz competente irá decidir a aplicação da punição, levando em consideração o grau de integração (isolado, em vias de integração ou integrado) do indígena. Portanto, voltando ao texto de Maíra descrito acima, os índios não são inocentes perante a lei, porém o Juiz, competente, é quem vai determinar a capacidade de entendimento do caráter ilegal do ato que um índio, possivelmente, possa cometer, assim determinando a punição ou o isentando dela. Caso o indígena seja condenado o estatuto também prevê que, na medida da possibilidade, a pena será cumprida em regime de semiliberdade em local de funcionamento de um órgão federal de auxílio ao índio, ou seja, a FUNAI (já conceituada em tópicos anteriores). O que responde a indagação do trecho trazido no inicio deste tópico: “Mas adverte que os juízes são sempre inspetores da Funai e que a punição se cumpre obrigatoriamente num Posto Indígena, mantido para isso. Será verdade?”. Sim é verdade, esclarecendo somente que o termo usado na lei não é “obrigatoriamente” e sim “se possível” e que o Juiz não será um inspetor da FUNAI, como diz o trecho, e sim membro do poder judiciário constituído e competente na ação. No artigo 57, porém, o legislador traz a possibilidade do Juiz considerar a punição dada pela tribo, ao ato ilícito, como suficiente, proibindo nestes casos penas

cruéis ou de morte. Com relação ao aspecto criminal outras polêmicas surgem, como a noticia que em algumas tribos do Brasil existe ainda a cultura de matar ou negar cuidados a crianças gêmeas ou com alguma espécie de deficiência, chegando até a enterrar recém-nascidos vivos devido à crença, destas tribos, que acreditam ser vitimas de maldição, portanto não devem conviver com a comunidade da tribo. A polêmica se dá justamente pelas questões acima apresentadas, ou seja, até que ponto um índio ou uma tribo pode agir conforme o seu entendimento de ilicitude baseado em sua cultura local ou, ainda, temos direito de intervir em outra cultura e impor nossas leis? Na última parte do trecho transcrito, no inicio deste tópico, uma questão fica aberta: Ele se converteria, nesse caso, num brasileiro privilegiado. Com regalias de cometer quaisquer crimes ou atropelos sem que o braço e o rigor da lei se lhe aplicassem como é devido? Para dar uma resposta, precisamos recorrer às normas da OIT (organização internacional do trabalho), que é uma convenção internacional que versa sobre direitos humanos cujo Brasil é signatário. A convenção da OIT de numero 169 trata sobre povos indígenas e foi aprovada no ordenamento jurídico brasileiro após um decreto lei de 2004. Esta convenção traz no seu artigo oitavo que os povos indígenas terão direito de exercer a sua cultura, costumes e instituições próprias desde que nenhum destes atos afete os direitos fundamentais do país ou os direitos humanos internacionais. Com esta redação respondemos o embate, juridicamente, esclarecendo que não há um privilégio com relação à cultura indígena, existe uma limitação imposta pelos direitos fundamentais do país e dos direitos humanos internacionais que precisam ser respeitados, pois são considerados maiores do que qualquer manifestação cultural de determinado

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povo. Assim, dando o direito ao estado de intervir caso abusos contra estes princípios forem cometidos, logicamente, levando em consideração todos os demais direitos dos indígenas e a busca da solução legal da situação apurada. Com a intenção de atualizar o estatuto do índio escrito em 1973 e dar conta destas questões apresentadas, vários outros projetos de lei para o novo estatuto foram apresentados, principalmente após a promulgação da constituição federal de 1988. Em 1991 o então deputado Aloizio Mercadante, junto com outros dois parlamentares, entregou o projeto do novo estatuto do índio, este projeto foi compilado em 1994 juntando outras propostas do novo estatuto, porém desde então o congresso não discutiu mais sobre o assunto. No decorrer destes 22 anos apenas algumas emendas ao projeto e ao estatuto foram apresentadas, mas nada de caráter definitivo. Dentro destas novas propostas temos sugestões que podem melhorar a situação jurídica do índio. Como, por exemplo, a obrigação de relatório antropológico em processos que envolvam índios, tanto no âmbito civil quanto penal e outras relacionados com povos indígenas. E situações controversas como a sugestão de impedimento de atuação do estado em tribos totalmente isoladas ou que não tiveram contato com a sociedade civilizada. Todas estas questões ainda estão em debate, portanto não servem de base para uma possível atuação na realidade, mas que desde já interessa para um olhar mais aprofundado na questão e das suas melhorias. Esperamos, apenas, que estas melhorias e questões não levem mais 22 anos para serem discutidas por nossos parlamentares e nem pela sociedade de modo geral.

Conclusão Concluímos que a atuação do estado perante o índio tem sido até aqui uma relação distante e superficial. Não existe por parte do governo um projeto contundente e determinado com relação aos povos indígenas, existe apenas o relacionamento através de braços dispersos. É necessária uma organização mais estruturada e competente para tratar do assunto indígena mais de perto. Esta organização precisa conter leis ou lei especifica conclusiva, condições e autonomia para agir em conflitos e situações cotidianas nas tribos e apoio governamental para funcionar. Assim, como abertura e transparência nas ações realizadas. É nesse contexto que urge a tomada de medidas políticas que criem novas entidades para intermediar as relações entre Estado e índio, ou que fortaleçam os órgãos já instituídos para tal finalidade. De fato, é imperioso o incentivo legal ao Ministério Público, legítimo órgão promotor da justiça e da defesa social, a fim de implementar com maior eficiência a demarcação e titulação das terras indígenas e a defesa desse segmento social em todos os âmbitos, por meio, por exemplo, de políticas públicas de saúde, educação e preservação cultural. Da mesma forma, há de ser valorizada a atuação da Funai, entidade que, como já mencionado, atua nos mesmos segmentos do Ministério Público, mas de forma mais próxima às comunidades indígenas, possibilitando um conhecimento de causa muito mais complexo. Contudo, antes da ampliação do papel dessa entidade, é necessária sua reformulação, porquanto estão patentes a ineficiência e as brechas a corrupções internas nos moldes como desenvolve suas funções hodiernamente. Assim, a falta de credibilidade e de confiança da sociedade

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civil em relação a essa entidade tem de ser extirpadas a fim de que o Estado brasileiro tenha respaldo social para destinar-lhe maiores recursos. Vimos no livro de Darcy Ribeiro uma forma romanceada de suscitar debates com relação aos povos indígenas e o seu espaço na sociedade. Personagens com problemas reais, diferentes dos criados por outros autores indianistas e situações que versam com a temática do dia a dia nas comunidades indígenas. Desta forma, este livro mostra, mesmo que de forma romanceada e, por vezes, idealizada com relação à pureza dos atos culturais, que a sociedade precisa conhecer e respeitar os povos que aqui já existiam antes da colonização, entender as suas peculiaridades sem um olhar de superioridade e por fim contribuir para uma relação harmônica e colaborativa com as populações da floresta.

Referências Bibliográficas: AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1998. BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Campus Jurídico, 2012. BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas. Petrópolis: Vozes, 2004. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 04 jun.2013.

www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5051.htm. Acesso em: 05 jun.2013. DECRETO-LEI No 28.48/1940. Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 05 jun.2013. LEI Nº 6001/1973. Estatuto do Índio. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l6001.htm. Acesso em: 05 jun.2013. LEI No 10.406/2002. Código Civil Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 06 jun.2013. LEI No 3.071/1916. Antigo Código Civil Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 06 jun.2013. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. PLANETA SUSTENTÁVEL. Novo Estatuto do Índio sai, mesmo?. Disponível em: http:// planetasustentavel.abril.com.br/blog/blog-daredacao/161524/. Acesso em: 05 jun.2013. PROJETO DE LEI Nº 2.057/91. Novo Estatuto do Índio. Disponível em: http://www.funai.gov. br/pptal/novoestatuto.htm. Acesso em: 11 jun.2013. RIBEIRO, Darcy. Maíra. São Paulo: Record, 2007.

DECRETO No 5.051/2004. Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais. Disponível em: http://

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Darcy Ribeiro: antropólogo, educador e político1 Karina Lima Bacharel em Sociologia e Política formada pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Contato: karina_lima@hotmail.com.br

Darcy Ribeiro, não foi somente um antropólogo brasileiro, mineiro, natural de Montes Claros, quis ser médico, mas instigado a entender as coisas do mundo, virou antropólogo. Nasceu em 26 de outubro de 1922, e morreu no dia 17 de fevereiro de 1997, nestes 74 anos, viveu intensamente sua busca em entender o Brasil e os brasileiros. Antropólogo de formação e profissão foi também militante assumido, trazendo por vezes dificuldades para saber onde começa um ou termina o outro. Sendo assim, no mundo do antropólogo um militante e no universo da militância um antropólogo. Sua carreira acadêmica teve início em São Paulo, quando se formou em antropologia, em 1946, com 24 anos, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na época ainda denominada de Escola Livre de Sociologia e Política, e mudouse para o Rio de Janeiro onde passou a trabalhar como naturalista do Serviço de Proteção ao Índio – SPI, se dedicando a estudos indígenas, de 1947 a 1956. Nos anos seguintes, volta sua atenção à educação primária e de ensino superior, encabeçando diversos projetos, entre eles a Universidade de Brasília (UNB), na qual se tornou

o primeiro reitor. Em seguida, entra na esfera política, tornando-se Ministro da Educação, deixando o cargo para ser Ministro da Casa Civil, ambos no governo de João Goulart, o que lhe rendeu seu primeiro exílio no Uruguai, com o golpe militar de 1964. Neste período além de começar escrever seus primeiros romances Maíra e O Mulato, termina sua primeira versão de O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Em busca de revisar sua obra, escreve os cinco primeiros volumes de seus Estudos de Antropologia da Civilização1, de acordo com o autor: “A necessidade de uma teoria do Brasil, que nos situasse na história humana, me levou à ousadia de propor toda uma teoria da história” (RIBEIRO, 2010, p. 13). Em 1976 volta ao Brasil, dedicando-se a educação e a política nas quais tem diversas participações com seu trabalho, dentro e fora do país, sendo eleito em 1982, vice-governador do Rio de Janeiro. Em 1991, elege-se Senador da República pelo estado do Rio de Janeiro, no qual elabora a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, (contudo esta só foi sancionada em 1996, pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso). Com grande interesse pela

A primeira versão deste artigo foi apresentada no III Seminário de Iniciação Científica da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 2011, sendo esta uma versão revisada. 1

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educação participou de diversos projetos, entre eles, a criação da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), concomitante a várias publicações de seus livros, como Utopia Selvagem; Migo; Aos Trancos e Barrancos; entre outros. Sendo que em 1993, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Em 1995, já acometido por um câncer, termina a terceira e última versão de O Povo Brasileiro2, que segundo o autor “(...) além de um texto antropológico explicativo, é, e quer ser, um gesto meu para uma nova luta por um Brasil decente”. (RIBEIRO, 2010, p. 16) Sua última grande obra foi a Fundação Darcy Ribeiro, instituída em 1996, que tem por objetivo manter sua produção e elaborar projetos nas áreas educacional e cultural. Em 17 de fevereiro de 1997, Darcy Ribeiro morre, deixando seu legado, tanto na área educacional, como na perspectiva de pensar o Brasil. Este artigo de caráter ensaístico tem por finalidade discutir um pouco mais sobre esse autor de importância impar para analisar o Brasil, bem como seu povo, que trabalhou em diferentes áreas, discutindo diversos assuntos. Antropólogo, educador, romancista, político, entre outros, Darcy Ribeiro foi um autor de seu tempo, fazendo com que sua obra tenha grande relevância para o Brasil. Antropologia Quando se formou em antropologia, Darcy tinha vários caminhos a seguir3, contudo escolheu trabalhar na Secretaria de Proteção ao Índio (SPI) com o Marechal Rondon, sendo que ele foi o primeiro no Brasil a ser contratado como etnólogo, passou dez anos de sua vida, que segundo o mesmo, foram os melhores desta, estudando e trabalhando com os índios, o que lhe

rendeu não apenas prestígio internacional, como também uma vasta bibliografia. (...). Não procurei fazer uma tesezinha, uma pesquisinha, e sim dedicar minha vida ao estudo das populações indígenas, na seção de Estudos que o Rondon havia criado na SPI. Então foi aí que comecei fazer pesquisas, passando meses e meses com os índios e o meu interesse era puramente científico. Ir lá, numa expedição, apreender dos índios o que eles podiam me ensinar e me dar, para fazer minhas teses doutorais e universitárias. Cheguei a ter um nome internacional publicando artigos sobre mitologia, sobre parentesco, sobre arte indígena, coisas que eram muito apreciadas lá fora e interessavam à ciência internacional. (Darcy Ribeiro entrevistado por Edilson Martins, 1979)

Segundo Darcy Ribeiro, quando este foi para tribo é que ele aprendeu a ser etnólogo, aprendeu a observá-los, e à medida que os estudava ia se refazendo também: (...). E comecei a perceber que os problemas da aculturação, da integração eram muito mais importantes do que o parentesco, do que a arte, do que a mitologia. Então comecei a alterar a minha antropologia. (Darcy Ribeiro entrevistado por Edilson Martins, 1979)

Ainda neste sentido: Bom, então, tem aí mais ou menos o ciclo de como eu me formei, de como eu me fiz cientista e de como eu me desfiz como cientista. Desfazer, para mim, é aquele momento em que deixo de realizar pesquisas como chupim de índio, como gigolô de índio, e passo a estudar a temática que interessava ao índio. Quer dizer, o índio começa a me interessar como gente, como ser humano, como destino. E eu, então, desenvolvi toda uma Antropologia, que mais tarde muita gente passou a fazer também era que a ênfase fundamental é o destino dos

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índios, o que está sucedendo com eles. (RIBEIRO4, 2010, p. 14)

Em 1952, Darcy criou, junto com o Marechal Rondon e o sertanista Orlando Vilas Boas, o projeto para o Parque Indígena do Xingu, lugar que concentra várias tribos de diferentes linhagens, e que busca a preservação da cultura indígena. E em 1953 inaugura o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, que passou a servir como centro de estudos sobre a questão indígena. Em 1955, com a ajuda de Eduardo Galvão e o patrocínio da CAPES, Darcy Ribeiro organizou o curso de Pós Graduação em Antropologia Cultural, sediado no Museu do Índio. Contudo em 1956, com a mudança do governo e concomitantemente a direção do SPI, Darcy, desvincula-se da mesma e ingressa como professor da cadeira de Etnologia e Língua Tupi na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. (...) Darcy Ribeiro, na antropologia, extrapola o meio acadêmico e inaugura outros espaços e ambientes de atuação profissional para o antropólogo. Atuou na pesquisa etnológica, atuou na formação acadêmica de novos antropólogos, mostrou que o conhecimento especializado era fundamental na orientação da política indigenista, apresentou o índio à sociedade nacional com dignidade e exigindo respeito. (MOREIRA, 2009, p. 136 /137)

Darcy trabalhava com a antropologia dialética, influenciado pelo seu posicionamento marxista, tanto quanto por sua formação culturalista americana. (GOMES, 2000). Acreditava em uma antropologia de esquerda, interventora, disposta a transformar, de mudar, incomodar. Segundo

Helena

Bomeny,

Darcy

“(...) como antropólogo, não perdoa seus companheiros de geração pela reverência aos modelos teóricos exógenos, de todo impróprios, a seu juízo, para interpretar o que não nos deixamos conhecer, o próprio país”. (BOMENY, 2001, p. 54). Dessa maneira, fora deixado de lado pela academia, sendo considerado um antropólogo tendencioso e enviesado, suas teorias foram postas de lado. No entanto, seu reconhecimento internacional como antropólogo se tornou maior que o nacional e seus livros traduzidos em vários idiomas; são adotados como leitura obrigatória para aqueles que buscam entender minimamente os problemas da América Latina e seus povos. Educação Darcy foi trabalhar com educação “pelas mãos” de Anísio Teixeira (1900-1971), importante intelectual da área de educação, que o fascinou com sua luta pela escola pública de qualidade, se tornando assim seus discípulo e colaborador. “(...) Anísio me ensinou a duvidar e a pensar.” (RIBEIRO, 1997, p. 223). Convidado, em 1957, a codirigir o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CEPE), por Anísio Teixeira, Darcy foi ficou responsável por um programa nacional de estudos sobre o rural e interiorano. E assim começou sua carreira no campo da educação. Transferiu o programa de pós-graduação para a formação de pesquisadores que mantinha no Museu do Índio e começou a ganhar notoriedade nesta área. Essa notoriedade veio concomitante a elaboração do projeto da Universidade de Brasília (UNB), papel que desempenhou com prazer, junto com seu mentor Anísio Teixeira, a pedido do então presidente Juscelino Kubitschek. A UNB foi concebida para ser um modelo de funcionamento para as universidades brasileiras:

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Repito: o Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema. Esta é a tarefa da Universidade de Brasília. Para isso ela foi concebida e criada. Este é o desafio que hoje, agora e sempre ela enfrentará. (RIBEIRO, 1995, p. 274)

Darcy se tornou o primeiro reitor da UNB, cargo que exerceu até ser convidado para ser Ministro da Educação do governo João Goulart. “Foi na campanha por uma lei democrática para educação e na luta para criar a Universidade de Brasília que comecei a me tornar visível no Brasil como educador.” (RIBEIRO, 1997, p. 225) Nesta época, Darcy, em parceria com Anísio, também participou da elaboração da formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB, que foi votado em 1963, quando Darcy já era Ministro da Educação. Contudo, o projeto original dessa lei se arrastara por anos pelo Congresso, flutuando à mercê da disputa política da época. (GOMES, 2000, p. 39). Sendo de fato aprovada e sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996, reformulada por Darcy, (...) sua intenção era estabelecer uma legislação enxuta e flexível para regulamentar o processo educacional através da qual o governo federal, os estados e os municípios formulassem as linhas gerais e os estabelecimentos de ensino pudessem realizar os programas que melhor lhes aprouvessem. (GOMES, 2000, pg. 40)

Com o primeiro exílio político, Darcy foi trabalhar na América Latina, com prestígio educacional que a UNB lhe proporcionou, e o destaque que obteve como Ministro da Educação e posteriormente Ministro da Casa Civil, foi convidado primeiramente a trabalhar no Uruguai,

como professor em tempo integral, colaborou no planejamento e na realização da Enciclopédia Cultural Uruguaia e dirigiu o Seminário da reforma da Universidade do Uruguai. Nos doze anos seguintes, trabalhou na Venezuela, no Chile, Peru, na Argélia e na Costa Rica, dirigindo seminários de reformas universitárias e elaborando planos de reestruturação. Voltando em 1976 para o Brasil. A obra educacional de que Darcy mais se orgulhava de ter concebido e concretizado, foram os CIEPs (Centro Integrados de Educação Pública), programa iniciado em 1984, e inaugurado em 1985. Sua proposta era de escola em tempo integral, com refeições diurnas, banho e atividades pedagógicas normais e tuteladas. (GOMES, 2000, p. 44) Darcy criou diversos centros culturais; idealizou a Biblioteca Pública Estadual do Rio de Janeiro, a Casa França - Brasil, Casa Laura Alvin, Centro Infantil de Cultura de Ipanema, Sambódromo, o Monumento a Zumbi dos Palmares, o Memorial da América Latina, entre outros. Sua última grande obra foi a Fundação Darcy Ribeiro, instituída em 1996, que tem por objetivo manter sua obra e elaborar projetos nas áreas educacional e cultural. Política O papel de Darcy como político sempre esteve entrelaçado em seus outros papéis. Apesar de ter sido um entusiasmado militante comunista, ingressou na vida política ao aceitar o cargo de Ministro da Educação (1962-1963) e depois Chefe da Casa Civil do governo de João Goulart (1963-1964). Darcy entrou de corpo e alma no governo Goulart. Foi responsável pela coordenação dos dois projetos que considerava os mais importantes daquele governo, e que no seu entender

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foram as causas fundamentais de sua derrubada pelo golpe militar de abril de 1964. Um desses projetos era o das Reformas de Base, que compreendiam a reforma agrária, a reforma educacional, uma reforma tributária e outra mais. O outro projeto era a regulamentação da lei que restringia a remessa de lucros de empresas estrangeiras. (GOMES, 2000. p. 13)

Segundo Darcy, o governo de João Goulart era reformista, mas que passou a ser percebido como revolucionário (RIBEIRO, 1991, p. 136). Com o golpe de Estado de 1964, o presidente João Goulart, bem como sua equipe, incluindo Darcy Ribeiro, foram exilados. Darcy Ribeiro decidiu ficar na América Latina, e seu primeiro destino foi o Uruguai, onde trabalhou como educador. “(...) no exílio onde fui compelido a rever criticamente minhas experiências frente a evidencia de um desastre político do qual eu participara e ante o desafio de buscar os caminhos de uma ação política mais eficaz e mais consequente” (RIBEIRO, 1978, p.10). Darcy estudou e escreveu freneticamente suas inquietações, neste primeiro exílio. Prosseguiu com a militância política, participando de governos latino-americanos, “(...) que mais se esforçavam para romper com a dependência e com o atraso”. (RIBEIRO, 1991, p. 137). Em 1968, voltou ao Brasil, foi preso e passou seis meses no Forte de Santa Cruz (Rio de Janeiro). Voltou ao exílio em 1969, desta vez para a Venezuela, contratado para dirigir um Seminário Interdisciplinar de Ciências Humanas. Em 1971, muda para Santiago, no Chile, assumindo o cargo de professor pesquisador do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, se tornando também assessor do presidente Salvador Allende, cargo que exerceu até 1972, quando vai para Lima, no

Peru, convidado a pensar a revolução peruana, como assessor do presidente Velasco Alvarado. Neste período também é contratado pela Organização Internacional do Trabalho para implantar o Centro de Estudos de Participação Popular. Em 1974, descobre que tinha câncer de pulmão, conseguiu uma liberação para fazer a cirurgia e tratamento no Brasil, voltando semestralmente para suas consultas. Em 1976, Darcy voltou definitivamente para o Brasil. Colaborou com a formação de um novo partido político, com base na herança dos governos de Getúlio Vargas e João Goulart, o Partido Democrático Brasileiro (PDT). Em 1982 foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro, junto com Leonel Brizola, eleito governador. Foi nomeado Secretário da Cultura e Educação, onde realizou várias atividades já mencionadas. Em 1986 perdeu as eleições para o governo do Rio de Janeiro. E, em 1990, foi eleito senador da República pelo estado do Rio de Janeiro, cargo que assumiu de 1991 a 1997. Durante esse mandato, exerceu pela segunda vez o cargo de Secretário da Educação e Projetos Especiais, concluindo as obras dos CIEPs, que tinham sido abandonados na gestão anterior. Darcy Ribeiro Intelectual de seu tempo, Darcy viveu as grandes transformações que o Brasil passou, desde a mudança do padrão de vida do brasileiro, como o processo de industrialização, o fluxo migratório do campo para cidade, os imigrantes, a influência internacional, a miséria, o descaso com a população mais pobre, entre outras. Viveu e observou tudo como estudioso sedento de informação, conhecimento e melhorias. Lutou para transformar o Brasil em um país

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melhor, por educação de qualidade, igualdade e oportunidades, comida e terra para todos. “Uma nova Roma”, que, segundo ele, culturalmente plasmada pela fusão de três raças matrizes, um povo novo, singular, com vocação mais humana, que aspiram à fartura e alegria. (RIBEIRO, 1995)

e de partido. Faço política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo. Não procure, aqui, análises isentas.” (RIBEIRO, 2010, pg. 16).

O conjunto de sua obra retratou a situação do Brasil e da América Latina, buscou teorizar a história, para entender nossas mazelas. Viveu em um processo continuo de compreender quem é o povo brasileiro, que vive passivamente, esperando que a solução para seus males venha de outro, surgindo e se desenvolvendo como um povo, segundo o autor, “constrangido e deformado”, mas com esperança de dias melhores. Darcy Ribeiro, um homem que foi admirado e questionado por muitos, um intelectual comprometido com o povo, um paradigma da ação política. “Difícil é separar o pensamento de Darcy de sua ação, já que ele se movia por uma convicção de que os dois interagem dialeticamente.” (GOMES, 2000, pg. 19).

Notas:

Ao longo de sua trajetória assumiu diversos papéis, mas todos eles estavam entrelaçados. Darcy foi um homem multifacetado, mas sempre comprometido com seus valores e ideais. Como antropólogo, teve um importante papel no trabalho com os índios, tornando-se porta voz de suas culturas e necessidades. Como educador, seu trabalho não apenas teórico como também prático tem relevância significativa para se repensar o atual contexto da educação brasileira. E, como político, conseguiu unir todos os seus papéis, desenvolvendo projetos em diversas áreas, sempre pensando no povo brasileiro, que segundo o mesmo, foi destinado a tornar o Brasil uma grande nação. E o próprio Darcy adverte: “Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé

1

A saber: O Processo Civilizatório (1968); As Américas e a Civilização (1969); Os Brasileiros: Teoria do Brasil (1969); Os Índios e a Civilização (1970), e O Dilema da América Latina (1971).

2

Concluindo assim, sua série de Estudos de Antropologia da Civilização.

3

Como: trabalhar na perícia para a Justiça do Trabalho; trabalhar como assessor de Roberto Simonsen, na Federação das Indústrias; integrar a equipe de Rodrigo de Melo Franco, do Patrimônio Histórico, no Rio de Janeiro. Porém, Darcy queria mesmo era trabalhar na direção do Jornal Hoje, do partido comunista, o que não conseguiu devido a seu comportamento ‘agitado’. (RIBEIRO, 1991, p. 38)

4

Darcy Ribeiro - Depoimento, 1978 (CPDOC)

Referências Bibliográficas: BOMENY, Helena. Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. GOMES, Mércio Pereira. Darcy Ribeiro. São Paulo: Ed. Ícone, 2000. ______. Produção Científica e Ação Política em Darcy Ribeiro II. In: KANTOR, Iris; MACIEL, Débora A.; SIMÕES, Júlio de Assis (orgs). A Escola Livre de Sociologia e Política: anos de formação (1933-1953): Depoimentos. Editora Sociologia e Política. 2° ed. São Paulo, 2009.

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MARTINS, Edilson. Antropologia ou a Teoria do Bombardeio de Berlim (Darcy Ribeiro entrevistado por Edilson Martins). In: Revista Encontros com a Civilização Brasileira, n. 12. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Junho de 1979, p 81-100. MOREIRA, Giselle Jacon de Araújo. Produção Científica em Darcy Ribeiro I. In: KANTOR, Iris; MACIEL, Débora A.; SIMÕES, Júlio de Assis (orgs). A Escola Livre de Sociologia e Política: anos de formação (1933-1953): Depoimentos. Editora Sociologia e Política. 2° ed. São Paulo, 2009 NEPOMUCENO, Eric (org). Darcy Ribeiro: crônicas brasileiras. Rio de Janeiro Ed. Desiderata, 2009. RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros. I Teoria do Brasil. Estudos de Antropologia da Civilização. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1978. ______. Testemunho. 2ª ed. São Paulo: Ed. Siciliano, 1991. ______. O Brasil como Problema. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1995. ______. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. Darcy Ribeiro (depoimento, 1978). Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. Disponível em: http://dc220.4shared.com/doc/Dn522aSh/ preview.html. Acesso em: 20 de maio de 2011.

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Sexualidade, erotismo e proibição em Maíra Risoleta Pacola Cecílio Henrique Costa Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Introdução

Sexualidade

Ao ler a obra Maíra, de Darcy Ribeiro (1984), três pontos são marcantes do início ao fim da leitura: sexualidade, erotismo e proibição. Isso se dá através da apresentação dos fatos narrados e vivenciados pelas personagens Isaías, Alma e povos indígenas.

Para dar início ao presente artigo, tomamse como base os conceitos apresentados pelos dicionários de Psicanálise e de Ciência Sociais acerca da definição da palavra Sexualidade; já que esta é a palavra que abre as primeiras reflexões sobre a obra Maíra.

É partir da leitura e da percepção dos três elementos mencionados acima que o presente artigo se constrói.

Para o Dicionário de Psicanálise (Laplanche e Pontalis, 1999), “sexualidade”, na experiência psicanalítica, não designa apenas as atividades e o prazer que depende do funcionamento do aparelho genital,

A interpretação será feita a partir de um recorte das ações e vivências da personagem protagonista Isaías, como aquele que conhece os costumes e hábitos dos povos Mairum e dos homens brancos. Isaías também teve experiência como ex-seminarista, que estudou e viveu em Roma e retorna para sua tribo de origem, da qual fora tirado ainda menino. Agora, não mais ingênuo, ou menino, mas um homem com o desafio de resistir, às tentações carnais e aos desejos sexuais pessoais, oprimidos pelo catolicismo e pela religião. Teve que resistir também às mulheres da sua tribo, e principalmente, à Alma, personagem oposicionista, do sexo feminino, que passa a acompanhá-lo como enfermeira dos povos indígenas, e como aquela que dividirá inclusive o mesmo espaço físico que Isaías.

mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que proporcionam um prazer e irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.) e que se encontra a título de componentes na chamada forma normal do amor sexual. (Laplanche e Pontalis, 1999.)

Para o Dicionário de Ciências Sociais (FGV,1986, p.1113) sexualidade designa “o complexo de impulsos, atitudes, hábitos, ações de um organismo, em torno do coito”. As disciplinas das Ciências Sociais divergem quanto aos elementos que incluem nesse complexo e quanto ao destaque que dão aos vários elementos incluídos.

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Considerando ambas as definições apresentadas - tanto pelo dicionário de psicanálise, quanto pelo de Ciências Sociais - e o contexto em que a obra Maíra foi escrita, a mesma pode ser analisada como parte do universo da literatura brasileira, com uma visão da Ciência Antropológica ou ainda como parte das Ciências Sociais. Partindo destes princípios, Maíra permite interpretações diversas. Na obra Maíra, a personagem Alma, enquanto representante do sexo feminino, anuncia-se como oposicionista aos sonhos, ações, hábitos e costumes da personagem Isaías, sendo este representante dos povos indígenas, tanto feminino como masculino. Quando Isaías questiona a adaptação de Alma junto ao povo Mairum, Alma demonstra-se superior ao personagem Isaías, pois esta acredita estar mais adaptada à cultura do povo Mairum, mesmo sendo uma mulher branca entre os povos indígenas. Em contrapartida a Isaías, descendente direto do povo Mairum, esta questiona e mostra que ele encontra-se em conflito social e cultural, e julga, frente às suas dúvidas, a perda de identidade, seja branca ou indígena, e predestina que este jamais se encontrará como chefe de seu povo ou como professor no Rio de Janeiro nem mesmo como padre em Pindamonhangaba. Isso pode ser observado na passagem a seguir, extraída do capítulo “O Cuspe e a Pecúnia”: Você está contente aqui, não é, Alma? - Nunca estive melhor, confesso. Acho que sou mesmo é mairum. Sabe o que eu sinto hoje, o que me incomoda? É essa minha pele branca, é essa quantidade de cabelo e de pêlo louro que tenho por todo o corpo. A vontade mesmo que eu tinha era de ter uma cara mairum de verdade. E você, Isaías? Isso que para mim é bom, pra você é difícil, não é? Vejo que você não acha jeito, né? Não responda não. Deixe eu falar, para você

ver como é que eu sinto essas coisas. Olhe pra mim, rapaz: você está ruim, aqui, tá na cara. Mas você não estaria ruim de qualquer jeito, em qualquer lugar? Eu não imagino você bem em lugar nenhum. Nem como pajé-sacaca dos quatis, se isto fosse possível, você estaria melhor. Também não vejo você bem como professor no Rio ou como padre em Pindamonhangaba. Assim é, Isaías. Meu conselho é que você relaxe e se acomode. Deixe essa mania tão sua de parafusar e desparafusar o bestunto. Você vai viver aqui a vida inteira, rapaz. Fique calmo, fique tranquilo, senão você se atola. Não leve as coisas tão a peito. - Alma, vou me casar. - Casar, você? Você esta doido? Comigo não! - Com Inimá. - A menina, aquela? Ah, já sei. São essas confusões de vocês, os clãs, não é? Você é obrigado a casar com ela, não é? - Quem é que sabe? (RIBEIRO,1984, p. 278)

Na análise feita no recorte do capítulo “A Miraxorã e o Seriguê.”, pode-se observar que Isaías, enquanto personagem protagonista e condutor de Alma entre os Mairum, vai mostrar que os costumes e hábitos daquele povo presente em alguns detalhes da cultura são vistos somente por seus integrantes, sejam detalhes sexuais ou ações de gênero masculino ou feminino. Por exemplo, o ato sexual de Alma com Teró, até então imperceptível para uma mulher branca, que não é conhecedora desses detalhes tão singelos, presentes na cultura Mairum, pode denunciar que esta praticou o ato sexual com o chefe da tribo de forma detalhada para aqueles que já estão adaptados àquela cultura. Isso demonstra que Alma não está de fato adaptada aos costumes e hábitos do povo Mairum como ela mencionara anteriormente. Os conflitos de identidade estão

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presentes tanto em Isaías, como mediador dos povos indígenas frente ao homem branco, quanto em Alma, mulher branca entre os povos indígenas e seus costumes. Há na figura masculina de Isaías um olhar capaz de mostrar que a mulher branca naquele contexto jamais poderá inserir-se totalmente como integrante da tribo Mairum, não sendo permitida para Alma a procriação. Mas, por outro lado, como Mirixorã, Alma poderia considerarse superior até às demais mulheres comuns, pois como Mirixorã, a personagem tem o papel social diferente frente ao clã e às mulheres Mairum, que durante o resguardo abrem mão dos seus maridos, para que estes possam satisfazer-se sexualmente com as mulheres que são escolhidas para esta função. Diferente da visão de Alma, que como uma mulher branca encara esse papel social como prostituição, que deforma e denigre o papel da mulher na sociedade, demonstrando assim sua visão etnocêntrica ao recusar a sexualidade como papel social. A personagem Isaías, como representante do povo Mairum e como aquele que tem conhecimento dos costumes e hábitos da tribo, tanto dos homens quanto das mulheres, chama a atenção da Personagem Alma para seus atos e seu papel naquele espaço, partindo da visão masculina e em relação ao comportamento de Alma, mulher branca que habitava a tribo Mairum, mostrando a esta, como deveria ser seu comportamento sexual e social enquanto representante do sexo feminino junto às demais mulheres que lá viviam e que as mulheres da tribo ocupavam papeis diferentes frente aos povos indígenas. Isto fica claro no trecho a seguir essa distinção de papeis representados para sociedade branca e os povos indígenas: - Não, Alma as coisas aqui são mais

simples e mais complicadas. Todo mundo sabe. Não precisa ninguém contar - Que é isto? Como é que todos sabem? Se sabem é porque ele contou - Não, Alma as coisas aqui são mais simples e mais complicadas. Todo mundo sabe. Não precisa ninguém contar - Que é isto? Como é que todos sabem? Se sabem é porque ele contou! Então eu dou uma trepada no escuro do pátio e todo mundo já sabe que eu andei fodendo? - Que expressão chula, Alma. Vamos lá, procure entender. Você está com esse colar de caramujo. Esse colar, todos sabem, todos vêem que é dele. Nesse mundo nosso, as coisas feitas por cada pessoa são reconhecíveis como as caligrafias de vocês. Se eu pegar uma flecha, ou um cesto, ou um colar, qualquer coisa, e mostrar a qualquer um, ele pode dizer ali na hora quem fez cada coisa. Esse seu colar é da feitura de Teró. Está na cara. O mais também se sabe ou adivinha: Ele te deu o colar à noite, ontem. Eu posso até te dizer como. - E como é que foi? - Vocês se encontraram à noite, no pátio. Ele bateu a mão no seu ombro... - É. Bateu, e eu disse, boa noite, Teró, como é que vai? - Você não precisa dizer nada não. Você só tinha que se agachar. Agachar e fornicar. - Que fornicar, que merda nenhuma, Isaías: trepar, foder. Que mania é essa de pecado, de fornicação. Eu fornico com ninguém não! Eu trepo, fodo. E que é isso? Você acha que ele não tinha que dar cantada nenhuma, não? Basta bater a mãozinha e eu a vou me agachando! As mulheres daqui são assim? Eta mundo bom! Tenho uns amigos lá no Rio que nunca papam mulher, vivem na secura, porque não têm bico nem peito para cantada. Aqui, basta dar uma palmadinha no ombro e ela vai

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se abaixando, agachando, arreganhando? - Alma, tenha decoro. Deixa que eu explico. Você está aqui, vivendo conosco, no nosso mundo, segundo nossos costumes. Você de certo modo é uma Mirixorã. - E que diabo é Mirixô... rana? - Mirixorã é uma categoria de mulheres que não se casam, nem têm filhos. Estão aí disponíveis, por assim dizer. - Então, é isso que eu sou? Mirixorã, quer dizer: Puta, puta de índio! A isso me reduzi. Isaías! Puta de índio? Não tem nada de puta, Alma. Uma Merixorã é uma pessoa muito apreciada. E até consagrada no cerimonial. Você não é uma verdadeira Mirixorã. Elas são escolhidas e preparadas para esta função que de certo modo é até superior a da mulher comum. Tanto que as Mairunas nunca têm ciúmes das Mirixorãs, que podem fornicar à vontade com seus maridos. O que ocorre é que, sendo as Mirixorãs mulheres autônomas, livres, sem um clã a que se devam, sem marido que tenha que cuidar, são parecidas com você. Daí a confusão. É muito provável que minha irmã Pinuarana, a mulher de Teró, tenha dito a ele: vá ver canindejub; ela dará alegria a você. Assim deve ter sido porque Pinu está amamentando há poucos meses e não pode fornicar com Teró. - Isaías, isto piora tudo para mim. A isso cheguei: puta de índio. Custei muito a entender, mas não sou burra, entendi. Finalmente custei a entender a sua atitude comigo, quando chegamos e você me levou para sua casa. Pensei que fosse um gesto bom, amigo. (RIBEIRO,1984, p. 278-284)

Por fim, nota-se na sexualidade da personagem Isaías uma dualidade que transita entre o universo feminino e masculino, com acesso a intimidade feminina de uma forma diferente dos demais homens da tribo Mairum. Isso pode ser percebido em várias partes da

obra, inicialmente no momento em que Isaías, ao retornar de Roma, encontra-se com as quatro velhas índias, que representam o povo Mairum sufocado com os costumes católicos representados pelo padre Aquino e padre Cirilo, enquanto estes catequizam os meninos e meninas indígenas. As velhas índias apelam a Isaías para que a identidade dos indígenas não seja destruída pelos costumes católicos, a sexualidade física das mulheres mais velhas e das meninas é entregue a Isaías, mesmo ele sendo um representante da figura masculina, como se observa na cena a seguir do capítulo “O Bucho”: Padre Aquino, controlado, olhos postos nas emoções do velho missionário, afasta discretamente os escolhos. Sentados debaixo da latada de maracujá, tomam o chá com biscoitos da irmã Canuta. Vêem entrar na capela os meninos, com padre Cirilo a frente; e as meninas, com sua preceptora, a irmã Ceci, para a reza da tarde. Assim foi até ontem. Hoje mal se sentam, olhando a fileira de meninas que avançam entre os canteiros para a capela, quando vêem surgir quatro velhas índias, maltrapilhas, que vivem na praia da Missão, gritando: - Avá, Avá Uruantãremui E continuam berrando na sua língua um discurso apoplético. Isaías desce os degraus, querendo abraçá-las, acalmá-las. Uma se acocora, chorando. Mas as outras continuam apostrofando. Agarram os próprios seios, caídos, secos e os balançam. Levantam as saias e manuseiam as próprias coxas, apalpando as pelancas muxibentas, xingando. A fileira de meninas se desfaz, quando as velhas atacam. Mas elas agarram duas delas, que se defendem, alucinadas, enquanto as velhas índias lhes rasgam as roupas, mostrando seus corpos descarnados a Isaías, urrando furiosas, na berraria mais medonha. (RIBEIRO,1984, p. 201)

Em outro ponto da obra, confere-se

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também essa dualidade de Isaías quando ele testemunha o ritual de passagem da fase de menina moça recém-menstruadas para mulher da tribo Mairum, um ritual que deveria ser acompanhado somente por mulheres. No capítulo “O Sangue e o Leite”, descreve-se o ritual sagrado da tribo, onde os olhos de Isaías se confundem com os de Alma e do próprio Avá, unindo a sexualidade da personagem Isaías a de Alma oposicionista na trama, impossibilitando a identificação de gênero da personagem. Como se confere no trecho a seguir: Alma vive ao compasso Mairum a estação dos longos dias azuis. Sente cada vez mais fortemente a beleza de viver, o gozo de existir, que aprende deles. De tudo participa, vendo com seus olhos e ouvindo com os ouvidos de Isaías. Assim assiste buscando entender, a grande festa de reapresentação das meninas-moças, recém-menstruadas. O Avá admira, extasiado, com olhos de Isaías, as flechadas-da-lua, tão bem nuinhas. Alma enche os olhos de jovens corpos encarnados pela mão de Deus. (RIBEIRO,1984, p. 250)

A figura de linguagem, paradoxo, aqui começando pelo bucho, com a parte representando o todo na junção da personagem em suas distintas características na obra sugere uma dualidade de gênero. O Erotismo O Dicionário de Filosofia (Abbagnano, 2000, p. 340) define o termo erótico como: “Algumas vezes utilizou-se esse termo para designar uma desejada (mas não realizada) ciência do amor, da felicidade ou da vida emocional em geral”. Associando os conceitos apresentados no Dicionário de Filosofia acerca do erotismo, as cenas de erotismo presentes em Maíra

são diversas, mas selecionamos algumas que mostram isso fortemente nas ações e vivências da personagem Alma quando tem que se despir diante do povo Mairum, despertando assim a curiosidade e o desejo que eles tinham de vê-la nua. Como descrito na cena a seguir do capítulo “As Minhas Águas”: No dia seguinte, pela manhã, todas as atenções se concentram em Alma. Ninguém sai da aldeia, todos querem vêla. Tentam conversar com ela, dizendo alguma coisa com as poucas palavras que sabem. Os homens e as mulheres a convidam toda hora para tomar banho no rio. - Isaías, o que é que vou fazer? Esse mundo de gente me azucrinando, querendo tomar banho comigo? Isso é safadeza, né? - É. Mas e melhor ir logo. Você não vai ficar a vida inteira sem tomar banho. - Mas, Isaías, eu não trouxe maio e acho que seria indecente usar maio no meio dessa gente pelada, nua. - Eles não estão nus, não, Alma. Você já sabe, as mulheres usam o uluri; os homens o bá. - Já vi, mas pra mim dá no mesmo. É tão sumario. - Mas, Lá pelo meio-dia, ela decide: - Tenho que enfrentar isso. Lá vou eu! A aldeia em peso vai ao banho, atrás de Alma. Homens, jovens e velhos, mulheres de todas as idades e também crianças. Ela tira a roupa calmamente. Mas quando vê todos os olhos postos nela, de fato postos no seu púbis peludo, ela se cobre com as mãos e sai correndo, tão desenvolta quanto pode, para mergulhar na água. Minutos depois o Iparanã regurgita gente. Alma, sempre rodeada, vai sendo ganha pela alegria das águas, pelas risadas sonoras de todos, pelas crianças que nadam para ela. Acaba ficando à vontade. A certa altura, aproxima-se da praia e, permanecendo na água da cintura para baixo, chega

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perto de Isaías para gritar: - Vem Isaías, a água esta uma delícia. - não posso, estou nu. - Nu? Como? - Estou nu debaixo da calça: sem o bá. - Besteira, rapaz, Você pensa que eu estou com uluri? (RIBEIRO,1984, p. 237).

Outra cena erótica presente em Maíra pode ser apreciada no capítulo “O Sangue e o Leite”, no qual mostra a passagem das meninas moças, recém-menstruadas, para mulher e na escolha de seus parceiros no ritual para o seu primeiro ato sexual. O leitor é envolvido pelo erótico ritual de passagem visto na cena a seguir: Elas estiveram em reclusão durante meses em cabanas armadas dentro das casas, sem ver nem falar com ninguém, e sem andar nem tomar sol. Saem agora, clarinhas, matinais, resplandescentes. Toda a aldeia tem os olhos postos nas suas graças. Trazem no peito, realçando os brotos dos seios, o colar solar de plumas douradas que cada uma ela mesma compôs, com rigor, sozinha para mostrar seu virtuosismo de cuñantã. Na cara, o sorriso mais claro. Em todo o corpo as alegrias raiadas de urucum e jenipapo. Na cabeça, esvoaçante, a enorme cabeleira negro-azulona, provocante. A franja cobrindo a boca. As pernas enfaixadas com embiras, abombadas, barrocas. Nas mãos leva com orgulho a cabaça e as cuias de chibé de polvilho de carimã: - Bem, Você quer do meu leite, bem? Durante toda a tarde a aldeia, sentada no círculo do sol se por, olha as meninasmoças que servem seu leite-chibé aos homens com que hão de foder... As garotas andam, falam, riem, requebram amamentando sem parar seus futuros homens. Futuros? Quem garante? Vão às casas buscar mais chibé e voltam para servir e se deixarem ver, exibidas. Sorriem, andam, rebolam, param e

tornam a amamentar o mais querido. (RIBEIRO,1984, p. 250).

Neste jogo de desejo e erotismo presentes nas cenas descritas acima, tanto na nudez da personagem Alma e a curiosidade dos indígenas em relação a seu corpo, quanto no ritual de escolha dos parceiros sexuais das meninas Mairum, percebe-se como aquilo que Bataille (1987) chama de erotismo, aspecto “imediato” da experiência interior, opondo-se a sexualidade animal. Mostrando como o erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. E que nisso nos enganamos porque ele procura constantemente fora um objeto de desejo. Mas este objeto responde a interioridade do desejo. A escolha de um objeto depende sempre dos gostos pessoais do individuo: mesmo se ela recai sobre a mulher que a maioria teria escolhido, o que entra em jogo é frequentemente um aspecto indizível, não uma qualidade objetiva dessa mulher, que talvez não tivesse, se ela não nos tocasse o ser interior, nada que nos forçasse a escolhe-la. Em resumo mesmo estando de acordo coma maioria, a escolha humana difere da do animal: ela apela para essa mobilidade interior, infinitamente complexa, que é típica do homem. O próprio animal tem uma vida subjetiva, mas essa vida, parece, lhe é dada, como acontece com os objetos sem vida, de uma vez por todas. O erotismo do homem difere da sexualidade animal justamente no ponto em que ele põe a vida interior em questão. O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão. Foi com base no nosso olhar sobre o erotismo em Maíra mais a junção da teoria discutida que se firmou este pensamento. A proibição Para mostrar a proibição presente na

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obra foram selecionadas duas cenas que sugerem a proibição do desejo sexual, a primeira pela religião católica, na forma como a personagem Isaías retinha seus desejos sexuais, sem se masturbar, apelando para o sagrado, presente no capítulo “Retorno” da obra de Darcy Ribeiro (1984), nesse trecho percebemos o conflito de Isaías ao tentar conter seus desejos sexuais, se valendo da virgem santíssima como a única capaz de conter seu desejo, visto por ele como proibido sendo considerado pecado pela religião católica, ao se recordar das mulheres indígenas e nas suas tentações sexuais. Como visto no trecho a seguir: Basta lembrar minhas longas noites de angustia no catre do convento com o pau duro de doer e a consciência ardendo de sentimento de culpa. As rezas à Virgem Santíssima para que me ajudasse, para que me socorresse, me amolecesse. Estou de pau duro aqui agora, nesta cama de pensão, querendo minha mirixorã. Por que não saio, por ai, atrás de alguma carioca? Não, não quero outra vez esporrar na mão ou no lençol. Não, não quero nenhuma mulher estranha. Eu me guardo para minha gaviã mairuna. (RIBEIRO,1984, p. 92)

A segunda situação de proibição se faz presente quando a personagem Alma busca reprimir seu passado sexual e promíscuo, reencontrando na missão católica e buscando a possibilidade do perdão e o encontro consigo mesma em outra dimensão fora do pecado presente na cidade, nas favelas e nos morros do Rio de Janeiro. Recorrendo a madre Petrina a inclusão na missão do Iparanã, já que fora encaminhara até ali por um padre que era seu confessor e sabia de seus atos promíscuos vistos como pecaminosos pela própria Alma. Isto pode ser observado no capítulo “Alma” na seguinte passagem:

Agora quero me recuperar. Quero cumprir por atos, no serviço de Deus, todos os conselhos dele que não escutei. Ele morreu, a senhora sabe. (Deus o guarde!) Morreu, confiando em que eu me reencontraria, que voltaria a fé. Na verdade, eu nunca a perdi de todo, irmã Petrina. Estive foi muito confusa, num redemoinho. Agora me encontrei. Não aspiro muito, irmã Petrina. Só quero dar nas missões o testemunho do meu amor a Deus. (Tanta gente aqui...) Eu sei. Sei o que a senhora está pensando. Mas considere, irmã Petrina. Não posso com as favelas. Deus não cabe no meio de tanta fome, sexo e maconha. Faz pouco que a fé reacendeu em mim. E meu refúgio, minha esperança. Mas não quero apenas fruir o estado de graça. Não quero só reabilitar-me aos olhos de meu pai morto. (De Deus, minha filha.) Sim, é claro, aos olhos de Deus. Quero uma militância ao serviço do Senhor. (Virgem!) Quero e preciso dar a minha vida um sentido de missão, que me redima. Depois de anos de confusão e vergonha compreendi com a análise. (Psico-análisis) Sim, irmã Petrina, psicanálise. A senhora não acredita, eu sei. Repele. Mas eu digo com humildade a senhora: aprendi muito, muito. O que eu quero é o serviço de Deus, cada um tem seu caminho. Este é o meu, agora. Preciso de sua ajuda, compreensão, caridade. (RIBEIRO,1984, p. 38)

Como apresentado acima nos recortes que sugerem na proibição ou na tentativa de morte do desejo sexual por meio da religião, presente nas personagens analisadas desde o início deste artigo, vão ao encontro com o pensamento desenvolvido por Bataille (1987), na obra O Erotismo, quando referencia duas formas de atração que nos leva a Deus: a sexual, que vem da natureza, e a mística, de Cristo que tem o sentindo do elemento fulgurante que eleva acima da preocupação de preservar ou de aumentar o tempo e a riqueza possuída na fé de cada uma

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Sexualidade, erotismo e proibição em Maíra Risoleta Pacola e Cecílio Henrique Costa

das personagens mencionadas acima e nos seus conflitos com o sagrado, para Bataille não há uma tentação se não um objeto de ordem sexual; o elemento místico que os freiam, o religioso tentado, não tem mais em se “força atual”, agindo na medida em que o religioso, fiel a se mesmo prefere a salvaguarda do equilíbrio conquistado na vida mística ao delírio em que a tentação os faz cair. (Bataille, 1987, p. 20)

Conclusão Conclui-se que a obra Maíra de Darcy Ribeiro (1984) pode ser pensada a partir de diversos olhares e campos distintos do conhecimento, tanto das ciências literárias, antropológicas ou ainda pelo campo das ciências sociais. Partindo do pressuposto que a obra apresenta marcas literárias, tendo em vista que é uma obra de ficção, mas que, por outro lado, não descarta a grande presença do antropólogo Darcy Ribeiro, ao fazer uso de seu conhecimento como tal, no processo de construção de Maíra como uma obra que representa um patrimônio histórico indígena nos seus hábitos, costumes, tradições e mitos frente ao homem branco avassalador e na mescla destas duas raças tão distintas e tão próximas, como se observou ao longo da presente leitura. O que este artigo buscou mostrar foi que, a partir da sexualidade, do erotismo e da proibição em Maíra, existe uma amostra da identidade do povo brasileiro e das transformações sociais e culturais vivenciadas durante o processo de formação da sociedade como um todo diante da diversidade cultural presente na polifonia do romance e nas diversas vozes e povos que compõem obra Maíra como um patrimônio social

e cultural de nossa nação. Assim como o próprio Darcy Ribeiro (1984) menciona na introdução da obra: Comecei este texto dizendo que o romance é interpretável, como os poemas e os sonhos, porque verte espontâneo do autor. Nessa altura, confesso que ponho em dúvida esse juízo. Não posso pensar Rosa golfando seus jagunços cheios de espiritualidade e de saber. Sou mesmo é escritor, cobaia a ser escrutinado. O que posso dar são testemunhos como este. Duvidosos. (RIBEIRO, 1984, p. 6)

Referências Bibliográficas: ABBAGNAN, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 1014 p. ISBN 85-336-1322-9. BATAILLE, Georges. O Erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre L&PM, 1987. DICIONÁRIO de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986. 1422 p. LAPALANCHE, Jean; PONTALIS, JeanBaptiste. Vocabulário da psicanálise. 3. ed. Lisboa: Moraes Editores, 1976. 707 p. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste. Vocabulário da psicanálise. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 707 p. ISBN 85-3360965-5 PIÉRON, Henri. Dicionário de psicologia. Porto Alegre: Globo, 1969. 533 p. RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. 403 p.

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Maíra: a liturgia do sacrifício indígena Ednilson Esmério Toledo da Silva Tabata Pastore Tesser Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Resumo Este trabalho objetiva analisar a obra Maíra do autor Darcy Ribeiro, tendo como base o estudo da estrutura do romance, ou seja, a forma como tal obra foi dividida, sendo ela em Antífona, Homilia, Canon e Corpus. Levando-se em conta que tal divisão constitui também as partes de uma liturgia católica, a intenção de tal estudo

se baseia na comparação e na argumentação da causa pela qual o autor fez tal divisão. Para isso baseamos nossa análise na conceituação de cada etapa identificada e relacionando com os acontecimentos dos capítulos que formam cada etapa, utilizando citações da própria obra.

Palavras -Chave Darcy Ribeiro; Maíra; Romance; Antropologia; Liturgia.

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Maíra: a liturgia do sacrifício indígena Ednilson Esmério Toledo da Silva e Tabata Pastore Tesser

A obra e o autor Maíra não é uma obra de leitura simples e fácil. O próprio Darcy Ribeiro afirma que foi elaborada de uma forma complexa. Darcy a escrevera três vezes, sendo apenas a terceira versão publicada em 1981 após seu retorno do exílio. Nesta obra Darcy Ribeiro utiliza-se de uma forma não linear para escrever, de forma literária, a etnologia indígena da tribo mairum, uma tribo inventada, mas que representa bem as relações sociais, e mesmo as questões religiosas existentes em uma tribo. Isso só foi possível devido ao conhecimento antropológico do autor. Darcy Ribeiro, na introdução da edição comemorativa de vinte anos da publicação da obra, salienta que não se preocupou em não misturar ficção com realidade, e que se permitiu extrapolar em todos os sentidos na elaboração do texto. Observa-se isso na seguinte citação: Não tive nenhum escrúpulo em misturar mitos, lendas e contos de tantos povos, mesmo porque conheço bem meus índios. Sei que eles não têm nenhum fanatismo da verdade única. São perfeitamente capazes de aceitar múltiplas versões de um mesmo evento, tomando todas como verdadeiras. Estou certo de que qualquer índio brasileiro, lendo a mitologia inscrita em Maíra, a achará perfeitamente verossímil. (RIBEIRO, 2001, p.22)

Outro ponto a ser salientado no trecho citado acima é a questão da cumplicidade que Darcy tem com os povos indígenas brasileiros. Por ser antropólogo e ter se tornado um indigenista, Darcy trata o povo indígena como o seu povo e o defende com a arma que melhor possui, o conhecimento. De forma que a obra Maíra é um manifesto.

Os Índios brasileiros, a Religião Católica e sua liturgia Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.(Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha)

Este pequeno trecho da carta de Pero Vaz de Caminha, conhecida como a certidão de nascimento do Brasil, já demonstra bem a intenção dos portugueses ao abarcar na terra indígena brasileira. A expropriação de ouro e prata e, principalmente, a ideia etnocentrista de que deveriam “salvar esta gente”. Maíra tem o objetivo de ser um manifesto literário contra essa expropriação que o índio brasileiro sofreu, e que já foi identificada na carta de Pero Vaz. Não se trata apenas da expropriação da terra, mas da expropriação da identidade e da cultura indígena. O livro é um grito contra a opressão sofrida pelo índio, contra a imposição de proibições dos ritos, mitos e costumes indígenas e pela castração psicológica do índio efetuada pelos jesuítas, através da concepção de pecado instaurada pela religião. Alfredo Bosi, crítico e historiador de literatura brasileira, escreveu um artigo chamado “Morte, onde está tua vitória?” que foi publicado na edição comemorativa de vinte anos, onde analisa a obra Maíra e relata o seguinte:

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De todas as extorsões sofridas pelo índio (e Maíra nos conta que foram muitas), talvez a mais atroz tenha sido precisamente esta: o civilizado roubou violentamente do índio o gozo daquele tempo-sem-tempo que é a vida alheia ao trabalho forçado, a vida que se passa magicamente no rito e se prolonga no convívio dos mortos. (BOSI apud RIBEIRO, 2001, p.388)

Em Maíra, como salientado na citação do Alfredo Bosi, a expropriação da cultura e, principalmente, da identidade indígena é colocada como ponto principal e linha condutora. E isso pode ser observado de forma clara na personagem do Isaias/Avá, o índio que foi retirado de sua tribo para viver em Roma e estudar a teologia a fim de se tornar um padre, mas que no final tem sua identidade violentada, não sendo nem padre e nem índio, acabando em um vazio existencial. Mas Darcy Ribeiro além de um grande antropólogo demonstra ter um belo senso de ironia, ao utilizar a divisão da liturgia católica para dividir os capítulos da obra. Descobrira que a estrutura de Maíra era da missa católica, e tudo reescrevi com essa intencionalidade. Vira bem que o tema verdadeiro de Maíra era a morte de Deus, que morria porque o mundo mairum estava condenado, não tinha salvação. Isso me permitiu escrever um capítulo poético e que o próprio Deus, perplexo, se lamenta e se pergunta que Deus é ele, e qual será seu destino, com o desparecimento do seu povo. Ele era já órfão de seus filhos. (RIBEIRO, 2001, p.22)

Pero Vaz de Caminha já falava que ao chegar em terras tupiniquins, os portugueses fizeram uma missa e que essa missa foi uma das formas de comunicação e criação de relações com os indígenas.

Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. (Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha)

Mas o que é a liturgia senão um ritual? Não é uma convenção ritualística como qualquer outro ritual indígena? No dicionário encontramos a seguinte definição para liturgia: “culto público e oficial instituído por uma igreja; ritual” (Mini Aurélio, 2012). Para a religião católica apostólica romana a liturgia é a celebração que comemora a ceia de Cristo e seu sacrifício pela humanidade, ou seja, representa a celebração do sacrifício de Jesus, que tem o seu corpo imolado e comungado, e que ressuscita redimindo os pecados de todos os seus seguidores, crentes na religião católica. Darcy Ribeiro dividiu o romance Maíra em quatro partes: Antífona, Homilia, Cânon e Corpus. Partiu do modelo litúrgico da missa (e dos cultos evangélicos) e fez deslocamento e inversões do sentido original, exigindo nova interpretação para o sacrifício. O autor subverteu textos bíblicos e latinos do ritual antigo, dessacralizou e ridicularizou o “mistério” – para evidenciá-lo na pessoa do índio, eucaristiado pela catequese e pela ganância dos poderosos. Aqui o autor utiliza seu lado irônico, pois em Maíra, Darcy prescreve uma missa, um ritual, uma celebração (como a católica) onde quem morre não é o Cristo, mas um povo, o povo mairum. Na verdade, não apenas o povo mairum, mas o povo indígena brasileiro. Maíra é a liturgia da celebração da trágica extinção do índio brasileiro. Extinção que começa através da

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imposição da catequese católica. O colonizador que dissera que deveria “salvar esta gente” acabou matando-os. A liturgia Neste contexto de divisão da obra em partes da liturgia, encontramos: Antífona, Homilia, Canon e Corpus. No dicionário conceitua-se antífona como: “versículo cantado pelo celebrante, antes e depois de um salmo” (Mini Aurélio, 2012). Na liturgia católica, a antífona é o momento inicial da celebração em que se tem o canto de entrada do padre e são apresentadas as intenções da missa. A Antífona é a primeira parte em Maíra, parte em que são apresentadas as personagens principais do livro, Alma e Isaias. Nesta parte também é relatada a morte da Alma. Esta morte não se trata apenas da personagem Alma, mas a morte da alma indígena, que será mostrada com o desenvolvimento da história. Nessa parte também é relata a morte de Anacã, chefe guerreiro da tribo, que morre para dar lugar ao próximo novo chefe, que será Isaias, o índio que foi tirado da tribo pela igreja, quando era ainda novo e que agora não é mais índio e não é padre. Assim a tribo mairum ficará sem chefe, sem guerreiro, devido à intervenção católica. Ainda na antífona encontramos três capítulos que mostram a experiência de aculturação sofrida pelo Isaías através da educação teológica em Roma. Isso pode ser observado na seguinte citação: Todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Padre serei, ministro de Deus na Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas gente eu sou? Não, não sou ninguém. Melhor que seja padre, assim poderei viver quieto e talvez até ajudar o próximo. Isto é, se o próximo deixar que um índio de merda o abençoe, o confesse, o perdoe.

Reconheço que estou com complexo, obsessivo: paranoico ou esquizofrênico? Sei lá. (RIBEIRO, 1981, p. 29)

Assim como na liturgia católica, em Maíra, a antífona é o canto inicial, a apresentação do sacrifício que será celebrado, no caso de Maíra o sacrifício dos índios e não do Cristo. A segunda parte da obra é a Homilia. A homilia é conceituada como: exortação religiosa fundada num ponto do Evangelho; discurso sobre coisas religiosas; discurso cansativo sobre moral. Na liturgia católica a homilia é a segunda parte mais importante da celebração, tendo a frente apenas a eucaristia, neste momento da missa o padre discursa para seus fiéis sobre o evangelho, é uma alusão às pregações do Cristo que ensinava aos seus seguidores através de metáforas, parábolas e alegorias. Neste momento da missa o padre utiliza toda retórica para passar à sua audiência os conceitos e interpretações da religião católica referentes aos textos da bíblia. Em Maíra esta parte possui alguns capítulos cujos nomes se referem ao ato da fala, como “A Boca”, “A Língua” e “Verbo”. Este último capítulo “Verbo” é uma representação da retórica que os padres utilizam em suas celebrações. Neste capítulo se vê a retórica da personagem Xisto, que é um beato, um índio que lê a bíblia e faz a interpretação das passagens do livro discursando para os índios que se juntam para ouvi-lo. Assim está escrito, está aqui! É a verdade inteira. Assim é. Ninguém sabe porque, ninguém explica. Mas é assim que aconteceu aqui, agora, todo dia toda hora. O rico enricando e o pobre penando. Pra mim, nisto está a mão do Demo, trapaceira, é a parte dele. É a mão do maligno, é o dedo do Demo, é o sinal do furtivo. O mundo é a fazenda de Deus, mas o zelador, quem é? É o

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Diabo! Que é o que este livro ensina? Ensina tudo. Mas o que este livro mostra a quem quer ver é a guerra de Deus contra o Diabo e do Diabo contra nós. Contra os homens e contra as mulheres. (RIBEIRO, 1981, p. 193)

O discurso da personagem Xisto é uma mistura dos ensinamentos religiosos com os mitos indígenas. A retórica utilizada pelo beato é igual a dos padres católicos ao interpretarem a bíblia. Além do capítulo “Verbo”, outro que chama a atenção nesta parte da homilia é o denominado “Missa”, onde Darcy relata o comportamento das pessoas que trabalham como missionários da missão Nossa Senhora Grávida de Deus, uma missão católica que auxilia na catequização dos índios da região. No capítulo são apresentadas as dificuldades, os conflitos dos missionários em reprimir suas vontades sexuais e seus comportamentos condenados como pecaminosos. No fim do capítulo, o autor deixa uma questão irônica. Rezas confluentes, águas reluzentes, navalhas, tesouras, penitências. Cal e silício. Arrependimentos. Cada um em seu mister, reconsagra almas ressacraliza corpos a Deus doados. Ele a tudo assiste, do alto. Talvez aprove, comovido, quem sabe? (RIBEIRO, 1981, p. 166)

Nessa parte temos a liturgia da palavra, a partir do texto sagrado Mairahu, o Gênesis da tribo mairum, tudo criado pelo Sem-Nome que sabia ser o mundo muito ruim, mas dava risadas e maltratava suas criaturas com um aguaceiro medonho. Há também o salmo do “messias sofredor” (Isaías) e o Apocalipse na segunda leitura, onde João de Deus, na boca de Xisto, prega sobre o Armagedom, com anjos-sargentos, urubus-rei, juízo final, besta-fera, Cristo-cordeiro, enxofre e trono branco. E os índios atrás da terra

sem males, isto é, terra sem brancos. A terceira parte do livro é chamada de Canon, é a parte central da missa católica, também conceituada como forma de imitação polifônica. Essa intepretação da polifonia é bem observada nesta parte, pois aqui Darcy Ribeiro deu voz às suas personagens através da incorporação dos deuses Maíra e Micura. Nos capítulos “Maíra: Remui”, “Maíra: Teidju”, “Maíra: Jaguar”, “Maíra: Avá” e “Micura: Canindejub” os deuses Maíra e Micura se incorporam em cada personagem e a narrativa passa a ser feita através da voz da própria personagem, como a forma da polifonia. Na liturgia católica o canon é a parte que precede a eucaristia, o momento da comunhão com o corpo de Jesus imolado. Esta parte se trata de uma preparação para o momento principal da missa. Assim como na liturgia católica, o canon em Maíra (a liturgia mairum) é uma preparação para o sacrifício do povo mairum. Essa preparação já começa com a chegada do aguardado Isaias/Ava que deve tomar o lugar do guerreiro da tribo, mas o Isaias que chega não é o guerreiro esperado. Isaias retorna e é questionado pelos homens da tribo acerca dos conhecimentos adquiridos no mundo civilizado, mas não consegue assumir sua condição de reintegrado à cultura, devido à castração de sua identidade, resultante da catequização sofrida. Ele não atende às expectativas dos mairuns e se isola na tribo. O Avá veio e não veio. Este que veio é e não é o verdadeiro Avá. O que eu esperava, e que vi vindo dia-a-dia por terras e águas, não chegou. Aquele sim, era o Avá mesmo, inteiro. Este é o que restou de meu filho Avá, depois que os pajés-sacacas mais poderosos dos caraíbas roubaram sua alma. (RIBEIRO, 1981, p.270)

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Na liturgia católica o canon é finalizado com um louvor de glorificação ao Cristo que será sacrificado. Na obra Maíra, o canon é finalizado com o capítulo denominado “Armagedom”, uma alusão ao Apocalipse católico. Neste capítulo, o beato Xisto volta a discursar sobre os textos da bíblia, neste caso, sobre o há-de-vir, sobre o que será, e assim o beato relata o apocalipse bíblico, salientando a condenação dos pecadores. Deus é grande. Talvez até demais. Será que a Ele importam nossas louvações, nossas lamentações, nossas rezas e hinos? Pode que não. Ignoramos. Só sabemos com certeza certa que Ele abomina os nossos pecados. E isso sabemos, por que está escrito no livro do sopro de Deus. (RIBEIRO, 1981, p. 339)

A quarta e última parte do livro é o Corpus, na liturgia católica o auge da celebração, o momento em que o corpo de Cristo é imolado e comungado. Apresenta a comunhão, a Eucaristia, quando se bebe do sangue e se come do corpo daquele que foi imolado. Sendo que no fim desta parte se tem a ressureição de Jesus, que morreu pela remissão dos pecados dos homens. Em Maíra, esta parte demonstra que o fim é inevitável. Alma descobre que está grávida de gêmeos, mas a gravidez não finda, o sacrifício é estéril, não renovador. Nessa parte acontecem várias mortes, Juca, Boca, o Oxum e a índia Cori. Isaias/Avá se isola cada vez mais. No capítulo chamado “Mairañee”, Darcy Ribeiro dá voz ao próprio Deus, que já não sabe se haverá ressureição nessa liturgia, e questiona a sua imortalidade.

mairum-mairuns não estará contado, de mim também despojado? (...) Como evitar o desastre inevitável que eles e talvez a mim, a nós também, soçobrará? Que Deus sou eu? Um Deus mortal? (RIBEIRO, 1981, p. 354-355)

E a parte corpus é finalizada, e também o livro, com o capítulo “Indez”. Indez é um termo que designa um ovo que é deixado no ninho de uma ave, para que ela volte a pôr ovos naquele lugar. Indez é um ovo que não dará uma nova vida. Por isso é o fim, não há nova vida, não há ressureição nessa liturgia mairum, é a extinção da identidade mairum, da identidade indígena. Tratase de uma liturgia onde o sacrifício não se dá com o Cristo, mas com o povo mairum. Considerações Finais A partir da análise feita através da divisão das partes da liturgia e da constituição dos capítulos de cada parte da obra Maíra, verificase que se trata de uma obra crítica, sem deixar de ser literária. Um verdadeiro manifesto contra a violação e expropriação da identidade e da cultura indígena. É o relato da morte da Alma e também da alma indígena. Darcy Ribeiro chama a tribo de Mairum, mas poderia ser Bororo, Kinja, Xetá e muitas outras tribos brasileiras que foram extintas, devido à integração impositiva do homem branco, da religião católica e de seus costumes. A integração, da forma forçada como foi feita, extinguiu a identidade indígena. E foi para criticar esta integração forçada, que Darcy Ribeiro escreveu Maíra.

Sobe a mim o murmúrio sem fim. É o meu povo lá embaixo pedindo o milagre: a exceção. Quer ficar (...) Sem eles quem me há de lembrar, louvar? Povo meu que refiz quebrando molde de DeusPai (...) Um mundo despovoado de

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Maíra: a liturgia do sacrifício indígena Ednilson Esmério Toledo da Silva e Tabata Pastore Tesser

Referências Bibliográficas: BUARQUE, Aurélio. Mini Aurélio – O Dicionário da Língua Portuguesa. 8ª ed. (revista, atualizada e ampliada). São Paulo: Editora Positivo, 2012. CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de Caminha. Em acervo digital da Biblioteca Nacional: http://objdigital.bn.br/Acervo_ Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 06 de Junho de 2013. RIBEIRO, Darcy. Maíra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. ______. Maíra. 21ª ed. (Edição comemorativa de 20 anos da obra). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. SANTOS, Luiza Aparecida, O percurso da indianidade na literatura brasileira: Matizes da Figuração. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora; Unesp, 2009.

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O Mal-Estar na Civilização em Maíra Evandro Arruda Carneiro da Silva Estudante de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

Resumo Através deste trabalho, serão analisadas as personalidades das personagens Isaías e Alma, do romance Maíra de Darcy Ribeiro, focando em como a influência da moral imposta pela sociedade “civilizada” e pelas religiões interfere nos indivíduos que entram em contato com estas

e nos que fazem parte deste meio. Utilizando principalmente, os livros “O Mal-Estar na Civilização” de Sigmund Freud, “Os Índios e a Civilização” e “O Povo brasileiro” de Darcy Ribeiro.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 50-58.

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O Mal-Estar na Civilização em Maíra Evandro Arruda Carneiro da Silva

“Vocês nos trazem à existência, Deixando que o pobre se torne culpado, Depois o abandonam ao sofrimento, Pois toda culpa na terra se paga.” Goethe, “Canções do Harpista”

O Mal-Estar na Civilização em Maíra Em 1976, Darcy Ribeiro escreveu o romance intitulado Maíra, enriquecido por uma enorme bagagem científica possuída pelo antropólogo. O autor inclui em sua obra um conhecimento etnológico muito denso em virtude do convívio e estudos realizados entre tribos indígenas e que devido à presença de fatos mitológicos gera-se uma dificuldade de se fazer uma leitura superficial. Em Maíra, Darcy Ribeiro aborda a história da pequena tribo dos índios mairuns e da investigação sobre a morte de Alma. O enredo foca-se dentre outros personagens, em Avá, rebatizado posteriormente como Isaías, um índio que futuramente seria o líder (tuxauarã) mairum, mas que ainda jovem foi retirado de sua aldeia e de sua vida simples, e foi levado para ser convertido, educado e catequizado entre a civilização, mais especificamente em Roma, para se tornar um sacerdote cristão. Após um longo período distante de suas origens e de diversos conflitos psicológicos internos, Isaías resolve retornar à sua aldeia. Em seu trajeto de volta conhece Alma, uma psicóloga que decide servir em nome de Deus, por arrependimento da vida que levava anteriormente, e para que com isso pudesse redimir seus pecados. Como os dois possuem como mesmo destino Naruai, decidem seguir seus caminhos unidos. Ao entrar em contato com a cultura indígena dos mairuns através de Isaías, Alma desiste de seus propósitos religiosos e após isso passa a conviver entre os índios, fazendo parte

do estilo de vida existente na tribo, o que a leva a ter relações sexuais com vários índios. Em consequência dessas diversas relações, Alma engravida de gêmeos, porém não possui certeza sobre a paternidade das futuras crianças. Por se considerar integrante da tribo, Alma decide ter seus filhos da mesma maneira que as índias mairuns, o que pode ter sido a causa de sua morte. O romance possui várias vozes narrativas, criando um caminho de personagens conturbados pela influência da civilização. Uma delas e a mais ressonante do enredo é a de Isaías. Para Antônio Candido existe algum motivo para Darcy Ribeiro ter composto o romance desta maneira, causando uma existência incompleta das personagens: [...] porque não se concentrou no universo tribal e preferiu, com plena consciência da situação presente, estabelecer o relacionamento deste com o mundo civilizado, que o cerca e destrói. Mais ainda: porque figurou o encontro de culturas na própria personalidade de um índio, iniciado nos saberes do branco, mas preso de tal maneira às origens que voltou à sua aldeia, na sua selva, para viver uma existência incompleta, diminuída, puxada para os dois lados. (CANDIDO, 2003, p. 384)

Freud em seu livro O Mal-Estar na Civilização, faz uma análise dos fatores causadores da instabilidade psicológica dos seres humanos em contato com a civilização, e a angústia causada pelas limitações exigidas pela convivência em sociedade dos instintos e das restrições dos sentimentos de felicidade e prazer. Na obra de Darcy Ribeiro, podemos reparar principalmente em Isaías e Alma, como os conflitos que essa imposição de valores sociais atua nas personalidades dos indivíduos. Freud em Novas Conferências Introdutórias nos diz o seguinte sobre o que é essa angústia sentida pelos homens:

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[...] angústia é um estado afetivo, ou seja, uma união de determinas sensações da série prazer-desprazer com as inervações de descarga a elas correspondentes e a percepção, mas provavelmente também o precipitado de um certo evento significativo, incorporado por hereditariedade, algo comparado ao surto histérico adquirido individualmente. (FREUD, 2011, p.224)

Freud demonstra que o ser humano busca em sua vida, formas de se alcançar um sentimento de felicidade, porém a vida em sociedade nos traz diversas frustrações e que alguns encontram na religião uma maneira de diminuir essa frustração. A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos. (FREUD, 2011, p.28)

Tanto em Isaías quanto em Alma, identificamos através da religião, uma busca desse “paliativo”, essa busca, Freud nos descreve da seguinte maneira: É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe. (FREUD, 2011, p.38)

Em Isaías podemos visualizar claramente, o sofrimento que os índios passavam ao entrarem em contato com culturas e religiões distintas das quais haviam sido criados. As grandes religiões, principalmente a católica, com seus ideais de catequizar e converter os descrentes através da imposição como verdade de seus conceitos, geralmente são as grandes responsáveis pelos

transtornos apresentados por estes índios que são levados para serem educados como homens civilizados. A presença do conflito entre o mundo tribal do qual Avá foi retirado ainda criança e do civilizado e religioso, no qual este se tornou Isaías e passou a viver em Roma, seria o motivo de sua perturbação e também de sua falta de identificação com qualquer uma das duas culturas as quais ele entrou em contato. Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim está ele. Ele sou eu. Eu sou ele, sou nós, e assim havemos de viver. O velho confessor não estará jamais no futuro, esperando por mim, antes da missa para me esvaziar outra vez de mim. Eu também não estarei jamais tremendo de medo dessa hora da verdade, da antiga verdade, da verdade dos outros. Agora viverei com a minha verdade, a minha verdade entreverada. Deus do céu, meu pai e meu tio. Deus é Deus e Maíra. Maíra é Deus. (RIBEIRO, 2003, p.109)

Em seu livro, Freud expõe o que seria a fonte de energia a qual os diferentes sistemas religiosos utilizam para exercer um controle de seus seguidores, um sentimento que causa a sensação de eternidade. A construção desse sentimento de necessidade religiosa, para Freud, é encontrada desde a infância: Um sentimento pode ser fonte de energia apenas quando é ele mesmo uma expressão de uma forte necessidade. Quanto às necessidades religiosas, parece-me irrefutável a sua derivação do desamparo infantil e da nostalgia do pai despertada por ele, tanto mais que esse sentimento não se prolonga simplesmente desde a época infantil, mas é duradouramente conservado pelo medo ante o superior poder do destino. (FREUD, 2011, p.25)

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No decorrer de Maíra podemos encontrar diversos fragmentos que demonstram as influências desses diversos fatores na construção da personalidade de Isaías. [...] Todo o dia e toda noite já longa deste vôo revivi meus idos. Os de menino na aldeia, os de rapaz no convento de Goiás, os de homem feito e desfeito em Roma. Eles me marcaram duramente. É como se eu tivesse perdido minha alma, roubada pelos curupiras, e vivido por anos a fio como bicho entre bichos. Volto, agora que volto de verdade, me perguntando quem é o ser que levo a meu povo. Sei bem que não sou o anjo sem mácula que um dia quis ser, a ingenuidade mairuna submetida a todas as provações, mas intocada. Não sou inocente. Não sou culpado. Sou um equívoco. Quem volta não é a forma adulta do menino ignorante que os mairuns, na sua inocência, mandaram, um dia, com os padres aprender a sabedoria dos caraíbas. Quem volta não é também o catecúmeno esforçado de quem os missionários quiseram fazer a glória da Ordem. Quem volta sou apenas eu. Fui a ovelha do Senhor. Volto tosquiado: sem glória sacerdotal, sem santidade, sem sabedoria, sem nada. Tudo que tenho são duas mãos inábeis e uma cabeça cheia de ladainhas. E este coração aflito que me sai pela boca. (RIBEIRO, 2003, p.76)

Em seu livro O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro diz o seguinte sobre esse assunto referente a os índios que eram retirados de suas aldeias para serem educados e o impacto disto: [...] com a destruição das bases da vida social indígena, a negação de todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índios deitavam em suas redes e se deixavam morrer, como só eles têm o poder de fazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria a negação mais horrível do passado, uma vida indigna de ser vivida por gente verdadeira.

Sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu a pregação missionária, como um flagelo. Com ela, os índios souberam que era por culpa sua, de sua iniquidade, de seus pecados, que o bom deus do céu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá-los para sempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e a covardia, tudo se confundia, transtrocando o belo com o feio, o ruim com o bom. Nada valia, agora e doravante, o que para eles mais valia: a bravura gratuita, a vontade de beleza, a criatividade, a solidariedade. A cristandade surgia a seus olhos como o mundo do pecado, das enfermidades dolorosas e mortais, da covardia, que se adornava do mundo índio, tudo conspurcando, tudo apodrecendo. (RIBEIRO, 1995, p.45)

A maior causa da angústia sentida por Isaías pode ter sido originada da coerção ao abandono de seus instintos sexuais pelas doutrinas religiosas, com relação no contraste observado por este durante sua criação infantil, de como era a vida sexual existente em sua aldeia. A forte repressão sexual existente em Isaías pode ser observada após Isaías retornar a aldeia mairum e se casar com uma índia, e mesmo a desejando, não consegue estabelecer relações sexuais com sua esposa e passa a sofrer por amá-la. Senhor, meu Deus, castigador. Senhor, meu Deus, salvador. Ela é minha cruz, que tenho merecida, dá-me seu amor, por minha perdição eterna, dá-me. Seu amor, Senhor, é o paraíso único a que aspiro. Se com ela hei de perderme, sem ela não quero salvar-me. Dá-me, Senhor, o meu amor desventurado. Ainda que ele venha eriçado de todos os escorpiões do ciúme. Ainda que custe a condenação eterna de minha alma apaixonada. O seu amor, Senhor, ou minha morte, dá-me. (RIBEIRO, 2003, p. 352)

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Alma após a morte do pai, por arrependimento da vida que levava, a qual não era considerada digna por este, decidiu tentar através da religião honrar sua memória, mas para isso, acreditava que era necessária a ausência do contato com o mundo civilizado, que de acordo com Alma era repleto de “fome, sexo e maconha”, e da fuga para um lugar distante, para poder prestar seus serviços em nome de Deus. Alma nos conta que ao aceitar a vida religiosa como ideal, tenta fugir da conturbada vida sexual a qual ela supõe que se iniciou através de um amor edípico ao pai. Lá na Missão, com as irmãzinhas, terei por fim a paz que nunca tive, afundada na paixão carnal, debaixo do peso do amor daquele meu pai sacrossanto. Ele só via em mim carinho e pureza. Oh! Meu pobre pai que está no céu e que de lá, talvez, me veja! Jamais, meu pai, jamais voltarei a buscar seu cheiro em alguém, como tantas vezes fiz sem saber: minha culpa, minha máxima culpa. Não tendo mãe que gastasse meu carinho, nem irmão que me ensinasse a ser mulher, nem amigos, por anos e anos só tive meu pai. Nele me concentrei totalmente. Vivemos do carinho e da dação por parte dele e dessa sofreguidão e angústia da minha parte. Nem sua morte me livrou. (RIBEIRO, 2003, p. 91)

Alma busca através de suas relações sexuais ser reconhecida como alguém, porém essa vida apenas a levou para uma triste solidão e que por influência disso acabou se perdendo no mundo das drogas e sendo internada. Após a internação Alma encontra através da fé sua salvação. Por um desejo estranho e repentino ela decide que deve passar a viver na missão do Iparanã, mas também começa a demonstrar confusões sobre o que espera de sua vida, mas independente do que seja, deseja apenas ser aceita. Freud nos fala sobre como a busca da

felicidade através da vida sexual, pode nos causar angústias e neuroses, pois mesmo seguindo os instintos humanos, o amar nos deixa mais desprotegidos ante o sofrimento, e por isso buscamos caminhos diferentes para buscar a felicidade, esse pode ser descrito como o motivo para Alma decidir mudar de vida. Afirmamos que a descoberta de que o amor sexual (genital) proporciona ao indivíduo as mais fortes vivências de satisfação, dá-lhe realmente o protótipo de toda felicidade, deve têlo feito continuar a busca da satisfação vital no terreno das relações sexuais, colocando o erotismo genital no centro da vida. Prosseguimos dizendo que assim ele se torna dependente de maneira preocupante, de uma parte do mundo exterior, ou seja, do objeto amoroso escolhido, e fique exposto ao sofrimento máximo, quando é por este desprezado ou o perde graças à morte ou à infidelidade. (FREUD, 2011, p. 64)

O édipo sentido pelo pai, pode ter sido outro fator importante tanto para a tomada da vida sexual quanto para a deixada dessa vida, pois um sentimento de culpa se manifesta em quem possui o complexo de édipo, o que impede os filhos de possuírem relações sexuais com os pais e os fazem buscar a satisfação amorosa em outras pessoas. Freud no mal-estar da civilização, discorre sobre o conflito de Eros e o instinto da destruição ou da morte: Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos; quando essa comunidade assume apenas a forma da família, ele tem de se manifestar no complexo de Édipo, instituir a consciência, criar o sentimento de culpa. Ao se procurar uma ampliação dessa comunidade, o mesmo conflito prossegue em formas dependentes do passado, é fortalecido e resulta uma intensificação do sentimento de culpa. (FREUD, 2011, p.104)

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Após a morte do pai de Alma, o sentimento de amor sentido por ele, reprime a busca da representação do pai em outros homens, o que faz Alma buscar sua satisfação através da realização dos ideais do pai amado. Veja o nome que me deu, irmã Petrina: Alma. Dá uma medida da sua espiritualidade. Espiritualidade de que eu não fui digna até a sua morte. Agora quero me recuperar. Quero cumprir por atos, no serviço de Deus, todos os conselhos dele que não escutei. Ele morreu, a senhora sabe. (RIBEIRO, 2003, p.61)

Esse sentimento de culpa o qual Alma sentia por não corresponder as expectativas do pai, pode ter sido também a causa do envolvimento de Alma com as drogas, Freud escreve que as pessoas recorrem as drogas para alcançarem um prazer imediato e assim escaparem da sensação de sofrimento. Para Freud: [...] mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida que o sentimos, e nós os sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo [...] é fato que há substâncias de fora do corpo que uma vez presente no sangue e nos tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer, e também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade, que nos tornarmos incapazes de acolher impulsos desprazerosos. (FREUD, 2011, p.32)

Porém as drogas também nos afastam da realidade do mundo externo, o que seria a causa de Alma, após a sua reabilitação, desejar apenas ser reconhecida como alguém por este mesmo mundo exterior através de seus atos religiosos em memória do pai. Tanto Isaías quanto Alma demonstram

no decorrer da obra uma ideia de retorno ao primitivo, Isaías com seu desejo de voltar a ser Mairum e reestabelecer seus contatos com a natureza, e Alma ao se reconhecer com a cultura indígena sexual dessa tribo. Freud nos descreve essa necessidade de retorno do homem ao primitivo como fuga da infelicidade causada pela civilização e hostilização gerada pelo estado civilizacional: [...] boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização; seríamos bem mais felizes se a abandonássemos e retrocedêssemos a condições primitivas. A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido – como quer que se defina o conceito de civilização – que tudo aquilo que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização. (FREUD, 2011, p.44)

No livro Maíra, podemos encontrar vários pontos onde Isaías e Alma apresentam um sentimento de hostilização a civilização. Isaías nos mostra como o nosso mundo pode ser duro para um índio: Do lado oposto, no nascente, está o mundo devassado de onde nos vêm a invasão, a doença, a brancura. É o lado onde estou agora, é o lado de onde vou indo para lá, voltando. (RIBEIRO, 2003, p.75) Minha ambição é voltar ao convívio da minha gente e com a ajuda deles me lavar deste óleo de civilização e cristandade que me impregnou até o fundo. (RIBEIRO, 2003, p.168)

Darcy Ribeiro em seu livro Os Índios e a Civilização, nos conta sobre como após o impacto cultural da educação civilizada nos índios, estes tentavam retornar para suas vidas nas aldeias, mas não conseguiam mais não sofrerem, como era antes de suas partidas: Sumariando

nosso

estudo

das

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vicissitudes da consciência indígena diante do impacto da civilização, podemos recapitular, agora, algumas das contingências de sua integração compulsória na sociedade nacional. Conforme vimos, numa primeira instância a tribo indígena posta em contato com a sociedade nacional procura defender e preservar o ethos que lhe provê a imagem orgulhosa de si própria como um povo entre os demais e até mesmo como um povo melhor que os demais. Depois de sucessivos embates que fazem ruir quase todo o orgulho tribal, sobrevêm, via de regra, esforços desesperados de retorno, de isolamento. (RIBEIRO, 1996, p.474)

um processo de reconhecimento com sua cultura, talvez pelas imposições sexuais criadas pela sua consciência de homem civilizado, o que o levou a continuar a sofrer e tentar a encontrar outro caminho através do sentimento de amor não correspondido com sua esposa mairum. Freud em o Mal-Estar na Civilização nos descreve sobre o perigo de sofrer por amar alguém:

A relação entre Alma e o retorno ao primitivo, foi mais simples que a de Isaías, pois esta encontrou na aldeia mairum, uma identificação com sua vida sexual anterior a morte de seu pai, e com isso acabou chegando ao ponto de desejar a ser uma das índias e recriminar fortemente sua origem civilizada, o que a levou a engravidar de um dos índios e a desejar ter seu filho como uma tribal, o que poderia ter acarretado sua morte. Freud em seu texto “Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna” nos diz sobre a falsidade da supressão sexual instintual, o que pode explicar a fácil desistência de Alma de sua sublimação sexual:

Isaías demonstra um comportamento de distanciamento com seu próprio povo, e tenta através de atividades intelectuais, minimizar seu sofrimento por não ser o índio que esperavam que ele fosse e por não conseguir o amor de sua mulher:

Quando o instinto sexual é muito intenso, mas pervertido, existem dois desfechos possíveis. No primeiro, que não examinaremos, o indivíduo afetado permanece pervertido e sofre as consequências do seu desvio dos padrões de civilização. No segundo, muito mais interessante, o sujeito consegue realmente, sob a influência da educação e das exigências sociais, suprimir seus instintos pervertidos, mas essa supressão é falsa, ou melhor, frustrada. (FREUD, 1976, p.35)

Já o retorno de Isaías a sua tribo não foi

Nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu amor. (FREUD, 2011, p.39)

Aqui estou na minha aldeia, devolvido a ela, mas não devolvido a mim mesmo. Começa a ser cada vez mais difícil sentir-me mairum dentro de minha pele. Passo a mão pelos cabelos que estão ficando ralos, como acontece com os brancos. Lavo os olhos do espírito com orações, como fazia antigamente, na esperança de que, limpos, vejam melhor. Mas não, estou cada vez menos a jeito dentro de mim e os outros também estão se cansando. Muitos passam e não me olham; se olham, não me vêem. (RIBEIRO, 2003, p.303) Somente a vida intelectual me alimenta aqui. Ainda que reduzida à aridez de Gertrudez, com a sua geometria gramatical, e á exuberância demoníaca de Teidju, é só dela que eu vivo. (RIBEIRO, 2003, p.305)

Freud expõe como uma maneira eficaz de se chegar ao prazer ou a ausência de desprazer, mesmo que não tão potente quanto a realização

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dos desejos sexuais, o trabalho psíquico e intelectual: O melhor resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo. (FREUD, 2011, p.35)

Enquanto Darcy Ribeiro tenta através de sua obra nos passar a extinção da bela cultura indígena e sua substituição pelo homem triste e depressivo civilizado, Freud nos faz o seguinte comentário sobre os sentimentos desse homem: [...] há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum desses caminhos podemos alcanças tudo o que desejamos. (FREUD, 2011, p.40)

Conclusão Não é de hoje que vemos a doença espalhada pelo mundo, devastando civilizações e seus indivíduos, independente de credos, culturas, classes sociais, ou dos diversos outros modos que existem ou foram criados para nos distanciarmos de nossos iguais. Infelizmente está doença a qual venho aqui expor minha opinião não é de uma simples forma de tratamento, estou falando de um forte transtorno psicológico causado principalmente pelo meio conturbado no qual vivemos. Uma doença de vício e de um ideal de comodismo. Uma doença de falta de compreensão e de desrespeito ao próximo. Onde leis são criadas para nos diferenciarem. Onde se é decidido se alguém deve ou não viver e de que maneira as pessoas devem viver. Uma doença de se instituir que não devemos nos importar com os sentimentos alheios.

A ideia de como nossa vida deveria ser é encravada em nossas mentes de uma forma tão impositiva, que se não for alcançado tal ponto pré-definido, ficamos frustrados e nos sentimos fracassados, angustiados. Regras e leis são criadas, para poder nos manter acorrentados ao método estipulado de estilo de vida ideal, negando assim nosso direito a liberdade dentro da grande prisão a qual chamamos de civilização. Mesmo para nós que já nascemos e somos colocados nesse mundo civilizado já é difícil sobreviver desta maneira, e assim como Alma, sofremos intensamente. Podemos tentar imaginar então, o quanto de dor, tristeza e depressão um índio, que assim como Isaías, foi inserido na nossa sociedade pode sentir. Podemos refletir sobre o choque cultural que este índio pode sentir ao ser retirado ainda pequeno de sua tribo, acostumado ao comunitarismo de sua aldeia, onde era criado com a bela natureza ao seu redor e possuidor de um simples estilo de vida, ao ser colocado para viver no nosso mundo individualista, cheio de regras, dogmas, disciplina e opressões. Creio que Darcy Ribeiro, ao querer expor o drama sentimental dos índios civilizados, estava tentando nos mostrar de que maneira seria o fim do espírito indígena, não só através da devastação de suas terras, destruição de suas florestas e do desaparecimento de seus animais, mas que o fim do indígena estaria também, e talvez principalmente, na transformação destes em seres doentes, neuróticos, conturbados, ou melhor dizendo, em um de nós.

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O Mal-Estar na Civilização em Maíra Evandro Arruda Carneiro da Silva

Referências Bibliográficas: CANDIDO, A. In RIBEIRO, D. Maíra. Mundos cruzados. Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, p.382 FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. In: Obras completas v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise. In; Obras completas v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FREUD, S. Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. In: Pequena coleção das obras de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. RIBEIRO, D. Maíra. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003 RIBEIRO, D. Os índios e a civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Os rios profundos e Maíra: a utopia de integração harmoniosa a partir da proposta de Ángel Rama Elise Aparecida de Souza Mestre em Literatura Brasileira pela Unimontes e Professora de Literatura Brasileira na Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes

Anelito de Oliveira Pós-Doutorando em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Literatura Brasileira pela USP, autor de, entre outros, "A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila" (Inmensa, 2013).

Resumo Ángel Rama (2001) afirma que o trabalho dos transculturadores contribui para “a identidade e o resgate de vastas regiões e culturas” (RAMA, 2001, p. 200). Para o crítico, as obras transculturadoras possibilitam estabelecer o vínculo entre as diversas partes do continente, contribuindo, de forma decisiva, para o conceito moderno de América Latina. Sob essa perspectiva, traçaremos

contrapontos entre os romances Os rios profundos e Maíra para averiguar similitudes e diferenças entre as duas obras literárias, a fim de verificar como se inscreve o diálogo entre os dois escritores, a partir do pensamento utópico de Ángel Rama. Os resultados serão feitos a partir desse recorte nas obras em questão.

Palavras -Chave Darcy Ribeiro; Maíra; Os rios profundos; Utopia; Ángel Rama.

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As numerosas pegadas formam um caminho na mata; muito mais se já não se trata de rastros, mas de criações artísticas que se encandeiam e se sucedem. Porém, para que esse encadeamento, que é frutífero, se produza, devemos ratificar que o diálogo mais autenticamente fecundo para um romancista é o que ele trava com outro romancista de sua própria terra ou comarca. Ángel Rama

Introdução Para Ángel Rama (2001), as diferenças entre os diversos casos que se registram na América Latina assinalam três graus distintos da problemática da aculturação: o primeiro faz referência à “[...] já velha e esclerosada compartimentação entre as culturas indígenas e as culturas de dominação provenientes do conquistador” (RAMA, 2001, p. 192); o segundo grau associa-se aos casos intermediários que “[...] são aqueles representados pela vinculação das regiões esquecidas que conservam com muito zelo as marcas do passado com as novas cidades nascentes” (RAMA, 2001, p. 192); e o terceiro grau corresponde aos casos que [...] respondem a um distanciamento menor entre os pólos opostos, naquelas regiões que dentro do país ou do continente, ainda que pertencendo à mesma conformação cultural das metrópoles latino-americanas, vivem em estado de submissão, obedecendo a valores alheios, sem poder aderir ao florescimento dos próprios (RAMA, 2001, p. 192).

Com base nessas inferências, Rama afirma que o trabalho dos transculturadores não só provam a singularidade latino-americana, mas também contribui para “a identidade e o resgate de vastas regiões e culturas” (RAMA, 2001, p. 200). Para o crítico, as obras transculturadoras possibilitam estabelecer o vínculo entre as diversas

partes do continente que “sempre foi desejoso de unidade” (RAMA, 2001, p. 200), contribuindo, de forma decisiva, para o conceito moderno de América Latina. Sob essa perspectiva, desejamos traçar contrapontos entre os romances Os rios profundos e Maíra para averiguar similitudes e diferenças entre as duas obras literárias, a fim de verificar como se inscreve o diálogo entre os dois escritores latinoamericanos, a partir do pensamento utópico de Ángel Rama. Nessa direção, nos reportamos ao romance Os rios profundos para demonstrarmos como os espaços inscritos, na urdidura ficcional de Arguedas, servem para engendrar a identidade cultural e social dos povos andinos, além de instigar a reflexão sobre os aspectos políticos e econômicos que dividem a região em classes: terratenentes (latifundiários) e colonos, apresentando, ainda, a presença dos pongos1, dos mestiços, das chicheras2, dentre outros estratos socioculturais que compõem a região do Andes Peruano; em seguida, retornaremos ao romance Maíra. Os Rios Profundos em Maíra: interfaces e contrapontos Para Maria Claudia Galera, os espaços nas obras transculturadoras não se limitam a um mero cenário, eles funcionam, sobretudo, como “a chave para a entrada em suas temáticas [...]” (GALERA, 2004, p. 117). Nesse sentido, “As efabulações se definem em função da definição da identidade das personagens associada a um espaço que é físico, mas também é simbólico [...]” (GALERA, 2004, p. 105). O romance Os rios profundos narra a trajetória do menino Ernesto, que viaja com seu pai, um advogado “[...] acostumado a viver em casas com grandes pátios, a conversar quéchua

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com dezenas de clientes índios e mestiços” (ARGUEDAS, 2005, p. 49), mas, que vive como um “[...] Judeu Errante...” (ARGUEDAS, 2005, p. 53), por não se estabelecer em lugar algum, nem na aldeia, nem na cidade. Durante a viagem dos dois, o pai de Ernesto “[...] falara de sua cidade natal, dos palácios e templos, e das praças, [...], cruzando o Peru dos Andes, de leste a oeste e de sul a norte” (ARGUEDAS, 2005, p. 12). Na passagem por Cusco, em direção ao vilarejo de Abancay, Ernesto estranha a imagem que vê, pois, o lugar era muito diferente daquele que seu pai descrevera, nas histórias narradas, durante a travessia: Era noite quando entramos em Cusco. Fiquei surpreso com a estação de trem e a avenida larga pela qual, lentamente, avançávamos. A luz elétrica era mais fraca que a de alguns lugarejos que eu conhecia. Grades de madeira ou de aço defendiam jardins e casas modernas. A Cusco de meu pai, aquela que ele me descrevera umas mil vezes, não podia ser essa (ARGUEDAS, 2005, p. 8).

A voz de Ernesto anuncia os indícios de modernização na cidade sagrada dos índios, a partir da presença da estação de trem, da luz elétrica, das grades de aço e das construções modernas. Ernesto tenta resgatar, nas paisagens, os vestígios da civilização passada, os símbolos do império inca, que continuam presentes em suas lembranças: “Eu esquadrinhava as ruas procurando muros incas” (ARGUEDAS, 2005, p. 8). Já diante de um muro inca, o garoto não se conforma só com a mera contemplação, mas busca estabelecer comunicação com as pedras, que se parecem vivas, pois, correspondem-lhe ao toque: Caminhei diante do muro, pedra após pedra. Afastava-me alguns passos,

contemplava-o e voltava a me aproximar. Toquei as pedras com as mãos; segui a linha ondulante, imprevisível, como a dos rios, em que se juntam os blocos da rocha. Na rua escura, no silêncio, o muro parecia vivo; sobre a palma de minhas mãos flamejava a juntura das pedras que eu tocara (ARGUEDAS, 2005, p. 11).

Mas não é apenas a cidade de Cusco que chama a atenção de Ernesto; as pessoas daquela região despertam-lhe, da mesma maneira, a curiosidade, como podemos notar nas descrições que ele faz do “Velho”, um fazendeiro parente de seu pai que, não obstante sua aparência rústica e descuidada, “Infundia respeito, apesar de sua aparência antiquada e suja. Os notáveis de Cusco cumprimentavam-no, circunspectos. Portava sempre uma bengala com empunhadura de ouro; seu chapéu, de aba estreita, sombreava-lhe um pouco a testa” (ARGUEDAS, 2005, p. 7). O narrador mostra que o “Velho”, ainda que, extremamente, religioso, pois “[...] se ajoelhava diante de todas as igrejas e capelas [...]” (ARGUEDAS, 2005, p. 7), era, também, imensamente, avarento, porquanto ele: “Armazena os frutos dos pomares, e deixa que apodreçam; acha que valem pouco para trazê-los para vender em Cusco ou para levá-los até Abancay, e que valem muito para entregá-los para os colonos” (ARGUEDAS, 2005, p. 7). Nessa abordagem, o narrador não só desmascara a hipocrisia religiosa do fazendeiro, como, ainda, acentua o comportamento materialista da elite latifundiária, a partir da descrição da personagem, assinalando o predomínio do pensamento retrógrado da classe dominante. Por outro lado, o narrador revela, do mesmo modo, o grau de superioridade de uma classe sobre outra, pois o patrão não permite que os frutos sejam distribuídos entre os índios, no caso, os colonos que habitavam suas terras, porque os enxergava como inferiores.

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O protagonista descreve, também, o pongo, um encarregado da fazenda, cujas “[...] calças, muito justas, só o abrigavam até os joelhos. Estava descalço; suas pernas nuas mostravam os músculos em feixes duros que brilhavam [...]. Sua figura parecia frágil; era espigado, não alto” (ARGUEDAS, 2005, p. 9). O menino revela, além disso, “a imagem humilhada do pongo, seus olhos fundos, [...]; a cabeça descoberta, em que os cabelos pareciam premeditadamente embaraçados, cobertos de sujeira. Não tem pai nem mãe, apenas sua sombra [...]” (ARGUEDAS, 2005, p. 27). O excerto mencionado denuncia que a situação do pongo advém de sua orfandade, tanto do sistema político quanto do econômico, que o coloca em uma posição desfavorável na sociedade, quase invisível, apenas “sombra”, possibilitando que ele permaneça em regime de escravidão, na fazenda. O pongo ainda é visto pelo menino como a própria imagem de Cristo, por causa de seu sofrimento incessante: O rosto do Crucificado era quase negro, desengonçado, como o do pongo. Durante as procissões, com seus braços estendidos, os ferimentos profundos, e os cabelos caídos para um lado, como uma nódoa preta, à luz da praça com a catedral, as montanhas, ou as ruas ondulantes atrás, avançaria aprofundando as aflições dos sofredores, mostrando-se como o que mais padece, incessantemente. (ARGUEDAS, 2005, p. 28)

colégio religioso, espaço onde os conflitos étnicoculturais e, de igual modo, os econômicos, são mais visíveis. Nesse viés, nota-se que o internato funciona, no romance, como um microcosmo daquela sociedade, à proporção que a relação entre os estudantes estabelece analogia com os grupos socioculturais que compõem aquele contexto. A propósito disso, selecionamos algumas personagens que possibilitam demonstrar essa relação na tessitura ficcional de Arguedas. Iniciamos com a figura feminina que compartilha o mesmo espaço do colégio, Marcelina, uma moça branca de cabelos claros que foi recolhida num povoado por um dos padres. Ela ajudava nos afazeres da cozinha e, apesar de sofrer problemas mentais, por isso a alcunha de opa, era vítima de abusos sexuais sucessivos, cometidos por alguns internos, durante as noites, no pátio do colégio, Mas o anoitecer, com o vento, despertava essa ave atroz que agitava sua asa no pátio interno. [...]. Alguns, uns poucos de nós, iam, seguindo os mais velhos. E voltavam envergonhados, como se tivessem se banhado em água contaminada; olhavam-nos com temor; um arrependimento irrefreável os afligia. (ARGUEDAS, 2005, p. 82)

Por meio das imagens focalizadas, Ernesto, aos poucos, delineia a estratificação social, a ambiguidade do sistema vigente, revelando, tanto quanto possível, a condição de subalternidade que se encontravam os índios e os colonos, camada social vulnerável, que forma a massa marginalizada na narrativa.

Contraditoriamente, a opressão feminina intensifica-se no educandário religioso à medida que não só os internos abusavam da jovem, mas o narrador insinua que ela sofria abusos, inclusive, do padre: “Foi vista saindo, certas manhãs, da alcova do padre que a trouxe ao Colégio” (ARGUEDAS, 2005, p. 72). Nessa vertente, o narrador filtra a condição miserável da mulher, que é oprimida pelos sistemas cultural e social, denunciando o pensamento patriarcal instalado nessa instituição.

Já em Abancay, Ernesto se fixa em um

No que se refere aos estudantes do

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internato, nota-se que eles estão subdivididos em grupos que assinalam a oposição entre as classes: em meninos maiores, Lleras, Añuco, Peluca, sendo estes os mais fortes; e menores, Ernesto, Palacios e Romero, que formam o grupo dos fracos. Há, também, a divisão étnica – com a presença de cholos3, índios, peruanos e chilenos – que é revelada durante os jogos e as lutas; momento em que o conflito apresenta-se acirrado, como testifica o relato do narrador: Os sermões patrióticos do padre diretor se realizavam na prática; divididos em bandos de alunos ‘peruanos’ e ‘chilenos’, nós lutávamos ali; com estilingues de borracha, atirávamos os frutos da figueirilha uns nos outros e depois nos lançávamos ao assalto, lutando aos socos e pontapés. ‘Os peruanos’ deviam ganhar sempre. Nesse bando se alistavam os preferidos dos campeões do Colégio, porque obedecíamos às ordens que eles davam e tínhamos que aceitar a classificação que faziam. (ARGUEDAS, 2005, p. 66. Grifos do autor)

Entre estes, destacamos Añuco, único interno do colégio que é descendente de terratenentes. Filho de um fazendeiro falido, que hipotecou sua fazenda por causa dos vícios – “O pai do Añuco recebeu a herança jovem e dedicou sua vida, como o avô, ao jogo” (ARGUEDAS, 2005, p. 67) – o menino foi acolhido pelos padres, aos nove anos de idade, pouco tempo antes da morte do ex-fazendeiro. Apesar da pobreza, o menino chileno era respeitado no colégio, não só pelas visitas dos fazendeiros que deixavam dinheiro para a sua matrícula e para as despesas com os livros, mas, também, pela força que o fazia temido pelos colegas: “Sua pele era delicada, de uma brancura desagradável, que lhe dava uma aparência doentia; mas os braços magros e duros se transformavam, na hora da luta, em ferozes armas de combate” (ARGUEDAS, 2005, p. 69).

Nessa linha, Añuco destaca-se por sua postura impositiva sobre os meninos mais fracos, no caso, os meninos menores que compartilham do mesmo espaço do colégio e sofrem com a violência do garoto, como demonstra este fragmento: “Se fosse um menino mais velho, insultava-o com os palavrões mais imundos, até ser atacado, para que Lleras interviesse; mas, se brigava com algum pequeno, batia nele encarniçadamente” (ARGUEDAS, 2005, p. 6768). Já Lleras, protetor de Añuco, é o estudante mais atrasado do colégio, que, entretanto, adquire destaque no internato não apenas pelo seu bom desempenho no time de futebol da escola, mas, especialmente, por sua violência, que instiga medo não somente nos colegas, mas também em todos do povoado: Ficava feliz quando alguém era derrubado numa luta em grupo, porque então se acomodava habilmente para pisotear o rosto do caído ou para darlhe pontapés curtos, como se tudo fosse casual, e só porque estava ofuscado pelo jogo. (ARGUEDAS, 2005, p. 70)

Apesar de rude, o garoto é protegido pelos padres, fato que assinala a hipocrisia do clero, porquanto a ordem eclesiástica é condescendente com a má conduta de Lleras, que além de não obter resultado satisfatório nos estudos, fere os princípios cristãos, uma vez que ele é violento com os colegas. Dessa maneira, a atitude dos clérigos em relação a Lleras revela que eles são desvirtuados dos valores espirituais propagados pela igreja. Além de Añuco e Lleras, há outros garotos que formam esse quadro no romance, como é o caso de Peluca, filho de um barbeiro. “Ele tinha dezenove ou vinte anos. Seu pescoço era largo, a nuca, forte como a de um touro; as mãos eram

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grandes. Tinha pernas musculosas; durante as férias trabalhava no campo” (ARGUEDAS, 2005, p. 79). Ao contrário dos dois colegas anteriormente citados, o rapaz, apesar de robusto, não apresenta um comportamento agressivo – exceto quando vê a opa – por isso nega-se a lutar boxe, contrariando a vontade do padre Cárpena. Em consequência disso, Peluca é punido, humilhado e agredido pelos próprios sacerdotes, conforme apresenta o recorte: Mas quando recebeu o primeiro soco na cara, Peluca se virou de costas, encolheuse e não quis continuar lutando. Foi insultado; os próprios padres lhe exigiram isso, envergonharam-no, com as palavras mais ferinas; [...]. O padre Cárpena, que era aficionado ao esporte, não conseguiu se conter, deulhe um pontapé e o derrubou de bruços. (ARGUEDAS, 2005, p. 79)

Nesse caso, Peluca sofre não apenas com a marginalização social, mas, em parte, cultural, porque não se adéqua às normas “rígidas” aplicadas no colégio, sendo ridicularizado pelo sistema dominante, por ser visto como um fraco: “Estava sempre com uma expressão lacrimosa, semelhante à das crianças que seguram o choro” (ARGUEDAS, 2005, p. 78). Destarte, o excerto demonstra a hipocrisia do clero, cuja atitude influencia não apenas o jogo, mas também a agressividade entre os estudantes. Por outro lado, o estudante Valle tem uma condição superior aos colegiais, por causa de sua erudição; é o único leitor do colégio. Contudo, é vigiado pelos padres, porque, além de emprestar livros aos internos, declarou-se ateu. Em virtude de sua fama, “Apesar de se parecer um jovem galante, com seus direitos já decretados, não era admitido na sociedade” (ARGUEDAS, 2005, p. 107), sendo nunca convidado para as festas. Quanto à sua condição, “Ele se conformava,

pois, de qualquer modo, tinha uma posição privilegiada entre os alunos; sabia que as colegiais murmuravam sobre ele, dedicavam-lhe atenção, contemplavam-no” (ARGUEDAS, 2005, p. 107). Refletindo sobre sua postura, ainda que o rapaz tivesse êxito nos estudos e fosse adequado, parcialmente, à cultura dominante, no plano religioso não era aculturado, pois se revelava insubmisso aos dogmas religiosos, como podemos notar em sua expressão: “‘Deus não existe’, dizia ao entrar na capela. ‘Meu Deus sou eu’” (ARGUEDAS, 2005, p. 106. Grifos do autor), o que condicionou sua exclusão do âmbito social. Além disso, Valle era o único aluno do internato que embora conseguisse compreender, de maneira satisfatória, o quéchua, ele não falava o dialeto índio, não por se recusar a falar em língua indígena, mas pela ausência de ensinamento quando criança, o que demonstra a rigidez cultural que lhe foi imposta. Palacios, outro interno, filho de um mestiço, é proveniente de uma aldeia da cordilheira. O menino encontra dificuldades nos estudos porque só fala quéchua, não entendendo bem o castelhano: Lia com dificuldade e não entendia bem o castelhano. Era o único aluno do Colégio que procedia de um ayllu de índios. Sua humildade se devia a sua origem e a sua rusticidade. Vários de nós quisemos ajudá-lo nos estudos, inutilmente; não conseguia compreender e permanecia alheio, irremediavelmente afastado do ambiente do Colégio, de tudo o que os professores explicavam e do conteúdo dos livros. Estava condenado à tortura do internato e das aulas. No entanto, seu pai insistia em mantê-lo no Colégio, com uma tenacidade invencível. (ARGUEDAS, 2005, p. 73-74)

Visto por esse prisma, o menino, inicialmente, desafia o sistema dominante –

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caracterizado na narrativa pelo espaço escolar – recusando-se a aprender a língua do colonizador, o espanhol, apesar dos esforços dos colegas e do trabalho dos professores. Contudo, fica implícito, através de uma conversa entre Ernesto e o padre diretor, que Palacios, ao deixar o internato, mesmo que não tivesse realizado os exames, tinha sido aprovado, pois, ao lado do sacerdote “[...] falou de história ao pai, de ciências naturais, de geometria. [...] parecia respeitável” (ARGUEDAS, 2005, p. 301). Tal fato revela que o menino cede à cultura do colonizador, porque ele apresenta, mesmo que somente de forma oral, vestígios de apropriação da cultura dominante, passando da condição de excluído, a partir de uma perspectiva hegemônica, à de incluído, como indica a expressão “respeitável”. Em consonância com o exposto, o colégio espelha as singularidades da região, não somente pela pluralidade de identidades que são inscritas no internato, mas também pelos conflitos, ambiguidades, e níveis de aculturação implicados a cada grupo representado. Percorrendo o vilarejo, Ernesto chega ao bairro de Huanupata, cujo nome significa “monte de lixo”. O bairro recebeu este nome porque, no passado, era o monturo dos ayllus, nome que se referia à comunidade de índios. Nesse espaço, o narrador expõe as pluralidades socioculturais do bairro que são representadas, principalmente, pela classe de trabalhadores:

fermentada, geralmente, feita de milho; marineras, bailes populares da região dos Andes e onde cantavam huaynos, canções e danças populares de origem inca. Ainda que as chicherías imprimiam alegria, o ambiente, por sua vez, é lúgubre, haja vista que, além de muitas moscas nas portas, “Tudo estava preto de fuligem e fumaça” (ARGUEDAS, 2005, p. 63). Atentando para as imagens, nota-se que elas se relacionam com o obscurantismo no qual as classes menos favorecidas se encontravam na cidade de Abancay, situação que é sugerida, até mesmo, na significação do nome do bairro mencionada acima. No enredo, esses estabelecimentos funcionam como o lugar de encontro de índios e cholos, habitantes das comunidades de Huaraz, Cajamarca, Huancavelica e das províncias de Collao, que se reúnem, nos fins de semana, para tocar harpa e violino, além de cantar e dançar, formando uma grande confraternização cultural, mais claramente perceptível durante a entoação do huayno quando os forasteiros e os harpistas formam um único coro musical. Nesse momento, a canção, mesmo completamente desconhecida, é aprendida e cantada por todos, incorporando um tom diferente, ainda que a temática permaneça semelhante, como apresenta o narrador:

Nesse bairro viviam as vendedoras da praça do mercado, os peões e carregadores que trabalhavam em ofícios citadinos, os guardas, os empregados das raras casas do comércio; lá estavam as hospedarias onde se alojavam os litigantes dos distritos, os arrieiros e os viajantes mestiços (ARGUEDAS, 2005, p. 62, Grifos nossos)

Então os olhos dos harpistas brilhavam de alegria; chamava o forasteiro e lhe pedia que cantasse em voz baixa. Uma só vez era suficiente. O violinista aprendia e tocava; a harpa acompanhava. Quase sempre o forasteiro corrigia várias vezes: ‘Não; não é assim! Não é desse jeito!’. E cantava em voz alta, tentando impor a verdadeira melodia. Era impossível. O tema era idêntico, mas os músicos transformavam o canto num huayno do Apurímac, de ritmo vivo e terno. (ARGUEDAS, 2005, p. 63-64)

Esse bairro era o único em que havia chicherías, bares onde se bebia chicha, bebida

Nesse trecho, observa-se o fenômeno da plasticidade cultural, à proporção que o huayno se

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transforma e é reelaborado a cada canção entoada pelos homens. Já na voz das chicheras, averíguase que o huayno transfigura a paisagem, como apresenta o excerto: Quando cantavam com suas vozes fininhas, pressentíamos outra paisagem; o ruído das folhas grandes, o brilho das cascatas que saltam entre arbustos e flores brancas de cactos, a chuva pesada e calma que pinga sobre os canaviais [...]. (ARGUEDAS, 2005, p. 64. Grifos nossos)

Assim, as canções entoadas pelas mestiças funcionam como elemento mágico, porquanto anulam a paisagem decadente, transportando-lhes para outro espaço e tempo, como se observa, com maior clareza, nas reminiscências de Ernesto: “Acompanhando em voz baixa a melodia das canções, recordava os campos e as pedras, as praças, os templos, os pequenos rios onde fui feliz” (ARGUEDAS, 2005, p. 68). Percebe-se que a canção o leva de volta à infância, afastando-o da solidão e do tempo presente: “[...] podia permanecer muitas horas ao lado do harpista ou na porta da rua das chicherías, escutando. Porque o vale quente, o ar ardente e as ruínas cobertas de mato dos outros bairros eram-me hostis” (ARGUEDAS, 2005, p. 66). Esse sentimento, misto de nostalgia e mágica, inscrito no romance de Arguedas, é assim analisado por Maria Claudia Galera: “Em LRP, [...], o mágico atua como coadjuvante ou mesmo como desencadeador de transformações, no enredo, cujo sentido é o de devolver às personagens, a condição de sujeito, que lhes havia sido usurpada” (GALERA, 2004, p. 142). Nos demais bairros de Abancay, a desigualdade social é manifesta na constituição de seus moradores: “As autoridades municipais, os comerciantes, alguns terratenentes e um par de famílias antigas empobrecidas [...]” (ARGUEDAS,

2005, p. 66). O abandono e a miséria, por sua vez, revelam-se na descrição da paisagem: “Muitos pomares estavam descuidados, abandonados; seus muros arruinados, em certos lugares quase até os alicerces” (ARGUEDAS, 2005, p. 66). Importa assinalar que a natureza recebe uma atenção especial, na narrativa, pois, assim como o ser humano que se adapta e sobrevive à nova estrutura da sociedade, apesar da hostilidade do ambiente, ela também se modifica e permanece viva. Tal característica verifica-se em inúmeras passagens no romance, mas elegemos duas, uma onde o protagonista descreve a árvore conhecida por verbena-cidrada e a outra na qual ele menciona o limoeiro-real. A passagem que faz referência à verbenacidrada relata que essa pequena árvore de perfume adocicado “fora plantada no centro do pátio, sobre a terra mais seca e endurecida. Tinha algumas flores nos galhos altos. Seu caule estava quase todo descascado, em sua parte reta, até onde começava a ramificarse” (ARGUEDAS, 2005, p. 24. Grifos nossos). Dessa maneira, mesmo que a árvore tivesse sido deslocada de seu espaço natural e plantada em um ambiente inóspito e apesar dos maus tratos, permanece viva, pois ainda produz flores e se ramifica, o que sugere indícios de continuidade. De igual modo, o fenômeno ocorre no limoeiroreal, pois embora o lugar em que está plantado não favoreça vida, o limoeiro produz frutos, como apresenta a descrição de Ernesto: As moscas ferviam, felizes, perseguindose, zumbindo sobre a cabeça dos transeuntes. Os charcos de água apodreciam com o calor, iam adquirindo cores diferentes, ainda que sempre densas. Mas sobre algumas cercas muito altas, bordejando Huanupata, penduravam seus galhos alguns pés de limoeiro-real; mostravam seus frutos maduros ou verdes, no alto [...]. O limão

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de Abancay, grande, de casca grossa e polpa comestível, fácil de descascar, contém um suco que misturado com a chancaca forma a iguaria mais delicada e poderosa do mundo. Arde e adoça. Alegra. (ARGUEDAS, 2005, p. 261-262)

Percebe-se que a natureza no romance, em certa medida, inspira esperança, pois ela não sucumbe às adversidades instaladas nesses espaços, mas floresce e se reproduz, apesar das oposições. No que tange à análise, Ángel Rama esclarece que os elementos naturais, o rio, a montanha, as plantas e os animais, na narrativa de Arguedas, cumprem uma tarefa conjunta com o homem: “Todos estes elementos não se apresentam separados da espécie humana, mas relacionados com ela, acompanhando-o de alguma maneira na edificação da cultura”4 (RAMA, 1982, p. 164). No que diz respeito às transformações sociais inscritas em Os rios profundos, percebemos que, no enredo, as chicheras prenunciam o movimento revolucionário socialista, no capítulo intitulado “O motim”, quando as mestiças se armam e, desafiando o poder instituído, invadem o pátio da salineira e retiram os sacos de sal, distribuindo-os entre as classes mais pobres: “Com facas, as chicheras encarregadas abriam os sacos e enchiam as mantas das mulheres. [...] dedicaram-se alegremente a preparar as cargas para os ‘colonos’ de Patimbamba” (ARGUEDAS, 2005, p. 128-129. Grifo do autor). Porém, a revolução é malograda, à medida que a classe menos favorecida é forçada a devolver o sal, conforme diz o narrador: “–Tiraram o sal dos pobres enquanto estalavam as chicotadas” (ARGUEDAS, 2005, p. 149). Tal desfecho é condicionado porque as mestiças não receberam apoio das demais classes, mesmo a dos colonos e a dos índios, que também se encontravam

subjugadas aos sistemas, político e religioso. O clero, aliado aos fazendeiros, atua no controle da camada subalterna que é, na maioria, convertida ao catolicismo. Insistindo na resignação dos fiéis, os padres impossibilitam a insurgência desses grupos contra as elites, fato que podemos examinar através da narração de Antero: Nas fazendas grandes eles são amarrados nos pisonayes dos pátios e pendurados num galho pelas mãos, e depois surrados. [...]. Choram com suas mulheres e crianças. Choram não como se os castigassem, mas como se fossem órfãos. É triste. [...]. Todos os anos os padres franciscanos vão pregar nessas fazendas. Se você visse, Ernesto! Falam em quéchua, aliviam os índios; fazem com que eles cantem hinos tristes. Os colonos andam de joelhos na capela das fazendas; gemendo, gemendo, põem a boca no chão e choram dia e noite. E quando os padrecitos vão embora, se você visse! Os índios vão atrás deles. (ARGUEDAS, 2005, p. 197-198)

O romance retrata a opressão pelas classes governantes que tem sido legitimada pela Igreja através dos séculos e, nessa óptica, denuncia a ordem sacerdotal conivente com as violências física e psicológica sofridas pelas camadas sociais exploradas. Embora a revolução empreendida pelas chicheras não conseguisse promover a reação dos colonos, dos mestiços e a dos índios para desencadear a luta contra o sistema opressor, um acontecimento de ordem natural – a peste – muda o comportamento dessas classes, como podemos examinar a partir do diálogo de Ernesto e um retirante: – Não está sabendo, menino? Ontem à noite, um guarda morreu. Cortou uma oroya com seu sabre, dizem que a golpes, quando os colonos estavam

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passando. Já não faltavam muitos. Oito, dizem, caíram no Pachachaca; o guarda também. Quiseram encurralar os pobres colonos na beira do rio; não conseguiram. Desceram os índios desta banda, e, como formigas, apertaram os guardas. Coitadinhos! Eram apenas três. Não dispararam, eles também não fizeram nada aos guardas. Os ‘civis’ já chegaram, agora. Estão contando. Dizem que todos os guardas vão agora com metralhadora para cortar o caminho aos colonos. Mentira, menino! Não vão conseguir. Eles vão subir todos os morros. (ARGUEDAS, 2005, p. 305. Grifos do autor)

Dessa forma, a epidemia instalada na região, condiciona a classe marginalizada a se unir para combater a peste; o que implica a saída da passividade em que outrora se encontrava e, consequentemente, a movimentação em direção à resolução de seus problemas. Nessa abordagem, aponta Galera que, há, no texto de Arguedas, uma sorte de gradação progressiva que parte do motim das chicheras, que representa um levante parcial, uma vez que inclui apenas a parcela mestiça da sociedade e passa, na sequência, ao triunfo do levante popular que reúne a diversidade de estratos sociais oprimidos, os mestiços, mas também os índios colonos, parcela mais oprimida e numerosa desta sociedade. (GALERA, 2004, p. 138)

Salientamos que a peste simboliza, no romance de Arguedas, o despotismo e os consequentes desequilíbrios econômicos e sociais alastrados na região, advindos da barbárie política das elites oligárquicas, por ora, apoiadas pela igreja, como sugere o narrador, mas a peste é maldição. Quem manda a peste? É maldição! ‘Ingreja, ingreja; missa, padrecito!’, estão gritando, dizem, os colonos. Não há mais salvação, pois, missa grande dizem que querem, do

padre grande de Abancay. Depois irão sentar, tranqüilos; morrerão tiritando, tranqüilos. [...]. Talvez ouvindo missa os índios se salvem. [...]. Virão com as mulheres. Vão se salvar! Mas deixarão seus piolhos na praça, na igreja, na rua, diante das portas. Dali os piolhos vão se levantar, como maldição da maldição. (ARGUEDAS, 2005, p. 306. Grifos do autor)

Nesses termos, a igreja apresenta um papel ambíguo: tanto propicia a miséria, com a manutenção das oligarquias políticas, por isso a maldição; como condiciona a procura por uma sociedade mais justa, através da rebelião, porquanto esses mesmos grupos enxergam na “missa grande”, ou seja, na união de todas as classes, a solução para combater a peste. Dessa maneira, “A peste que ataca aos colonos adquire o simbolismo de um Poder contra o qual lutam os deserdados, do mesmo modo que Ernesto e os menores têm lutado contra o poder ‘dos malditos’”5 (RAMA, 1982, p. 304. Grifos do autor). A união das diferentes classes para destruir a epidemia, em certo sentido, sugere a reorganização social, por conseguinte, a busca pelo estabelecimento da ordem, uma vez que tal acontecimento prediz o fim das estruturas oligárquicas tradicionais e a consequente recriação da sociedade. Nessa inferência, a morte de Lleras demarca o início do aniquilamento dos “malditos”, de Lleras, sabia que seus ossos, agora transformados em matéria fétida, e sua carne teriam sido encurralados pela água do grande rio (‘Deus que fala’ é seu nome), numa dessas margens barrentas onde minhocas endemoniadas, coloridas, pululariam devorando-o. (ARGUEDAS, 2005, p. 258. Grifos do autor)

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A propósito disso, verificamos que a chegada da febre, no internato, fez com que a morte da opa desencadeasse a loucura de Peluca, de quem a moça havia, também, sido vítima – “O Peluca foi expulso do internato, porque uivava como um cão no pátio da terra, junto dos banheiros” – (ARGUEDAS, 2005, p. 293); a morte do porteiro, que havia se aproveitado da opa, já doente de febre tifo – “É Deus! Dormi com uma doente. Ela não queria. Ela não queria, menino!” – (ARGUEDAS, 2005, p. 292); e a morte da cozinheira, possivelmente, porque não evitou o sofrimento da opa, porquanto acreditava que essa mulher “Veio para sofrer”. (ARGUEDAS, 2005, p. 255). Por sua vez, Ernesto, mesmo tendo presenciado a morte de Marcelina –“A opa empalideceu por completo. Seus traços se realçaram. Pedi-lhe perdão em nome de todos os alunos” – (ARGUEDAS, 2005, p. 285) é salvo – “Eu não estou com a febre! Vou escapar. O padre me salvou. Tem sujeira, como os outros, em sua alma, mas me defendeu’” (ARGUEDAS, 2005, p. 292). Salientamos que a morte da opa sugere a ideia de liberdade, como podemos verificar na voz do narrador: “Agora poderás iluminar sua mente, fazer dela um anjo, e fazê-la cantar em tua glória, Grande Senhor...!” (ARGUEDAS, 2005, p. 284). Por outro lado, a morte dos demais denota a ideia de castigo, necessário para a expurgação da sociedade arruinada pela corrupção moral, espiritual e social. O autor se vale de um telegrama para mudar o eixo do enredo. No telegrama, o pai de Ernesto recomenda ao padre diretor a deixar que o menino prossiga para Huayhuay, rumo à fazenda de seu tio, Dom Manuel Jesús, o “Velho”. Inicialmente, o menino não quer ir para a fazenda, porque se lembrara de que o homem era severo e mesquinho. Contudo, quando o

pároco falou-lhe das missões de franciscanos que o seu tio levava às fazendas, Ernesto muda de decisão, prontificando-se, imediatamente, a seguir para o referido destino, conforme apresenta o diálogo estabelecido entre ele e o padre: “– Missões de franciscanos...? Então tem muitos colonos, padre? – Quinhentos em Huayhuay, cento e cinquenta em Parhuasi, em Sijllabamba... – Eu vou, padre! – disse-lhe. – Solte-me agora mesmo!” (ARGUEDAS, 2005, p. 298). Nessa linha, as indagações do menino, do mesmo modo, sua mudança de comportamento, levam-nos a inferir que Ernesto conservara na memória o relato de Antero, a respeito dos castigos aplicados aos índios e aos colonos, nas fazendas dos latifundiários, como evidenciamos anteriormente. Antes da viagem de Ernesto, o padre o adverte a respeito das normas da fazenda de Dom Manuel Jesús, para onde o menino seguirá: Dom Manuel Jesús é severo e magnânimo; é um grande cristão. Em sua fazenda os índios não se embebedam, não tocam aquelas flautas e tambores endemoninhados; rezam ao amanhecer e na hora do Angelus; depois se deitam no casario. Reina a paz e o silêncio de Deus em suas fazendas. (ARGUEDAS, 2005, p. 298)

Através da descrição do narrador, fica evidente que a fazenda do “Velho” reproduz o sistema rígido e hegemônico do colonizador. Nessa abordagem, “o silêncio de Deus” não instiga a ideia de paz, insinua que aquelas classes não eram ouvidas, portanto, eram silenciadas pelo poder instituído, através do controle não só físico, mas também sociocultural. Dessa maneira, “Trabalho, silêncio, devoção” (ARGUEDAS, 2005, p. 298) eram as regras do fazendeiro. Sob tal ponto de vista, Ernesto é salvo da epidemia para cumprir com a missão de libertar as classes oprimidas pela tirania política e econômica

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de Dom Manuel Jesús. Concernente à análise, “Ernesto irá agora ocupar o posto de animador da rebeldia ante os Colonos e, portanto, iniciará um combate que quase parece cósmico, com o Velho, com o Poder que subjuga, tortura e mata6” (RAMA, 1982, p. 304-305). No desenlace do romance, enquanto Ernesto prepara-se para deixar Abancay, ele imagina o futuro dos colonos e dos índios que seguem em procissão com o padre Linares, rumo ao bairro de Huanupata, com o objetivo de extinguirem a peste: Iam chegar a Huanupata, e lá, juntos, cantariam ou lançariam um grito final de harahui, dirigindo a mundos e matérias desconhecidas que precipitam a reprodução dos piolhos, o movimento miúdo, e tão lento, da morte. Talvez o grito alcançasse a mãe da febre e a penetrasse, fazendo-a estourar, transformando-a em pó inofensivo que se esfumasse atrás das árvores. Talvez. (ARGUEDAS, 2005, p. 314. Grifos do autor)

Aqui, vemos, pela idealização de Ernesto, que os índios, através de sua canção, talvez alcancem os lugares mais acometidos pela febre e consigam destruir as origens da peste, promovendo, destarte, a restauração da justiça e da liberdade, na região. Todavia, é importante frisarmos que o narrador não resolve totalmente a questão, à medida que não fica claro o resultado do confronto, no desfecho da narrativa, aspecto que é caracterizado através do tempo verbal, no caso, o uso do futuro do pretérito em “cantariam”, “lançariam”, e do advérbio “talvez”, que constituem, juntos, a linha da possibilidade. A passagem evoca, também, a utopia de integração cultural, à proporção que a voz dos índios se une à voz de outras classes, de mesma constituição étnico-cultural, para combaterem, juntas, a política imperialista vigente, nesses espaços, e

promoverem a revolução social. Por sua vez, em Maíra, no capítulo intitulado “Armagedom”, a bomba do fim do mundo, que a princípio contém a ideia de destruição, não vem para finalizar o sistema de poder implantado, mas para assegurá-lo, como prenuncia o beato Xisto: [...] a bomba-do-fim-do-mundo, que apagará o sol e as estrelas. [...] destapará o abismo dos infernos e se espalhará sobre o mundo a grande nuvem de fumaça. De dentro dela sairá a praga de gafanhotos sugadores de suco de gente. Será o fim de toda a vida. O que restou de vivente não escapará da asfixia nos gases e dos gafanhotos-robôs. Mas não pensem que isto seja o fecho do fim. Não, meus irmãos, isto é só o começo da Nova Era, a porta da Nova Jerusalém das almas viventes, que será inaugurada com grandes festas pelas almas elegidas que lá viverão eternamente, por mil anos, o primeiro ano do futuro milênio. (RIBEIRO, 2007, p. 320-321. Grifos nossos)

As imagens enumeradas, na citação acima, sugerem a invasão estrangeira e a consequente consolidação da política imperialista, não só nacional, mas também mundial, em que sobreviverão, apenas, os grupos que se adequarem ao novo sistema político e econômico e, do mesmo modo, às novas tecnologias. Nessa reflexão, enquanto a peste é vencida em Os rios profundos, com a derrocada do poder político e econômico, no romance Maíra, a bomba do fim do mundo gira em torno da ascensão desses sistemas. Nessa mesma abordagem, podemos averiguar que, no romance darcyano, a Missão católica não sucumbe, mesmo com a morte dos velhos sacerdotes: O convento está se renovando, irmã. A Missão está ressurgindo. Deus nos tirou os obreiros mais velhinhos. Deus

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os tenha: padre Vecchio, padre Aquino, irmã Canuta, irmã Ignez, frei Ciano. Mas Deus nos dá alegria de ver que estamos mais jovens agora (RIBEIRO, 2007, p. 375)

Com efeito, em Maíra, a morte dos sacerdotes não determina a ruína das velhas estruturas políticas, ao contrário, estas são renovadas com a chegada de padres e freiras jovens para constituírem o restabelecimento do poder, que é reforçado pela nova aliança do clero com a elite política: Além de terras para a Missão Nova, teremos o privilégio de sermos encarregados, oficialmente pelo governo, da pacificação dos xaepēs. Nós e só nós teremos o honroso encargo e a dura tarefa de chamá-los ao convívio dos brasileiros e de conduzi-los ao coração da cristandade. Só uma coisa me dá tristeza, padre Ludgero. [...]. Temos recebido muitas visitas ultimamente: o senador vem sempre, com ele muitos políticos e empresários que temos de hospedar na Missão. Não se poderia dar um jeito nesse rancho horrível das velhas, ali na praia? Não se podia mandá-las de volta para a aldeia? Este é um problema que exige muita paciência, muita sabedoria, irmã Petrina. [...]. Mais tarde vamos encontrar um quarto discreto para elas, aqui dentro. Então, poderemos tirar aquela rancharia da nossa praia que também a mim me envergonha muito. (RIBEIRO, 2007, p. 375)

Em face disso, o clero, no romance de Darcy Ribeiro, continua a serviço da elite política, favorecendo a preservação do controle das classes menos favorecidas, com o projeto de pacificação dos índios xaepēs. O excerto deixa transparecer, ainda, a partir do diálogo da irmã Petrina com o padre Ludgero, que a Missão não está interessada em resolver o problema social do índio, mas com a missão civilizadora do governo, questão que é perceptível no desejo dos

dois eclesiásticos de se livrarem das índias que já estão velhas e, em parte, atrapalham os interesses deles. Essa questão remete à outra: na expressão “nossa praia”, usada pelo padre, subjaz a ideia de apropriação do espaço que era dos índios pelo homem branco. Refletindo sobre essa questão em Maíra, consideramos que a passagem reafirma a ascendência do imperialismo, pois, de acordo com Edward Said, em Cultura e imperialismo, O imperialismo, afinal, é um gesto de violência geográfica por meio do qual praticamente todo o espaço do mundo é explorado, mapeado e, por fim, submetido a controle. Para o nativo, a história de servidão colonial é inaugurada pela perda do lugar para o estrangeiro. (SAID, 2011, p. 351)

Atentando para esse fato, em Os rios profundos acontece o reverso, tendo em vista que os índios invadem o espaço do homem branco, movimentando-se para as cidades. Nesse particular, a passagem correlaciona-se com a reconquista do índio de sua terra, libertando-a da política imperialista. No que tange à aculturação nos dois romances, observamos que Arguedas resolve o conflito a partir da união das diferentes classes, que comungam de objetivos semelhantes para desestruturar as elites oligárquicas e, por conseguinte, conquistarem o poder; ao passo que, em Maíra, Darcy Ribeiro resolve o conflito, parcialmente, à proporção que, embora a união das diferentes classes para a transformação social não aconteça, mediante os interesses desencontrados, há uma possível integração do índio na sociedade, através de sua transculturação. Sob esse ponto de vista, o aspecto que singulariza os dois romances é o tipo de conflito implicado em cada obra: em Os rios profundos, observa-se que o conflito se estabelece a partir do pensamento social revolucionário versus o

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pensamento oligárquico enquanto que, em Maíra, o conflito se constitui a partir da modernização versus o tradicionalismo político. Importa assinalar que, em Maíra, no plano da forma, o etnólogo-romancista promove a harmonização dos discursos opostos, na superfície do texto; entretanto, no nível dos assuntos, salientamos que o narrador não estabelece a integração harmônica entre as diferentes culturas, porque mesmo que os índios mairuns estejam em processo de integração nacional, os índios epexãs são expulsos de suas terras pelo senador, isolam-se no interior da floresta, permanecendo excluídos da sociedade brasileira. De igual modo, a índia Tereza, que vai ser babá na cidade, ao ser vista beijando o pezinho do neném, é espancada pela mulher do deputado e devolvida à Missão: “Só que esposa deputado vendo índia beijando pezinho do neném dela teve medo reversão antigos costumes gentios falada antropofagia” (RIBEIRO, 2007, p. 373). Como se observa, não ocorre, no romance darcyano, a “integração feliz do índio”, no plano cultural, como o fez Arguedas, porque, em parte, o indígena continua sendo visto como selvagem; nem no social, porque a intervenção política favoreceu apenas os interesses das classes dominantes, a dos políticos e empresários, fazendo com que o índio permanecesse marginalizado. Essas características distanciam o romance Maíra da utopia de exaltação literária, almejado por Rama, uma vez que Darcy Ribeiro, em sua urdidura ficcional, não promove um sistema crítico de valorização literária, capaz de manter a utopia de um processo de modernização compartilhado e construído de forma coletiva, livre da barbárie política das elites dirigentes. É importante frisarmos que o narrador não resolve o destino da aldeia Mairum, na

narrativa, à medida que Inimá, responsável em gerar o futuro aroe, não concretiza esse evento. Porém, o narrador não fecha essa possibilidade, à proporção que, no desfecho do romance, há a sugestão de um convite de Jaguar a Inimá para “sururucação”, o que autoriza-nos depreender que, em certo sentido, subjaz uma perspectiva futura da tribo. Conclusão Em certa medida, entendemos que as duas obras, Maíra, de Darcy Ribeiro e Os rios profundos, de José María Arguedas, mantêm pontos de contato ocasionais, à proporção que os dois etnólogos inscrevem em seus romances a história a partir do ponto de vista do povo colonizado. Sob esse ângulo, ambos recuperam a cultura dos povos autóctones, revigoram as peculiaridades regionais e, do mesmo modo, revelam a estratificação social, a luta de classes, a presença das oligarquias políticas, assim como as ambivalências e contradições que compõem o mapa da América Latina. Do mesmo modo, ambos problematizam, em seus romances, não só a questão do índio, mas também provocam a reflexão sobre os povos de origem mestiça. Nessa conjectura, se não é possível, em Maíra, a promoção da utopia de um sistema modernizado e compartilhado, como o quis Ángel Rama, inferimos que o ficcionista brasileiro, em sua narrativa, tenciona, ao menos, a utopia de unidade harmônica latino-americana, tendo em vista o sistema literário latino-americano, proposto pelo crítico uruguaio, engendrando o estreitamento dessas comarcas culturais, na produção literária, a partir das semelhanças históricas e políticas, as quais implicam na reintegração cultural da América Latina.

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Notas: 1

Índio que serve gratuitamente, em turnos, na casa do patrão. Cf. ARGUEDAS, 2005.

2

Mestiças que trabalham nas chicherías e usam mantas de Castela e chapéus de palha branqueados com fitas largas de cores vivas. Cf. ARGUEDAS, 2005.

3

Refere-se aos mestiços de sangue espanhol e ameríndio. Cf. ARGUEDAS, 2005.

4

“Todos estos elementos no se presentan escindidos de la especie humana, sino relacionados con ella, acompañándolo de alguna manera en la edificación de la cultura”. (Tradução nossa).

5

“La peste que ataca a los colonos adquiere el simbolismo de um Poder contra el cual luchan los desheredados, del mismo modo que Ernesto y los menores han luchado contra el poder de ‘los malditos’”.(Tradução nossa).

6

“Ernesto irá ahora a ocupar el puesto de animador de la rebeldia ante los Colonos y, por lo tanto, irá a entablar un combate que casi parece cósmico, con el Viejo, con el Poder que sojuzga, tortura y mata”. (Tradução nossa).

RIBEIRO, Darcy. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. 21 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Referências Bibliográficas: ARGUEDAS, José María. Os rios profundos. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GALERA, Maria Claudia. Américas Literárias e transculturação. São Paulo: FFLCH, 2004. (Tese). RAMA, Ángel. Literatura e Cultura na América Latina. AGUIAR, Flávio; GUARDINI, Sandra (Orgs.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. México: Siglo Veintiuno editores, 1982.

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O Sol é para Todos: uma reflexão a partir do III Plano Nacional de Direitos Humanos Larissa Rodrigues Vacari de Arruda

Bacharel em Sociologia e Política pela FESPSP. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na UFSCAR. Bolsista da Fapesp. Email: larissa.vaccari@hotmail.com. Artigo apresentado originalmente na ACIEPE (Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão) Direitos Humanos pelo Cinema (2011), realizada na UFSCar pelo Departamento de Sociologia.

Resumo Os Direitos Humanos são uma tentativa de impedir que diversos abusos, recorrentes historicamente, ocorram ferindo a dignidade da pessoa humana. Com objetivo de explicitar a questão foi acionado o filme O Sol é Para Todos, dirigido por Robert Mulligan. O presente artigo analisa os Direitos Humanos através do filme o Sol é Para Todos, essa produção cinematográfica baseia-se no romance To Kill a Mockingbird, publicado em 1960 pela escritora Happer Lee. O Sol é Para Todos se passa no início do século XX e narra o julgamento de um homem negro que na tentativa de ajudar uma jovem branca foi flagrado

no momento em que essa tentava lhe beijar, Tom Robinson, o homem negro em questão, é então, acusado de estupro. Mesmo sendo deficiente em um braço, o que lhe impossibilitaria de cometer o crime, é condenado. Após tentativa de assassinato pelos homens brancos da cidade, Tom Robinson é morto quando tentou fugir. A simples ideia da união entre branco e negro era inadmissível. O presente trabalho objetiva analisar o filme no que se refere à temática dos Direitos Humanos, para isso será utilizado o III Plano Nacional de Direitos Humanos elaborado em dezembro de 2009, durante o governo Lula.

Palavras -Chave Direitos Humanos, Negros, Brancos, III Plano Nacional de Direitos Humanos.

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O Sol é para Todos: uma reflexão a partir do III Plano Nacional de Direitos Humanos Larissa Rodrigues Vacari de Arruda

“O sol é para todos, mas os homens não nascem iguais.” Happer Lee, To Kill a Mockingbird. “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos” Artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948. Introdução O Sol é para Todos é uma excelente produção a respeito da temática dos Direitos Humanos. O filme de 1962 tratou do julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado de ter estuprado uma mulher branca. Essa alusão a um negro estuprando uma mulher branca incutiu uma terrível ideia na pequena cidade Maycomb, no Alabama: a ousadia de um negro cogitar possuir uma branca, já que estas estavam restritas aos homens brancos. O filme originalmente baseia-se no romance To Kill a Mockingbird, publicado em 1960 pela escritora Happer Lee. To Kill a Mockingbird recebeu em 1961 o prêmio Pulitzer, e vendeu mais de 30 milhões de cópias, traduzido em 40 idiomas. Em 1962 foi lançado o filme O Sol é Para Todos, dirigido por Robert Mulligan e teve grande sucesso. Gregory Peck, ator que interpreta Atticus - um dos personagens centrais da história - ganhou o Oscar, tendo o filme recebido várias indicações ao prêmio. A história é narrada pela jovem Scout numa pequena cidade do Sul conservador dos Estados Unidos. Sergio Vaz (2010) considera um ambiente muito semelhante ao vivido pela escritora, embora ela negue que o livro seja autobiográfico. Happer Lee nasceu em

Monroeville, no Alabama, em 2000 essa cidade possuía pouco mais de 6 mil habitantes. O pai da escritora era advogado e membro da Assembleia Legislativa, assim como o de Scout. Na trama Scout tem um amigo chamado Dill, que foi inspirado no amigo de infância de Happer Lee, Trumam Capote. A jovem sulista também foi uma leitora precoce como Scout. Diante da reflexão sobre os Direitos Humanos abordado pelo filme, esse trabalho pretende analisá-lo no que se refere à temática dos Direitos Humanos. Para tal será utilizado o III Plano Nacional de Direitos Humanos elaborado em dezembro de 2009, durante o governo Lula. Para isso a próxima seção tem como foco O Sol é para Todos. Será tratada a história do homem que perdeu a vida pela inadmissível ideia de um negro ter um relacionamento com uma branca. Na seção a seguir serão feitas breves considerações a respeito dos Direitos Humanos, o porquê da sua existência e como surgiram. Em seguida será analisado o filme sob a perspectiva do Plano de Direitos Humanos vigente no país. O Sol é Para Todos A temática da injustiça imposta aos negros abordada na obra é lançada em um contexto de intensa efervescência cultural, quando estavam ocorrendo inúmeros protestos em que se exigiam os direitos dos segmentos marginalizados pela sociedade. Desde os anos 50 já havia nos Estados Unidos reivindicações pelos direitos civis dos negros. Em fevereiro de 1960 aconteceram movimentações por parte da população negra contra discriminação racial, tais protestos espalharam-se pelo sul do país provocando conflitos e prisões em várias cidades. Em 1963 ocorreu a Marcha pelos Direitos Civis, a qual Martin Luter King participou. Em 1964

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o chamado Verão da Liberdade se dá quando o movimento de estudantes universitários do norte vão para o sul lutar por direitos políticos. Nesse contexto, livro e filme, fazem parte do processo de luta pelos direitos dos negros. O Sol é para Todos gira em torno do julgamento de Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar a jovem branca, Mayella. A história é narrada pela garotinha Scout e desenrola-se no início do século XX na cidade fictícia Maycomb no interior do Alabama, sul dos Estados Unidos. Atticus Finch, pai de Scout, enfrenta a missão de defender Tom Robinson da acusação, mesmo sofrendo retaliações diversas, inclusive contra seus filhos. Tom Robinson tinha uma posição econômica melhor do que a família de Mayella. Ele tinha pena da jovem, pois seu pai era alcoólatra, e a ajudava nos trabalhos de sua casa, em uma dessas vezes Mayella tentou beijá-lo, Tom Robinson assustado saiu correndo, e assim foi acusado de estupro pelo pai de Mayella. O filme mostra a determinação dos habitantes da cidade em fazer justiça com as próprias mãos. Os homens brancos armados tentaram assassinar o réu antes do veredito final, foram interrompidos por Scout e seu irmão Jem, que seguiram o pai e dialogaram com o grupo de homens brancos, fazendo com que eles desistissem do intento. Tom Robinson foi julgado por um júri de brancos. Durante o julgamento Mayella testemunhou de forma confusa e contraditória. Tom Robinson tinha paralisia em um dos braços, ou seja, era impossível devido a sua condição física deixar a marca de agressão que se encontrava no rosto da jovem, muito menos dominá-la com apenas um braço para assim cometer o crime. Mesmo diante desse fato foi condenado.

Interessante notar a relação entre a comunidade negra e o advogado Atticus. O ilustre advogado branco defensor dos negros foi tratado por estes com respeito e admiração, assim como seus filhos também foram. As crianças assistiram ao julgamento na parte circunscrita aos negros, já que o tribunal tinha nítidas divisões espaciais para brancos e negros. O resultado do julgamento seguiu-se ao fim trágico de Tom Robinson. Condenado injustamente, Robinson tentou fugir e foi assassinado pelos policiais. Direitos Humanos Diante de frequentes atos bárbaros cometidos entre os homens, tais como escravidão, assassinatos, tortura, etc., foi pensada uma forma de assegurar a dignidade da pessoa humana. Não sendo somente uma garantia contra atrocidades, mas um direito merecido por todo ser humano. A condição única para usufruir dos Direitos Humanos é estar vivo, eles são estendidos a todos, e podem ser vistos como um guia de conduta para todos. Assim, todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Ninguém será mantido escravo, submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel. Ninguém será arbitrariamente preso, degradado, exilado. É latente o abismo existente entre o que está na lei e a prática, mesmo que tais direitos tenham sido pensados para evitar situações degradantes aos seres humanos, ainda são freqüentes os casos de assassinatos, tortura, estupro, tráfico de pessoas, etc. Os Direitos Humanos foram pensados durante a Revolução Francesa, a partir daí os direitos do homem foram incluídos nas cartas políticas. Porém, esse direito restringia-se apenas

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aos seres do sexo masculino. Olympe Gouges escreve a Carta de Direitos da Mulher e foi guilhotinada, mesmo que as mulheres tenham participado ativamente da Revolução. Apesar da participação das mulheres na Revolução, sua organização em clubes e sua reivindicação de igualdade — particularmente manifesta na Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã de Olympe de Gouges (1791), as mulheres são excluídas da cidadania política, os clubes femininos são fechados e Olympe é guilhotinada (Thébaud, 2005, p.4).

Em 1948 foi divulgada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no contexto do pós Segunda Guerra Mundial, quando 6 milhões de judeus foram exterminados. Preservava o direito à vida, à liberdade, à educação, ao trabalho, à organização política e social. Os Direitos Humanos englobam os Direitos Civis, Políticos, Sociais, e também os Direitos Difusos, que tratam de questões tais como: os animais, natureza e os embriões, por exemplo, direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente protegido (RABENHORST, 1996).

Direitos Sociais referem-se à participação na riqueza coletiva, o direito à educação, à saúde, à aposentadoria. Carvalho (2009) aponta que a ordem dos direitos de Marshall, sobre o caso da Inglaterra, ocorreu aqui de forma inversa. No Brasil primeiro vieram os Direitos Sociais, depois os Direitos Políticos e os Direitos Civis, com grande ênfase nos Direitos Sociais. Enquanto que na Inglaterra primeiro instituiu-se os Direitos Civis, os Políticos, e por último, os Direitos Sociais. Embora os esses direitos fossem previstos pela Constituição de 1891, foi a partir de 1930 que Vargas institucionalizou as reivindicações que ocorriam em torno da efetivação de direitos. Os Direitos Sociais são, assim, institucionalizados antes dos Direitos Civis! Essa inversão dá um caráter de privilégio à política social, não se tem conotação de direito. O direito assume um caráter de dádiva, de favor que necessita de uma contraprestação.

Segundo a clássica definição de Marshall (1967) a cidadania é dividida em: Direitos Civis, Políticos e Sociais. Os direitos se consolidaram na Inglaterra na seguinte ordem: primeiro os Direitos Civis no século XVIII, depois os Direitos Políticos no século XIX, e em seguida os Sociais no século XX, no contexto pós- Segunda Guerra Mundial.

Soma-se a isso também o fato dos Direitos Sociais abrangerem as pessoas que trabalham com carteira assinada, excluindo os trabalhadores rurais. A cidadania brasileira vincula-se ao trabalho legal, portanto não são todos que tem direito a participar da riqueza coletiva, só os que têm carteira assinada. Carvalho (2009, p.126) analisando o contexto brasileiro afirma que a era Vargas foi um avanço se for considerado que “trouxe as massas para a política e um atraso porque o cidadão estava em posição de dependência perante líderes”.

Os direitos Civis fundam a própria ordem burguesa e se assentam na liberdade individual. Por exemplo, no direito de ir e vir, direito à propriedade privada, direito à vida, etc. Já os direitos Políticos são aqueles que concernem ao direito de votar e ser votado. Por último, os

Quanto aos Direitos Políticos, eles são efetivados de fato a partir dos anos de 1946 a 1964 em diante, tendo ápice na Democratização dos anos 1985 a 1990. Em 1946 o presidente da República volta a ser eleito de forma direta, a despeito de na República Velha (1889-1930)

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existirem fraudes e manipulação de votos, e na Era Vargas existir um período em que não houve eleições durante o Estado Novo (19371945). Na Ditadura Militar algumas cidades não tiveram eleições, eram eleitos de forma indireta os presidentes da República e governadores. Carvalho (2009) ressalta que os Direitos Civis são deficientes até hoje, principalmente no que diz respeito ao direito à vida, à segurança e ao direito à justiça. Novamente quero destacar a contradição entre o que está na lei e o que realmente acontece. Essa contradição tão abordada por diversos autores, mas ainda não resolvida no mundo concreto. Carvalho (2009) aborda ao longo de sua obra o difícil caminho da construção da cidadania no Brasil, um caminho ainda em construção devido à fraca noção de igualdade de direitos que historicamente existe no país. Um dos principais fatores que dificultam a construção da cidadania no Brasil seria o embaralhamento entre o público e o privado, ou seja, uma fraca noção de ordem pública. A ordem pública ainda está afastada de alguns segmentos sociais, de modo que toda a vida desses segmentos é mediada pela ordem privada, tornase difícil participar do processo estando aquém dele. Também existe uma fraca noção de direitos igualitários e mesmo que todos soubessem das leis, elas não estão no cotidiano das instituições. Ainda existem pessoas que possuem mais direitos que outras, a igualdade de direitos não é inteiramente vivenciada. Portanto, no Brasil e no mundo, há muito a ser desenvolvido no que diz respeito aos direitos humanos, pois eles devem ser um referencial de luta para que a vida humana seja respeitada. Todos iguais, mas uns mais iguais que os outros

A afirmação de Happer Lee “O sol é para todos, mas os homens não nascem iguais”, se encarada perante a crua realidade das sociedades é a mais simples constatação dos fatos. Foi achado indícios de que na ilha de Creta na Grécia, antes da invasão dos Dórios existiu uma civilização onde reinava o que mais se aproxima da igualdade. Nas escavações feitas no local as casas não divergiam em sua estrutura, homens e mulheres ocupavam altos postos religiosos (EISLER, 1989). Mesmo que exista essa possibilidade, de ter existido uma sociedade em que um grupo não subjugou um outro grupo, só conhecemos de fato o contrário. Nobert Elias (2000) se atenta a constante de que nas civilizações que conhecemos sempre existiu um grupo que se sobrepôs a outro. O autor investiga uma pequena cidade de nome fictício Winston Parva. Nessa comunidade mesmo que os moradores fossem da mesma cor, status e classe havia um grupo de estabelecidos que menosprezava os outsiders pelo simples fato dos estabelecidos terem chegado primeiro ao local. Assim, os estabelecidos evitavam contato com os outsiders e dominavam os melhores postos da comunidade, se autodenominando como um grupo diferenciado. No posfácio da edição alemã de Os Estabelecidos e os Outsiders o autor se atém ao modelo de Maycomb criado por Happer Lee. Enquanto que em Wiston Parva o direito era imparcial, ou seja, era o mesmo tratamento para todos e todos sofreriam as mesmas sanções legais; em Maycomb não há nenhuma igualdade simbólica, o tratamento é nitidamente diferenciado. Outro filme que pode exemplificar o modelo de Maycomb é o filme Mississipi em Chamas (Mississippi Burning, 1988). O filme narra

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a história de jovens brancos que vão ao estado do Mississipi promover os Direitos Humanos dos negros e são assassinados. Quando as pessoas são indagadas sobre o que teria acontecido aos mesmos, nota-se que não havia nenhuma sombra de dúvida quanto à morte dos defensores dos negros. Ressalto o caráter de legitimidade atribuído pela população na defesa de atos que mantenham a ordem. Elias nota o papel insignificante que a riqueza tinha tanto em Winston Parva quanto em Maycomb. A família de Tom Robsinson pertencia ao mais elevado estrato da comunidade negra, enquanto a família de Mayella era pobre, mesmo assim os homens brancos se incomodaram com a possibilidade de uma moça pobre, mas branca ter tido relações sexuais com um negro. O que realmente incomodava os homens brancos quanto ao caso de Tom Robinson não era o estupro, tampouco a concretude ou não dos fatos. O que os mobilizava era a simples hipótese de que um homem negro tinha se unido a uma mulher branca e este fato quebraria a estrutura de privilégios que cabiam somente aos homens brancos. Era intolerável viver em um local onde se podia encontrar a qualquer momento um homem negro que era suspeito de ter dormido com uma mulher branca. Dormir com mulheres brancas constituía um dos mais importantes privilégios dos homens brancos. Se começassem a aceitar retalhos nesses privilégios, logo toda estrutura de privilégios estaria esmigalhada e destruída (ELIAS, 2000, p.203).

Somente os homens brancos poderiam possuir mulheres brancas. Cabia também aos homens brancos o monopólio da violência, apenas eles poderiam ter armas. Portanto, armas e mulheres brancas faziam parte do sistema de

privilégios que somente os brancos poderiam desfrutar. O filme retrata a exclusão de um grupo pelo outro, o motivo é construído socialmente de forma que seja percebido como algo natural, como algo que sempre foi assim e sempre será. No caso de Winston Parva salta aos olhos que qualquer motivo possa ser usado para justificar que um grupo subjugue o outro, estabelecendo um sistema de privilégios para si e que um simples motivo se torna plausível para discriminar um grupo. Poderia ser os negros dominando os brancos, poderia ser as mulheres subjugando os homens, mas no caso em questão eram os moradores antigos discriminando os novos. Infelizmente essa situação gera várias consequências, inclusive quanto ao acesso de oportunidades acarretando consequências econômicas. Por exemplo, os homens brancos ganham mais que os demais. Para reverter à discriminação, a segregação, a diferença de acesso aos aparatos educacionais e etc., tanto a Constituição de 1988 e o atual III Plano Nacional dos Direitos Humanos prevêem um série de medidas. O III Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) tem seis eixos orientadores: 1. Interação Democrática entre Estado e sociedade civil. 2. Desenvolvimento e Direitos Humanos 3. Universalizar Direitos em um contexto de Desigualdade 4. Segurança Pública, Acesso à Justiça e Segurança Pública 5. Educação e Cultura em Direitos Humanos 6. Direito à Memória e a Verdade

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Guardadas as devidas proporções podese considerar que existam semelhanças entre Maycomb e o Brasil. É claro que os dois países possuem contexto histórico diferenciado, quero apenas ressaltar a tensão que existe nos dois casos entre a legalidade e a realidade, explícita na latente diferenciação social que existia na Maycomb narrada por Happer Lee e a gritante diferença entre negros e brancos no Brasil. Essa disparidade liga-se ao primeiro eixo orientador do PNDH-3. A interação democrática entre Sociedade Civil e Estado exige garantia de participação e controle social por parte de todos os cidadãos. Assim, de acordo com Dahl o pressuposto chave de uma Democracia é “a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais” (DAHL,1997, p.25). Portanto, esse princípio orientador tem três pontos chave: o primeiro ponto chave é que essa interação fortalece a democracia participativa, no segundo os direitos humanos devem orientar as políticas públicas e por fim, deve integrar sistemas de informação e direitos humanos, com o objetivo de controlar as políticas púbicas de direitos humanos e monitorar o Estado brasileiro quanto ao cumprimento de tratados internacionais. As conseqüências dessa relação de estabelecidos e outsiders geram inúmeras assimetrias. “No fundo sempre se trata do fato de que um grupo exclui o outro das chances de poder e de status, conseguindo monopolizar essas chances” (ELIAS, 2000, p.208). Isso era nítido em Winston Parva, em Maycomb e qualquer outra sociedade que o esforço analítico se volte. O Brasil não escapa a essa regra, que tenta ser remediada no PHDH-3 através do segundo e terceiro eixo orientador.

O segundo eixo objetiva sanar a desigualdade gerada por essa dominação de um grupo sobre outro, descrita por Elias, promovendo inclusão social e econômica, valorização da pessoa humana no processo de desenvolvimento. Também aqui o plano trata dos direitos ambientais como sendo direitos humanos. O terceiro eixo trata de medidas mais efetivas, tais como acesso a moradia, alimentação, trabalho decente, saúde e educação de qualidade, prevenção do trabalho escravo, direito ao lazer e a participação política. Historicamente os aspectos abordados pelo terceiro eixo foram problemáticos em boa parte dos países. Nos Estados Unidos e no Brasil, além dos anos de escravidão, podemos destacar a intensa luta pelo voto. Os Estados Unidos, exaltado por seu aspecto democrático por Tocqueville (1987), só permitiram o voto dos negros em 1965, e o voto feminino em 1920. No Brasil os negros não foram excluídos legalmente, mas foram também impedidos através de leis que exigiam renda mínima, proibiam o voto aos analfabetos e nos recorrentes períodos ditatoriais. No Brasil Colônia votavam apenas os chamados “homens bons”, aqueles pertencentes às oligarquias. Durante o Império havia uma série de restrições ao voto, critérios quanto à renda, mas os analfabetos votavam. Em 1881 a Lei Saraiva restringe o voto dos analfabetos e o voto de quem não comprovasse um valor anual mínimo de renda. A República em nada altera essa situação, apenas abaixa o critério de renda. A renda não era impedimento, o real empecilho era a exclusão dos analfabetos. Dessa forma votava uma parte muito pequena da população, sendo que a maioria era analfabeta e também eram excluídas as mulheres.

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As mulheres passam a votar em 1934, e aos analfabetos só foi permitido votar novamente depois da Constituinte de 1988. Acrescente-se a essa conjuntura os anos de ditadura civil e militar que o país vivenciou. É também uma forma de combater as conseqüências da desigualdade o quarto eixo orientador do PNDH-3. O quarto eixo foca o acesso à justiça, segurança e o combate à violência, e como já foi apontado por José Murilo de Carvalho este tema tem muito a se desenvolver no que concerne os Direitos Civis. Em Maycomb pouco importava se um homem do estrato subjugado era inocente ou não, porque ele já estava condenado à morte. Os homens que pretendiam matar Tom Robinson, condená-lo à morte e depois atirar nele, não fizeram tudo isso por saberem, no fundo de seus corações, que ele era inocente, fizeram porque estavam profundamente convencidos de que ele era culpado (ELIAS, 2000, p.203).

Foi negado a Tom Robinson julgamento justo, ele foi julgado por homens brancos que temiam a perda dos seus próprios privilégios, portanto diretamente interessados em sua condenação. Esse sistema limitava a ação do demais envolvidos. Durante o julgamento Tom Robinson afirma que Mayella tentou beijá-lo, seu pai os surpreendeu nessa cena e ele então não viu outra solução a não ser sair correndo. Se Mayella quisesse ter alguma relação com Tom Robinson isso seria impedido. Da mesma forma que um homem negro se encontrava em delicada situação quando uma mulher branca manifesta a intenção ter relações com ele, pois seria iminente sua morte. Um momento de choque por parte dos ouvintes do julgamento foi quando Tom

Robinson declara que sentia pena da jovem, pois seu pai era alcoólatra e frequentemente a agredia. A platéia se choca considerando inadmissível um negro sentir pena de uma branca, mesmo que a vida do acusado tivesse melhor estabilidade econômica que a de Mayella. Outra questão relevante no que se refere ao acesso à justiça, e que não é considerado, é a reparação da subordinação história aos negros imposta. Os sistemas de cotas entram nessa lógica, mas o que deveria haver é uma conscientização dos erros históricos e da dívida para com os negros. O PNDH-3 tem no quinto eixo importantes medidas para promover a dignidade da pessoa humana, diz respeito à educação e cultura em Direitos Humanos. O primeiro passo, creio que seja maior conhecimento dos Direitos Humanos por parte da polícia, professores, funcionários públicos, população em geral, etc. Entretanto, é frequente que atos que ferem aos Direitos Humanos sejam justificados pelo (“mau”) comportamento de determinado indivíduo, assim tornam-se justificáveis e aplicáveis a uns e a outros não. E o último eixo aborda o Direito à Memória e à Verdade. Esses direitos tratam das “histórias oficiais” que foram contadas, ou seja, o governo não foi transparente na divulgação de suas ações para com cidadãos, principalmente no período da Ditadura Militar. Um filme que exemplifica essa situação é A História Oficial (La historia oficial, 1985). Na produção cinematográfica uma professora adota uma criança sem saber que ela era filha de pessoas que se posicionaram contrariamente ao regime. Devido a esse posicionamento foram sequestrados, torturados, mortos e os bebês foram entregues a outras famílias. Na Ditadura

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brasileira o governo também tinha um discurso oficial, porém a prática era plenamente diferente da realidade. O III Plano Nacional dos Direitos Humanos visa combater tanto a continua capacidade dos homens infligirem mal aos seus semelhantes, quanto às consequências da subordinação de um grupo ao outro. Elias (2000) procurou entender o porquê dessa constante de dominação nas sociedades humanas. “Ao que parece, quase todos os grupos humanos tendem a perceber determinados grupos como pessoas de menor valor do que eles mesmos” (ELIAS, 2000, p.199). O autor aponta para a necessidade humana de sempre querer melhorar o valor de sua própria pessoa e de seu grupo, a “... autovalorização só é possível desvalorizando outra pessoa” (ELIAS, 2000, p.209). O ato de promover a autoestima coletiva fortalece e une ainda mais o grupo. Um grupo coeso apresenta maiores chances de sobrevivência. Da exclusão de um grupo o outro grupo ganha préstimos consideráveis. Para Elias a sociedade é repleta de conflitos internos porque os grupos se temem mutuamente, ou seja, vivem “(...) nesse temor que os diversos grupos despertam uns nos outros permanentemente. Eles temem ser escravizados, espoliados, despojados ou destruídos pelos outros” (ELIAS, 2000, p. 212-213). Considerações Finais O Sol é para Todos deixa inúmeras lições sobre os Direitos Humanos. Quando um grupo se autointitula melhor, ele necessariamente está denominando outro grupo como pior. Em todas as sociedades humanas podemos encontrar resquícios de etnocentrismo, ou seja, quando uma pessoa ou um grupo se julga

superior ao outro, de modo que ela não pode compreender tudo que está fora de sua cultura. Elias também afirma que essas diferenciações entre grupos não passa de uma forma do grupo dominante legitimar e se perpetuar no poder. No filme os indivíduos não são sujeitos do direito civil, não podem livremente escolher seus parceiros devem respeitar um sistema próximo a um sistema de castas. Por isso foi tão grave a hipótese de união entre duas pessoas de cor diferente, hoje é sabido que a diferenciação entre raças não existe, a humanidade é uma só. Outra falta grave aos direitos humanos foi quanto ao acesso à justiça, Tom Robinson não teve o devido julgamento, seu júri tinha interesse em sua condenação. O sistema de privilégios que o júri usufruía deixaria de existir com a brecha da não condenação de Tom Robinson. O filme também mostra as sanções graves impostas àqueles que ousam afrontar o sistema pré-estabelecido. Atticus quase perdeu sua filha, se não fosse o personagem Boo, também marginalizado, salvá-la. Os Direitos Humanos devem ser encarados como meta a ser cumprida, eles foram estabelecidos para que as atrocidades contínuas que os homens cometem fossem impedidas. Porém também é de praxe os contínuos desrespeitos aos Direitos Humanos, no Brasil e em qualquer lugar. Ainda são mutiladas meninas na África, assim como no ocidente em nome da normalidade, também se submete recém-nascidos à cirurgia para que sejam claramente definidos como homem ou mulher. No interior do Egito existem cidades em que as mulheres são proibidas de sair de casa, nem para fazer compras ou ir ao hospital. No Brasil também é freqüente, continuo e corriqueiro o cárcere privado de mulheres,

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algo absolutamente legitimado como direito do homem sobre a mulher. Portanto, ainda há muito a ser feito para que todos os seres humanos sejam respeitados na plenitude de seus direitos.

Referências Bibliográficas: A HISTÓRIA Oficial. Direção: Luis Puenzo. Argentina: Europa Filmes, 1985. 1 filme (112 min). CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. 12º Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2009. DAHL, Robert. Poliarquia. São Paulo:Edusp, 1997. EISLER, Riane. O Cálice e a Espada: nosso passado nosso futuro. Rio de Janeiro: Imago Editora,1989.

www.redhbrasil.net/documentos/bilbioteca_ on_line/ modulo1/1.o_q_sao_dh_eduardo. pdf> Acesso em 26.03.2011. SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 2009. THÉBAUD, Françoise. Mulheres, cidadania e Estado na França do século XX. Tempo, Rio de Janeiro, nº 10, 2000. pp. 119-135. TOCQUEVILLE, Alex. A Democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 4.ed. VAZ, Sérgio. Não se mata um pássaro que só faz o bem. 2010. Disponível em: <http://50anosdetextos.com.br/2010/naose-mata-um-passaro-que-so-faz-o-bem/> Acesso em 09.09.2011

ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsidres. In: ______ Posfácio da Edição Alemã. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. MARSHAL, T. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. MISSISSIPI em Chamas. Direção: Alan Parker. Estados Unidos: Fox Filmes, 1988. 1 filme (122 min). O SOL é para Todos. Direção: Robert Mulligan. Estados Unidos: Universal Pictures, 1962. 1 filme (129 min). RABENHORST, Eduardo R.O que são os Direitos Humanos? Disponível em: <http:// Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 74-83.

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A liberdade de informação e suas questões polêmicas Maria Cristina Barboza Atualmente é gerente de projetos e docente da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, aluna de mestrado do Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da PUC-SP, no núcleo de pesquisa em Direito Constitucional, e bolsista da CAPES (modalidade 2).

Resumo

Abstract

A liberdade de informação engloba os direitos à opinião, expressão, comunicação, informação e informação jornalística. Com a expansão dos meios de comunicação, a liberdade de informação passou a enfrentar alguns desafios. Este artigo tem por objetivo, portanto, discutir questões polêmicas que envolvem a liberdade de informação, como o controle e os limites da liberdade de expressão, liberdade de informação e o discurso do ódio, a publicidade comercial como forma de manifestação do pensamento, e a liberdade de informação e o sigilo da fonte.

The freedom of information includes the rights to opinion, expression, communication, information, and press information. With the expansion of the media, the freedom of information began to face some challenges. This article aims, therefore, to discuss controversial issues involving it, such as control and limits of expression freedom, information freedom, hate speech, commecial advertising as a form of expression of thought, freedom of information and confidentiality of the source.

Palavras -Chave

Freedom of Information, right to opinion, right to expression, right to press information.

Liberdade de informação, direito de opinião, direito de expressão, direito à informação jornalística1.

Key words

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1. A liberdade de informação A liberdade de informação engloba vários direitos fundamentais previstos na Constituição Brasileira, entre eles: (1) Direito de opinião, que garante a manifestação do pensamento através da verbalização e da escrita. Este direito está previsto no inciso IV do art. 5ª da Constituição Brasileira: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. (2) Direito de expressão, que garante a manifestação do pensamento por meio de diferentes formas, como a música, a pintura, o teatro e a fotografia, por exemplo. O direito de expressão também se fundamenta no inciso IV do art. 5º da Constituição Brasileira. Para Samantha Ribeiro Meyer-Pflug “da liberdade de expressão do pensamento derivam a liberdade religiosa, a liberdade de informação, a liberdade de imprensa e a própria inviolabilidade de correspondência, posto que a liberdade de expressão do pensamento pode dar-se por meio da escrita, ou de uso de imagens e não necessariamente pessoalmente” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 70). Cabe destacar que o direito de opinião e o direito de expressão, conforme previsto no art. 220 da Constituição Brasileira, não podem sofrer qualquer tipo de restrição: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, e também não podem ser objetos de censura prévia, nos termos do § 2ª do mencionado artigo: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. A respeito da censura, Vidal Serrano Nunes Jr. observa que o direito de expressão “não fica livre de eventual sanção judicial, o que abre caminho para a afirmação de que nosso ordenamento admite uma

espécie de censura: a judicial” (NUNES JÚNIOR, 2011, p. 42). (3) Direito de Comunicação, que garante a livre movimentação e troca de informações através de meios de comunicação de massa. E como “informações” entendem-se todo fato relatado (informação jornalística), assim como toda manifestação do pensamento (direito de opinião e de expressão). Pode-se pensar inicialmente que os direitos relacionadas a manifestação do pensamento (opinião e expressão) prescindem do direito de comunicação. Ocorre que, nos dias de hoje, a manifestação do pensamento não veiculada através dos meios de comunicação possui quase ou nenhuma força ou influencia. Deste modo, assim como os meios de comunicação se alimentam das manifestações de pensamento, estas manifestações usam os meios de comunicação para se tornarem públicas e relevantes, tornando os mencionados direitos intrinsecamente ligados. Vidal Serrano Nunes Jr. observa que o direito de comunicação comporta vários elementos, assim como “a manifestação e a recepção do pensamento, a difusão de informações, a manifestação artística ou a composição audiovisual, quando veiculadas através de um meio de comunicação de massa” (NUNES JÚNIOR, 2011, p. 43). Os dispositivos constitucionais que disciplinam o direito de comunicação são os seguintes: art. 220 (que proíbe restrições ao direito de opinião, expressão e comunicação), §§ 1º (proibição de leis que criem embaraços ao direito de opinião, expressão e comunicação), 2º (vedação da censura prévia), 3º (poderes conferidos à lei federal para regular as diversões e os espetáculos públicos, assim como para estabelecer meios para a defesa contra programas

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e propagandas abusivas) e 4º (restrições a propagandas de determinados produtos: tabaco, bebidas alcoólicas etc.), e artigo 221 (princípios que a programação dos meios de comunicação devem seguir). Com relação aos órgãos de comunicação, os dispositivos constitucionais reguladores são os seguintes: art. 220, §§ 5º (proibição de monopólio ou oligopólio) e 6º (veículos impressos não necessitam de licença de autorização), 222 (regras para participação de estrangeiros nos meios de comunicação), 223 (regras para a concessão, permissão e autorização) e 224 (criação do Conselho de Comunicação Social). (4) Direito de informação: garante a divulgação de um fato relevante para a sociedade. Este direito possui três facetas: direito de informar, direito de se informar e direito de ser informado. O direito de informar tem em geral caráter negativo, pois qualquer pessoa pode exercer este direito sem sofrer restrições do Estado (art. 220, caput da Constituição Brasileira). Uma exceção a esta regra é o direito de resposta (inciso V do art. 5º da Constituição Brasileira), o qual impõe um caráter positivo ao direito de informação. O direito de se informar está previsto no inciso XIV do art. 5º da Constituição Brasileira: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. A respeito de informações contidas em banco de dados públicos, a Constituição prevê o habeas data, no inciso LXXII do art. 5º da Constituição Brasileira, um instituto (ação constitucional) que garante o conhecimento de determinada informação e permite ao interessado sua eventual correção. Sobre o direito de ser informado, de acordo com Vidal Serrano Nunes Jr., “a

Constituição Federal não atribuiu a nenhum organismo privado, de caráter informativo ou não, o dever de prestar informação” (NUNES JÚNIOR, 2011, p. 47). No entanto, os órgãos públicos têm a obrigação de fornecer informações aos indivíduos, ou seja, todos possuem o direito de receber informações do poder público, conforme art. 5º, inciso XXXIII (“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”) e art. 37 caput (“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte”) e §1º (“A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”). (5) Direito à informação jornalística , que garante a publicação de notícias e críticas nos meios de comunicação de massa. O direito à informação jornalística se fundamenta no direito de informar, pois este último, segundo Vidal Serrano Nunes Jr. comporta, em sua essência, direitos distintos: “de um lado, o direito de transmitir idéias, conceitos ou opiniões; de outro lado, o de veicular notícias e os respectivos comentários ou críticas” (NUNES JÚNIOR, 2011, p. 49). A partir do exposto, conclui-se que a liberdade de informação engloba vários direitos fundamentais, entre eles: o direito de opinião, de expressão, de comunicação, de informação e de informação jornalística.

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Cabe, a partir de então, analisar algumas questões polêmicas que surgem no exercício de tais direitos, em especial quando estes colidem com os demais direitos fundamentais. 2. Formas de limitação do poder dos meios de comunicação de massa Os meios de comunicação de massa passaram a influenciar de maneira contundente a opinião pública. Com isso, nos sistemas democráticos, os meios de comunicação tornaram-se muito poderosos. Por exemplo: seis ministros da Presidente Dilma foram afastados por suspeitas de corrupção em 2011, após matérias divulgadas em meios de comunicação de massa (O ESTADO DE SÃO PAULO, 14/09/2011 e 17/08/2011): • Antonio Palocci: “Sua saída começou a se desenhar quando o jornal Folha de S. Paulo denunciou, no dia 15 de maio, que seu patrimônio aumentou 20 vezes entre 2006 e 2010”. • Alfredo Nascimento pede demissão: “Começou a perder o cargo quando a revista Veja denunciou, no dia 2 de julho, um esquema para cobrança de propina na pasta e em órgãos ligados à pasta”. • Wagner Rossi: “O empurrão final para que o ministro da Agricultura entregasse o cargo foi dado nos últimos dois dias, com a notícia, publicada no Correio Braziliense segundo a qual ele e familiares utilizavam um jatinho da empresa Ourofino, que tem negócios com o Ministério da Agricultura”. • Pedro Novais: “Entregou o cargo após denuncia do jornal Folha de S. Paulo de que teria usado dinheiro da Câmara para pagar o salário da governanta de seu apartamento em Brasília”.

• Orlando Silva: “O ministro do Esporte Orlando Silva deixou o cargo após sucessivas denúncias de fraudes em convênio do ministério. (...) Diante da repercussão negativa para o ministério (...) a presidente Dilma decidiu não mantê-lo na pasta”. • Carlos Lupi: “Tendo em vista a perseguição política e pessoal da mídia, que venho sofrendo há dois meses sem direito de defesa e sem provas; (...) decidi pedir demissão do cargo que ocupo”. Como se pode observar, todos os processos de acusação se iniciaram na mídia. Assim, os meios de comunicação tornaram-se verdadeiros poderes nas mãos de seus detentores. Ora, os ministros que caíram tinham motivos para serem afastados, mas e os demais, será que também não possuem desvios de conduta? A grande questão é: são todas as notícias ou suspeitas de corrupção divulgadas, ou há certa ordem de conveniência e interesse nestas publicações? Por que as notícias de corrupção de ministros são divulgadas uma de cada vez, até a demissão ou saída do mesmo, e não todas de uma só vez? De acordo com Cláudio Luiz Bueno de Godoy “não há como negar o decisivo papel dos meios de comunicação no desdobramento de acontecimentos recentes, de depuração política e moral” (GODOY, 2008, p. 2). Álvaro Rodrigo Jr. destaca ainda a importância da imprensa e da liberdade de expressão, e do perigo que há no distanciamento da imprensa de sua função social, em virtude da busca fácil por audiência: “usufruindo a ampla e irrevogável liberdade de expressão e de informação asseguradas constitucionalmente, os meios de comunicação social distanciam-se cada vez mais de sua função essencial em um regime democrático, qual seja, a de trazer ao público a vigorosa discussão de temas políticos e permitir às pessoas

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influir diretamente na esfera pública” (RODRIGUES JÚNIOR, 2009, p. 18). Continua o autor dizendo que “os interesses comerciais e a busca desenfreada pelo lucro dificultam (ou até mesmo impedem) que os meios de comunicação social desfrutem de sua liberdade de expressão para informar a opinião pública e disseminar ideias e opiniões de verdadeiro interesse público. Em vez disso, mergulham o homem num mar de informações inúteis e de fácil absorção” (RODRIGUES JÚNIOR, 2009, p. 18). Assim, a comunicação transformou-se em um objeto muito importante para o estudo do direito, tendo em vista, como menciona Vidal Serrano Nunes Jr. que ela “vai se tornando um autêntico poder social que pode se constituir no mais eficaz meio de transmissão da informação, fazendo chegar às residências e repartições tudo o que acontece no mundo e, ao mesmo tempo, pode se transformar num perigoso veículo de ocisão dos direitos da personalidade, tolhendo as faculdades minimamente necessárias para o desenvolvimento do indivíduo” (NUNES JÚNIOR, 2011, p. 9). Neste contexto, para que os meios de comunicação não sejam utilizados tão somente como um meio de poder e influencia para os grandes grupos políticos ou empresariais, discutem-se formas de limitar e controlar seus conteúdos e sua posição ideológica. A Constituição Espanhola, por exemplo, adotou a cláusula de consciência e o direito de acesso aos meios de informação aos grupos sociais e políticos significativos. A cláusula de consciência, segundo Vidal Serrano Nunes Jr., “é uma estipulação tácita que se considera integrada em qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços de um profissional da informação, que lhe atribui a faculdade de romper seu vínculo com a respectiva empresa de comunicação, com o recebimento de todos os direitos como se houvesse sido despedido sem justa causa, desde que a razão da

rescisão tenha como fundamento uma mudança notável no caráter ou na orientação do jornal, ou do periódico; e esta mudança pudesse, de algum modo, afetar a dignidade, a honra, a reputação, as convicções, em suma, as opiniões do profissional da informação” (NUNES JÚNIOR, 2009, p. 59). Com relação à Constituição Portuguesa, suas especificidades relacionadas ao controle / limite dos meios de comunicação são: (1) toda pessoa tem o direito de receber informação na íntegra, (2) intervenção do jornalista na orientação ideológica dos meios de comunicação, (3) instituição de conselhos de redação com a participação dos jornalistas, de modo a garantir a intervenção ideológica por parte destes, (4) obrigação de divulgação do nome do proprietário e dos meios de financiamento, (5) estabelecimento da propriedade estatal da televisão. No caso brasileiro, sete são os elementos importantes de controle / limite dos meios de comunicação: (1) direito de resposta, previsto no inciso V do art. 5º da Constituição Brasileira (“é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”); (2) o controle dos meios de comunicação por parte de brasileiros natos ou naturalizados (Art. 222 da Constituição Brasileira); (3) obrigatoriedade de transmissão de canais comunitários e estatais para as televisões a cabo; (4) proibição do anonimato; (5) proteção à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade; (6) imposição da classificação indicativa dos programas de televisão (art. 21, XVI da Constituição Brasileira; e (7) tutela preventiva e reparatória, quando há abuso na utilização dos meios de comunicação. Há também restrições, previstas na Constituição Brasileira, que dizem respeito aos estados de sítio e de defesa, situações em que a

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liberdade de informação pode ser restringida por conta do interesse público e da segurança nacional. Cabe destacar que na ocorrência de conflitos entre a liberdade de informação e os mencionados direitos, pode-se adotar uma das três vertentes citadas pelo professor Vidal Serrano Nunes Jr.: (1) o regime de exclusão, no qual os direitos da personalidade são tidos como mais importantes que o direito à liberdade jornalística; (2) o regime da necessária ponderação, no qual o conflito deve ser analisado de modo a ponderar os interesses em jogo; (3) e o regime da concorrência normativa, que determina que o direito de crítica tem preferência face aos demais direitos, tendo como fundamento a defesa e manutenção da opinião pública. Esta última corrente é a dominante atualmente, mas diz respeito à crítica de interesse público, desde que fundada na verdade e na boa-fé. 3. A liberdade de expressão e o discurso do ódio De acordo com Samantha Ribeiro, o discurso do ódio “consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 97). Para combater o discurso do ódio, alguns países adotaram ações afirmativas, outros proibiram drasticamente a defesa pública de posturas preconceituosas. Na América, por exemplo, as manifestações a favor da violência não podem ser proibidas, exceto se a manifestação tenha o poder de gerar ações concretas de violência. Neste sentido, “a restrição à liberdade de expressão só é justificável quando se verifica a existência de um ‘perigo claro e iminente de causar um ato ilegal’, do contrário prevalece o principio da neutralidade do Estado

em face do conteúdo do discurso”. (MEYER-PFLUG, 2009, pp. 141-142). Neste sentido, “a solução adotada pelo sistema americano no combate ao discurso do ódio tem sido conferir mais liberdade de expressão para a parte atingida para que, por meio do debate aberto e livre, possa evitar manifestações desse jaez. No entanto, há que se considerar que essa solução resta inócua em determinadas circunstâncias, posto que devido ao ‘efeito silenciador’ do discurso do ódio, suas vítimas não têm chances de participar do debate público e contra-argumentar em pé de igualdade com os seus agressores” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 148). Os países europeus, por sua vez, são mais restritivos quanto à liberdade de expressão. Há muitos países que consideram crimes a banalização do Holocausto, a teoria revisionista, assim como a prática de racismo e de antissemitismo. Importante ressaltar que esse padrão europeu verifica-se bastante influente no direito internacional. De acordo com Samantha Ribeiro “verifica-se no direito internacional e no modelo europeu uma maior ênfase na proteção dos direitos à honra e a dignidade das vítimas do discurso do ódio, em comparação com o sistema americano. O próprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos a despeito da existência da ‘jurisprudência flutuante’ tem demonstrado uma inclinação maior no sentido de adotar o sistema europeu” (MEYERPFLUG, 2009, p. 197). Com relação ao combate do discurso do ódio no Brasil, não há norma específica para proibir ou regular esse tipo de manifestação do pensamento. No entanto, Samantha Ribeiro ensina que “o sistema constitucional pátrio erigiu como um de seus valores a proibição ao racismo, bem como a qualquer tipo de discriminação. (...) tendo em vista o discurso do ódio constata-se que o seu conteúdo, em certas situações, é dotado de caráter discriminatório e racista o que poderia levar a sua proibição no sistema brasileiro”

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(MEYER-PFLUG, 2009, p. 125). Deste modo, “no sistema jurídico brasileiro a prática do racismo, após a descoberta do genoma humano e a recente decisão do STF, envolve a perseguição a qualquer grupo étnico, religioso, cultural, social ou de gênero” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 204). A partir do exposto, a questão que se coloca é: como combater o discurso do ódio de maneira mais eficaz? Deve-se proibir radicalmente as manifestações de ódio, segundo o modelo europeu, ou o melhor é combater esses discursos garantindo mais liberdade de manifestação do pensamento, tanto para os grupos radicais, quanto para aqueles que combatem as manifestações odiosas, como fazem os americanos? Samantha Ribeiro adota a seguinte postura: “a simples proibição do discurso do ódio não parece se coadunar com os valores vigentes no sistema jurídico brasileiro, nem tem se mostrado uma solução eficaz ao problema, de igual modo resolver a questão com a mera permissão desse discurso também não se mostra, a princípio, compatível” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 221). Neste sentido, defende a autora que “devese, portanto, assegurar a manifestação do discurso do ódio, mas desde que se assegure igualmente e que se propicie as condições necessárias para as minorias, as vítimas desse discurso possam, rebater os seus argumentos de forma incisiva e eficiente. De igual modo a sua permissão tem de vir acompanhada de políticas públicas na área da educação que promovam o multiculturalismo, a valorização da diferença e evitem o surgimento do preconceito. Não se pode combater atos de intolerância, com intolerância e nem privar o indivíduo do seu direito de libertada e de escolha” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 264). A jurisprudência no Brasil ainda não tomou uma posição definitiva frente ao discurso do ódio, muito embora tenda a proibi-lo. Recentemente o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) fez comentários

públicos que mexeram com a opinião pública e com a mídia. O parlamentar defende a ditadura militar e declara-se preconceituoso com relação á homossexuais e negros, com muito orgulho. Como possui imunidade parlamentar, o deputado em questão não sofrerá nenhuma punição. Mas e se ele fosse uma pessoa comum? Possivelmente seria processado e condenado por racismo. Mas sua condenação não mudaria alguma coisa? Todos sabem que o preconceito ainda existe. O problema é: como combater este preconceito? Proibi-lo e deixá-lo cada vez mais privado a declarações familiares, ou deixar que a sociedade manifeste livremente sua opinião contra ou a favor do preconceito? A questão deve ser debatida e amadurecida pela sociedade. Não existe uma forma única e correta para se combater o ódio. Cabe ao judiciário e ao legislativo discutirem e encontrarem formas de combater o crescimento dessas manifestações, sem que com isso a liberdade de informação, expressão e opinião sejam limitadas. 4. A publicidade comercial como forma de manifestação do pensamento A publicidade comercial tem por objetivo incentivar o consumo de determinados bens e serviços. Para Vidal Serrano Nunes Jr. “a publicidade comercial, obedece à lógica da economia de mercado, identifica sua proteção nos princípios básicos da ordem constitucional da economia, a livre iniciativa e a livre concorrência” (NUNES JÚNIOR, 2001, p. 3). Importante notar que a publicidade comercial passou, ao longo do tempo, a ser tão importante quanto o próprio produto ou serviço, pois é capaz de transformar um bem em um símbolo de posição social. Tendo a publicidade os objetivos de divulgação, comercialização, promoção de

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produtos e serviços, é evidente que se trata de uma atividade puramente econômica. No entanto, há autores que defendem que a publicidade comercial fundamenta-se, não nos princípios econômicos, mas sim na liberdade de informação. Neste sentido, seria a publicidade comercial um direito fundamental, assim como os direitos de opinião e expressão. Essa diferença é substancial e importantíssima, pois entendida a publicidade comercial como um direito fundamental, ela seria privilegiada por vários dispositivos constitucionais, como a proibição da censura, por exemplo. No entanto, a posição de Vidal Serrano Nunes Jr. & Daniela Batalha Trettel parece a mais correta: “qualquer elemento de liberdade de expressão que se pretenda destacar nas publicidades comerciais é suprimido pela finalidade máxima desse mecanismo de difusão de produtos e serviços: estimular o consumidor ao ato de compra” (NUNES JÚNIOR & TRETTEL, 2008, p. 5). Sendo a publicidade comercial uma atividade econômica, ela “pode sofrer limitações em respeito a outros direitos constitucionalmente tutelados. Tais limitações podem ter como objetivo proteger relações de mercado - seja a livre concorrência, seja o consumidor - ou toda a sociedade, alcançada pelo informes publicitários em decorrência do longo alcance de seus meios de propagação. No segundo ponto temos a vedação a publicidades discriminatórias e a proteção ao patrimônio cultural, à privacidade e à intimidade, ao meio ambiente, à infância e à juventude, à segurança, à família e aos idosos” (NUNES JÚNIOR & TRETTEL, 2008, p. 6). 5. A liberdade de informação e o sigilo da fonte A Constituição Brasileira estabelece, no art. 5, inciso XIV, o sigilo da fonte. Deste modo,

o jornalista tem o direito de manter a sua fonte em segredo, não a revelando a ninguém, em hipótese alguma. Entende-se que este é um dos pressupostos fundamentais para o pleno exercício da profissão de jornalista. Diferentemente deste sigilo, existe o segredo profissional. Neste caso, o profissional que tem conhecimento sobre um segredo, que lhe foi confidenciado profissionalmente, mas não pode divulgá-lo, sob pena de cometer um crime. Neste caso encontram-se o advogado, o psicólogo, etc. Importante destacar que o segredo profissional e o sigilo da fonte são coisas completamente diferentes. Enquanto o primeiro é um dever do profissional, o segundo é uma faculdade. Outra distinção importante é que o segredo profissional, diferentemente do sigilo da fonte, não é absoluto. Há situações em que o poder judiciário pode decretar a quebra do segredo. Ademais, a pessoa que divulgar um segredo profissional somente poderá ser responsabilizada se houver dolo, não houver justa causa, e em casos que causem dano a alguém. De acordo com Benedito Luiz Franco “o sigilo da fonte assegurado ao jornalista é, inquestionavelmente, absoluto, inexistindo leis que lhe estabeleçam quaisquer limites ou exceções no direito pátrio. (...) Os jornalistas (...) não estabelecem com seus informadores o mesmo tipo de relacionamento mantido pelos demais profissionais com seus clientes” (FRANCO, 1999, p. 124). Importante ressaltar que o sigilo da fonte não encontra a mesma guarida nos demais países. Por exemplo: “nos Estados Unidos da América, o sigilo da fonte jornalística não é absoluto (...) Newsperson’s privilidge é examinado caso a caso pela Suprema Corte. A não revelação da fonte de informação perante a um

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tribunal, pode ser considerado como crime de desacato á justiça” (FRANCO, 1999, p. 127). 6. Conclusão Muitas são as polêmicas que envolvem a liberdade de informação. Além daquelas apresentadas neste artigo, muitas outras surgem diariamente nos tribunais por todo o mundo. Cada país adota sua posição com relação à liberdade e aos limites e controles dos meios de comunicação. Estas questões variam em razão da legislação e da cultura de cada sociedade. No Brasil, embora não haja uma lei específica para regular os meios de comunicação, a Constituição Brasileira contempla dispositivos que dão conta das polêmicas surgidas nos últimos anos. Cabe à jurisprudência, no entanto, punir os meios de comunicação que abusam do seu direito de informar, assim como às publicidades que ofendem os princípios constitucionais e os direitos fundamentais. Atualmente há uma sensação de impunidade com relação aos meios de comunicação, que deve ser definitivamente resolvida pelo judiciário brasileiro. É de conhecimento de todos que os meios de comunicação servem como verdadeiros poderes políticos, além de induzirem à formação da opinião pública conforme os interesses de seus dirigentes. Estas condutas devem ser enfrentadas e solucionadas pelo judiciário, de forma a garantir a moralização os meios de comunicação e o exercício do direito fundamental de informar e ser informado.

Nota: 1

Nota-se que o termo “direito de imprensa” foi substituído pelo termo “direito à informação jornalística”, pois a imprensa sempre esteve relacionada aos meios de comunicação impressos.

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Resumo

Abstract

O presente artigo tem por finalidade analisar o contexto político atual, tentando compreender como a relação do governo de Dilma Rousseff com os eleitores de baixíssima renda se estabeleceu no tempo e como essa relação se coloca diante de acontecimentos atuais. A análise foi feita tendo como base o artigo “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo” de André Singer, publicada na edição 85 da revista Novos Estudos, em dezembro de 2009. Contribuindo para o desenvolvimento do trabalho, foram utilizados dados levantados pelo instituto de pesquisas IBOPE, exemplificando nos diversos cenários de avaliação do governo de Dilma Rousseff, o posicionamento de parte da população. O artigo tem como objetivo estabelecer um panorama (ainda que incerto) das eleições presidenciais de 2014, apresentando um crescimento dos percentuais de rejeição à candidata do PT e o surgimento de Marina Silva como opositora.

The present article has the finality to analyze the current political context, trying to understand how the relationship between Dilma Rousseff and her very low income voters got established, and how is this relation after the recently developed events. The analysis was made based on the article “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo” by André Singer, published in the 85th edition of the magazine Novos Estudos, in December of 2009. Contributing to the development of this work were used data collected by the Research Institute IBOPE, exemplifying the different scenarios of rating of Dilma´s Rousseff government from part of the population. The article aims to establish an overview of the 2014 election, showing a growth rate of rejection of the PT candidate and the emergence of Marina Silva as opposition.

Key words Lulismo; Dilma Rousseff; subproletariat; Presidential Election of 2014; Marina Silva.

Palavras -Chave Lulismo; Dilma Rousseff; subproletariado; Eleições Presidenciais de 2014; Marina Silva.

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Contexto político Para a compreensão do cenário político que se apresenta nesse momento, é necessário o entendimento do contexto político posto desde 1989. Neste ano, de acordo com André Singer em seu artigo “Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo”, pela primeira vez o Brasil apresentou uma polarização por renda em acordo com os dois principais candidatos a presidente, no caso Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva. A questão é que em 1989, era Collor que obtinha o apoio das classes mais baixas. A pesquisa IBOPE realizada em dezembro de 1989, na análise por renda da intenção de voto, mostrava uma vantagem de Collor de 10 pontos percentuais em relação à Lula (Collor com 51% e Lula com 41%) entre aqueles com renda familiar de até dois salários mínimos. E Lula aparecia na frente em todos os outros estratos: os percentuais de intenção de voto ao candidato do PT aumentavam em acordo com o aumento da renda familiar. Contudo, a observação da eleição de 2002, na qual Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil, permite afirmar que nesse ano, o voto em Lula não estava especialmente atrelado à estratos sociais, enquanto que, da mesma forma é possível afirmar que em 2006, a disputa se dividiu entre ricos e pobres. A aposta de André Singer é que o resultado da eleição presidencial de 2006 não é uma mera repetição dos resultados da eleição presidencial de 2002. A diferença média de uma eleição e de outra, da vitória de Lula sobre seus opositores, ficou em torno dos vinte milhões de votos, porém não foram os mesmos eleitores que o colocaram no poder em um ano e no outro. Para o autor, o resultado de 2006 foi o reflexo de um realinhamento político de estratos decisivos

do eleitorado. Pela primeira vez, os muito pobres elegeram um candidato da “esquerda”. O movimento ocorrido durante o período do primeiro mandato do presidente Lula, ou seja o “deslocamento subterrâneo” dos eleitores de baixíssima renda, passou despercebido e só foi concretamente observado no resultado das eleições presidenciais de 2006, tanto que havia uma percepção que o cunho assistencialista do primeiro mandato não estava sendo suficiente para segurar o eleitor. Esse movimento ocorreu concomitantemente ao início das denúncias do mensalão, e não se fez notar em parte pelo fato do mensalão ter obtido, por meses, todo o foco midiático. Esse movimento observado em 2006 é exatamente o inverso do movimento observado em 1989, tomando como referência a participação de Lula nos dois pleitos. Obtendo o apoio das classes mais altas e consequentemente, os mais escolarizados em 1989, Lula percebia a emergência em atingir os estratos mais pobres, aqueles que ganhavam até 1 salário mínimo, pois era consciente do peso eleitoral que estes representavam. Em suma, de acordo com Singer, é possível afirmar acerca de um conjunto de fatores como responsável pela reeleição de Lula em 2006: o controle de preços, o aumento do salário mínimo, a redução do desemprego, a expansão de crédito às classes mais pobres, os programas sociais como o Bolsa Família. Essas medidas associadas contribuíram para a redução significativa da pobreza, a partir de 2004. Assim, Dilma Rousseff foi eleita em 2010 dando continuidade e ampliando os projetos sociais implantados nos dois mandatos do presidente Lula. A pesquisa IBOPE divulgada em 30 de outubro de 20101 revelou que 52%

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dos entrevistados declararam a intenção de votar na candidata do PT, enquanto 40% declararam intenção de votar no candidato do PSDB, José Serra. O percentual de Dilma entre os entrevistados com até 1 salário mínimo chegou a 57%, em oposição aos 35% com essa renda familiar que afirmaram a intenção de votar em José Serra: uma diferença de 22 pontos percentuais entre aqueles com renda mais baixa. Já entre aqueles com mais de 1 e até 2 salários mínimos, Dilma apresentou índice de 55% e José Serra, 37%. Entre aqueles com renda familiar de mais de 2 até 5 salários mínimos, 50% declararam intenção de voto na candidata petista, enquanto 43% declararam intenção em votar no candidato peessedebista. Já entre os entrevistados com renda familiar superior a 5 salários mínimos, o percentual é de 45% para Dilma e 48% para Serra. Através da observação desses dados, é possível afirmar que a pesquisa realizada em 2010 não indicava uma tendência de polarização por renda na eleição presidencial, já que o percentual de Dilma foi próximo ao alcançado por José Serra entre aqueles com renda mais alta. Entretanto, a petista seria eleita por contemplar majoritariamente o voto do subproletariado, conforme termo usado por André Singer. Avaliação do governo: antes e depois das manifestações

entrevistados consideravam, na ocasião, a gestão da presidente Dilma Rousseff como ótima/boa, uma oscilação negativa de 8 pontos percentuais em relação à pesquisa realizada em março. Entre aqueles com renda mais baixa o percentual foi de 65% (oscilação negativa de 5 pontos percentuais), e entre os entrevistados com mais de 1 e até 2 salários mínimos, o índice foi de 59% (oscilação negativa de 6 pontos percentuais). O gráfico abaixo revela que entre março e junho de 2013, a avaliação do governo Dilma apresentou uma queda relevante entre os entrevistados com renda mais alta. Já entre os respondentes com renda familiar mais baixa, não houve uma queda, mas uma oscilação negativa, considerando a margem de erro da pesquisa realizada em junho que é de 2 pontos percentuais. Um ponto a ser considerado é que os dados levantados em junho foram coletados durante as primeiras manifestações ocorridas em São Paulo (protestos ocorridos nos dias 6, 7 e 11 de junho de 2013), porém antes das que ocorreram em todo o país pela revogação do aumento das tarifas do transporte público, que se tornaram mais intensas após os excessos policiais em São Paulo, no dia 13 de junho. Assim, conclui-se que a avaliação do governo de Dilma Rousseff, considerando os percentuais de ótimo/ bom, estava apresentando um recuo antes do período de efervescência que tomou as ruas do país.

A pesquisa IBOPE realizada entre os dias 08 e 11 de março de 20132 revelou que 63% dos brasileiros entrevistados avaliavam o governo da presidente Dilma como ótimo/ bom. Entre aqueles com menor renda familiar (até 1 salário mínimo), 70% fizeram essa afirmação e entre aqueles com mais de 1 a 2 salários mínimos o percentual foi de 65%. Já o levantamento realizado pelo IBOPE entre os dias 08 e 11 de junho de 20133 apontou que 55% dos Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 94-101.

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As manifestações que se tornaram frequentes em todo o país, com o Movimento Passe Livre à frente e grande cobertura midiática, colocava em pauta, inicialmente, a revogação do aumento das tarifas do transporte público. Nas redes sociais, onde os movimentos foram fomentados, logo surgiram outras pautas para os protestos, e o slogan “Não é só pelos 0,20 centavos” (uma referência ao aumento da passagem do transporte público de São Paulo, que sofreu reajuste de R$ 3,00 à R$ 3,20, no dia 02 de junho), se tornou uma constante. Corrupção, gastos com estádios para a Copa do Mundo de Futebol e precariedade de serviços públicos, também foram temas levantados nas manifestações. Após o clamor das ruas, o valor das passagens foi revogado em diversas cidades, como Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Teresina, Natal, entre outras. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, no dia 16 de junho, o aumento também foi revogado. Nas ruas, se as manifestações iniciais foram marcadas pela presença de estudantes, devido a proporção dos acontecimentos outros grupos também tomaram partido nas reivindicações. No dia 19 de junho, houve manifestações na periferia da cidade de São Paulo (na região da Avenida M´Boi Mirim e Largo da Piraporinha), reivindicando melhorias nos serviços públicos. Por fim, no dia 20 de junho, cerca de 1 milhão de pessoas tomaram as ruas de todo o Brasil. Todos esses acontecimentos motivaram uma série de medidas que foram além da revogação das passagens do transporte público: o discurso da presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 21 de junho; discurso do presidente do Senado, Renan Calheiros, em 25 de junho; a

votação da PEC 37, ocorrida em 25 de junho; a votação dos royalties do petróleo, ocorrida na madrugada de 26 de junho; a suspensão da licitação para o transporte público em São Paulo, em 26 de junho; aprovação pela CCJ de uma emenda constitucional que acabou com o voto secreto para cassações, também em 26 de junho, entre outras. Em seu discurso, feito em rede nacional no dia 21 de junho, Dilma Rousseff propôs a construção de uma ampla e profunda reforma política, para ampliação da participação popular, e consequente mecanismos de controle pelos cidadãos, sobre seus representantes. No discurso realizado durante a reunião com governadores e prefeitos de capitais, em 24 de junho, Dilma Rousseff fez a seguinte afirmação: [...] O segundo pacto é em torno da construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular e amplie os horizontes da cidadania. Esse tema, todos nós sabemos, já entrou e saiu da pauta do país por várias vezes, e é necessário que nós, ao percebermos que, nas últimas décadas, ele entrou e saiu várias vezes, tenhamos a iniciativa de romper o impacto. Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar e já deixou claro que não quer ficar parado onde está [...]4

A proposta da presidente Dilma de estabelecer um plebiscito em que a reforma política fosse válida para as eleições de 2014 foi “enterrada” pelos líderes de partidos da base aliada e da oposição, em 09 de julho. Assim, o PT ficou isolado na defesa de um plebiscito imediato. Em verdade, de acordo com a matéria publicada

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no jornal O Estado de S. Paulo5, a proposta do plebiscito pela presidente Dilma, dividiu até mesmo o Partido dos Trabalhadores. Não houve unanimidade em relação a consulta popular e o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), afirmou que o que faltava no governo Dilma era gestão, e não plebiscito, e que também estava na hora do expresidente Lula voltar. Além da derrota do plebiscito e da polêmica envolvendo a vinda de médicos estrangeiros para atuarem na saúde pública, o governo ainda sofreu um revés na Câmara dos Deputados. De acordo com matéria do O Estado de S. Paulo6, de 10 de julho, o próprio PT e PMDB articularam uma manobra para priorizar a análise do texto que destina os royalties do petróleo para a educação e para a saúde. Em rede nacional, no seu discurso realizado no dia 21 de junho, a presidente Dilma Rousseff havia mencionado que 100% dos royalties do petróleo seriam destinados para a educação. Esses acontecimentos levaram o presidente nacional do PT, Ruy Falcão afirmar no dia 11 de julho, que “ninguém sabe hoje quem apoiará Dilma em 2014”7. Essa declaração foi corroborada pela matéria do O Estado de S. Paulo8, de 14 de julho, a qual afirma que o principal aliado da base de Dilma, o PMDB, criou uma banca de popularidade para decidir se apoiará Dilma nas eleições de 2014, e estabeleceu um prazo de três meses para a presidente se recuperar do desgaste sofrido e alcançar patamar de 33% de intenção de voto nas pesquisas. Diante desse cenário, a pesquisa realizada pelo IBOPE9 entre os dias 09 e 12 de julho, apontou que a avaliação de ótimo/ bom do governo Dilma sofreu uma queda de 24 pontos percentuais em relação à pesquisa realizada no mês de junho (de 55% para 31%). Se, no período

anterior, na análise por renda, a queda mais relevante havia sido entre os mais ricos, agora a avaliação da gestão da presidente apresentou queda significativa entre todas as faixas de renda, com destaque entre aqueles com renda familiar de mais de 5 a 10 salários mínimos: de 51% em junho para 23% em julho.

Entretanto, observa-se que o percentual entre aqueles que declararam renda de até 1 salário mínimo é o mais alto (47%) quando comparado às outras faixas de renda, mesmo com uma queda de 18 pontos percentuais, em relação à pesquisa realizada em junho. O destaque é entre aqueles com renda superior: 30% consideraram o governo de Dilma como ótimo/bom, 7 pontos percentuais a menos que os de mesma renda, no período anterior. Essa queda é a menor dentre todas as faixas. O cientista político André Singer, em entrevista concedida à revista Época10, em 23 de junho de 2013, afirma que, em sua opinião, as manifestações ocorridas em todo o país foram compostas por duas camadas sociais, os filhos da classe média tradicional e o novo proletariado, este último com empregos precários e más condições de trabalho. Singer afirma que, o que ele denomina por “subproletariados” (que forma a base do lulismo, e consequentemente, do governo Dilma) não estava nas ruas. Porém, com a queda da avaliação da presidente entre os muito pobres,

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constata-se que ainda que esses não tenham ido às ruas (salvo algumas exceções), foram amplamente impactados pelas manifestações. O percentual apontado pela pesquisa realizada em julho confirma que, de fato, os de renda baixíssima ainda dão, em parte, sustentação ao governo de Dilma. Porém a queda no percentual indica que é uma parcela da população que, ainda que tenha sido alvo de políticas sociais ao longo dos últimos anos, acompanha os acontecimentos do país e reflete sobre eles. Marina Silva Nesse contexto, Marina Silva (ainda que não tenha partido definido) surge nesse período como a principal opositora de Dilma Rousseff para as eleições de 2014. Vale ressaltar que em 2010, então candidata do PV, Marina disputou o pleito presidencial e no primeiro turno obteve a terceira colocação, recebendo cerca de 20 milhões de votos. A pesquisa realizada pelo IBOPE11 entre os dias 11 e 14 de julho de 2013, aponta que entre os mais pobres, 11% declararam que com certeza votariam em Marina Silva, percentual relativamente baixo. Porém, 25% declararam que poderiam votar. Assim, observa-se que essa précandidata aparece como uma opção até mesmo entre aqueles de baixíssima renda. O gráfico a seguir apresenta a comparação entre as duas candidatas mais mencionadas:

Assim, constata-se que a maioria dentre aqueles com renda mais baixa declararam que com certeza votariam em Dilma (39%) e cerca de ¼ (24%) afirmaram que poderiam votar. Contudo, ainda que apenas 11% tenham declarado intenção em votar em Marina, o percentual daqueles que afirmam que poderiam votar nessa candidata é bastante significativo (25%). Vale ressaltar o percentual elevado daqueles que não conhecem Marina suficientemente (22%). A rejeição às candidatas aparece em patamares relativamente próximos: 26% afirmaram que não votariam de jeito nenhum em Dilma Rousseff e 31% fizeram tal afirmação em relação à Marina Silva. O gráfico a seguir mostra o desempenho de Dilma Rousseff nessa pesquisa em comparação a outra pesquisa realizada pelo IBOPE12 entre os dias 14 e 18 de março de 2013:

Entre aqueles com renda familiar de até 1 salário mínimo, o percentual caiu de 63% em março para 39% em julho, dentre aqueles que afirmaram que com certeza votariam na candidata petista, uma diferença de 24 pontos percentuais. Já entre aqueles que declararam que poderiam votar, houve um aumento de 18% para 24%. A rejeição à candidata foi de 17% para 26%, uma diferença de 9 pontos percentuais. Vale ressaltar que Dilma Rousseff é conhecida por todos os eleitores entrevistados. Em relação à Marina Silva, considerando a mesma faixa de renda, há uma oscilação positiva

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de 3 pontos percentuais de março a julho, entre aqueles que afirmaram que com certeza votariam nela. Já a rejeição a essa candidata diminuiu 10 pontos percentuais em relação ao mesmo período. É possível afirmar que a candidata Marina ainda é pouco conhecida entre uma parcela considerável daqueles de baixíssima renda (22%), porém o fato de 25% dos entrevistados declarar que poderia votar nela, indica uma certa propensão dessa parte do eleitorado à essa candidata, dentre aqueles que a conhecem. Os dados são apresentados no gráfico a seguir:

Assim, coloca-se a seguinte situação: Marina Silva precisa se tornar mais conhecida entre o subproletariado (ela é conhecida entre os eleitores com renda familiar mais alta, e de certa forma aparece a esses como uma opção: na pesquisa IBOPE já mencionada, realizada entre os dias 11 e 14 de julho, 11% dos eleitores com renda superior a 10 salários mínimos afirmaram que votariam nela com certeza, porém 46% afirmaram que poderiam votar. Em relação a público, Marina é conhecida por todos) e Dilma Rousseff precisa novamente ganhar a confiança daqueles de baixíssima renda, além de melhorar seus índices, ao menos, entre aqueles com renda familiar intermediária. Considerações finais Durante o período das primeiras manifestações, de acordo com as pesquisas eleitorais, noticiou-se que Dilma Rousseff

venceria no primeiro turno13. Porém, depois de um mês, o cenário para a corrida presidencial era outro. As pesquisas aqui apresentadas realizadas após o período das manifestações demonstram que o cenário ainda é incerto, considerando a incerteza dos futuros acontecimentos. O próprio caráter das manifestações e o real impacto dessas a longo prazo ainda é incerto. Houve uma pressão inicial no Congresso Nacional, com aceleração na tramitação de uma série de propostas. Contudo, resultados concretos não foram vistos: os projetos principais, que relacionam-se diretamente com as reinvindicações mencionadas nas manifestações ainda estão em tramitação, com promessas de serem votados no segundo semestre de 2013. Uma manobra até cessar o “clamor das ruas”? De fato, além das manifestações, outros aspectos devem ser considerados, que talvez justifiquem a queda na intenção de voto de Dilma Rousseff e na avaliação positiva de seu governo: a alta do dólar e o impacto desse aumento nos preços; o fantasma da inflação; queda dos empregos na indústria; situação dos portos. Em 2014 (além de ser um ano eleitoral), o Brasil será sede da Copa de Mundo da FIFA. Há incertezas quanto a percepção da massa da população frente a esse evento e até 2014 isso provavelmente ficará latente. Os protestos que ocorreram em diversas cidades durante a Copa das Confederações (que antecede o evento principal), denunciaram os altos gastos com estádios de futebol, em oposição a realidade dos serviços públicos. Para além disso, pode-se afirmar que há uma percepção, ainda que inconsciente, que os reais beneficiados pelo fato do Brasil sediar uma Copa do Mundo, serão os grandes empresários, comerciantes, as pessoas com renda mais alta que frequentam aeroportos, e que a grande massa da população não será de fato, beneficiada.

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A postura de Dilma Rousseff frente à tantos acontecimentos presentes e futuros, as decisões a serem tomadas, e – tão importante quanto esses aspectos – a necessidade de alianças para sua candidatura, serão decisivos para uma possível reeleição. A seguinte citação exemplifica a necessidade de conciliação: “Uma constante na política nacional é a conciliação. Para a defesa de seus interesses, os grupos dominantes entram sempre em acordo, evitam rupturas e se compõem, de modo a se perpetuarem”. (IGLESIAS, 1995. p. 206). Essa citação se refere ao Brasil do século XIX e início do século XX, porém mostra-se extremamente atual. As medidas propostas por Dilma Rousseff precisam estar alinhadas com os interesses de sua base aliada. Apresentar propostas colocando a responsabilidade sobre o Congresso Nacional pode ser algo perigoso, apresentando efeito inverso do que o previsto.

6

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/ nacional,governo-sofre-reves-em-votacao-dosroyalties,1052112,0.htm, Acesso em 15/07/2013.

7

Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/ impresso,ninguem-sabe-hoje-quem-apoiara-dilmaem-2014-diz-rui-falcao,1052290,0.htm, Acesso em 15/07/2013. 8 Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/ impresso,pmdb-cria-banda-de-popularidade-paradecidir-se-fica-com-dilma-,1053324,0.htm, Acesso em 15/07/2013. 9

Disponível em http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/ Documents/CNI_IBOPE_edicao%20especial_jul2013_ web.pdf, Acesso em 26/07/2013.

10

Disponível em http://revistaepoca.globo.com/tempo/ noticia/2013/06/andre-singer-energia-social-naovoltara-atras.html, Acesso em 15/07/2013.

11

Disponível em http://www.ibope.com.br/ pt-br/noticias/Documents/JOB_1036_ ELEI%C3%87%C3%95ES%202014%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas.pdf, Acesso em 19/07/2013.

12

Disponível em http://www.ibope.com.br/ pt-br/noticias/Documents/JOB_0356_ ELEI%C3%87%C3%95ES%202014%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas.pdf, Acesso em 19/07/2013.

13

Disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/ politica/noticias/se-eleicoes-fossem-hoje-dilma-venceriano-primeiro-turno, Acesso em 19/07/2013.

Notas: 1

Disponível em http://www.ibope.com.br/ptbr/conhecimento/historicopesquisaeleitoral/ Documents/30_10_Tabelas.pdf. Acesso em: 26/06/2013

2

Disponível em http://www.ibope.com.br/pt-br/ noticias/Documents/JOB_2726-3_BRASIL%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas%20(imprensa).pdf, Acesso em 26/06/2013.

3

Disponível em http://www.ibope.com.br/pt-br/ noticias/Documents/JOB_2726-6_CNI%20-%20 Relat%C3%B3rio%20de%20tabelas%20(imprensa).pdf, Acesso em 26/06/2013.

4

5

Disponível em http://www2.planalto.gov.br/imprensa/ discursos/discurso-da-presidenta-da-republica-dilmarousseff-durante-reuniao-com-governadores-e-prefeitosde-capitais. Acesso em 15/07/2013. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/ nacional,quem-pediu-plebiscito-falta-gestao-dizpetista,1049875,0.htm. Acesso em 15/07/2013.

Referências Bibliográficas: IGLESIAS, Francisco. Trajetória Política do Brasil: 1500 – 1964. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SINGER, André. Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo. Disponível em: http://novosestudos. uol.com.br/acervo/acervo_artigo. asp?idMateria=1356. Acesso em 26/06/2013.

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Descrição do atendimento prestado por Instituições Socias de cuidados a saúde do Idoso

Juliana F. Cecato José Maria Montiel Daniel Bartholomeu José Eduardo Martinelli

Resumo

Abstract

Este estudo aborda a situação atual de atendimento aos idosos em municípios do Estado de São Paulo. O objetivo foi verificar o trabalho realizado nestas instituições, as principais dificuldades encontradas pelos profissionais que atuam na área, e também verificar a demanda de atendimento. Com base nos dados e em estudos publicados sobre o assunto constata-se que muitas instituições não estão funcionando da maneira prevista pela ótica da Lei de proteção ao idoso. É indispensável que as políticas públicas sejam postas em prática efetivamente através de mais fiscalização. Outro fator relevante é o fato de não ter sido encontrada nenhuma instituição pública (gratuita) para atendimento de pessoas com quadros de comprometimento cognitivo grave, como por exemplo a Doença de Alzheimer. Este perfil de paciente recebe atendimento em clínicas particulares em algumas vagas que são cedidas à sistema de saúde. A temática deste estudo visa alertar os profissionais da saúde e o setor público, especialmente na área de Assistência e Proteção Social, para a situação de atendimento aos idosos em municípios do Estado Brasileiro.

This study addresses the current status of elder care in the municipalities of São Paulo. The objective was to verify the work of these institutions, the main difficulties encountered by professionals working in the area, and also check the demand for treatment. Based on data and studies published on the subject notes that many institutions are not functioning as expected from the perspective of the elderly Protection Act. It is essential that public policies are implemented effectively through more supervision. Another relevant factor is the fact that there have been found no public institution (free) to care for people with severe cognitive impairment frameworks, such as Alzheimer's disease. This profile of patients receiving care in private clinics in some places that are transferred to the health system. The theme of this study is an alert to health professionals and the public sector, especially in the area of Social Assistance and Protection to the situation of elder care in municipalities of the Brazilian State.

Palavras -Chave

Key words Aging health, health services, Health care; Interdisciplinarity.

Saúde do idoso; Serviços de saúde; Assistência à saúde; Interdisciplinaridade. Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 102-109.

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Introdução A Gerontologia é uma ciência que se propõem esclarecer os aspectos do envelhecimento humano. Apesar de ser uma área relativamente nova, conta com um interesse crescente de vários profissionais da área da saúde, e vem oferecendo subsídios para o entendimento das questões da longevidade e do processo de envelhecimento através de interpretação científica dos fatos (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). À luz desta ciência procuramos analisar os aspectos relativos aos cuidados oferecidos a esta população, buscando apoio em trabalhos científicos e conhecendo como estão sendo aplicadas na prática as ações de suporte aos idosos, tendo como objetivo contribuir para uma melhoria no funcionamento dos programas existentes e despertar interesse de outros profissionais da área para esta realidade (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). O panorama atual em relação ao comportamento do idoso na sociedade moderna, os autores acima descritos apontam que se vive num mundo voltado ao material, onde ser jovem e bonito é um apelo constante em todos os meios de comunicação. Muitas vezes nos preocupase em atingir padrões de beleza inatingíveis, esquecendo-se da nossa verdadeira essência e a qual nos orienta para a busca da felicidade. Estamos acostumados a nos preocupar somente com nossos interesses e com as pessoas que estão muito próximas, e esquecemos que fomos feitos para viver em sociedade (NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). Esta sociedade é representada por um contexto mais amplo, que é constituida por amigos, familiares e/ou pessoas na mesma linha de experiência de vida, e que se necessita desta sociedade para poder viver bem e ser felizes (FERREIRA et. al., 2009). A definição de SAÚDE divulgada pela

Organização Mundial de Saúde (OMS) é ”bem estar físico, mental e social”, sendo o social um fator primordial para a conquista do equilíbrio físico e mental (NERI, 2010). Atualmente nota-se um aumento nos casos de depressão e insatisfação, e esta infelicidade muitas vezes esta sendo “resolvida” com medicamentos, através da chamada “Felicidade artificial” (DWORKIN, 1995). O autor alerta para a crescente prescrição de antidepressivos e calmantes que estão sendo usados por um grande número de pessoas, e que vem atingindo um público cada vez mais jovem. O panorama dos idosos em nosso país retrata esta triste realidade. A nossa sociedade é levada a não valorizar o idoso como sendo a pessoa mais experiente e que tem muitos ensinamentos a passar (CAMARANO, 2002; CHAIMOWICZ, 1998; MOREIRA et. al., 2010). Além disto, deve-se levar em consideração que o idoso dispõe de mais tempo para se dedicar às novas gerações, passando sua história de vida e seus conhecimentos, ajudando-os na sua formação (CHAIMOWICZ, 1998; RODRIGUES et. al., 2002). Nos países orientais estes valores são preservados, depositando no idoso o respeito e a valorização, conferindo-lhes o papel de zelar pela comunidade e o poder e direito de aconselhar os mais jovens. Sendo assim, constata-se que a expectativa de vida é mais alta e os problemas de saúde comuns aos idosos aparecem bem mais tarde (SANTOS, 2001). Atualmente as funções de aconselhar e lembrar não são valorizados, sendo negado ao idoso seu papel social e em conseqüência a velhice é oprimida, sendo visível a deficiência nas relações interpessoais (CHAIMOWICZ, 1998; CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). A velhice é um processo biológico natural para todos os seres vivos, e não deve ser encarado como um fator incapacitante para o indivíduo

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(NERI, 2007; PAPALIA et. al., 2009). Tem-se que evitar relacionar esta fase da vida com as doenças, pois a maioria delas já são diagnosticáveis e tratáveis, não sendo um fator de impedimento para se ter uma boa qualidade de vida neste período da existência (NERI, 2007). Nunca antes se teve tanta chance do homem chegar à 3ª idade com mais saúde. Isto se deve a vários fatores, como as melhorias em saneamento básico, os avanços da medicina, remédios mais acessíveis à população entre outros (CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). Entretanto, também se devem considerar as consequências que este aumento vem acarretando para a sociedade e, especialmente para os próprios idosos. Por isto é necessário colocar, urgentemente, em prática ações para uma real proteção da velhice (CAMARANO, 2002; MOREIRA et. al., 2010). É bem verdade que a Política Nacional do Idoso e mais especificamente o Estatuto do Idoso, são instrumentos que pretendem garantir perante o Estado e a sociedade os direitos da pessoa idosa. Contudo sabemos que para conseguirmos efetivar esta política, será necessária a união do estado, o engajamento da sociedade, e dos profissionais da área da saúde, visto que somos todos corresponsáveis neste processo (CHAIMOWICZ, 1998; Rodrigues et. al., 2002). Os meios e veículos de atendimento e proteção como mencionado acima sobre as leis de proteção ao idoso, atualmente também já foi ampliado o número de instituições de amparo a esta população. O Decreto nº 1.948, de 3 de julho de 1996, artigo 3º, especifica as formas distintas de atendimento ao idoso (ESTATUTO DO IDOSO, 2007), tais como: modalidade asilar e modalidade não asilar. É importante que o idoso permaneça, ao máximo junto à família, sendo, portanto, prioritário o atendimento não asilar. Contudo, por fatores diversos como os demográficos, sociais,

de saúde, de informação, de apoio as famílias, são crescentes a demandas pela institucionalização do idoso. E, quando a internação é inevitável, seja por falta de recurso da família ou por questões médicas, nos deparamos com dificuldades em localizar uma instituição asilar que se adéqüe ao perfil das necessidades daquele idoso e as necessidades da família (CAMARANO et. al., 2010). Na Portaria 810 do Ministério da Saúde de 22 de setembro de l989, do Ministério da Saúde, estão descritas as normas para o funcionamento das clínicas e casas de repouso destinadas a atender os idosos, quanto a sua definição, organização, área física e recursos humanos. Mas, infelizmente muitas instituições estão inadequadas para este atendimento e falta fiscalização para que os padrões exigidos sejam seguidos (ESTATUTO DO IDOSO, 2007). Seguindo os apontamentos anteriormente descritos, este estudo teve como objetivo verificar e descrever de acordo com visitas realizadas em Instituições de acolhimento de idoso, quais as características e peculiaridades em relação aos cuidados com a saúde do Idoso nestas instituições especialmente em relação a abordagem interdisciplinar para esta população. Métodos Para o cumprimento dos objetivos do estudo e a verificação desta situação de atendimento foram visitadas algumas Instituições no interior do Estado de São Paulo, especificamente a região de Metropolitana de São Paulo. Nestas visitas, buscava-se conhecer o funcionamento dos serviços de atendimento e habilitação para as atividades de zelo e cuidados com idosos em situação de internação. As instituições não serão identificadas prezando os preceitos éticos, bem como pelo respeito às atividades que são desenvolvidas em cada uma delas, desta maneira, serão descritas meramente

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como Instituição 1, Instituição 2, Instituição 3 e assim respectivamente. Resultados Instituição nº 1 A Instituição atende idosos de ambos os sexos, contando atualmente com 40 internos. A maioria com morbidades relativas ao processo de envelhecimento, e poucos casos de doenças neurológicas degenerativas. O atendimento é feito em regime integral (atendimento 24 horas), ou seja, todos os idosos residem no local. O local contam com uma equipe multidisciplinar composta por 01 médico geriatra, 01 psicólogo, 01 fisioterapeuta, 01 assistente social, 01 terapeuta ocupacional, 01 enfermeiro, e 01 nutricionista. Além de alguns cuidadores de idosos que estão em formação específica para esta função e os profissionais dos serviços gerais. A instituição é particular, porém recebe ajuda da Prefeitura a título de subvenção, e complementa sua receita através de ajuda da comunidade. Alguns dos internos que possuem renda contribuem com parte da aposentadoria, e as famílias que têm melhores condições ajudam financeiramente. A Instituição enfrenta as dificuldades comuns à maioria, tendo um orçamento restrito. Entretanto, pareceu funcionar normalmente, ofertando um atendimento de qualidade, o local era muito organizado e em ótimas condições de abrigo às pessoas que lá residem. Em análise, constata-se que deveriam ter mais profissionais para atendimento dos internos, pois embora exista a equipe multidisciplinar os mesmos permanecem poucas horas do dia na instituição. Inevitavelmente, os prestadores de serviços executam apenas as suas funções, e não há nenhuma dedicação adicional para um contato mais afetivo a fim de criar um clima ou ambiente

de convívio menos frio, tentando se aproximar, minimamente do que chamamos de um “LAR”, já que é lá onde residem. Excetuando-se os cuidados médicos, fisioterapêuticos e assistenciais já programados, a rotina se assemelha a de uma casa (não um Lar, como dissemos), porém sem uma programação motivacional. Não se desenvolvem expectativas nos idosos para uma atividade em que eles próprios descubram ou se sintam complementados por realizar atos que os façam sentir de alguma forma mais produtivos e realmente saudáveis. A infraestrutura do local não contempla introduzir quaisquer atividades, que trariam grandes benefícios para a saúde física, como, por exemplo, a hidroterapia. E também não oferece atividades como artesanato, leitura (individual ou para grupos), jogos de estimulação cerebral (dominó ou palavras cruzadas), que permitissem algum senso de competitividade, ou demonstração de habilidades individuais, como sendo elementos de motivação ou de admiração entre os integrantes do sistema. As atividades se fixam às rotinas limitantes como assistir televisão ou deslocamentos livres nas áreas externas. Uma rotina de preenchimento de carga-horária ressalta a falta de criatividade ou de maior interesse, visando exclusivamente o orçamento financeiro. Se for considerada a qualidade dos materiais e acessórios, o zelo na alimentação, o fiel cumprimento da administração de medicamentos, e aspectos importantes como limpeza e higiene, com certeza esta instituição se encontra à frente da maioria dos ambientes existentes para esta finalidade. Mas, é a falta de dedicação de profissionais na busca de soluções e progresso nas atividades dos idosos, que desenvolvem um quadro de estagnação e baixa produtividade (no que concerne ao contínuo e possível desenvolvimento físico e intelectual).

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Instituição nº 2 Outra modalidade assistencial, denominada como sendo escola para idoso. Este é um termo que deprecia o idoso, pois depois de viver toda uma vida, criar uma família e contribuir para a sociedade trazendo toda suas experiências e valores, ser remetido ao status de criança é certamente um desrespeito e não favorece em nada sua autoestima. Este tipo de instituição é o que poderíamos chamar de ideal para o atendimento a população idosa que tem sua capacidade física e mental preservada, pois proporciona atividades de lazer, alimentação para preencher seu dia a dia evitando que tenham que ficar em casa, muitas vezes, sozinhos. Nestas instituições, percebemos que o ambiente é mais alegre, com muitas atividades de lazer, como música, artesanato, grupos de conversa, etc. Também contam com aulas de ginástica, acompanhada por um professor de educação física, sendo sempre respeitado o limite de cada um. Como salientado anteriormente, esta modalidade de atendimento tem várias vantagens para o idoso, pois não tira o convívio com a família. Outro lado importante a ser ressaltado, é o social e econômico, pois este idoso possivelmente se manterá independente por muito mais tempo e com certeza com saúde melhor, evitando gastos médicos e internações, sendo um fator de economia para o Estado, e de amparo efetivo a saúde mental. Instituição nº 3 Outra Instituição denominada neste estudo como de Referência para Idosos pois é custeada por uma Prefeitura, oferece atendimento nas áreas da saúde, atividades físicas, lazer, orientação jurídica, entre outras. Esta unidade visitada ocupa uma área de quase 1.000 m2, com várias salas destinadas às diversas atividades.

A única exigência para cadastramento é ter 60 anos completos. Atualmente contam com 2.200 idosos cadastrados. Como é recorrente, a equipe multidisciplinar não está completa, e por fatores burocráticos e administrativos não há previsão de contratação dos profissionais necessários. Outro aspecto visível é que alguns profissionais não têm preparo específico para este atendimento. Esta modalidade é um exemplo de trabalho social muito interessante para a população idosa, pois também preserva o convívio com a família. Instituição nº 4 Os Centros de atendimento a 3ª Idade oferecem atividades sociais, de lazer e físicas entre outras. Existem na maioria dos municípios e são destinados aos idosos que preservam sua capacidade física e funcional. São muito procurados pelos idosos, e tem capacidade de atender um grande número de pessoas em várias atividades diferentes ao mesmo tempo. Este programa também é custeado pelas prefeituras e conta com uma equipe multidisciplinar. Em algumas unidades oferecem natação ou hidroginástica. O fator que percebemos relevante é a falta de pessoal para atendimento em tempo integral, uma vez que os profissionais prestam algumas horas de trabalho e não todos os dias. Instituição nº 5 As Faculdades para a terceira idade oferecem também vários cursos para idosos interessados em continuar exercitando sua capacidade intelectual, e também favorecem o entrosamento social. Os cursos são subsidiados e oferecidos por um pequeno custo. Os objetivos do programa são: Proporcionar às pessoas da 3ª idade a possibilidade de acesso a novos conhecimentos, estimulando-os a participarem de atividades educativas e recreativas; Auxiliar

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no processo de reinserção social dos seus alunos, qua através dos conhecimentos adquiridos e das atividades desenvolvidas poderão atuar na sua comunidade, com maior eficiência; - Conscientizar os alunos de seus direitos e deveres, estimulandoos a exercer plenamente sua cidadania. Para os que conseguem se engajar nestas atividades, o ganho em estimulo social, intelectual e autoestima valorizada contribuem muito para uma vida mais longa e mais plena. Instituição nº 6 As Clinicas de Geriatria para atendimento de idosos com comprometimento cognitivo são, geralmente, de caráter particular. Entretanto, algumas reservam poucos leitos para atendimento de pacientes encaminhados pelas Prefeituras. Uma especifica, conta com equipe de médicos, enfermeiras e auxiliares. O foco é atendimento à saúde, pois a maioria dos pacientes tem doenças degenerativas, como Alzheimer, Parkinson, Depressão e outras. O atendimento é de muito zelo aos idosos, tendo cuidados especiais na administração da medicação a cada paciente. Nesta instituição também não existe equipe multidisciplinar completa que possa realizar atividades de lazer e estimulo intelectual para aqueles internos que poderiam se beneficiar com os mesmos. Considerações finais Seguindo os objetivos deste estudo que foi caracterizar e analisar a estruturas de Instituição de cuidados ao idoso, podese obervar conforme descrito acima, diversas peculiaridades de tais Instituições, sendo muitas relacionadas a estruturas físicas, estruturais, entre outros aspectos. Porém o que realmente teve-se como objetivo que foi avaliar as condições de cuidados gerais e específicos de tais Instituições

para esta população, pode-se observar que estas não apresentam condições de proporcionarem cuidados específicos diante da demanda para a população idosa, especialmente no que se refere a equipes multidisciplinares, ou seja, as Instituições não apresentam um corpo de profissionais técnico e especializados neste tipo de atendimento, o que pode estar ocasionando comprometimento no desenvolvimento e manutenção dos internos. Varias pesquisas estão sendo realizadas no sentido de determinar quais os fatores que favorecem o envelhecimento saudável ou aparecimento de doenças durante este processo. Com isto, pode se perceber que manter os idosos ativos, dentro do contexto social e familiar, é a melhor maneira de conseguir uma longevidade plena e saudável (NERI, 2007; Neri, 2010; RIBEIRO et. al., 2007). Verifica-se que o mais comum é as pessoas procurarem o médico quando já estão doentes, por isso o tratamento torna-se mais difícil. A previsão é de agravamento do quadro atual a partir de 2025, quando haverá aumento sensível da população idosa no Brasil e no mundo. Por essa razão, defende-se a criação de políticas estratégicas de saúde para melhorar a qualidade de vida dessa faixa da população (WONG et. al., 2006). Os serviços de saúde, da forma como estão estruturados, não estão preparados para atender sequer a demanda atual. É necessário também melhorar a qualificação médica, além de promover um processo de entrosamento entre as diversas especialidades com vista a melhorar a saúde do idoso. Isto só confirma a realidade encontrada nas instituições analisadas neste estudo, que a despeito de serem necessárias e na maioria das vezes realizarem o melhor trabalho dentro das suas limitações estão longe de atender a real necessidade desta população. Um estudo que descreve a idade com a qual a pessoa se

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identifica, afeta seu desenvolvimento cognitivo, e consequentemente a memória. Os resultados apontam que as pessoas que se sentem mais velhas do que realmente são, tem maior disposição a serem pessimistas (RAMOS, 2002). A ideia da identidade vem da psicologia, que a define como “conjunto de significados que as pessoas têm delas mesmas, e definem o que significa ser quem elas são”. Para dar suporte ao estudo, os pesquisadores abordaram diversas outras pesquisas recentes que apontam os benefícios de sentirem-se jovens. ”São efeitos qualitativos como facilidade de lidar com doenças e uma satisfação geral da vida, assim como vantagens mais concretas, como redução do risco de deficiência, hipertensão e mortalidade” descreve. De acordo com a pesquisa, disposições negativas sobre habilidades mentais, de fato comprometem a performance da memória, particularmente nos idosos (POLLAK, 1992). Desta maneira, cabe aos profissionais da saúde e ao governo em particular, por em prática programas de prevenção e orientação para poder minimizar as consequências negativas de um crescimento rápido da população idosa. É imprescindível investir em programas de suporte aos idosos, criar mais cursos para cuidadores de idosos, desenvolver serviços de orientação e atividades culturais. Atividades preventivas e de reabilitação realizadas nas unidades de saúde são imprescindíveis para manter ou para resgatar a autonomia de idosos e poderão ter grande impacto na saúde dessa população.

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Discussões no Conselho: da cultura de Estado à cultura de Mercado – Um estudo sobre a ação do Conselho Federal de Cultura (1974 - 1990)

Renata Duarte

Resumo O presente artigo visa analisar a atuação política do Conselho Federal de Cultura - um órgão criado no período da Ditadura civil-militar brasileira que existiu até 1990, atravessando um importante período da História do Brasil, possibilitando desta

forma diversos questionamentos a respeito da concepção de Cultura. O artigo terá seu enfoque no período compreendido entre 1974 e 1990, com maior ênfase na década de oitenta.

Palavras -Chave Conselho Federal de Cultura; Lei Sarney; Políticas Culturais.

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Criado em 1966 no âmbito da ditadura militar, o Conselho Federal de Cultura tinha por missão atender a uma demanda do regime recéminstaurado: Formular uma política cultural para o país. Esse empenho governamental tinha por objetivo suprir um campo que sofrera deveras com a “limpeza” ideológica promovida pelo novo Regime, que extinguiu a Comissão de Cultura Popular, o Programa Nacional de Alfabetização, o Conselho Consultivo do Serviço de Teatro Nacional, entre outros. Uma vez calados os “focos difusores” de cultura subversiva, se fazia mister propor uma outra política cultural, que estivesse alinhada com a nova ideologia vigente. Tal preocupação pode ser vista já em 1965, quando - por meio de portaria ministerial1 - é composta uma comissão com a finalidade de formular uma política cultural. O presidente desta comissão: Josué Montello, idealizador do CFC e seu primeiro presidente. O Conselho Federal de Cultura nasce requisitando para suas cadeiras “personalidades eminentes da cultura brasileira e de reconhecida idoneidade.”2 Esses intelectuais eram nomeados pelo próprio Presidente da República para os cargos de conselheiros e vinham de outras instituições culturais, sobretudo as “tradicionais”, como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras. A admissão ao grupo era pautada pelo requisito formal do reconhecimento, o que tornava a avaliação baseada no “mérito”, na “eminência”, logo na subjetividade. Dessa forma, os mais aptos para julgar o mérito de um intelectual são seus próprios pares, que possuem a expertise necessária à avaliação. Essa lógica, já presente na ABL e no IGHB, foi incorporada à prática do Conselho Federal de Cultura que, apesar de formalmente ser escolhido e nomeado pelo Presidente da República, possuía o poder de

indicar aqueles considerados aptos a assumirem o cargo. Durante seu período de maior atuação (1967-1974) e consequentemente, de maior hermeticidade, apenas o nome de Raquel de Queiroz surge como sugestão do Presidente Castelo Branco, de quem era muito amiga. O CFC funcionava como um grupo restrito, no qual seus integrantes pertencentes a uma elite intelectual que atuava em diversas instituições, obtinham - com a titulação de Conselheiro - uma espécie de legitimação do seu poder simbólico no campo erudito da alta cultura, uma vez que seu assessoramento era direto ao Ministro da Educação e Cultura. A coesão do grupo era mantida primeiramente pela própria forma de seleção. Além dos atributos formais já descritos, Maria Quintela, em seu estudo sobre as elites culturais brasileiras (QUINTELA, 1984), atentará para o que ela nomeia de “quadro ideológico consensual”, que funcionaria como um requisito implícito para a convocação. Essa prática, institucionalizada na ABL e no IHGB, irá ser transplantada para o Conselho e será reforçada pela própria essência do Regime. O inventário dos espaços de sociabilidade frequentados pelos intelectuais que integraram o CFC indica a proximidade dessas personagens com os movimentos intelectuais surgidos a partir da década de 1920, especialmente o modernismo nas suas diferentes fases, o regionalismo, a “reação católica” e o integralismo. (MAIA, 2012, p.133)

O movimento modernista surgido na década de 20 não foi uníssono, ao contrário, teve diversas formas de expressão. Se avaliarmos a trajetória dos componentes do CFC, veremos uma forte ligação com o Movimento Verde e Amarelo e o Grupo Anta3. Preocupados em definir os

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contornos da brasilidade, esses grupos acabaram divulgando ideias ufanistas, que buscavam em elementos considerados representantes da essência nacional a representação da brasilidade4. Muitos desses intelectuais foram cooptados para dentro do aparelho estatal, principalmente durante o período do Estado Novo. Sua preocupação em definir o ethos nacional foi apropriada durante o período e culminou em dois pontos principais: a forte ligação entre cultura nacional e consolidação do Estado e a legitimação do intelectual como “homem de pensamento e ação”5. Uma vez que essa cultura do intelectual - para além de um produtor de cultura - como um homem de atuação política é consolidada no interior do Estado, inúmeros personagens passam a fazer parte dessa organicidade. Suas práticas políticas os levam a manter-se na presidência de instituições, na reitoria de universidades, em mandados no legislativo, em cargos políticos no interior de ministérios, em suma, no interior da máquina estatal. Instaurado o Regime Ditatorial iniciado com o Golpe de 1964, esses intelectuais já reconhecidos no interior da sociedade, os chamados “intelectuais tradicionais” na perspectiva gramsciana, são recrutados para elaborar a política cultural brasileira. Esse recrutamento buscou os elementos tradicionais e conservadores desses indivíduos. Sua função, mais do que produzir uma diretriz cultural, era legitimar a existência do próprio regime, uma vez que sua presença “tradicional” indicava continuidade, e não ruptura. O Estado concretizaria dessa maneira uma associação com as origens do pensamento sobre cultura brasileira (ORTIZ, 2012). Os principais ideários que norteavam

as ações do CFC eram o civismo e a tradição. Os esforços para a criação de um sentimento cívico no Brasil datam do final do século XIX. Com a instauração da República (1889) era necessário criar a “História da Pátria”, mais que isso, era necessário gestar uma cultura nacional que funcionasse como um amálgama da nação. O Estado Novo, notadamente, teve um importante papel nesse processo de construção do sentimento de pertencimento. Com o Golpe Militar de 64, esse ideal é retomado para compor as bases de sustentação do regime. Para poder analisar a importância do civismo no interior de uma sociedade autoritária é importante contrapô-lo ao conceito de cidadania. “O ideário cívico na ditadura civil-militar foi gestado dentro dos padrões estabelecidos pelo fenômeno da cidadania; contudo, radicalizado pelo pensamento conservador e nacionalista, sobrepôs-se ao fenômeno originário” (MAIA, 2012). Na lógica adotada como sustentáculo do regime, os deveres cívicos do cidadão eram postos antes de seus direitos, e o Estado, para cumprir o seu dever maior de defesa da pátria, estava autorizado a retirar do cidadão esses direitos. Os direitos dos cidadãos – civis, políticos ou socais – poderiam ser restritos em nome do “bem maior”, uma vez que um ideal de preservação da coletividade se sobrepunha ao direito do indivíduo. O CFC incorporou o conceito de civismo aos seus discursos, associando-o a noção de cultura, que teria por finalidade realçar os elementos que compõe a nação, fortalecendo o sentimento de pertencimento a uma coletividade. A visão conservadora e otimista trazida pelos integrantes do Conselho em relação à cultura brasileira tornava-se assim um dos pilares de legitimação do regime. Em termos concretos isso

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se caracterizou no interior do CFC pela produção de obras dedicadas ao tema, pela comemoração de efemeridades, pela preservação de monumentos, pela defesa e valorização de manifestações folclóricas, ou pelo reconhecimento dos feitos dos “grandes homens” que compuseram a nação. O Estado era compreendido como um defensor dessa cultura nacional. Sua função consistia em protegê-la das influências alienígenas6 que concorriam para descaracterizá-la. Sob tal visão o intervencionismo era visto como uma ação defensiva e não como uma atuação política, e suas ações ganhavam a aparência de neutralidade. Vale frisar que os debates ocorridos em torno da censura nunca foram consensuais entre os conselheiros, e que a posição destes sempre convergia em torno de um pedido por maior liberdade de criação artística, e por uma censura efetivada no interior do MEC. Porém o papel do Estado como defensor da “verdadeira” cultura brasileira frente à cultura soviética, por exemplo - entendida pelos conselheiros como “cultura para todos” em contraposição a cultura democrática nomeada de “cultura para cada um” – era sempre referendado pelo Conselho7. Dentro desta perspectiva, o aspecto preservacionistapatrimonialista era de suma importância, uma vez que a conservação desses “lugares de memória” era vital para a perpetuação da “verdadeira cultura brasileira”. O período de maior atuação do CFC compreende os anos de 1967 a 1974, período no qual desempenha um importante papel que envolvia desde a distribuição de verbas para instituições culturais, firmamento e fiscalização de convênios, definição das áreas de atuação do Estado, organização de campanhas para promover a cultura nacional até financiamento para publicação de diversas obras, e ainda sob sua orientação foram implantados vinte Conselhos

Estaduais de Cultura em apenas três anos. Esses Conselhos Estaduais eram similares ao Conselho Federal, e sua instrução era para que todas as ações de cultura locais – estaduais e municipais - passassem por seus respectivos Conselhos, e que esses, em conexão com seu representante na esfera federal, estabelecessem a “integração da nação”, sempre orientados por essa instância superior. Em termos gerais, o CFC consolidou o início de uma rotina burocrática para a Cultura no interior do Estado civil-militar. Por mais que os Conselhos Estaduais e Municipais carecessem, em sua esmagadora maioria, de recursos para efetivar o funcionamento pleno de suas atividades, é inegável a importância da implementação dessa organicidade. Conscientes desse importante papel, os Conselheiros relembraram que o CFC foi o germe do posterior Ministério da Cultura. Após 1975, os limites da inserção de um pensamento tradicional no interior de um Estado tecnicista-progressista começaram a se revelar com cada vez mais intensidade. Esse marco temporal dialoga com a periodização proposta por Gabriel Cohen (COHEN, 1984), e é adotada também por Renato Ortiz (ORTIZ, 2012), entre outros pesquisadores do campo da cultura. Em sua análise ele pode identificar dois movimentos distintos na posição do Estado em relação à cultura: o primeiro compreende os anos de 1966 até 1974, marcados pela “entrada” do Estado na cena cultural; o segundo partindo de 1975, quando se pode observar a centralização das políticas pela cúpula do executivo, esvaziando grupos no interior do MEC (Ministério da Educação e Cultura) entre eles, o Conselho, que começa a perder suas funções executivas para órgãos como a DAC - Diretoria de Ação Cultural, a Funarte - Fundação Nacional de Arte e a Fundação PróMemória.

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O ano de 1974 significou uma mudança na concepção de Cultura, posta em ação pelo novo Ministro da Educação e Cultura, Ney Braga. Neste ano o Conselho sofreu o primeiro impacto resultante de sua perda de poder de ação. No seu decreto de criação, entre suas atribuições, estava a elaboração de um Plano Nacional de Cultura. Apenas seis meses após sua criação o CFC apresentou seu primeiro anteprojeto de estruturação do plano. Basicamente consistia na instituição de uma rede de auxílios às instituições “clássicas” ligadas ao setor cultural, a saber, Biblioteca Nacional, Museu Histórico-Nacional, Museu de Belas Artes, Instituto Nacional do Livro, Instituto Nacional do Cinema, Serviço Nacional de Teatro, Serviço de Radiodifusão, Diretoria do Patrimônio Artístico Nacional, e as demais instituições subordinadas ao MEC. O foco do Plano era a formação de uma infraestrutura nas instituições culturais e, com isso, a preservação do patrimônio. As instituições deveriam apresentar um plano quadrianual para estarem aptas a receber os recursos, que por sua vez eram distribuídos pelo CFC. Apesar dos discursos de valorização da cultura regional, as instituições nacionais é quem seriam mais bem assistidas, pois as mesmas deveriam servir de modelo para as instituições estaduais e municipais, demonstrando um traço centralizador do plano8. As dificuldades de aprovar o Plano junto ao governo levaram o Conselho a modificar mais duas, ou três vezes o projeto - como nos relata Isaura Botelho em seu livro-depoimento (BOTELHO, 2001) - mesmo assim sem sucesso. Em seu lugar, fora aprovada a Política Nacional de Cultura, elaborada por uma comissão técnica ligada a DAC. O caráter do PNC aprovado9 demonstrava a mudança de orientação que a cultura estava passando. A posição desses intelectuais tradicionais

em relação ao desenvolvimento efetivado pelo Milagre Brasileiro era sempre indicadora de tensão. Seu posicionamento nas plenárias era revelador de uma concepção que opunha, sempre de maneira subjetiva, a técnica e a cultura. Para exemplificar esse pensamento, Renato Ortiz, realiza uma analise desses conceitos na obra de Gilberto Freyre. Segundo o autor: (...) uma dimensão do universo do pensamento tradicional, que associa intimamente o conceito [cultura] a valores como tradição, religião e humanismo. A polaridade cultura/ técnica não é de natureza conceitual, mas ideológica, e tende a vincular o último termo a todo um mundo de valores que corresponde ao progresso técnico material e à economia (ORTIZ, 2012, p.102).

No interior do discurso do conselho essa tensão aparecerá representada no conceito de “humanismo”. A noção de humanismo é trabalhada abarcando toda uma concepção tradicional de cultura brasileira. Segundo os Conselheiros, a verdadeira essência, o estrato cultural “natural” do brasileiro, seria a vocação para o Humanismo, que nos dias atuais, por desorientação da sociedade, estava sendo substituído por uma noção “tecnicista” e “economicista”, corrompendo a intelectualidade da nação. Em contraposição, o intelectual humanista, era o intelectual tradicional, com uma formação bacharelesca, complementada com o refinamento da cultura erudita. Um dos conselheiros em sua análise sobre a mudança na característica dos intelectuais modernos, utilizou a expressão “asfixia do humanismo”, causada por um movimento que, posterior à Revolução de 1930, teria supervalorizado essa nova concepção de pensamento: a tecnocracia. Esse novo intelectual tecnicista, que segundo o CFC,

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seria carente de “cultura geral” e “consciência do progresso”, era o resultado de um processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, que durante os anos do Milagre Brasileiro alcançava um pico. No que consistia a cultura a crítica era a mesma, o “popular” era representante da verdadeira brasilidade, enquanto que a cultura de “massa” era associada à técnica, a quantidade e a consequente falta de qualidade. A nova dinâmica capitalistainternacionalista que estava sendo rapidamente incorporada ao cotidiano do brasileiro impunha novas demandas ao Estado. O crescimento econômico forçou uma mudança de vida drástica para a população. A onda de migração gerou um rápido processo de urbanização, que consequentemente criou novos espaços possíveis de fruição cultural; surgia uma incipiente classe média, mas também aumentavam as desigualdades sociais. A lógica do capital trouxe consigo um mercado consumidor de bens materiais, que demandava toda uma elaboração de bens simbólicos para legitimá-lo. Para tal são criadas nessa época a Telebrás, a Embrafilme, a Funarte, a Radiobrás, a inserção da TV em cores, os grandes conglomerados de mass mídia, como a Globo e o Grupo Abril, entre outros, que eram incentivados por um Governo que se valia do amplo alcance midiático que os conglomerados passavam a ter para divulgar as ideias chave do Regime, como o “Brasil Grande” e “O país do futuro”. Pouco a pouco, a lógica do mercado era incorporada a “cultura nacional”. Em resposta a essas demandas, e se contrapondo ao projeto tradicionalista do CFC, o DAC, e os novos órgãos de cultura da estrutura do MEC, começam a tomar como diretriz a distribuição de bens culturais e o incentivo ao seu consumo. A vertente preservacionista não desaparece, mas deixa de se configurar como

prioritária. O discurso oficial, de incentivo ao consumo de bens culturais, ganha uma significação que merece atenção. Se buscarmos a introdução do Ministro Ney Braga, intitulada “Cultura para o Povo”, publicada em 1976 na primeira Revista Cultura editada pelo MEC, e não mais pelo CFC, veremos o seguinte discurso: O Ministério rejeita a tese de que a atividade criadora e a função de seus benefícios é privilégio das elites. Essa concepção corresponde a regimes sociais estratificados, aristocráticos ou oligárquicos. (REVISTA CULTURA, n°20, 1976)

O discurso proferido pelo próprio Ministro da Educação e Cultura demonstra um importante processo que estava em curso: Ao contrapor o acesso aos bens culturais a um ideário de sociedade oligárquica, a resultante que se tem é a associação entre “fruição cultural” e “democracia”. Um governo que propicia a sua população o acesso à cultura é um governo que promove a “democracia”, em contraste com a desigualdade de uma sociedade estamental. A cultura popular passa a aparecer nos documentos estatais como a “real” cultura brasileira, compartilhada pela massa, em oposição à cultura elitista, aristocrática, de acesso restrito apenas a alguns, que não poderia representar o “povo brasileiro”. Os desdobramentos dessa leitura são expostos por Ortiz: O mercado, enquanto espaço social onde se realizam as trocas e o consumo, tornase o local por excelência, no qual se exerceriam as aspirações democráticas. (ORTIZ, 2012, p.116)

Era o princípio de um processo de realocação do espaço destinado a realização da cidadania. Retido seu campo político de atuação, a cidadania começa a ser percebida no campo

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do mercado, ligada ao consumo. Desta maneira, o Estado brasileiro atendia a duas importantes demandas: explorava a potencialidade do mercado consumidor de bens culturais, e sustentava uma ideologia que identificava a sociedade brasileira como cada vez mais democratizada. A abertura no regime trazia consigo um vasto investimento no campo cultural. O Regime Militar compreendeu dois fenômenos que a priori poderiam parecer contraditórios: Foi a época em que mais se produziu e se difundiu cultura, ao mesmo tempo foi o período de maior perseguição política e controle ideológico. A censura não bloqueava toda a forma de expressão cultural; ela apenas impedia a divulgação de um tipo de cultura, a cultura politizante, cujo objetivo pedagógico visava conscientizar politicamente as massas. Em meio a esta conjuntura, o CFC foi esvaziado de seu poder político, se tornando um órgão pouco expressivo, com baixas dotações orçamentárias, mas que continuava a existir no organograma do MEC. Essa situação se manteve praticamente imutável, mas um acontecimento trazia consigo novos ares: A redemocratização. Celso Furtado, que assumia em 1986 já como terceiro Ministro de uma pasta criada há apenas um ano, a da Cultura, faz uma leitura da situação que merece citação: Vivemos um momento histórico muito particular. Não necessita ser nenhuma “águia”, como se diz, nenhum pensador extraordinário, para sentir que vivemos uma fase muito especial de nosso país, de nossa História em geral. Como a cultura é, de alguma maneira, o segmento mais sensível da vida social, aí a coisa se apresenta com maior força: este momento de tensão em que vivemos. Pode-se chamar de transição, de crise ou de tudo o que se queira; mas, na verdade, não se pode negar que estamos atravessando uma fase muito

particular de nossa História, como se o país estivesse mudando alguma coisa; mudando não digo de fisionomia ou de face, mas em alguns de seus elementos. A História, evidentemente, não obedece a leis que o homem haja descoberto ou inventado. Ela sempre nos surpreenderá. Sempre será alguma coisa que, num momento, virá para nos enriquecer, ainda que seja para nos esmagar.10

A fala do então ministro da cultura Celso Furtado não poderia ser mais precisa. Nos anos que compreenderam o processo de redemocratização do país, a sensação era de transformação. A sociedade clamava por reformas e temia retrocessos. Uma vez livre do julgo autoritário, era chegada a hora de se repensar o Brasil. E repensar o país incluía repensar principalmente suas instituições governamentais. Estava aberto um período de disputas e resignificações de poderes. No campo da cultura a principal mudança consistia na separação, em dois ministérios, das pastas da Cultura e da Educação. O projeto de criação do novo Ministério pertencia a Tancredo Neves, o primeiro presidente da “Nova República” que surgia após vinte anos de ditadura civil-militar, eleito por voto indireto através do Congresso Nacional. Porém, quem levou a frente a iniciativa foi o Vice-Presidente, José Sarney. Tancredo Neves fora internado um dia antes de sua posse, vindo a falecer cerca de um mês depois. A proposta de criação de um novo Ministério gerava controvérsias. Pessoas ligadas aos órgãos de Cultura temiam que se estivesse trocado uma Secretaria “forte” por um Ministério “fraco”, não apenas do ponto de vista orçamentário, como também político. Na sociedade civil, alguns setores lançavam críticas, nem sempre bem fundamentadas, a respeito da necessidade de se criar um Ministério da Cultura

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em um país subdesenvolvido como o Brasil. Não desprezando também o receio que existia de que o Ministério adotasse uma postura intervencionista para a Cultura. Em 1986, apenas um ano após a criação do Ministério, um importante marco para a cultura ocorreu: após sua aprovação no congresso, a Lei 7.505/86, que ficou conhecida como Lei Sarney, fora anunciada. Defendendo a lei originária do projeto que havia auxiliado reformular, estava o Ministro Celso Furtado. A concepção de funcionamento da lei era simples: qualquer cidadão poderia abrir mão de parte do valor devido ao governo em seu imposto de renda, para incentivar uma atividade cultural. Um exemplo do funcionamento do mecanismo é dado pelo próprio Ministro em um programa de TV da época: Bem, para participar da Lei Sarney é necessário que a pessoa seja contribuinte do imposto de renda. Digamos que esse seu quitandeiro seja contribuinte do imposto de renda. Ele precisa, portanto, ser educado nessa direção, é necessário que ele compreenda que uma iniciativa cultural que diz respeito a sua própria vida também passa a depender dele. Se ele está numa cidade pequena, por exemplo, e necessita de um espaço cultural que não existe - de uma biblioteca, de um setor, um lugar onde, por exemplo, se possa ter cinema amador, apoiar grupos de teatro local, qualquer atividade cultural -, ele pode tomar a iniciativa e se reunir com um grupo de pessoas e contribuir com seus próprios recursos para a efetivação desse projeto. (…) Nós queremos é que na cidade onde está esse quitandeiro, as pessoas que fazem teatro, as que se interessam por cinema amador, as que se interessam por qualquer forma de vida cultural, que essas pessoas se organizem, apresentem seus projetos e façam uma campanha dentro de sua própria

comunidade - como se diz, ‘passem um pires’ - e digam: ‘Olha, você que vive aqui, não quer melhorar as condições de vida dessa comunidade?’ Pois nos organizemos11.

A fala do Ministro deixa implícita parte da ideologia contida na iniciativa. Em seu discurso não são as empresas as convocadas para utilizar a Lei, mas os grupos locais, os que residem na comunidade. Ao disponibilizar o incentivo fiscal como forma de financiar as atividades culturais elegidas pelas associações comunitárias, se transfere a essas associações, o poder de escolha desta seleção. Ao conclamar a sociedade a se organizar para acessar a Lei, Celso Furtado realiza um discurso de empoderamento: E a Lei Sarney veio para, não propriamente para canalizar recursos para a cultura, mas para incitar a sociedade a assumir a iniciativa no plano da cultura. Porque a tendência deste país é tudo esperar do governo, inclusive na cultura, e a Lei Sarney, diz o seguinte: ‘Vocês, instituições culturais da sociedade civil, grupos, etc., tomem a iniciativa, busquem recursos, controlem os recursos’. E o Estado está aí para apoiar essas iniciativas, mas não para substituir a sociedade. (RODA VIVA, TV CULTURA)

O posicionamento adotado por Furtado estava em consonância com diversos apontamentos internacionais relacionados à cultura, como as questões colocadas na Conferência Mundial de Políticas Culturais que ocorrera quatro anos antes de sua posse no México, e cujo documento final não apenas entendia cultura em seu sentido amplo, como sendo “o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social”, como também, no que concerne democracia

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cultural, “não pode ser privilégio das elites nem quanto à produção, nem quanto aos benefícios”. Pois “democracia cultural supõe a mais ampla participação dos indivíduos e da sociedade no processo de criação dos bens culturais, na tomada de decisões que concernem à vida cultural na sua difusão e fruição” (DECLARAÇÃO DO MÉXICO)12. Observando estas mudanças sociais em curso, estava o Conselho Federal de Cultura. Conscientes do processo de realocação de forças que estava ocorrendo no período de redemocratização, os Conselheiros alertavam uns aos outros sob a possibilidade de ganho de poder político, uma vez que o CFC depois de relegado a esfera apenas normativa, havia sido esvaziado de seu poder de ação. As dotações orçamentárias destinadas ao Conselho eram sempre motivo de reclamações em plenárias, e até suas publicações periódicas, ou passaram para controle do Ministério, como no caso da Revista Cultura, ou tiveram várias vezes sua publicação interrompida como no caso do Boletim do Conselho Federal de Cultura - consistia no “espelho fiel” de suas plenárias, para conhecimento do público13 - que chegou a ficar três anos sem publicar um único número e que ainda hoje possui números inéditos guardados em arquivo. (...) gostaria de lembrar que, muito em breve, haverá uma nova administração no País. De toda parte, está havendo sugestões para modificação de órgãos públicos. (...) Creio que seria oportuno que o Conselho, nesse momento, se repensasse um pouco. (BOLETIM DO CONSELHO FEDERAL DE CULTURA, N° 58-59, 1985)

A proposição feita por Sábato Magaldi demonstra essa preocupação, revelada em inúmeras outras falas. Os Conselhos sentiam sua impotência junto às decisões que estavam sendo

tomadas. O projeto de Lei n° 7.793 era de suma importância para o cenário cultural brasileiro, e sua passagem pelo Congresso Nacional mobilizou os Conselheiros, que se utilizou de seu prestígio nos meios políticos para propor uma emenda ao PL 7.793, que originaria a Lei Sarney. Por um posicionamento político, Celso Furtado fez questão de que o Projeto de Lei tramitasse normalmente pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, ou ao invés de se valer das “medidas-provisórias”, como relata Fábio Magalhães, presidente da Funarte no período (MAGALHÃES, 2012)14. Seu intuito era darlhe força política, e coerência, uma vez que o principal objetivo da lei, segundo o Ministério, era redemocratizar a cultura. Durante a tramitação na Câmara dos Deputados são propostas nove emendas parlamentares, das quais são aprovadas pelo Congresso apenas duas. Uma delas, a proposta nove, apresentada por Bonifácio de Andrada, vicelíder do PDS (Sucessor do ARENA), consistia em uma modificação na forma de controle da Lei: EMENDA DE PLENÁRIO AO PROJETO DE LEI N° 7.793, DE 1986, DO PODER EXECUTIVO: Inclua-se, onde couber, o seguinte artigo: “Art As doações, patrocínios e investimentos, de natureza cultural, mencionados nesta lei, serão comunicados ao Conselho Federal de Cultura, para que possa acompanhar e supervisionar as respectivas aplicações, podendo, em caso de desvios ou irregularidades, serem por ele suspensos. § 1º O Conselho Federal de Cultura, nas hipóteses deste artigo, será auxiliado, repectivamente, pelos Conselhos Estaduais de Cultura e pelos Conselhos de Incentivos Culturais, a serem instalados nos Municípios, segundo Resolução daquele. § 2º Os Conselhos de Incentivo Cultural serão compostos de membros

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designados pelo Conselho Federal de Cultura, pelos Conselhos Estaduais de Cultura, pela Municipalidade respectiva e por fundação com representatividade expressiva, existente na localidade.

Para justificar a proposição de sua emenda ao Congresso, o Deputado Bonifácio de Andrada não poderia ser mais assertivo: A emenda visa prestigiar o Conselho Federal de Cultura que é o órgão competente para tanto, permitindo que seja auxiliado pelos Conselhos Estaduais de Cultura e pelos Conselhos de Incentivo Cultural dos municípios, os quais são instituídos nesta lei. As entidades municipais, estaduais e a federal, assim envolvidas no sistema, irão permitir que a comunidade possa fiscalizar diretamente a aplicação dos benefícios fiscais, obtidos por esse projeto. Sala das Sessões, 19 junho de 1986 – Bonifácio de Andrada, Vice-Líder do PDS.” (Grifo meu) ( D.O p. 6.281 a 6.285)15

A emenda aprovada, porém, encontraria dois vetos presidenciais. Os Conselhos de Incentivo Cultural, por terem sua criação determinada por Lei Federal, atentavam contra o princípio de autonomia dos entes da federação, fugindo às prerrogativas da União determinar a criação de um órgão municipal. Desta forma foram suprimidos os capítulos um e dois, sendo incorporado à lei somente o corpo do Artigo, que na Lei se tornou o de número doze. A Lei inicialmente buscava criar uma organicidade entre os Conselhos, reavivando um antigo projeto do CFC, na medida em que delegava ações não apenas para ele, como também para os Conselhos Estaduais, que se encontravam em uma situação pior que a enfrentada pelo Conselho Federal, no que concernia à participação política e orçamento. A restrição jurídica às designações subsequentes ao

artigo 12 restringiu as possibilidades ofertadas ao CFC. Subsequente à aprovação da Lei, o que se assiste é uma disputa de projetos políticos para o campo da cultura, encarnadas nas posições do Ministro Celso Furtado e do CFC. Para os Conselheiros, que se utilizavam da força do artigo contido na Lei, que fora democraticamente votada, os investimentos culturais feitos com recursos provindos da isenção fiscal deveriam passar por um crivo técnico, que debateria o valor daquele projeto. Consonantes com seu entendimento de que o desenvolvimento cultural nacional que se almejava estava intimamente ligado à valorização e difusão da chamada “cultura erudita”, o CFC se propunha como um corpo técnico apto a elaborar esse julgamento, uma vez que ali se encontravam personalidades eminentes da cultura brasileira, ligados às diversas formas de manifestação artística. A concepção de empoderamento da sociedade defendida por Furtado entrava em franca contradição com a proposta do Conselho, uma vez que para ele, deveria caber somente à sociedade o poder de escolha dos bens culturais a serem incentivados. Não era admissível, se analisarmos os discursos de defesa da Lei proferidos pelo Ministério, que um grupo de intelectuais, pertencentes a esferas governamentais, tivesse um poder de veto sob uma escolha realizada pelo corpo social. Os constantes embates políticos ocorriam não apenas nas plenárias do CFC durante as visitas do Ministro, mas por diversas vezes tomaram os jornais do país, onde os conselheiros realizavam frequentes contribuições. Vasco Mariz, por exemplo, escreve um editorial no Estado de São Paulo, onde explicita a concepção defendida pelos conselheiros:

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Parece-me que o grande problema do Minc é identificar a real filosofia da Lei Sarney, ou melhor ainda, como definir o tipo de cultura que merece ser assistida. (...) Numa época de enorme aperto econômico, o fisco não pode, nem deve abrir mão dos descontos sobre os impostos das empresas que não sejam efetivamente imprescindíveis à concretização de um valioso ato cultural. Creio que, se o Minc e o Conselho Federal de Cultura aceitarem esse requisito, estarão dando um passo importante para salvar a Lei Sarney. (...) É preciso apoiar a cultura de alto nível e não ajudar a nivelar por baixo, como se vem fazendo lamentavelmente. É necessário educar o povo, e não descer até o baixo nível cultural das massas16.

A primeira resposta do Ministro Furtado a essa questão foi propor uma série de reformas na composição do Conselho Federal de Cultura, todas barradas graças à força política dos membros do Conselho. A resposta do Ministério a essa problemática, mesmo após a saída do Ministro Celso Furtado, foi a extinção tácita do órgão. Foi reconhecida publicamente a necessidade dos projetos serem aprovados pelo Conselho, mas não foi dado a esse, meios de efetivar sua fiscalização. As dotações permaneceram baixas, o quadro de funcionários subordinados ao órgão pequeno e os projetos, com volume cada vez maior, não eram repassados ao CFC. A disputa ideológica em torno da Lei 7.505/86 perdurou até a data de extinção de todos os agentes em questão: O Ministério da Cultura, o Conselho Federal de Cultura e a própria Lei Sarney, todos afetados por designações do Presidente Fernando Collor de Melo, que no ano de 1990, extinguiu por decreto o Minc e diversos órgãos a ele subordinados, incluído o CFC; revogando a Lei Sarney, e modificando toda cena cultural brasileira.

O projeto defendido pelo Conselho Federal de Cultura não encontrou espaço para se efetivar, não pelo embate ideológico com o Ministro, ou com o Ministério da Cultura, mas por causa de um motivo mais profundo, conjuntural. O cenário cultural nos países ocidentais havia mudado, os conceitos internacionalmente defendidos eram outros. A apropriação de uma lógica capitalista para produção dos bens simbólicos modificará todo aquele contexto que fora conhecido pelos Conselheiros, décadas antes. A cisão de ideário ocorrida ainda no período ditatorial demonstra esse fato. Por mais que houvesse similaridade nas concepções políticas do CFC e do Regime, a adesão ao projeto governamental também possuía uma vertente econômico-progressista, que inseria no Brasil toda uma lógica capitalista que modificava as bases socais do país, alterando consequentemente a Cultura produzida, uma vez que essa existe enquanto suporte simbólico relacionado à realidade social vivida. Ortiz, citando Gramsci, falará em “ideias que não movem mais pessoas”, Roberto Schwarz utilizará o conceito de “ideias fora do lugar”. O pensamento “tradicional” defendido pelo CFC fora preservado durante os anos de existência do órgão graças a sua forma de seleção, formal e informal. Sua existência no interior da esfera governamental não demonstrava uma contradição entre dois discursos governamentais distintos: um tradicional e um administrativo. O que existia era um único discurso, que buscava reinterpretar a sociedade brasileira, só que sua existência se dava em um contexto conjuntural determinado, que não permitia mais a propagação do discurso “tradicionalista”, por isso que suas pretensões não se convertiam mais em ações. Acima dos projetos defendidos pelo CFC e pelo Minc, estava a conjuntura da Cultura Brasileira na década de

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80, e se analisarmos em termos práticos, a rápida apropriação da Lei Sarney efetivada pelo mercado demonstra que também o projeto defendido por Celso Furtado não encontrou um campo favorável à sua recepção, mas isso já é assunto para outro artigo.

Notas: 1

Portaria ministerial de 20.05.1965 (D.O. 27.07.1965 p. 7.256)

2

Decreto-lei nº 74 de 21.11.1966

3

Para um debate aprofundado sobre as vertentes do movimento modernista, ver Graziela Forte O projeto Nacional dos Modernistas. Revista Ponta de Lança, São Cristóvão, v2, n4, abr.-out 2009.

4

Não irei me deter em uma análise pormenorizada do movimento por fugir dos objetivos desse trabalho. Para uma analise do Movimento Modernista Carioca ver de Ângela de Castro Gomes Essa gente do Rio... os intelectuais cariocas e o modernismo. In Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v 6, n 11, 1993 p. 62-77

5

Expressão utilizada diversas vezes durante as plenárias do Conselho para definir o “verdadeiro intelectual”.

6

Termo utilizado pelo CFC para designar as influências culturais nocivas vindas do exterior.

7

Para detalhes dos conceitos de “cultura democrática” e “cultura soviética” vide Boletim do Conselho Federal de Cultura, n°69, 1987.

8

Para um debate aprofundado sobre o Plano Nacional de Cultura e as posteriores Diretrizes para uma Política Nacional promovida pelo CFC ver Cardeais da Cultura Nacional, Tatyana Maia, p.213.

9

Para um aprofundamento no estudo do PNC aprovado em 1975 ver Paula Reis Políticas Nacionais de Cultura: O documento de 1975 e a proposta do Governo Lula/Gil.. Anais do V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2009.

10

Discurso de Celso Furtado no Conselho Federal de Cultura. Sessão plenária de 09 de novembro de 1987. Não publicada.

11

Idem.

12

Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/portal/ baixaFcdAnexo.do?id=255> Acesso em: 13/07/2013.

13

Para um estudo detalhado das publicações do CFC ver Maia (2012, p. 106).

14

In Arquivos Celso Furtado: Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura.

15

Emendas e discussões do Projeto-Lei nº 7.793 de junho de 1986 ( D.O p. 6.281 a 6.285)

16

Jornal O Estado de São Paulo, 09 de abril de 1988. (Grifo meu)

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Ocupar e Resistir

Anderson Alves de Medeiros Cláudio Dias Bezerra Luciana Nunes Rotondi Steff Cordeiro de Oliveira Estudantes de graduação no curso de Sociologia e Política, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo

1. Introdução Partindo do tema: Cidade e Poder, lembramos oportunamente de um debate que atualmente tem sido pauta entre os pesquisadores, em virtude de Projetos como o da Nova Luz1, trata-se do fenômeno da gentrificação. A palavra gentrificação foi introduzida pela socióloga Ruth Glass (apud OLIVEIRA, 2012), que utilizou o termo “gentrification” no início dos anos sessenta para descrever o fenômeno que observou em Londres como: […] a transformação da composição social dos residentes de antigos bairros operários londrinos, onde ocorreu a substituição de camadas populares por camadas médias assalariadas que não tinham receio de “encostar” nas massas populares e que antes se instalavam nos subúrbios. (apud OLIVEIRA, 2012, p. 2)

Para Smith, o processo urbano identificado inicialmente por Ruth Glass, evoluiu rapidamente chegando ao século XXI como uma dimensão marcante do urbanismo contemporâneo. (apud OLIVEIRA, 2012)

os ocupantes do antigo prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), localizado na rua Martins Fontes n°180 no centro de São Paulo, promovida e organizada pelos seguintes movimentos: MMC (Movimento de Moradia do Centro), AMPJ (Associação de Moradia Popular Junior), Conde São Joaquim (Associação Conde de São Joaquim), ILS (Instituto de Lutas Sociais), AUAP (Associação Unificadora de Ações Populares) e MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). Trataremos da questão com o objetivo de verificar se a ocupação pesquisada pode ser caracterizada como uma forma de resistência ao processo de gentrificação do centro de São Paulo. Em virtude de nosso objetivo, nos ateremos apenas à resistência propiciada pela ocupação, deixando de abordar aspectos ligados à sua organização cotidiana. 1.1. Apresentação do Problema

O processo de gentrificação já ocorreu em vários centros urbanos no mundo e foi viabilizado por políticas públicas de revitalização e requalificação.

Para alcançarmos o objetivo de verificar se a ocupação pesquisada pode ser caracterizada como uma forma de resistência ao processo de gentrificação do centro de São Paulo, analisaremos nosso objeto a partir dos conceitos de políticas públicas, gentrificação, revitalização, requalificação, biopolítica e resistência.

Analisaremos uma ocupação2 na região central de São Paulo, para tanto entrevistaremos

Entendemos que as políticas públicas3 “[…] são a totalidade de ações, metas e planos que

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Ocupar e Resistir Anderson Alves de Medeiros, Cláudio Dias Bezerra, Luciana Nunes Rotondi e Steff Cordeiro de Oliveira

os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público”. Vale ressaltar que as ações selecionadas pelos agentes do poder público, “[…] são aquelas que eles entendem serem as demandas ou expectativas da sociedade. Ou seja, o bem-estar da sociedade é sempre definido pelo governo e não pela sociedade”4.

controle, segundo Michel Foucault, o poder central representado pelo Estado, passa a regular a vida cotidiana da população, a fim de “fazer viver” e “deixar morrer”.(FOUCAULT, 1979) Essa regulação da vida passa a ser exercida com base em previsões, estimativas e estatísticas a fim de implementar políticas públicas sobre fenômenos específicos.

Em seu estudo sobre gentrificação, a autora Catherine Bidou-Zachariasen (2006), revela que a gentrificação é um conjunto de transformações do espaço urbano que tendem a valorizar a região afetada. Estas transformações acontecem nas grandes capitais e podem ou não conter políticas públicas que as viabilizem. No decorrer do fenômeno, normalmente, há a expulsão dos moradores tradicionais, que geralmente pertencem a classes sociais menos favorecidas e sofrem com a valorização imobiliária decorrente da intervenção.

Essa perspectiva política caracterizada por “fazer viver” e “deixar morrer” se aplica à discussão apresentada, uma vez que no processo de gentrificação tal lógica está inserida, pois o poder público “privilegia” alguns em detrimento de outros.

Revitalização é a ação orientada por estratégias de desenvolvimento urbano, em que as ações de natureza material são concebidas de forma integrada e ativamente combinadas na sua execução com intervenções de natureza social, econômica ou cultural, normalmente é voltada à dinamização e capacitação do tecido social e econômico. Já a requalificação é a intervenção urbanística localizada de renovação que tem como escopo a valorização ambiental e a melhoria da qualidade do espaço urbano, normalmente promove a construção e recuperação de equipamentos e infraestruturas, além da valorização do espaço público com medidas de dinamização social e econômica. A biopolítica é a tecnologia de poder exercida sobre a população, que visa à regulamentação da vida. Nas sociedades de

Utilizaremos o conceito de resistência formulado por Foucault, no qual toda forma de poder sempre encontra uma forma de resistência, esta reação pode se apresentar das mais variadas formas. (FOUCAULT, 1979). Para compreender o conceito de resistência em Foucault é necessário entender que para o autor não existe poder, mas relações de poder e estas não são reduzidas simplesmente a uma relação de dominação ou opressão. O poder não é um objeto e não é fixo, funciona em rede como uma teia, não se sustenta somente como dominação e utiliza outros mecanismos para sua realização. Nesse sentido, o poder não é somente repressivo, pode ser ao mesmo tempo produtivo e constitutivo. (FOUCAULT, 1979) Foucault entende que existindo poder haverá resistência. Tal resistência não é exterior, mas concomitante ao poder. As próprias relações de poder trazem consigo o espaço da resistência. Segundo Foucault (1979), onde não existe possibilidade de resistência, não existem relações de poder, mas sim a pura dominação. Portanto, Foucault (1979) argumenta que os indivíduos não são meros sujeitos passivos ou

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receptores sobre os quais o poder incide: [...] Esta resistência de que falo não é uma substancia. Ela não é anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele é absolutamente contemporânea [...] Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. [...] Não coloco uma substância de resistência face a uma substância de poder. Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais fomos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa. (FOUCAULT, 1979, p. 241).

1.2. Relevância As políticas públicas de revitalização e requalificação unidas à especulação imobiliária são ferramentas que promovem a gentrificação, uma vez que quando os centros urbanos são revitalizados ou requalificados, uma parte da população residente se muda para periferia devido às dificuldades econômicas que encontram para se manter no local após o processo de valorização. Nas áreas periféricas há pouca ou nenhuma infraestrutura e ao fazerem isso se rompem não apenas os laços já preestabelecidos uns com os outros como também há uma perda dos modos de organização, construídos ao longo de anos durante a permanência na localidade. Morar no centro é uma reivindicação feita pelos movimentos de moradia que atuam no centro. A justificativa para essa importância é que as pessoas que participam dos movimentos têm sua fonte de renda no centro e seus filhos estudam nas proximidades, o que consequentemente diminui custos com o transporte e a alimentação, além disso, os moradores se consideram participantes na construção desse espaço.

Uma das alternativas possíveis à população é a resistência por meio da ocupação de prédios vazios, dessa forma é possível permanecer no centro. As ocupações são organizadas por movimentos de moradia, no presente estudo os movimentos organizadores são: MMC (Movimento de Moradia do Centro), AMPJ (Associação de Moradia Popular Junior), Conde São Joaquim (Associação Conde de São Joaquim), ILS (Instituto de Lutas Sociais), AUAP (Associação Unificadora de Ações Populares) e MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). Tais ocupações, na opinião do arquiteto e urbanista Kazuo Nakano (2007), são legítimas em virtude do preceito constitucional de função social da propriedade: Esses tipos de ações, quando ocorrem, sempre ganham visibilidade nos diferentes veículos de comunicação, pois são atos políticos que afetam a propriedade e os interesses privados. Muitas vezes, tais atos são criminalizados e classificados como "fora-da-lei". Apesar de reconhecer a existência de problemas em certas ocupações, penso que, em muitos casos, são atos políticos legítimos que exigem o cumprimento do princípio constitucional da "função social da propriedade urbana". Esse é o caso das ocupações, pelos movimentos de luta pela moradia, de alguns prédios ociosos, públicos e privados, localizados nos centros das grandes cidades, regiões acessíveis e com boa oferta de empregos, comércio, serviços, equipamentos e infra-estruturas urbanas. (NAKANO, 2007, p. 1)

O problema que nos colocamos é se a ocupação do prédio configura uma forma de resistência à gentrificação? Nossa hipótese é que a ocupação do prédio citado é uma forma de resistência ao processo de gentrificação. Uma vez que os

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processos de gentrificação são identificados em casos de recuperação do valor imobiliário em regiões de grandes cidades que passaram por um período de degradação. No decorrer deste processo, a população que reside nestes locais e que pertence às camadas sociais de menor poder aquisitivo são “sutilmente” expulsas para atrair residentes de renda mais alta. Para possibilitar tal ação, o mercado imobiliário, muitas vezes, aliado a políticas públicas de revitalização ou requalificação dos centros urbanos, busca recuperar o caráter “glamouroso” da região em questão.

entrevistas em 5 (cinco) líderes e 5 (ocupantes). A faixa etária mínima será de 20 (vinte) anos e a máxima de 70 (setenta) anos. Salientamos que a quantidade de entrevistas aqui estipulada pode ou não ser ampliada para melhor atender os objetivos propostos.

Visando permanecer em áreas centrais, a população de baixa renda procura resistir à expulsão que normalmente é proporcionada pela gentrificação. Acreditamos que as ocupações dos prédios vazios, localizados no centro de São Paulo, configuram uma forma de resistir e permanecer nessas áreas.

Para realização da coleta de dados em campo utilizaremos o método de entrevista semiestruturada. Essa técnica é composta por perguntas abertas e fechadas, e possibilita que alguns tópicos pré-determinados no roteiro de entrevistas sejam aprofundados sem que o objetivo da pesquisa se perca. A escolha da técnica de entrevista semiestruturada se deu porque ela permite uma maior interação com os entrevistados, além disso, a entrevista semiestruturada possibilita que as questões sejam reformuladas, para melhor entendimento dos entrevistados, desde que não se mude o sentido da questão.

1.3. Justificativa O presente trabalho deseja levar a debate a existência de resistência ao processo de gentrificação do centro de São Paulo. A escolha da ocupação mencionada ocorreu por estar localizada no centro e por ser organizada por movimentos sociais de moradia que atuam nas zonas centrais. As entrevistas serão individuais. O local de realização das entrevistas para coleta de dados será o antigo prédio do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), localizado na Rua Martins Fontes n°180. Realizaremos 10 (dez) entrevistas, dentre estas, entrevistaremos as lideranças que vivem na ocupação (coordenadores de base) e os ocupantes, conforme for possível também entrevistaremos os líderes que não vivem na ocupação. Dividiremos a quantidade de

2. Metodologia A pesquisa do projeto apresentado será realizada por meio de métodos qualitativos, utilizaremos três tipos de técnica: entrevistas semiestruturadas, observação participante e história oral.

A observação participante possui três características indispensáveis à pesquisa, a saber: olhar, ouvir e escrever. Essas características se complementam entre si, mas cada uma possui uma especificidade. O olhar deve estar atento aos detalhes mais corriqueiros da vida cotidiana, sendo necessário anotar no caderno de campo o que foi observado para evitar que o olhar se adapte ao ambiente estudado e perca detalhes importantes. Ouvir as pessoas é fundamental no uso desta técnica, mas é importante também saber perguntar. Por fim, temos que escrever nossas

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experiências em campo. É nesse momento que contextualizamos os acontecimentos vividos no momento da observação participante. A técnica de observação participante deve ser utilizada em todas as visitas ao local da coleta de dados. Em uma dessas ocasiões, visitamos todos os andares do prédio na companhia da coordenadora Geralda. A descrição da observação participante da visita mencionada será apresentada por cada integrante do grupo de maneira individual no item 2.2. A história oral é uma técnica que utiliza a entrevista aberta para captação de dados. As reflexões e opiniões do entrevistado que são apresentadas em seu depoimento pessoal são baseadas em sua memória. A história oral é utilizada com pessoas que ainda estão comprometidas com as atividades públicas, essas pessoas são consideradas como especialistas no assunto. Os dados obtidos pela técnica da história oral devem ser checados de maneira interna (confrontar com os demais depoimentos) e se necessário de maneira externa (disponíveis em outras fontes). A partir das circunstâncias que se apresentaram em uma de nossas visitas ao local para coleta de dados, a história oral teve que ser incluída em nossa metodologia. Nesta ocasião, o Sr. Gegê (líder geral do MMC – Movimento de Moradia do Centro) fez questão de dar seu depoimento sobre coisas que ele considerava importantes e que segundo o mesmo, deveriam servir como preâmbulo de nossa pesquisa. O Sr. Gegê abordou diversos temas que compõem sua biografia, desde sua vinda para São Paulo até os dias de hoje. Vale ressaltar que durante o depoimento, o Sr. Gegê abordou questões essenciais para o desenvolvimento da pesquisa e que tais informações estarão presentes nos resultados do projeto.

2.1. Questionários Visto que entrevistaremos líderes (que vivem na ocupação e se possível, os que não vivem) e ocupantes, foram elaborados dois roteiros de entrevista. Esses roteiros de entrevista contêm os mesmos tópicos e em alguns casos as mesmas questões, no entanto, foram elaboradas algumas questões especificas que serão direcionadas de acordo com cada tipo de perfil, a saber, líderes e ocupantes. Os tópicos que serão abordados para obtenção dos dados são: Identificação; Movimento de Moradia; Ocupação no Centro e Resistência; 2.2. Observação Participante Foram realizadas 6 (seis) visitas ao local da coleta de dados. A primeira visita foi realizada em 15/04/2012 das 10h24min às 10h33min, nesta ocasião não foi possível entrar no prédio, mas conseguimos fazer contato com a líder Alcione, representante do MMC (Movimento de Moradia do Centro) e ocupante do prédio. Alcione nos explicou que era a única líder presente no local naquele momento e que para autorizar nossa entrada no prédio precisaria conversar com os demais líderes. A segunda visita foi realizada no dia 05/05/2012 das 09h30min às 10h42min, como já havia sido combinado com a líder Alcione dessa vez foi possível entrar no prédio da ocupação, onde foram colhidos os dados necessários para elaboração do perfil de pessoas que entrevistaremos. A terceira visita foi realizada em 23/09/12 das 10h00min às 11h10min, na ocasião realizamos a observação participante. A quarta visita foi realizada no dia 21/10/2012 das 14h05min às 16h35min, foram realizadas algumas das entrevistas, além disso, conhecemos e conversamos com o líder geral da

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ocupação, o Sr. Gegê do MMC (Movimento de Moradia do Centro). A quinta visita foi realizada no dia 01/11/2012 das 16h00min às 16h45min para realização de mais uma das entrevistas e a sexta visita foi realizada no dia 04/11/2012 das 14h08min às 15h05min para realização das últimas entrevistas. 3. Resultados Os resultados serão apresentados por tópicos, assim como foram abordados nos roteiros de entrevista, a saber: Identificação; Movimento de Moradia; Ocupação no Centro e Resistência. Entrevistamos 10 (dez) pessoas, 5 (cinco) ocupantes e 5 (cinco) líderes, cada grupo foi entrevistado conforme o roteiro destinado a cada tipo de perfil, além disso, escutamos a explanação do líder geral de um dos movimentos e captamos os dados pela técnica da história oral. Ainda, obtivemos importantes dados adicionais no decorrer das entrevistas, os quais serão apresentados no tópico: Outros Resultados. Identificação: Entrevistamos 7 (sete) mulheres e 4 (quatro) homens. Destes, 8 (oito) nasceram na região nordeste, sendo 2 (dois) na Bahia, 2 (dois) no Maranhão, 2 (dois) no Ceará, 1 (um) em Pernambuco e 1 (um) na Paraíba; 1 (um) na região Centro-oeste, em Brasília, 2 (dois) na região sudeste, em São Paulo, 1 (um) de São Bernardo do Campo e 1 (um) da zona leste da capital. 5 (cinco) são casados, 2 (dois) separados, 3 (três) solteiros e um viúvo. Quanto à escolaridade 1 (um) possui superior completo, 2 (dois) superior incompleto, 1 (um) ensino médio completo, 2 (dois) ensino fundamental completo, 4 (quatro) ensino fundamental incompleto. Dos entrevistados há: diarista, vendedor ambulante, auxiliar de produção, operador de telemarketing,

auxiliar contábil, trabalhador da construção civil, cuidadora de idosos e aposentados. Importante, no depoimento não ficou claro a escolaridade e profissão do depoente. Os seguintes aspectos do roteiro de entrevistas foram considerados somente para entrevistados que residem atualmente na ocupação, a saber: filiação, região onde estudam os filhos que residem com eles, região onde trabalham, pessoas com quem dividem o espaço dentro da ocupação, andar que ocupam e região anterior de moradia. Assim, dos 6 (seis) que residem atualmente na ocupação, 4 (quatro) possuem filhos, porém somente 2 (dois) tem os filhos morando com eles, destes os filhos de 1 (um) estudam no centro e de outro no Brás; 4 (quatro) trabalham no centro e 1 (um) no Brás e 1 (um) está desempregado; 1 (um) mora com mulher e 4 (quatro) filhos, 1 (um) mora somente com os 3 (três) filhos, 1 (um) mora com uma amiga, 1 (um) mora sozinho, 1 (um) com o companheiro e 1 (um) com o noivo. 3 (três) ocupam o primeiro andar, 1 (um) o segundo andar e 2 (dois) o quarto andar; 3 (três) deles moravam anteriormente no centro, 1 (um) na zona sul da capital, bairro Real Parque, 1 (um) em Suzano e 1 (um) em Diadema. Movimento de Moradia: Das 11 (onze) pessoas ouvidas, 9 (nove) são do MMC (Movimento de Moradia do Centro), 1(um) da AUAP (Associação Unificadora de Ações Populares) e 1 (um) do MMPT (Movimento de Moradia Para Todos). O período máximo de atuação nos movimentos de moradia relatado foi o máximo de 26 (vinte e seis) anos e o mínimo de 10 (dez) meses. A princípio, a entrada da maioria dos entrevistados nos movimentos de moradia deu-se por algum tipo de contato prévio com integrantes destes movimentos. A situação financeira perpassa todos os contextos

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com ênfases explícitas ou não. Porém, em alguns relatos a dificuldade financeira é preponderante ou mesmo única, enquanto em outros casos, existem interesses pelos projetos de moradia que culminam em luta política. Ocupação no Centro: Com relação à importância das ocupações que ocorrerem na região central da cidade, encontramos dois tipos de posicionamentos que não se excluem, por um lado alguns ressaltam a quantidade de prédios vazios no centro como uma oportunidade que não se encontra nas demais regiões. Por outro lado, outros ressaltam interesse na infraestrutura proporcionada pela região. Dos entrevistados 7 (sete) participaram no dia da ocupação do prédio, 3 (três) não e no depoimento, o líder Gegê não abordou o assunto. Dos 6 (seis) entrevistados que residem no prédio, 3 (três) estão desde do dia da ocupação e outros 3 (três) chegaram posteriormente. Quando perguntados acerca das formas de ocupação do prédio, obtivemos dois tipos de respostas: os relatos dos ocupantes comuns dão conta da parte operacional e dos líderes, tanto ocupantes quanto não, relatam todo o processo de planejamento e organização. A distribuição das pessoas por andares no prédio não é realizada de imediato, segundo os relatos obtidos. Após o período de limpeza do local e estabilização da ocupação, a distribuição dos espaços é realizada conforme tamanho de cada família ou grupo. Com relação aos andares, a organização dispõe os idosos e crianças nos andares mais próximos ao térreo para facilitar a mobilidade. Não foi possível estabelecer uma quantidade mínima ou máxima de ocupantes pelos andares devido à rotatividade das pessoas

residentes na ocupação. Constatamos pelas entrevistas que os líderes não residem na ocupação, apenas os coordenadores de base (líderes que moram na ocupação): Ana Alcione e o Manoel (coordenador não entrevistado), ambos do MMC (Movimento de Moradia do Centro). Seguindo o roteiro de entrevistas direcionado aos ocupantes, questionamos como são resolvidas as questões entre eles e qual o tipo de relação existe entre eles e os líderes. Obtivemos como resposta que os problemas mais sérios são levados aos líderes de cada movimento, sendo posteriormente discutidos em assembléia geral. A relação dos ocupantes com os lideres de todos os movimentos foi relatada como satisfatória em todas as 5 (cinco) entrevistas. Utilizando o roteiro de entrevista direcionado somente aos líderes, indagamos se há diferença na atuação de um líder que vive na ocupação (coordenador de base) e um que não vive, se naquele momento existiam outras ocupações no centro organizadas pelo mesmo movimento, se existiam outras ocupações na periferia e como é feita a escolha dos prédios. Os relatos indicam que os líderes e/ou coordenadores que vivem na ocupação atuam nas funções de organização diária interna, já os líderes que não residem cuidam de aspectos mais burocráticos. Foi verificada a existência de ocupações tanto no centro como na periferia, sendo que as realizadas nas zonas periféricas são mantidas por movimentos que atuam nessas regiões. Com relação à escolha dos prédios foi constatado que, após estudo prévio da infraestrutura, as ocupações são feitas preferencialmente em prédios vagos e de propriedade de órgãos públicos. A maioria dos entrevistados não relatou diferença entre os movimentos devido ao

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número de integrantes em cada um deles. Porém, cada movimento tem sua forma especifica de organização. O depoente não abordou o assunto. Resistência: Perguntamos aos 10 (dez) entrevistados acerca da opinião sobre projetos urbanos existentes no centro da cidade como, por exemplo, o “Nova Luz”. A maioria dos entrevistados, bem como o líder geral, abordou a especulação imobiliária como razão implícita para os projetos urbanos no centro de São Paulo, em especial o “Nova Luz”. Ressaltamos que alguns dos entrevistados mencionam a “Operação Integrada Centro Legal”5, realizada pelos governos estadual e municipal na região conhecida como “Cracolândia”6 como uma ação relacionada ao projeto “Nova Luz”. Percebemos que alguns simplesmente remetem à ação policial implementada contra os usuários de droga da região da Luz. Porém, independentemente dos motivos apontados todos demonstraram contrariedade ao projeto. Com relação aos objetivos se ocupar prédios encontramos duas vertentes complementares, a primeira trata de denunciar à sociedade e cobrar do governo o não cumprimento da função social da propriedade, prevista na Constituição Federal. A segunda diz respeito à moradia em si, segundo a qual a ocupação visa transformar os prédios em moradia popular, o que se dá após vasta negociação com o poder público. A infraestrutura do prédio condiciona os objetivos iniciais da ocupação. No que tange à reintegração de posse, 7 (sete) dos entrevistados já participaram, 3 (três) não, e o depoente não abordou o assunto. Entre os 10 (dez) entrevistados todos relatam as orientações a serem seguidas. No caso dos líderes

a ação é voltada para as negociações com os entes do poder público no momento da reintegração. Os relatos dos ocupantes dizem respeito às ações a serem seguidas conforme determinação prévia dos líderes dos movimentos. Todos relatam que existem tipos diversos de reintegração, sendo algumas mais pacíficas. Quando perguntados sobre participação em ocupações anteriores, somente 2 (dois) dos 11 (onze) entrevistados responderam que não participaram. Os entrevistados foram unânimes ao relatar a completa ausência de qualquer tipo de auxílio governamental, tais como: aluguel social e oferta de moradia, entre outros. Alguns relataram que em reintegrações das quais participaram foram realizados cadastramentos de moradia por intermédio de assistente social da Prefeitura, que até o momento da entrevista não havia resultado em atendimento. Na ocupação estudada, não houve qualquer relato de acompanhamento governamental. Entre os articuladores que contribuem com os movimentos ou com a própria ocupação, foram relatados vários tipos de contribuições, desde doações efetuadas por vizinhos até atuação de advogados, do ministério público, de padres e de organizações de direitos humanos. Questionados sobre quais seriam as ações a serem efetivadas pelo poder público acerca dos movimentos de moradia e ao direito de moradia em geral. Todos os 11 (onze) entrevistados gostariam que o poder público atendesse a demanda dos movimentos de moradia, negociando a aquisição dos prédios e transformando-os em moradia para pessoas de baixa renda. Alguns, ainda, ressaltam que existem vários prédios no centro de São Paulo que não atendem a função social da propriedade por

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estarem vagos e abandonados há anos. Quanto à ocupação do prédio estudado, percebemos uma divergência entre o discurso dos ocupantes e dos líderes entrevistados quanto à destinação do prédio em questão. Enquanto os ocupantes pretendem ver o espaço reformado para moradia, os líderes utilizam-no como meio de reivindicação para negociação com as diversas esferas do poder público. Assim sendo, os líderes preocupam-se primordialmente com a visibilidade das ocupações com intuito de promover sua luta política. Seguindo o roteiro de entrevistas direcionado somente aos ocupantes, indagamos se conheciam alguém pertencente à outra ocupação na cidade naquele momento. Todos responderam de forma afirmativa, relatando que seus conhecidos ocupavam prédios localizados no centro da cidade e faziam parte do seu círculo de amizade. Ao questionarmos os líderes conforme o roteiro de entrevistas, quanto à existência de alguma relação entre as ocupações realizadas no centro no momento da pesquisa, todos afirmaram que os movimentos possuem os mesmos objetivos ao realizar ocupações, a saber: necessidade de moradia e preferência pelo o centro da cidade. Outros Resultados: Notamos que os entrevistados que participaram de outras ocupações e/ou reintegrações, recordam com facilidade quando e onde ocorreram os eventos. As datas foram relatadas de forma precisa, contendo o dia, o mês e o ano. A maneira como tais acontecimentos foram descritos, denota a sua importância na vida dos entrevistados, bem como do depoente. Comparando os relatos obtidos, ficou

evidenciado que existe uma diferença entre os discursos dos líderes e ocupantes, enquanto os últimos mostram-se centrados nos problemas cotidianos devido às necessidades mais prementes, os primeiros pretendem uma maior conscientização da luta política. A preferência dos entrevistados pelo centro deu-se por múltiplos motivos, desde costumes enraizados, passando pela própria infraestrutura propiciada, até, em alguns casos, pela falta de opção. Na maioria dos relatos a importância de morar no centro estava presente, com exceção de 2 (dois) casos de ocupantes em extrema dificuldade financeira e que, exclusivamente por esse motivo, recentemente ingressaram nos movimentos de moradia. Nesses últimos casos, morar no centro não se mostrou essencial, pois almejam apenas um teto. Ainda, na ocupação estudada, existem 3 (três) movimentos, AUAP (Associação Unificadora de Ações Populares), MMPT (Associação de Moradia Popular Junior) e ILS (Instituto de Lutas Sociais), que atuam tanto no centro como em outras regiões da cidades. Os integrantes do MMC (Movimento de Moradia do Centro), em especial os líderes, inclusive o líder geral, Sr. Gegê, narraram que a origem do movimento se deu pelas reivindicações oriundas de pessoas que residiram em cortiços, devido às precárias condições daqueles espaços. Segundo o líder geral, e confirmado por meio de outras entrevistas, a ocupação do prédio da Rua Martins Fontes, inicialmente ocorreu para dar visibilidade às causas defendidas pelos 6 (seis) movimentos. Assim, não era, a princípio, destinada à moradia, serviria como protesto. Porém, em virtude de reintegrações de posse em outros prédios próximos, foi necessário utilizar tal ocupação como abrigo para pessoas despejadas de

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outros locais. Com isso, a destinação da ocupação foi modificada devido às necessidades dos movimentos e seus membros. Aliás, esse tipo de readequação parece não ser incomum, pois apesar do planejamento realizado pelos movimentos de moradia, o imponderável faz parte de suas rotinas. Há um importante aspecto realçado em algumas entrevistas e no depoimento do líder geral, nem todos os prédios são ocupados com o objetivo de serem transformados em moradia. Existem imóveis em que a ocupação se dá com objetivo exclusivo de protesto, nesses casos após a efetivação da ocupação são realizados atos, sendo normalmente estendidas faixas e bandeiras contendo os nomes dos movimentos e suas reivindicações, para, em seguida, serem completamente desocupados. Os dados foram coletados durante a campanha eleitoral para Prefeitura de São Paulo, visitamos o local antes do primeiro turno, entre o primeiro e segundo turnos e após o término da eleição, na qual foi eleito o candidato Fernando Haddad pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Percebemos mudanças no comportamento dos ocupantes, antes do primeiro turno havia somente uma pequena propaganda do candidato do PT no interior do prédio e a eleição não era abordada; já entre um turno e outro, o discurso eleitoral estava presente e era motivo de preocupação e campanha, as propagandas se avolumaram; finda a eleição, as preocupações deram lugar a uma expectativa mais positiva. Os relatos demonstram, ainda, ligação de alguns integrantes dos movimentos com o Partido dos Trabalhadores (PT). A maioria dos entrevistados caracterizou a sua luta política por reivindicações e protestos pacíficos, alegaram que desejariam morar no centro e enfatizaram que pretenderiam pagar para

tanto. Porém, está presente nesse discurso que tal pagamento deve estar de acordo com sua renda, pois os imóveis localizados na região central da cidade possuem custo elevado e, portanto, estão fora de seu alcance financeiro. Diante disso, tais entrevistados entendem que a intervenção do Estado, por meio de políticas públicas de habitação, é necessária para que possam morar com dignidade e pagar conforme suas capacidades econômicas, fundamentando suas pretensões no direito à moradia consagrado na Constituição. Ainda, a maioria dos entrevistados abordou a especulação imobiliária como fator de valorização das áreas centrais. Na data da última visita a campo, dia 04/11/2012, fomos informados que o INSS – Instituto Nacional do Seguro Social havia entrado com o pedido de reintegração de posse do prédio, sendo o pedido deferido pela Justiça. Assim, tal reintegração pode ocorrer a qualquer momento, porém, até a presente data, não tivemos noticia de sua efetivação. 4. Considerações Finais Ao iniciar este trabalho tivemos em mente o tão discutido projeto urbanístico denominado “Nova Luz”. Buscávamos entender se nas ocupações de prédios vazios no centro da cidade existiria uma intencionalidade em fixar moradia no centro, resistindo, assim, ao processo de valorização das áreas centrais, caracterizado como gentrificação. Escolhemos uma ocupação no coração do centro, porém um pouco distante da região da Luz. A ocupação escolhida foi emblemática, pois nela atuam 6 (seis) movimentos de moradia, sendo 3 (três) com atuação exclusiva na área central e 3 (três) que participam também de ocupações nas áreas periféricas da cidade. Assim,

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apesar de não ter sido possível entrevistar um membro de cada um dos 6 (seis) movimentos que atuam na ocupação pesquisada, foi enriquecedor perceber que tal ocupação faz parte de uma luta política mais abrangente por moradia digna, tanto no centro, propriamente dito, como em regiões mais afastadas. O problema que nos colocamos inicialmente foi formulado a partir da perspectiva de que a ocupação do prédio configuraria uma forma de resistência à gentrificação e nossa hipótese era de que a ocupação do prédio estudado seria uma forma de resistência ao processo de gentrificação. Dentro das limitações dadas ao recorte da pesquisa, a análise dos dados obtidos sugere que nossa hipótese é ratificada, pois há resistência sendo promovida por movimentos de moradia no Centro e mesmo que o objetivo geral destes movimentos não seja com fins a resistir especificamente à gentrificação, mas sim reivindicar moradia digna e com valor acessível á sua faixa de renda, a resistência que os movimentos de moradia e seus integrantes promovem por meio de protestos e ocupações em busca de políticas públicas que os auxiliem, de certa maneira, “retarda” o processo de gentrificação. Portanto, é possível perceber intencionalidade da luta política empreendida pelos movimentos de moradia e seus membros, a qual pode ser caracterizada como uma forma de resistência às imposições tanto do poder público como do poder econômico. Acreditamos ter atingido o objetivo proposto nesta pesquisa, uma vez que, apesar do número reduzido de entrevistados, foi possível perceber de forma clara (tanto nas entrevistas dos lideres como dos ocupantes, em especial, os mais antigos), que as pessoas que têm sua

vida estruturada no centro da cidade, têm uma maior preocupação em não se afastar da zona central, área onde trabalham, estudam ou que simplesmente estão habituados. Acrescentamos que pesquisar os movimentos de moradia que atuam em outras regiões da cidade pode ajudar a esclarecer algumas questões que não foram exploradas neste projeto.

Notas: 1

Conforme dados retirados do site oficial <http://www. novaluzsp.com.br/projeto.asp?item=projeto>, tratase de um projeto de requalificação urbana que prevê, a valorização dos prédios históricos, reforma das áreas livres públicas, criação de espaços verdes e de lazer e a melhoria do ambiente urbano da região.

2

O edifício da rua Martins Fontes pertence ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e deixou de ser utilizado em 2006. Após o abandono, o prédio foi ocupado por usuários de drogas e moradores de rua, na ocasião da reintegração de posse em 06/09/2011, os movimentos de moradia realizaram uma nova ocupação em 02/10/2011. Segundo Mônica Cristina Pereira uma das coordenadoras da AUAP (Associação Unificadora de Ações Populares), a ocupação do prédio da Martins Fontes foi feita pelos seis movimentos de uma única vez. As estratégias de ocupação são traçadas pelos coordenadores, somente eles sabem quando e onde será realizada a ocupação. A ocupação é feita de forma rápida, antes da chegada da polícia.

3

(Políticas Públicas: conceitos e práticas. SEBRAE/MG, 2008, p. 5)

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(Políticas Públicas: conceitos e práticas. SEBRAE/MG, 2008, p. 5)

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A operação integrada Centro Legal é constituída de atividades que envolvem as polícias e os órgãos estaduais e municipais ligados à segurança, saúde e assistência social. Seus objetivos são o resgate da cidadania, a elevação da dignidade humana por meio da reinserção social, a recuperação de áreas degradadas e o combate do tráfico de drogas. Após estudos e reuniões preparatórias, as novas ações começaram no dia 3 de janeiro de 2012 e irão ser desenvolvidas de maneira permanente, não havendo

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assim previsão para o término. Fonte:< http://www. policiamilitar.sp.gov.br/hotsites/centrolegal/boletim. html>. 6

Cracolândia (por derivação de crack) é uma denominação popular para uma região no centro da cidade de São Paulo, nas imediações das avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero e a rua Mauá, onde historicamente se desenvolveu intenso tráfico de drogas e meretrício. Fonte:< http://pt.wikipedia.org/wiki/ Cracol%C3%A2ndia>.

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Uma interpretação dos ritos fúnebres da Assembleia de Deus Carlos Jose Jesus Freire de Sá Aluno do 8º semestre do curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo-FESPSP e-mail: freire-as@bol.com.br.

Este artigo, meu Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Sociologia e Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São PauloFESPSP, foi orientado pela Profa. Dra. Sonia Nussenzweig Hotimsky.

Resumo A morte é um fenômeno, que como qualquer outro da vida social, desperta a imaginação do homem, em busca de sua compreensão. Assim, os grupos humanos buscam explicações que os ajudem se não a superá-la, ao menos a diminuir os efeitos dolorosos de sua existência. O que nos propomos a fazer nesse artigo é analisar, por meio da descrição das práticas e crenças

ligadas ao funeral, à maneira pela qual os fiéis da Assembleia de Deus Ministério de Madureira em Osasco, constroem sua relação com a morte, e reproduzem por meio dos ritos, a estrutura hierárquica de sua instituição religiosa, mesmo em momentos em que a instabilidade da separação, resultante do falecimento de um membro da comunidade religiosa se torna uma realidade.

Palavras -Chave Assembleia de Deus, morte, funeral, ritos e hierarquia.

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“Para o homem religioso, a Natureza nunca é exclusivamente “natural”: está sempre carregada de um valor religioso” (ELIAS, 2001, p. 99). 1. Noção de morte: ritos e suas várias interpretações Ao longo do tempo, a morte tem sido objeto de vários estudos, em várias áreas do conhecimento esse fenômeno tem sido analisado e interpretado de acordo com as ferramentas disponíveis no arcabouço metodológico de cada disciplina. Ariès (1981) fez uma análise importante das mudanças comportamentais dos povos do Ocidente em relação à realidade da morte. Como historiador, apresentou essas mudanças em uma linha do tempo. Linha do tempo que privilegiou o passado em relação ao presente, isso no que se refere à morte e o como morrer. Em sua obra, Ariès (1981) faz varias menções sobre o modo “calmo” com que as pessoas morriam na Idade Média. Embora não se possa negar a contribuição de sua obra para o entendimento, e aprofundamento dos estudos sobre a morte, ela acabou sendo alvo de muitas críticas. Norbert Elias o criticou, por exemplo, pela sua visão romantizada da morte em tempos passados. O que Elias salienta é que “morrer pode significar tormento e dor [e] antigamente as pessoas tinham menos possibilidades de aliviar o tormento” (ELIAS, 2001, p. 20). Na observação de Elias, o problema da obra de Ariés, estaria no modo parcial como esse último interpretava as literaturas usadas para construí-la. No que tange a antropologia, em trabalho recente, Lihahe (2010) destaca a influencia da tradição durkheimiana, e particularmente de Hertz (1970), nos estudos contemporâneos sobre a morte. Ele também faz menção aos estudos do

antropólogo Cabral (1984) sobre os caminhos percorridos pela disciplina na investigação desse fenômeno. Segundo Cabral (1984), no século XIX, os estudos de James Frazer propunham que, tanto a noção de alma, como o surgimento da religião, teriam seus nexos causais nos estados contemplativos provocados pela morte em nossos antepassados (LIHAHE, 2010). Ainda, de acordo com o mesmo autor, no século seguinte, as teorias evolucionistas de Frazer foram substituídas pelo nascimento do estrutural funcionalismo, funcionalismo no qual “a preocupação com a natureza simbólica dos rituais dá lugar a uma procura da função social dos ritos funerários como processos de restabelecimento da ordem social, posta em perigo pela ocorrência da morte” (CABRAL, 1984, p. 349-350 in LIHAHE, 2010, p.21). Enquanto os grupos sociais, religiosos ou não, desenvolviam dentro de seu campo simbólico, mecanismos capazes de equilibrar seu corpo social, de maneira que o contato com a morte fosse enquadrado dentro do campo específico de suas possibilidades interpretativas, a antropologia, dentre outros aspectos do seu campo de estudos, também esteve preocupada em entender o modo no qual esses mecanismos acionados nos ritos funerários “neutralizavam”, ao menos em parte, os efeitos desoladores provocados pela experiência da morte. A capacidade criadora da imaginação do ser humano permitiu que esse elaborasse ideias e conceitos, que amenizaram a realidade de sua finitude. De acordo com Norbert Elias (2001), a partir do momento em que o homem adquiriu consciência de sua limitação existencial, formulou fantasias na “tentativa de suprimir esse conhecimento indesejado e encobri-lo com noções mais satisfatórias” (ELIAS, 2001, p. 43).

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Supomos que como fruto da dinâmica interacional entre o homem e a morte, a criação de mitologias, crenças e ritos, além de ajudar a enfrentar o próprio fim, acabaram se transformando em elos entre os membros de cada sociedade, cultura e/ ou instituição religiosa. O que a literatura referente à noção de morte nos mostra é que as ocorrências de morte nos seio dos agrupamentos humanos, orientaram-nos a construção de mecanismos ritualísticos, voltados a diminuir os efeitos de tristeza e horror provocados por ela. Em certa medida os ritos foram acompanhando o processo de desenvolvimento psíquico e tecnológico da humanidade. De acordo com Mauss (1999), a razão de ser de um rito só é achada quando “se lhe descobre o sentido, isto é, as noções que estão e estiveram na sua base, as crenças às quais corresponde”. Os sofrimentos experimentados na perda de seus entes queridos, juntamente com formulações de crenças sobrenaturais, que indicavam uma vida além-túmulo, estiveram presentes na criação desses ritos. Estudos recentes, envolvendo a noção de morte dentro do campo específico da religião, trataram diretamente o rito funerário e sua operacionalidade no luto. Demonstrando a forma como no velório as relações ritualísticas da comunidade são postas em funcionamento em função do falecido. As análises de Mapril (2009), referentes à morte em uma comunidade islâmica em Portugal, estiveram voltadas para a compreensão do modo “como a gestão da morte e do morrer revelam as dimensões rituais da produção de lugares em contextos transnacional” (MAPRIL, 2009, p. 219). A questão da morte foi tomada por Mapril (2009) como elemento acionador de contextos ritualísticos presentes no islamismo, que exigem o

traslado do corpo ao seu lugar de origem. Discorrendo sobre a noção de morte no judaísmo, Zuchiwschi (2010) fez uma análise dos ritos funerários, discutindo “o valor das preces [...] e, sobretudo, como as palavras sagradas podem ser transformadas, para além do sentido primário que possuem, em importantes instrumentos no processo ritual post mortem” (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 187). Embora tenha colocada a prece como ponto central do seu estudo, é só em função do falecido que a prece toma sentido e forma. Outra pesquisa inserida nas análises antropológicas sobre a morte foi feita por Silva (2011). A autora analisou o ritual de enterro evangélico, com a finalidade de mostrar “que mais que um protocolo rígido de comportamentos pré-estabelecidos [...] o rito evangélico [...] levaria em conta principalmente interações e compartilhamentos de emoções que se expressam e se concretizam numa relação intima e complexa com a estrutura social maior” (SILVA, 2011, p. 3). A proposta desse artigo é o de contribuir para a compreensão do rito funerário evangélico, mostrando como as práticas e crenças são acionadas nas igrejas Assembleias de Deus ministério de Madureira em Osasco (ADMMO) como instrumento de conforto, bem como de reforço da fé e da estrutura hierárquica dessa instituição. Cabe salientar que os hinos de conotação fúnebre – ritos orais - são entoados não só no velório, mas também em outros cultos realizados no interior da igreja. Assim, os vários sentidos, presentes nos cânticos direcionados a situações de separação, não se restringem aos períodos do velório, e transitam em diversos momentos onde a religiosidade dessa comunidade se expressa, funcionado como agentes tanto de conforto e unidade, como também de fortalecimento

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da estrutura hierárquica da igreja em outros contextos. Nesse sentido adotamos a noção de religiosidade formulada por Zuchiwschi. “O conceito de religiosidade e não simplesmente de religião [que] deve ser entendido como um complexo pragmático-relacional entre as múltiplas partes constitutivas dos preceitos religiosos” (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 165). Juntamente com as ferramentas teóricas que a antropologia me fornece, nesse trabalho também me valho de minha experiência acumulada como membro da ADMMO, e em algumas ocasiões como pastor, em exercício, dessa instituição religiosa que me forneceu o conhecimento referente aos seus mecanismos simbólicos e ritualísticos. 2. ADMMO: contextualizando um processo Com a finalidade de contextualizar o leitor com o nosso objeto de pesquisa, será feita nos parágrafos que se seguem uma descrição dos agentes e atores presentes nesse campo de atuação. No entanto, antes de nos voltarmos propriamente para os indivíduos que vivenciam essas experiências, entendemos que é necessário fazer, uma breve descrição do surgimento da igreja Assembleia de Deus Ministério de Madureira (ADMM), no Brasil. A igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério de Madureira, é fruto da difusão do pentecostalismo norte-americano, ocorrido no início do século XX. De acordo com Campos (2012), [...] nesse período o campo religioso norte-americano estava carregado de forças centrífugas, e num curto período de três anos centenas de fiéis se transformaram em missionários pentecostais, que influenciados por Los Angeles se espalharam primeiro pelos Estados Unidos, depois para a

Europa, Ásia, América Latina e África. (CAMPOS, 2012, p.148)

O movimento pentecostal que chegou ao Brasil, como fruto dessa difusão, é descrito por Pinezi (2009), como sendo fruto da “quarta” corrente evangélica ocorrida na América Latina. A primeira ocorreu, na primeira metade do século XIX, a segunda, nos anos de 1850 “com o objetivo de implementar um campo missionário que levasse [a população] nativa à conversão” (PINEZI, 2009, p. 201) e a terceira veio como fruto do descontentamento cristão com o proselitismo missionário das igrejas protestantes históricas. Segundo Pinezi (2009), o início do pentecostalismo ocorreu em uma Escola Bíblica de Topeka, nos Estados unidos. O pastor Charles Parhan, com base nos trechos bíblicos sobre o “Dia de Pentecoste”, concluiu que o batismo com o Espírito Santo, pessoa da Trindade capaz de realizar o processo de santificação e ratificar a conversão, era evidenciado através da glossolalia ou do falar em línguas estranhas (MENDONÇA, 1995 in PINEZE, 2009, p. 2001). Absorvido nas experiências de Parham e seus discípulos, aos 36 anos de idade William Seymour iniciou um trabalho religioso, no ano de 1906, em Los Angeles, especificamente na “Azuza Street”, que, em uma analogia feita por Campos (2012), era uma caixa preta da qual começaram a sair gritos, convulsões, profecias, glossolalias, curas, milagres, prodígios e toda sorte de coisas. Se nesse período o movimento pentecostal tomou expressão, por meio do evangelho apaixonado de Seymour, de forma concomitante outro movimento foi tomando expressão. As dissidências por questões teológicas começaram a fazer parte do ciclo do pentecostalismo norteamericano. Dentre esses dissidentes, William

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Durham (1873-1912), que por conflitos causados por divergências teológicas, entre ele e Seymour, organizou a North Avenue Mission na cidade de Chicago em 1907. Entre os seguidores de Durham se encontravam Louis Francescon, fundador da igreja Congregação Cristã no Brasil em 1910, assim como os suecos Daniel Berger e Gunar Vingren que fundaram no Belém do Pará a igreja Missão da Fé Apostólica em 1911. Esta última teve seu nome alterado para Igreja Assembleia de Deus em 1918. Campos (2012) traz alguns dados importantes sobre o divisionismo1 iniciado na Assembleia de Deus em 1930, esse divisionismo fez nascer no Nordeste a Igreja de Cristo e, dois anos depois, também no Nordeste, a Igreja Adventista da Promessa. Os vários ministérios das Assembleias de Deus, no Brasil: Belém, Madureira, Santos, Ipiranga etc., - podem ser vistos como continuidades do mesmo processo divisionista apontado nesse estudo feito por ele. Sendo uma filial das ADMM, a ADMMO foi fundada, no ano de 1948, no bairro de Presidente Altino (Osasco), como uma congregação da Assembleia de Deus Madureira do Brás (ADMMB). Em 1958, após uma década funcionando em imóveis alugados, construiu seu primeiro templo. Porém, só depois de oito anos (1964), conquistou a prerrogativa de um campo, deixando de ser mais uma congregação da ADMMB2. 3. Construção hierárquica de uma Igreja assembleiana A hierarquia da ADMMO é construída em torno de princípios, que no arcabouço de crenças de seus fieis são derivados da vontade divina. A ideia de subordinação à figura de um

líder é entendida como um mecanismo divino que garante a segurança do grupo. Alguns trechos extraídos da bíblia são utilizados como elementos que fortalecem e cristalizam essas crenças. O princípio de hierarquização é entendido como reproduções modelares da dinâmica existente entre os crentes e os “seres divinos”, como nos revela o verso bíblico: “Quero porém, que saibais que Cristo é a cabeça de todo homem, o homem a cabeça da mulher, e Deus a cabeça de Cristo” (I Coríntios, cap, 11, v. 3). Para os assembleianos3, o princípio de hierarquia é um componente fundamental, tanto para a harmonia e equilíbrio da vida, como também do “cosmos”. A quebra dessa hierarquia pode causar danos irreparáveis para a vida da comunidade. Outros textos como: “Obedecei a vossos guias, sendo lhe submissos; porque velam por vossas almas como quem há de prestar contas dela” (Hebreus, cap, 13, v17) e “Não toqueis nos meus ungidos e não maltrateis os meus profetas” (Salmos, 105, v. 15), são utilizados nos cultos, como sinalizadores do status “sobrenatural”, em que se encontram as lideranças constituídas na ADMMO. Em ordem decrescente encontram-se: pastores, evangelistas, presbíteros, diáconos, diaconisas e cooperadores. Todos esses são títulos de diferenciações hierárquicas do conjunto oficial de obreiros da ADMMO. Como em toda instituição hierarquizada, a regra é o membro de status inferior obedecer aquele de status superior. Porém, nesse caso, essas regras se tornam mais rígidas, pois na concepção assembleiana a “igreja” é uma instituição “divina” ela é o “corpo de cristo” na terra, e sendo assim não pode estar desordenada. As regras são validadas e acionadas, não apenas nos perímetro sagrados do templo, como em outros ambientes no qual a comunidade, por ventura possa se reunir esse padrão de

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hierarquia também é reiterado e reforçado. A distribuição sexual das funções sagradas coloca as irmãs em um estado de submissão constante a figura dos fieis do sexo masculino, reproduzindo relações tradicionais de gênero cuja análise caberia ser aprofundada. Na ADMMO, alguns departamentos funcionam com base nessa distribuição. Porém o que prevalece é a posição em que o fiel se encontra dentro do quadro de títulos hierárquicos da igreja. O dirigente local de uma igreja da ADMMO, que tanto pode ser um pastor, evangelista, missionário, diácono ou cooperador, é sempre um crente do sexo masculino, e embora algumas irmãs possam receber o título de pastor, esse título é sempre de caráter “simbólico” e nunca funcional. O centro das decisões e orientações, espirituais e materiais, gravitam em torno da figura do pastor. Para os assembleianos, ele é o “ungido de Deus”. 4. Culto: Liturgia e ritualização da fé Os cultos da ADMMO se caracterizam por meio de um ritual litúrgico, composto por diversas etapas, que servem tanto para organizar, como padronizar as ações dos fieis nos perímetros do templo. Orações, cânticos (hinos evangélicos clássicos e avulsos), testemunhos, entregas de contribuições e pregações, onde muitas vezes ocorrem manifestações dos dons espirituais e através de cristãos diferentes em cada manifestação (JUNIOR e MACÊDO, 2011, p. 157).

A sacralidade do templo coloca os fieis em um constante estado de temor e reverência, é impensável para esses crentes iniciar o período de adoração sem que as atitudes divinas se lhes torne favoráveis. Nesse sentido, a oração se torna o canal por meio do qual o adorador invoca os favores

divinos. Na ordem do culto, ela é a primeira. Por meio dela acredita-se “mover a mão” de Deus em sentido positivo aos membros da comunidade. Para o crente da ADMMO, o momento da oração tem um duplo caráter, pois ela é mecanismo de súplica e de devoção. Por meio dela confessam-se os pecados à espera do “perdão”, como também se agradece pelas “benções” passadas, presentes e futuras. Como sugere Mauss (1999), a prece é antes de tudo um meio de agir sobre os seres sagrados; estes são influenciados por ela, é nestes que ela suscita modificações. A oração marca três momentos do culto da ADMMO, ela é feita no início do culto, antes da pregação da palavra e no término do mesmo. A forma que assume esses períodos de oração deriva de movimentos crescentes na aproximação do fiel à “pessoa” de Deus. Nas ADMMO elas são fruto da improvisação, e podem ser realizadas por qualquer membro da comunidade, seja ele do sexo masculino e/ou feminino, desde que seja chamado pelo dirigente da igreja. Ao comando do oficiante, toda igreja é convocada a ficar de pé, e após o convite do mesmo, que em geral usa a expressão: “igreja vamos orar e/ou oremos”, a igreja levanta suas mãos aos céus em sinal de “súplica” e acompanha o oficiante, que em geral faz uso de um microfone, na realização da mesma. Do modo que é iniciada, ela também se encerra, ou seja, ao dizer o “amém”, o oficiante sinaliza o termino da mesma. A oração inicial é feita com a intenção de agradar a Deus, pois Ele precisa aceitar o “sacrifício” feito pelos fieis à sua pessoa. De acordo com Mauss “o sacrifício é um ato religioso que só pode ser realizado num ambiente religioso e por intermédio de agentes religiosos” (MAUSS, 1999, p. 156). Para os fieis da ADMMO, que são conhecidos e fazem referências a si mesmos como crentes assembleianos, o templo é um

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lugar sagrado, pois foi consagrado para Deus no momento de sua construção. Para o cristão assembleiano, essa forma de sacrifício não é feito por intermédio de objetos ou animais, e sim uma entrega total de sua pessoa aos serviços divinos, pelo qual ele se torna sacrificante e sacrifício, as duas funções se unem em um único ser. Seus “pensamentos e atos” se movimentam em um único sentido, a passagem da esfera profana a sagrada foi realizada, agora ele também é sagrado. A referência a textos bíblicos que indicam esse tipo diferenciado de sacrifício é feita de forma constante e exaustiva nos cultos da ADMMO. Um dos textos mais lidos é um do Apostolo Paulo que diz: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (ROMANOS, Cap, 12, v. 1). A diferença no entendimento entre a noção de sacrifico formulada por Mauss e a noção paulina4, encontra-se no caráter da vítima a ser oferecida aos deuses. Se para Mauss “o sacrifício é um ato religioso que, pela consagração de uma vítima, modifica o estado moral da pessoa que o realiza ou de certos objetos, pelos quais se interessa” (MAUSS, 1999, p.151), para os assembleianos é esse estado moral modificado que é oferecido em sacrifício no momento do culto. Após esse prelúdio intermediado pela oração, o culto segue em sua liturgia. São cantados hinos, que evocam, agradecem e suplicam a presença e aprovação divina dentro do ambiente onde o culto é realizado. Após o período devocional, é facultado aos fieis assembleianos o direito de testemunhar e agradecer as “bênçãos” recebidas. Dentro de uma sequência pré-estabelecida, o culto segue em sua dinâmica. Embora obedeça

a um padrão litúrgico linear – oração, cânticos, testemunhos, pregação –, esse formalismo não impede que ocorra manifestações espontâneas de fenômenos, que, dentro do campo simbólico das crenças pentecostais, são entendidas como um sinal da presença de Deus. A ocorrência de manifestações, como as ocorridas em Azuza Street no inicio do século XX e citadas por Campos (2012) – profecias, glossolalias, curas, milagres, prodígios –, são recorrentes na dinâmica do culto da ADMMO. Na ótica dos assembleianos são interpretadas como manifestações genuínas do “poder” de Deus. Em certa medida, essas manifestações funcionam como um movimento centrípeto, que também une e fortalece a crença do grupo. Como indicado anteriormente, a oração é marcada por três momentos distintos. Assim como o primeiro, que já foi descrito, os outros períodos, no qual a oração é realizada, também contem suas especificidades. Talvez elas possam servir como objeto de estudos em outro momento. O que nos propomos a partir de agora é analisar os hinos de conotação fúnebre, contidos na ADMMO, por meio do rito funerário. Para isso faremos uma descrição do velório evangélico dentro da dinâmica ritualística da própria instituição. Tentaremos, como foi proposto, apreender como os mecanismos de conforto e reforço das crenças, da organização e da estrutura hierárquica da ADMMO, são acionados, dentro do círculo religioso assembeliano, por meio dos hinos fúnebres postos em ação no velório. Como parte constitutiva dos serviços religiosos, os hinos desempenham a função de ritos. Tomando de empréstimo, a análise da prece como rito, formulada por Mauss (1999), os louvores e cânticos podem ser entendidos como ritos orais. Pois assim como a prece, eles também

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são atitudes e atos, assumidos e realizados em vista das coisas sagradas. São preces que, “se dirigem a uma divindade e a influencia; consiste em movimentos materiais dos quais se esperam resultados” (MAUSS, 1999, p. 230). 4.1 Assembleia de Deus: Hinos funerários e sua contextualização no velório Com relação ao velório evangélico na ADMMO, alguns pontos de diferenciação no que tange a causa-morte de seus fiéis devem ser levados em consideração. A sinalização das diferentes circunstâncias em que a morte ocorre serve para orientar a imaginação dos vivos em relação ao destino do falecido. Em circunstâncias específicas a morte pode ser interpretada como um ato punitivo de Deus contra a pessoa do crente “rebelde”. Para os assembleianos a noção de rebeldia é um indicativo da situação de marginalidade em que se encontra o fiel, dentro do contexto maior da ADMMO. A posição em que o crente se coloca em relação às prescrições dogmatizadas pela religião possibilita a identificação do seu destino postmortem, assim, “estar” rebelde, significa viver na contramão do arcabouço de crenças práticas e ritos aceitos pela coletividade religiosa. Segundo Durkheim, “uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.” (DURKHEIM, 2000, p. 32). Durkheim mostra, que a ideia de religião está amalgamada com a ideia de igreja, o que revela o caráter coletivo dessa última. No caso do cristão que falece em estado de rebeldia, será a coletividade e não ele, a descrever a sua situação no “outro” lado. O espaço de crença desses fiéis é marcado

pela ambiguidade, na qual a ideia de salvação é construída. Nesse sentido a “salvação”, nunca é uma certeza, está sempre envolta por uma áurea de dúvidas. As relações que são construídas e orientadas pela rigidez dessas prescrições, requerem uma atitude de “vigilância” permanente por parte dos assembleianos. Essa atitude é provocada pelo temor constante de quebrar essas regras. Para eles, a obediência acaba se tornando a melhor solução. 4.2 Circunstâncias da Morte Caso o fator causador da morte seja uma enfermidade, na maioria dos casos é de conhecimento do grupo. A expectativa da passagem, morte, é algo explícito para os membros da igreja local. Em situações como esta, em que a morte ocorre, existe uma preparação psicológica prévia das reponsabilidades e papéis que serão desempenhados no rito fúnebre. Os membros que compõe a comunidade religiosa sabem das implicâncias e responsabilidades da morte de um “irmão (a)”. Tanto é que, no processo de enfermidade a igreja procura, por meio de visitas e de orações confortar o enfermo. Embora toda a congregação seja livre para fazer essas visitas, para o pastor ela se constitui em uma obrigação, pois o mesmo é visto como uma espécie de sacerdote, investido de legitimidade e poderes “místicos” que podem ser usados como instrumento de “cura” e de “restauração” do enfermo. De acordo com Mauss (1999), o sacerdote: [...] está marcado com um selo divino. Traz o nome, o título ou o trajo do seu deus; é seu ministro, sua encarnação mesma, ou ao menos o depositário de seu poder [...] está no limiar do mundo sagrado e do profano e os representa simultaneamente. Eles se unem nele (MAUSS, 1999, p. 160).

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O valor simbólico atribuído, por Mauss (1999), a figura do sacerdote também pode ser entendido como uma atribuição do fiel ao pastor de sua igreja. Nesse sentido ser visitado por ele é ser colocado em contato direto com o Ser “divino” que nele está representado. Nessas visitas, são cantados hinos e feitas orações na tentativa de restabelecer a saúde do doente. Dentro desse contexto, a aplicação de ritos orais funciona como agentes de conforto, não só do enfermo, mas de todos os membros da comunidade presentes. Os hinos que são cantados nessas ocasiões evocam ao doente os benefícios da fidelidade aos preceitos religiosos em vida, como nos mostra a estrofe desse hino: Embora às vezes o crente As dores sofra da cruz, Gozo terá permanente, Quando no céu vir Jesus De glória coroado No trono divinal, Por anjos sempre louvado, Num coro celestial. (CPAD, Hino 204, 3ª estrofe).

Como citado no começo desse trabalho, os hinos de conotação fúnebre transitam para além da esfera do velório. Na estrofe acima citada, o dualismo entre o sofrimento e a noção de “gozo”, constrói e reforça as crenças do fiel em seus últimos momentos, junto a sua comunidade de pertencimento. Por outro lado é reforçado naqueles que visitam a ciência de que um dia se encontrará em situação semelhante a do doente. As referências ao céu, anjos e outras coisas relacionadas a um mundo sagrado, são sempre reiteradas nessas ocasiões. Como bem salientou Silva (2010), “o sistema cosmológico evangélico apresenta a morte como uma dupla quebra de comunicação com o defunto” (SILVA, 2010, p. 7), em outras

palavras, além da morte biológica encerrar as interações interpessoais do falecido, as crenças religiosas dos assembleianos proíbe qualquer tipo de comunicação com o morto. Sendo assim, o sentido das visitas vai além do conforto concedido ao doente, elas também são uma forma de antecipar a despedida entre eles e sua comunidade. Quando o fator causador da morte é um acidente, a única coisa que muda é a ausência de um conhecimento prévio sobre fatores, como doenças, responsáveis pela “partida do fiel”. Quando a morte é inesperada, priva a comunidade desses momentos de despedida. 4.3 Como a morte é interpretada Existem dois modos de se interpretar a morte na igreja ADMMO, uma é através da vontade de Deus. Aqui a partida é interpretada como uma passagem harmoniosa, mesmo que o sofrimento da enfermidade tenha estado presente. A morte é entendida como um estado no qual se cruzam o momento de “passagem” do crente e a vontade de Deus. Em outras palavras o fiel já estava preparado para entrar no Céu, daí a expressão entre eles: “Deus preparou e levou”. Porém, cabe a nós entendermos como essa preparação ocorre. A noção de morte, como dito anteriormente, não é lançada para longe dos bastidores da vida do fiel, a todo o momento ele é lembrado de que um dia também irá “morrer”. Paulatinamente, a noção de morte é introduzida dentro do campo interpretativo do fiel. Por meio da transmissão dos conteúdos orais – pregações, estudos, hinos – e escritos ele é introduzido na mística mortuária contida nas crenças da ADMMO. Este outro fragmento de um hino, nos ajuda a exemplificar nossas proposições. Ele nos permite olhar mais de perto, o modo como os cânticos influenciam a forma pela qual o assembleiano concebe a vida e a morte,

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como também a maneira que suas emoções são condicionadas por esta experiência. Nada aqui é permanente, Tudo tem que terminar, Mas olhamos para frente, Para o nosso eterno lar. Os remidos cá enterram Seus amados ao morrer, Mas um dia, sim, esperam Que no céu os hão de ver. (CPAD, Hino 251, 2ª e 3ª estrofe).

Aqui a dualidade entre transitoriedade e permanência é colocada frente a frente, o caráter mórbido da morte é absorvido no momento de “passagem”. Dois espaços sobrepostos ficam nítidos nesse cântico, o “aqui” e o “lá”, que podem ser entendidos como término ou descontinuidade biológica e continuidade espiritual. Como sugere Silva (2010), “existe a defesa constante de uma cosmologia que prevê espaços separados de atuação para vivos e para os mortos” (SILVA, 2010, p. 7), que é explicitada neste e em outros hinos. A outra maneira, na qual os assembleianos interpretam a morte de um de seus “irmãos de fé”, é vê-la como um castigo pela desobediência às prescrições impostas por Deus ao “crente”. Essas prescrições podem estar contidas na própria bíblia, como também podem ser transmitidas de forma sobrenatural – profecias, revelações, sonhos. Aqui é o pecado não confessado, ou a teimosia em não se submeter a um “chamado” divino para um papel específico – ser um missionário, pregador, pastor etc. – que leva à morte. Nota-se que um forte sentimento de “temor” permeia as relações desses fiéis em seu contato, com Deus, o mundo e as coisas. Como afirma Mauss (1999), esse temor é intrínseco à religiosidade, pois “a consciência religiosa, mesmo a de nossos contemporâneos, nunca separou exatamente a infração das regras

divinas e suas consequências materiais no corpo, na situação do culpável, em seu futuro no outro mundo” (MAUSS, 1999, p. 190). 4.4 O momento em que a morte ocorre: Em ambos os casos, quando ocorre à morte – prevista ou acidental – uma rede de transmissão de noticia é mobilizada. Depois dos familiares; o pastor passa a ser a pessoa mais procurada. Em geral ele recebe varias ligações informando a morte do “fiel”. Nessa rede está incluída: família do falecido, obreiros que auxiliam o pastor, juntamente com os fieis que mantêm uma relação de maior proximidade com este ultimo. Em suma, o ato de avisar o pastor, ao mesmo tempo em que é necessário para a organização do culto fúnebre, também serve para demonstrar o apoio e/ou apreço que essas pessoas tinham pelo falecido, como também é uma forma de se colocar a disposição do pastor e da igreja para eventuais serviços que envolvam o funeral. 4.5 O velório e suas implicações Após a família, o pastor e seus obreiros (auxiliares) devem ser os primeiros a chegar ao local no qual o corpo será velado. Nota-se que, nesse caso, o termo velado, refere-se apenas ao local e a alguns ritos que são específicos no funeral do evangélico que pertencia a Igreja Assembleia de Deus. O uso de Velas, libações ou outros objetos, como cruz ou rosários não estão presentes nesse ritual. Basicamente os ritos orais acionados no velório incluem cânticos – hinos – orações e a pregação e/ou discurso bíblico. Geralmente, a dinâmica do culto que ali será realizado é organizada em função do horário em que o corpo será enterrado, um espaço de tempo de mais ou menos meia hora é suficiente para que o culto – cânticos, pequenos discursos e a

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pregação da bíblia – seja executado. Na maior parte dos casos, a “igreja” já sabe com certa antecedência o horário em que o corpo chegará ao cemitério. Em decorrência disso a postura dos “crentes”, que para ali se dirigirão, deve ser coerente com essa ocasião. Existem regras que não são declaradas às pessoas que não fazem parte do grupo, mas que, no entanto estão claras para os “fieis” de uma mesma igreja. Essa postura envolve os hinos que serão cantados, a palavra que será pregada, enfim uma sequência de elementos ritualísticos que estão presentes nesse momento importante, não só para a família, mas também para a comunidade como um todo. Em geral o pastor comparece a esses eventos usando terno e gravata, no entanto essa não é uma regra rígida. Isso também se aplica para o restante da comunidade. A mensagem contida nos hinos é carregada de um profundo simbolismo, que pontua para a comunidade, a proximidade do fiel a “pessoa” Divina, como também reforça, nela, a crença em um mundo “ideal”, onde haverá a possibilidade de fruição de uma existência melhor. O hino abaixo contém em seus versos elementos que mistificam positivamente a morte. 1 Junto ao trono de Deus preparado Há, cristão, um lugar para ti; Há perfumes, há gozo exaltado, Há delícias profusas ali; Sim, ali; sim, ali, De Seus anjos fiéis rodeado, Numa esfera de glória e de luz, Junto a Deus nos espera Jesus. 2 Os encantos da terra não podem Dar idéia do gozo dali; Se na terra os prazeres acodem, São prazeres que acabam-se aqui; Mas ali, mas ali As venturas eterna concorrem Co'a existência perpétua da luz, A tornar-nos felizes com Jesus.

3 Conservemos em nossa lembrança, As riquezas do lindo país, E guardemos conosco a esperança, De uma vida melhor, mais feliz; Pois dali, pois dali Uma voz verdadeira não cansa De oferecer-nos do reino da luz, O amor protetor de Jesus. 4 Se quisermos gozar da ventura Que no belo país haverá, É somente pedir de alma pura, Que de graça Jesus nos dará. Pois dali, pois dali Todo cheio de amor, de ternura, Desse amor que mostrou-nos na cruz, Nos escuta, nos ouve Jesus. (CPAD, Hino 202).

À medida que membros da comunidade vão chegando ao local em que o corpo está sendo velado, o primeiro ato é o de compartilhar da dor dos parentes enlutados. São dirigidas palavras de condolências à família do falecido, e na sequencia aproximam-se do corpo. Nesse sentido o valor das “condolências” não pode ser buscado apenas nas palavras que são dirigidas aos familiares, e sim pelo simbolismo dos gestos nela contido. Como parte dos ritos presentes no velório esse ato de compartilhar da dor dos parentes enlutados libera o acesso ao corpo do falecido. É por meio dele que o fiel se sente autorizado a compartilhar do processo de ruptura e integração provocado pela morte. Ruptura em relação ao falecido, integração no sentido das forças que evocam e reúnem toda a comunidade em um mesmo evento. Essa sequencia de atos se dá quase de forma automática, isso pelo fato da família ficar a maior parte do tempo ao lado do “ente que partiu”. Nesse sentido o processo ritual de compartilhar da tristeza do enlutado por meio das “condolências” cumpre o seu papel. Existe uma espécie de uniformidade nesse ato, pois todos que para ali se dirigem se vêem numa espécie de dever

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em realizá-lo. Para Elias (2001), os “rituais de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas estão pessoalmente preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real desses rituais” (ELIAS, 2001, p. 36). Antes do culto as pessoas ali presentes, apos olhar a face do falecido se reúnem em grupos de afinidade a fim de fazer pequenas reflexões e comentários a respeito do morto e outros assunto, que nem sempre se relacionam com a finitude da vida. De acordo com Silva (2011): O hábito de avaliar a face do morto imprime ao momento de chegada do corpo uma dose maior de ansiedade. Reforça ainda mais sua emocionalidade. Afinal, a face do morto pode revelar dados morais da trajetória cristã daquela pessoa e confirmar seu destino póstumo. Ao encontrar a “face feliz”, imediatamente, certa tranquilidade toma conta dos enlutados. É a confirmação da abrangência dos estatutos cosmológicos que preveem a vida eterna no paraíso. (SILVA, 2011, p. 6)

Um dado importante se encontra no número de pessoas que se dirigem ao funeral. Ele é um indício do prestígio social do falecido no interior da comunidade religiosa a qual pertence. É quase certo que o velório de um fiel “carismático” reúna mais assembleianos, que uma pessoa que não seja portadora dessa espécie de prestígio. A posição e/ou papel social do fiel em vida, dentro do seu circulo religioso, também influenciará nessa contabilidade. No caso do falecimento de um pastor, um pregador “renomado”, um cantor, um “profeta” etc. a circulação de pessoas no local sempre é expressiva. Nesses casos, podem ocorrer divergências em relação ao local no qual o corpo será velado. Se o falecido for o pastor presidente da igreja, seu corpo é velado na igreja matriz, fator que promove a exacerbação da circulação de

pessoas no local. A morte nesse caso se torna um evento social de maior envergadura. O pastor só começa o culto quando o número de pessoas é suficiente. Não que exista um numero prescrito de “fiéis” para que o culto seja iniciado. A questão aqui se refere ao vinculo de irmandade existente no grupo. As informações referentes aos motivos – trabalho, viagens, enfermidades etc. – que impedem a ida de alguns irmãos ao velório são quase sempre repassadas aos presentes – não ir ao velório sem motivo “justo”, pode ser interpretado como descaso pelo falecido e sua família. A cabeceira do caixão fica reservada para o pastor e seus auxiliares (obreiros), enquanto que a família fica ao redor, literalmente do lado do caixão, as outras pessoas presentes se esforçam para ficar mais próximo do mesmo. Caso o número de obreiros auxiliares do pastor seja muito grande, ao seu lado permanecem somente aqueles mais próximos de sua posição hierárquica. Esse fato reforça e reitera a estrutura hierárquica da ADMMO. Na realidade a estrutura acaba sendo deslocada para as dependências do cemitério. A dinâmica ritualística que norteia o culto fúnebre pode ser encarada como uma reprodução e ao mesmo tempo extensão do culto na igreja propriamente dita – porém a conotação do culto no velório é diferente em essência daquele realizado na “casa de Deus”. Na igreja, a alegria, o agradecimento e a esperança das preces ouvidas por Deus e pela sua presença é a motivação central. Já no velório o inverso é que é o verdadeiro, pois a tristeza, a reflexão e a certeza da finitude é o que marca a dinâmica ritual do culto. Embora a intenção na escolha dos hinos a serem cantados seja a de promover o conforto; o conteúdo de carga emocional negativa que

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permeia esse momento não é totalmente anulado. [...] o enterro nunca é vivido como ocasião festiva. Logicamente há incongruência entre o que está sendo falado e o que está sendo praticado. Afinal a morte é desoladora e todas as explicações utilizadas pelos sistemas representativos são tentativas de lidar com seus efeitos. (RODRIGUES, 1983, p.41 in SILVA, 2011, p. 10)

À semelhança do culto na igreja, no velório ele sempre é iniciado por uma oração que o precede. A oração sempre é realizada por um fiel escolhido diretamente pelo pastor. Em geral o oficiante da oração é um dos obreiros que o ladeiam, e são sempre do sexo masculino. Em certo sentido ele não é escolhido pelo mecanismo da improvisação, pois o pastor tem no exercício de suas funções realizadas nos cultos feitos na igreja, o conhecimento dos obreiros que tem maior conhecimento da bíblia, eloquência e comedimento nos momentos de se expressarem diante da congregação religiosa. Se o obreiro que está ao seu lado não tem esse requisito, certamente será ele quem fará a oração. Nesse sentido existe uma gradação do prestígio entre obreiros do mesmo cargo, pois embora seja pontuado para a igreja no momento das escolhas para a oficialização de certos ritos – como orar, cantar e pregar – o lugar que se ocupa dentro da estrutura geral, a escolha “daquele” e não “desse” obreiro pelo pastor, é um sinal indicativo de sua relevância, perante não só o pastor, mas também do grupo. Após a oração, o pastor, que é o ministrante oficial, abre espaço para o cântico de alguns hinos, geralmente três. A escolha do cantor é sempre orientada por um conhecimento prévio do pastor, no que diz respeito, a posição dentro da estrutura da igreja, como as aptidões musicais de

quem vai louvar. Os hinos, quase sempre, falam da passagem, ou seja, fazem menção da finitude humana, como também das exigências impostas por Deus àqueles que pretendem morar no Céu. 1 No céu não entra pecado Fadiga, tristeza, nem dor; Não há coração quebrantado, Pois todos são cheios de amor, As nuvens da vida terrestre Não podem a glória ofuscar Do reino de gozo celeste, Que Deus quis pra mim preparar! Coro Irei eu p'ra linda cidade, Jesus me dará um lugar, Co'os crentes de todas Idades, A Deus hei de sempre louvar. Do céu tenho muitas saudades, Das glórias que lá hei de ver; Oh! Que gozo vou ter, Quando eu vir meu Senhor, Rodeado de grande esplendor. (CPAD, Hino 422, 1ª estrofe e coro).

As regras da fé se encontram implícitas logo na primeira linha do hino. O “pecado”, que na cosmologia assembleiana, é qualquer ato de desobediência à vontade divina, é materializado nas palavras, atitudes e ações, que vão na contramão dessa vontade. Nesse sentido o hino reforça ainda mais o conjunto de crenças dessa comunidade, pois a não observação dessas normas significa incompletude da promessa, ou seja, se torna impossível ver as “glorias do céu”. Algumas vezes o pastor envia um auxiliar para representá-lo, caso algum imprevisto o impeça de realizar o culto fúnebre. Nesse caso não é qualquer auxiliar. Em geral é o segundo dirigente, o obreiro designado a realizar essa tarefa. Caso esse também não possa comparecer, segue-se uma escala, de escolha, decrescente na ordem dos obreiros oficializados para substituir a função pastoral dentro da igreja local.

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Após os cânticos, é aberta a oportunidade para que pequenas mensagens (saudações) sejam dirigidas aos presentes – O culto é sempre realizado para os presentes, para os vivos, e nunca para o morto, pois “ele” não está mais lá. Está em outro lugar, geralmente “no Céu”. Nesse sentido as chaves interpretativas no que se refere à idealização da posição do morto em relação à comunidade difere, se comparado entre as noções islâmicas e judaicas do mesmo. De acordo com José Zuchiwschi (2010): O costume judaico de reverenciar os mortos por meio de preces, orações além do cumprimento de outros comandos divinos [...] têm como objetivo proporcionar à alma do falecido méritos que a façam ascender nos degraus da santidade espiritual. (ZUCHIWSCHI, 2010, p. 170)

Algo parecido ocorre no funeral islâmico. Segundo José Mapril, (2009), dentro da cosmologia islâmica, as orações e invocações que tragam benefícios pós mortem ao falecido é algo recorrente nessa religião. A ideia de alterar o destino do falecido é uma possibilidade no campo simbólico da comunidade islâmica e judaica. Para os judeus e muçulmanos essa realidade é um devir, uma construção em movimento, que pode ser “alterada” em decorrência das súplicas e preces da comunidade. Assim, parte do sentido de comunhão entre os fiéis destas religiões, que se dá por ocasião dos seus respectivos ritos funerários, advém da cooperação da coletividade em torno deste objetivo de auxiliar na ascensão da alma do falecido. Para os evangélicos, por outro lado, essa possibilidade se exaure com a “chegada” da morte. Momentos antes de encerrar o culto, o pastor faz a pregação oficial e/ou convida um de seus obreiros (auxiliares) a fazê-la. Em geral

esses obreiros são escolhidos pelo mesmo critério citado no momento da oração inicial, ou seja, são do sexo masculino e em ordem decrescente na hierarquia, estão mais próximos ao pastor. No velório, a pregação tem várias conotações. Em geral os versículos bíblicos utilizados na pregação são selecionados a priori. E quando a pessoa escolhida para pregar inicia sua mensagem, aparecem, na maior parte das vezes, conotações e ou intensões que podem ser divididas em três: mensagens de conforto, exortativa e/ou evangelística. A mensagem de conforto ressalta as qualidades espirituais positivas, observadas no histórico da vida do falecido. Esta tem por função diminuir o sofrimento da família e dos fiéis, já que o morto foi para um “bom lugar”. A mensagem exortativa consiste em um alerta direto referente aos perigos do não cumprimento dos mandamentos divinos, pois a finitude e brevidade da vida estão evidenciadas por meio do corpo que repousa inerte no caixão. A mensagem evangelística busca convencer o “pecador” (não evangélico), a aceitar a fé cristã, e como consequência dessa conversão ter garantida a salvação da “alma” e um lugar no céu. Ao final da pregação, outra oração é feita. As orações tem, quase sempre, um caráter confortante. Ao final desse cerimonial o morto é liberado por alguns minutos, pelo pastor, afim de que parentes e amigos o contemplem mais uma vez. Digo mais uma vez, pois em alguns casos a tampa do caixão é retirada a pedido da família antes que seja depositado na sepultura e recoberto com terra pelos coveiros. 4.6 Último adeus: o sepultamento encerramento de um ciclo ritual

e

Após o culto, o caixão é levado em direção à última morada terrestre do “fiel” que partiu. O pastor, familiares e obreiros são os primeiros

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a pegarem nas alças do caixão, assim auxiliando o transporte do falecido à cova. Nem sempre o caixão é carregado pela comunidade religiosa local, em alguns casos o coveiro transporta o mesmo em uma espécie de “carrinho” feito para esse fim. A caminhada se dá, de forma silenciosa, pois tratar de assunto do cotidiano pode ser interpretado com um desrespeito. Também, silenciosa, é a forma na qual a figura do pastor é solicitada nesse momento. Ele precisa chegar, mesmo que não seja antes, ao menos ao mesmo tempo em que o corpo ao local da sepultura. A comunidade o enxerga, como um guia, seu líder espiritual terreno. Esse fato revela o sentido da organização hierárquica que se expressa nas práticas e nos ritos da ADMMO, a referência à representatividade divina, na pessoa do dirigente da congregação é algo que se amalgama às noções de crença desses fiéis. Ao chegarem ao “endereço” no qual o corpo será depositado a cova já se encontra aberta, e quando a maioria dos familiares está presente, o pastor novamente convoca os fiéis a cantarem mais alguns hinos, e, caso seja o desejo dos familiares, o caixão é reaberto mais uma vez, para que o rito da despedida seja enfim terminado. Após os cânticos, o caixão é baixado, e enquanto ele vai sendo coberto por pás de terra; o pastor e/ou obreiro escalado para oficializar o culto fúnebre recita alguns versículos bíblicos e assim o velório é encerrado. 5. Considerações finais Ao descrever os ritos funerários acionados no velório da Igreja evangélica Assembleia de Deus Ministério de Madureira em Osasco (ADMMO), procuramos analisar o simbolismo contido no culto fúnebre.

Vimos que o fenômeno da morte, ao invés de ser superado pelo seu esquecimento é reiterado a todo o momento no campo de crenças e valores desses fiéis. À medida que a morte é interpretada como passagem para a vida eterna, a antecipação da passagem é sinalizada em diversos espaços litúrgicos, contribuindo para a consolidação da religiosidade dos fiéis. O que não significa que os seus efeitos temerosos e entristecedores não sejam sentidos, mas sim diminuídos em sua intensidade. Demonstramos como ritos orais orações, pregação e cânticos - são elementos que transitam dentro e fora do contexto do ritual funerário, ajudando não só a fortalecer e confortar a comunidade no momento do velório, mas também transportam todo um conjunto de normas e regras que compõe a estrutura hierárquica das ADMMO para além da sacralidade do templo. Assim, mesmo em um contexto que provoca a exacerbação das emoções, essa estrutura se conserva e se reproduz. Esperamos que essa singela reflexão, sirva de ponto de partida para outros questionamentos referentes à morte e suas implicações no contexto religioso de outros grupos.

Notas: 1

Divisionismo é um termo cunhado por Campos (2012), para explicar as situações de ruptura e criações de igrejas independentes a partir de uma matriz anterior.

2

Vide http://www.adosasco.org.br

3

Assembleiano é uma expressão cunhada pelos cristãos protestantes evangélicos brasileiros, como forma de identificar os fies pertencentes ao circulo das igrejas Assembleias de Deus.

4

Aqui a noção “paulina” é uma referencia, ao modo como

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Uma interpretação dos ritos fúnebres da Assembleia de Deus Carlos Jose Jesus Freire de Sá

o apostolo Paulo diferenciava as formas de sacríficos no judaísmo e no cristianismo de seu período. Na época de Paulo, era comum aos sacerdotes judeus oferecerem sacrifícios de animais como forma de culto a Deus, a proposta de Paulo para os cristãos era: ao invés deles sacrificarem animais, seria mais recomendável viver de forma condizente aos preceitos impostos pelo cristianismo.

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Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuição à discussão sobre democracia Christoph Hess

Christoph Hess é alemão, Engenheiro Ambiental pela Universidade de Ciências Aplicadas de Hamburgo, militante sindical e membro da Liga Socialista. A crise europeia, que agora já dura três anos, mudou profundamente as condições políticas na União Europeia (UE). Depois da Segunda Guerra Mundial a situação política nos países maiores da Europa Ocidental foi caracterizada por um crescimento econômico mais ou menos estável e um sistema democrático parlamentar sólido. Esse último se consolidou com a “revolução dos cravos” em Portugal (1974) e com o fim do regime ditatorial fascista na Espanha (1978). Com a queda da União Soviética (1991), o maior adversário desse sistema político e econômico sumiu, e, desde então, as democracias europeias – tendo no centro a Inglaterra, França e Alemanha – são consideradas juntas ao os Estados Unidos sem alternativa possível como os melhores exemplos para todo o resto do mundo. Mas quando uma grande parte dos países da chamada periferia – quer dizer, os países não imperialistas – estava procurando essa estabilidade política e olhando com admiração para a UE, essa mesma entrou na sua maior crise da história e perdeu a sua admirada estabilidade econômica e política. O sistema parlamentar na Europa, com suas particularidades e diferenças institucionais nos países diferentes, foi caracterizado basicamente por dois lados de maiorias parlamentares estáveis, que, tradicionalmente,

se alternaram no poder executivo. Trata-se dos partidos (ou bloco de partidos) conservadores ou (abertamente) burgueses de um lado, e dos partidos operários social-democráticos do outro. Pode-se observar essa constelação em quase todos os países (CDU e SPD na Alemanha, Conservative Party (Tories) e Labour Party na Inglaterra, UMP e SP na Franca, PP e PSOE na Espanha etc.). Isso é, como todos os sistemas políticos, um resultado da correlação de forças na luta de classes, dependendo do desenvolvimento econômico. O fato da relativa instabilidade da democracia parlamentar nos países não imperialistas corresponde ao fato da debilidade da burguesia nacional na economia mundial e de sua divisão interna. As forças políticas são um resultado das forças econômicas – e não ao contrário. Por isso, é inevitável que a maior crise econômica da UE ainda tenha impactos fortes sobre a tradicional estabilidade política. Nos últimos anos a situação política mudou drasticamente em vários países afetados pela crise. Na Grécia, por exemplo, o partido tradicional socialdemocrata, o PASOK, caiu completamente (nas últimas eleições caiu de 43 a 12%) e um novo partido de esquerda, Syriza, apareceu e quase chegou a ganhar as últimas eleições (subiu de 5 a 26%). Na Espanha e em Portugal existem partidos de esquerda que

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Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuição à discussão sobre democracia Christoph Hess

ameaçam as maiorias parlamentares de maneira parecida. A Itália entrou numa crise política depois das últimas eleições, incapaz de formar um governo para mais de três meses. Até na Alemanha, polo e centro estável na UE, as maiorias parlamentares nas eleições de setembro de 2013 estão em perigo. Diante dessa situação, as elites e a imprensa na Europa estão preocupadas com a legitimidade da democracia. O jornal espanhol El Pais escreveu sobre um “choque de democracias”. Políticos em todos os países se mostram preocupados diante do aumento de “extremismo” e “populismo”. Os funcionários europeus em Bruxelas falam que seria necessário “explicar melhor” as políticas de “reformas”, para que, dessa forma, os cidadãos não perdessem a confiança nas instituições e pudessem entender os cortes que estão sofrendo. Todo este discurso mostra a necessidade de uma ampla discussão sobre o que realmente significa o conceito de “democracia”. Isso porque, se analisarmos com mais cuidado, o que se percebe é que a União Europeia exerce uma política extremamente antidemocrática, argumentando, ironicamente, respaldada pelos valores democráticos. Na atual conjuntura, todos os países da Europa estão passando por políticas de cortes nos serviços públicos e de uma massiva precarização das condições de trabalho. Se gasta quantidades de dinheiro incrivelmente altas para o resgate de bancos e força, ao mesmo tempo, os governos nacionais a exercer cortes brutais contra a classe trabalhadora. Toda a política da União Europeia está dirigida com o paradigma de que se deve “acalmar os mercados financeiros”. Em benefício desses mercados, nenhum esforço é medido sendo que cada resgate de um país ou de um banco tem este objetivo. Diante disso, os países europeus caem

de joelhos em prol de um mercado financeiro que leva os estados abordo de um colapso. Ou seja, se a política dos países não contribui de modo suficiente para este paradigma, não se teme a estratégia de suspender governos e instalar governos “técnicos”, como já foi feito na Grécia e na Itália. Governos esses que eram sempre defendidos com o argumento de terem sido “democraticamente eleitos”. Estes acontecimentos deveriam chamar a atenção e colocar em voga algumas questões, muito além da União Europeia. Se são “governos democráticos”, governos que deveriam representar “o desejo do povo”, como pode ser que todos estes governos – não importa se formado de partidos chamados de direita ou de esquerda – aplicam uma política de cortes contra a própria população, sempre em busca de agradar os “mercados financeiros”? São os “mercados financeiros” que elegeram estes governos? São os “mercados financeiros” que representam a maioria do chamado povo? Como é possível que em um mundo cada vez mais rico, economicamente mais potente, os políticos autointitulados “democráticos” não deixam de argumentar que seria necessário “apertar o cinto” para poder dar bilhões de Euros a bancos e outras entidades financeiras? Não é verdade que hoje na Europa “a democracia” está em perigo ou em questão. O que se está sendo questionado – e isso é muito necessário e positivo – é o atual modelo de democracia, o conteúdo da democracia. É exatamente isso que reclamam los indignados na Espanha quando reivindicam uma “democracia real”. O sentido como está sendo usada a noção de democracia é altamente ideológico. Termos mais adequados seriam “democracia

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parlamentária” ou “democracia burguesa”. O primeiro indica que se trata de um modelo institucional muito concreto, uma forma particular de organização da chamada democracia. O segundo indica que se trata também de um sistema econômico, de uma relação de poder de classe. Esse sistema é o capitalismo. Se uma crise econômica leva a ataques a classe trabalhadora e outras classes oprimidas, tradicionalmente organizados fortemente na maioria dos países europeus, elas reagem na sua consciência política. Desse modo, as elites dizem que é a democracia que está em perigo, sendo que, na verdade, o que está em perigo é o poder institucional estabelecido nas últimas décadas. E assim é a discussão sobre a democracia. Não se discute mais o que é o conteúdo da democracia, ou sobre o que seria a forma adequada de estabelecê-la. Nem mesmo se problematiza como tem se dado o vínculo entre economia e democracia, quais são as formas históricas de democracia etc., que são questões centrais para a busca de uma “democracia real”. Hoje apenas se discute como seria possível melhorar as instituições do estado “democrático”, como se poderia ampliar a participação nesse âmbito, se as instituições trabalham numa forma eficaz etc. Ou seja, o paradigma da democracia parlamentária burguesa não está sendo mais questionado, mas está dado, nos deixando sem alternativa possível. A democracia é a democracia parlamentária burguesa, não existe outra forma. Assim a discussão política sobre a democracia está sendo separada da discussão econômica. O sociólogo Florestan Fernandes, refletindo sobre a redemocratização do Brasil nos finais dos anos 80, escreveu que: “A democracia é, sem dúvida, um valor; mas ela não escapa às determinações da sociedade civil. Por isso, não

pode ser representada como um valor em si e, muito menos, como um valor abstrato.” (citado em Leandro Konder, História das ideias socialistas no Brasil). As determinações da sociedade civil marcam as possibilidades de uma democracia, o que significa, por conseguinte, que a democracia pura não existe. Nesse sentido, portanto, a democracia significa exatamente o que Fernandes chama de “um valor abstrato”. O sistema político, que poderia ser tanto uma ditadura aberta como um sistema democrático, são expressões institucionalizadas de forças de classe na sociedade. Uma contribuição mais aprofundada sobre o caráter da democracia, por sua vez, pode ser encontrada em Lenin, quando argumenta que: É natural para um liberal falar de «democracia» em geral. Um marxista nunca se esquecerá de colocar a questão: «para que classe?» Toda a gente sabe, por exemplo [...], que as insurreições e mesmo as fortes agitações dos escravos na antiguidade revelavam imediatamente a essência do Estado antigo como ditadura dos escravistas. Essa ditadura suprimia a democracia entre os escravistas, para eles? Toda a gente sabe que não.

E mais: A não ser para troçar do senso comum e da história, é claro que não se pode falar de «democracia pura» enquanto existirem classes diferentes, pode-se falar apenas de democracia de classe. [...] A «democracia pura» é uma frase mentirosa de liberal que procura enganar os operários. A história conhece a democracia burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária, que vem substituir à burguesa. (Lenin, A revolução democrática e o renegado Kautsky, Novembro de 1918).

Aqui Lenin deixa muito claro como é a sua interpretação de democracia. Ao mesmo

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Democracia ou ditadura na Europa? Uma contribuição à discussão sobre democracia Christoph Hess

tempo em que o parlamentarismo é uma forma de democracia de classe, ele é uma forma de ditadura de classe. Democracia e ditadura nesse sentido não se excluem, não são opostos, mas se completam numa forma dialética. Voltando às palavras de Florestan Fernandes, é por esse motivo que a democracia “não escapa às determinações da sociedade civil.” Nesse sentido, a democracia parlamentar também não pode mudar o sistema econômico em que se funda: o capitalismo. Antes que um governo tente fazer isso, a burguesia toma conta da situação com uma ditadura aberta e dissolve a democracia, como pode ser observado em inúmeros exemplos ao longo da história do século XIX e XX. Para a classe dominante, a burguesia, é extremamente importante que a noção de democracia seja utilizada num sentido mais abstrato, o que evidencia o fato de que a democracia, por si, somente pode existir numa economia capitalista. Diante disso, é possível afirmar, inclusive, que a atual situação da União Europeia pode ser interpretada também dessa maneira. Como a sua economia entrou em crise – por razões que não cabem ser discutidas aqui – as suas instituições de poder de classe também entraram em crise, fazendo com que se perdesse a capacidade de manejar as diversas tensões sociais e políticas em vários países.

Elementos de participação podem funcionar como uma forma contrária ao poder das instituições de classe. Mas eles também podem funcionar para fortalecer o sistema parlamentar existente – e, assim, o poder dos capitalistas. No contexto hegemônico burguês, sem uma teoria nem uma organização contrárias, eles acabam funcionando nesse último sentido. As experiências com participação na Europa e mais ainda na América Latina (Brasil, Venezuela) demonstram isso. Para concluir, Slavoj Žižek argumenta que a democracia parlamentar vive um momento muito totalitário. Valeria a pena, portanto, discutir a chamada democracia participativa nesse contexto. Até porque, nenhum sistema é mais totalitário do que este que produz uma sociedade oprimida, exercendo uma ditadura de classe sobre seu povo, ainda que esteja revestido pelos ideias de participação.

Analisando essa experiência na Europa e discutindo o sentido e conteúdo da democracia, é também preciso interpretar e discutir as iniciativas para fortalecer a democracia, como por exemplo, a chamada participação ou democracia participativa. Na maioria dos países europeus existem mecanismos mais ou menos funcionáveis de participação da sociedade civil. Mas isso não evita ou muda o fato de que hoje a política na UE está sendo ditada pelo capital.

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Sartre: a consciência de ser visto Rafael Trindade

Este trabalho teve orientação da professora Maria Carolina M. M. Vicente de Azevedo (mc. azevedo@terra.com.br) e se tornou possível com o apoio do Pibic Mackenzie/MackPesquisa. E-mail para contato com o autor: rafaeltrindade10@gmail.com.

Resumo

Abstract

Este estudo pretende investigar a teoria sartreana sobre o Outro para melhor compreender as relações humanas. Sartre desenvolve em seu livro, “O Ser e o Nada”, a teoria sobre o Outro, e também o conceito da consciência de ser visto. Nela, os conceitos de Em-si e Para-si entram em uma relação estreita ante o olhar do outro, dando origem a uma nova forma de manifestação do ser: Para-outro. O conceito de Ser-Para-outro implica, primeiramente, em reconhecer sua existência, mas além de existir como objetidade e poder ser visto, o outro pode também me olhar, se utilizando, assim, de sua transcendência para me transcender. Deste modo, tenho que admitir a possibilidade de ser transformado em um objeto para o Outro. Através da consciência de ser visto, passo a ter a consciência de existir, assim, através do olhar, constituo minha própria essência.

This study intends to investigate Satre’s theory about the Other for a better understanding of human relationships. Sartre develops in his book “Being and Nothingness” the theory about the other, and also the concept of the awareness of being seen. In his ontology the concepts For-Itself and In-Itself engage an intrinsic interconnection in relation to the Other’s eyes originating a new way to reveal oneself: For-The-Other. This BeingFor-The-Other concept implies first of all in the recognition of the existence of the Other who besides existing as subject and able to be seen, can also look at me, using his transcendence to transcend me. In that way, I have to admit the possibility of being transformed into a subject for the Other. It is through the consciousness of being seen that I develop the consciousness of existing therefore through the Other's eyes I compose my own essence.

Palavras -Chave Sartre; Outro; Olhar.

Key words Sartre; Other; to look.

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Sartre: a consciência de ser visto Rafael Trindade

Introdução Quando Sartre, ainda estudando filosofia na École Normale Supérieure, foi introduzido ao método fenomenológico, Raymond Aron, apontando para seu copo, lhe disse "estas vendo, meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar deste coquetel, e é filosofia". Simone de Beavoir nos conta que Sartre empalideceu de emoção, era isso que ele ambicionava há anos, falar do concreto, do real, e foi assim que, se utilizando do método fenomenológico, desenvolveu o Existencialismo, conhecida corrente filosófica do séc. XX. Sartre publicou sua obra principal, O Ser e o Nada - ensaio de ontologia fenomenológica, no fim da segunda guerra mundial, e nele procurava falar do mundo de uma forma mais clara, realista, evidenciando suas contradições e descartando as abstrações metafísicas que prevaleciam na tradição filosófica até então. Neste livro, Sartre examina a relação do Eu com o Outro e, mais especificamente, sobre a consciência de ser visto. É nosso propósito, aqui nesse artigo, expôla e caracterizá-la de maneira clara, usando, assim como Sartre, exemplos do cotidiano e evidenciando o caráter existencialista das relações. Esta pesquisa pretende contribuir, com temas desenvolvidos por Sartre, para as discussões sobre o olhar, vergonha, orgulho, medo, amor, ódio, temas esses amplamente estudados pela psicologia. Entendemos que a filosofia de Sartre, por ser profundamente focada no indivíduo e no mundo que o cerca, tem condições de contribuir nas discussões que tratam das relações humanas. Antes de desenvolvermos a teoria sobre a consciência de ser visto é necessário enfatizar o caráter acumulativo com que são apresentados os conceitos em sua obra, concatenados e desenvolvidos extensamente ao longo da mesma. Portanto, antes de entendermos como Sartre vê a

relação com o Outro, é necessário apresentar uma análise de dois conceitos básicos de sua filosofia, o Em-Si e o Para-si, e depois, com esses conceitos definidos, daremos prosseguimento à teoria sartreana do Outro e finalmente à consciência de ser visto. Referencial Teórico O referencial teórico enfocou obras que tratam dos conceitos específicos que procuramos abordar como, o outro, a consciência e a consciência de ser visto. A principal referência para o trabalho foi a obra de Sartre, “O Ser e o Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica”. Existe uma grande quantidade de autores que tratam da obra de Sartre e do existencialismo, mas demos preferência para Gerd Bornheim, “Sartre: metafísica e existencialismo”, e Paulo Perdigão, “Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre”, este, o principal tradutor da obra de Sartre para o português. Nos dois últimos autores buscamos embasar conceitos gerais e essenciais para a composição do texto e em Sartre, buscamos especificamente responder às perguntas deste trabalho sobre o olhar, o outro e a consciência de ser visto. Também usamos a obra teatral “Entre Quatro Paredes” e “Jean Genet, Ator e Mártir”, de Sartre e “Primeiro Fausto” de Fernando Pessoa para dar exemplificar os conceitos expostos. Método Esse trabalho foi composto por uma pesquisa teórica com foco na obra “O Ser e o Nada” de Sartre e como bibliografia complementar: “Sartre: metafísica e existencialismo” de Gerd Bornheim, “Existência e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre” de Paulo Perdigão.

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Sartre: a consciência de ser visto Rafael Trindade

Coleta e análise dos conceitos: primeiro definimos sistematicamente os conceitos chaves que se integram às idéias gerais e ajudaram na exposição de nosso projeto central. Depois, elaboramos a interpretação dos conceitos adquiridos. O trabalho foi dividido em duas partes: Na primeira parte, desenvolvemos a ideia da consciência. Na segunda parte, definimos “O Outro”, “O Olhar” e “a consciência de ser visto”. Neste segundo momento, vários conceitos essenciais para desenvolvimento do tema já foram esclarecidos e tivemos condições de explorar mais a fundo o tema do trabalho. A obra principal de Sartre, O Ser e o Nada, foi utilizada durante todo o processo como ferramenta principal. Algumas obras literárias também foram utilizadas para exemplificar suas teorias, como, por exemplo, “Entre Quatro Paredes”, “Jean Genet: Ator e Mártir”, as duas de Sartre e “Primeiro Fausto” de Fernando Pessoa. Resultado e Discussão A consciência Para Sartre, “Toda consciência é consciência de alguma coisa”, logo, sem mundo, não seria possível haver consciência. Ela é esse deslizar contínuo para a realidade, é esse mergulho na existência. Portanto, a consciência faz contraponto com o mundo, gerando assim, segundo Sartre, duas manifestações de ser, a saber: Ser-Em-Si e Ser-Para-Si. O ser existe por si só, no mundo, e é apreendido por nós. Já o ser humano existe, mas pode ser entendido como uma manifestação dupla do ser, um ser cindido. Sartre é econômico em sua definição do Em-si: o Em-si é o que é. “o ser é, o ser é em si, o ser é o que ele é” (Sartre, 1999). Não há distância do Em-si para com ele mesmo, ele é o que é, um ser acabado e fechado em si mesmo. O Em-si

não permite filosofia, não permite nada mais do que é (pois qualificá-lo seria dizer que é mais do que é). Ele é positivo em si mesmo e nada mais. Por isso é difícil falar do Em-si, porque não há o que ser dito. O Em-si é o mundo, o mundo material, com seus objetos e seus corpos. Toda ciência é ôntica e estuda o Em-si, estuda as coisas como são e como se manifestam em seu existir. Quando estudamos o movimento de uma pedra, usamos fórmulas e temos como resultado nada além daquela positividade que ela é; por isso seu movimento será sempre o mesmo, ela é puro existir apreendido. O Em-si não tem segredo: é maciço. Em certo sentido, podemos designá-lo como síntese. Mas a mais indiscutível de todas: síntese de si consigo mesmo. Resulta, evidentemente, que o ser está isolado em seu ser e não mantém relação alguma com o que não é. (Sartre, 1999).

Nada se esconde atrás do Em-si, e não há nada a ser apreendido além dele mesmo. Por isso: é o que é. Apenas uma coisa se diferencia do Em-si: a consciência. A consciência é Para-si. Se o Em-si é pura positividade e deve ser apreendido pelo que é, a consciência, ou Para-si, é pura negatividade e deve ser apreendido pelo que não é. “se o Em-si é o ser, então o Para-si, sendo fundamentalmente outro que não o Em-si, só pode ser nada” (Bornheim, 2003). O Para-si surge do Em-si, depende dele, é negação direta dele. Como o Emsi não se relaciona com nada além dele mesmo e não depende de nada, sua existência é completa, pura positividade; mas não podemos dizer o mesmo do Para-si, porque ele só pode ser definido em relação ao Em-si, não sendo Em-si. O Parasi surge através de um distanciamento do Em-si, uma distância “separada por Nada” (Perdigão, 1995), e é através dessa negação que descobrimos

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o mundo, olhando-o a distância. O Para-si, nossa consciência, descobre o mundo negando-o, ele nega a positividade do mundo para descobri-lo, ele se separa do Em-si para existir como sendo nada. “nas coisas não há distância de si para si: não há ‘si’, a consciência é essencialmente essa distância. As coisas não têm interioridade, e é justamente pela interioridade que o homem se faz um ser-Para-si.”(Bornheim, 2003). É exatamente esse desprender-se do ser que nos faz surgir como interioridade, é essa distância de nós mesmos que nos revela o mundo, pois somente se nos descolarmos do ser é que poderemos olhá-lo a uma distância segura para que esse se revele a nós. É por isso que Sartre define nossa existência como ôntico-ontológica, temos esse caráter duplo, ao mesmo tempo que somos, também não somos. Somos nosso corpo, somos nossas reações químicas, somos nossa contingência no sentido em que temos exatamente esta estatura, este tom de pele, esta nacionalidade, mas ao mesmo tempo não somos, porque a consciência nega o que é para poder existir; quando me percebo como brasileiro é porque nego as outras possibilidades (americano, francês, chinês), quando descubro minha altura, é porque me desprendo de mim e me vejo a distância para chegar à conclusão que não tenho nem mais e nem menos altura do que a que realmente possuo. Só podemos conhecer o mundo negando-o, o ser não se relaciona com o mundo porque o ser-em-si simplesmente existe no mundo. Perdigão esclarece citando Sartre: é através do nada que o ser vem ao mundo. Através do nada que o ser se percebe como sendo o que não é. E é por isso que o Para-si depende do Em-si, porque o Para-si nega o Em-si para estar em presença do mundo, separado por nada; essa negação deve provir de uma possibilidade absoluta; o contrário, uma afirmação da negação,

é impossível; o Em-si pode existir sem o Para-si, mas o Para-si não pode existir sem o Em-si. Essa negação do Para-si é que dá o seu caráter de indeterminação, de ser-que-ainda-nãoé-completo. Estamos em presença do mundo, e só constatamos sua existência porque nos colocamos a uma distância suficiente para vê-lo (como o leitor se põe à distância do livro para lê-lo). E se negamos o mundo para existir nele, significa que somos incompletos, essa é a essência do Para-si, “ele não é o que é”. A consciência não pode existir por conta própria, ela está presa ao ser, mas ao mesmo tempo, ela nega o ser que é e se lança no mundo para ser o que ela não é. Essa é a definição definitiva do para-si: ele não é o que é e é o que não é. Mas como entender completamente essa definição? Como saber exatamente os limites entre o em-si e o para-si? Já vimos que o Para-si depende do Em-si para ser, mas um nunca entra em contato com o outro. Por exemplo, quando sinto dor, não é meu corpo que sente dor, é minha consciência que se transforma em consciência (de) dor, o meu corpo é o ser-em-si que existe, com suas terminações nervosas que realizam reações químicas e elétricas para alterar meu estado cerebral. Tudo isso é emsi, tudo isso é o que é e nada mais. De onde vem a dor? A dor é meu para-si que toma distância daquilo que é – corpo que sente dor – para ser aquilo que não é – corpo saudável, corpo na ausência de dor. O Para-si nega o presente e se lança no futuro constantemente, ele nunca se torna o que é, é sempre descolado do ser por nada e jogado naquilo que não é. Essa nadificação do ser que traz o conceito de temporalidade à consciência. As coisas não têm temporalidade, é por meio da consciência que o tempo existe porque o ser-Emsi só pode relacionar-se com ele mesmo. Tempo

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e consciência são uma e a mesma coisa, por causa do caráter de negatividade do Para-si, ele se lança no mundo buscando ser alguma coisa; ele se projeta no futuro para se tornar algo, fugindo constantemente do passado. Essas seriam as três dimensões do tempo que foram desenvolvidas por Heidegger e ampliadas posteriormente por Sartre: o passado, que é o que é, definitivo e pleno; nesse sentido, assemelhando-se ao Emsi. O passado é o Para-si convertido em Emsi, porque é fixo e não pode ser mudado, nem negado de forma alguma. “O passado é um Em-si que carrego atrás de mim [...] conversão total do Para-si em Em-si” (Perdigão, 1995). O presente, que é nada, separado pelo futuro e pelo passado por um instante inapreensível, onde supostamente encontraríamos o Para-si, se buscando constantemente; mas o para-si se lança no futuro, mesmo estando preso ao presente; o Para-si está separado do presente por um nada de distância, porque se nega e se nadifica para ser o que ainda não é: o futuro. O futuro é apenas uma possibilidade para o Para-si, o para-si busca o futuro, as possibilidades, o que ainda não é. Essa relação se dá perpetuamente, o futuro existe como possibilidade como vir-a-ser, e , logo após acontecer, se torna imediatamente passado, Emsi. O corpo, como vimos, faz parte do Emsi, e portanto, contém todas as marcas do futuro que tornou-se passado. É impossível negar o corpo, ele está ai, inegavelmente faz parte de nossa contingência e representa tudo aquilo que somos, mas não estou fechado em meu corpo, meu para-si se desprende dele e procura ser algo (porque não é nada). Sartre define isso como o “perseguidor perseguido” porque nosso em-si está constantemente correndo atrás do Para-si, está transformando tudo em Em-si, em passado. Fugimos constantemente de nós mesmos em

busca daquilo que não somos. “assim somos nós: vamos correndo em direção a nós mesmos, o nosso Ser acabado que se encontra no futuro, o nosso ‘Si mesmo’, e somos aquele que não pode jamais alcançar-se” (Perdigão, 1995). Por que o Para-si não pode jamais alcançar-se? Porque senão já não seria a nadificação de algo, mas se converteria num Em-si, sendo que sua própria definição é ser-o-que-não-é. Nesse sentido, só há uma maneira do Para-si transformar-se em Emsi: na morte. Quando morremos, somos puro em-si para os outros, não mais nos lançamos no futuro para sermos o que não somos, somos pura facticidade, corpo inerte; nesse momento, o Emsi alcança o Para-si em sua busca incansável. Mas enquanto somos vivos, vivemos da falta, vivemos para nos completarmos. Esse é o “projeto fundamental” do Para-si, completar-se, ser Parasi-em-si. Para isso, fazemos o que Sartre define como: circuito da ipseidade (do latim ipse: “si próprio”, ”a pessoa”). No circuito de ipseidade, nos lançamos para o futuro (aquilo que não somos) para constatar a falta daquilo que somos no presente, e, assim, podermos negar o presente para suprir essa falta. Tudo parece muito paradoxal, mas pode ficar claro com um exemplo: Quando me sento em frente a uma partitura em branco, e penso em compor uma música, me nego no presente (partitura inacabada, inspiração que será usada, música a ser feita) para me afirmar no futuro (música terminada, notas no papel). O circuito de ipseidade é esse processo do Para-si de fazer-se projeção no futuro para dar sentido às suas ações no presente. O presente por si só, sem relação alguma no futuro, não traz sentido algum, é somente quando quero fazer uma música, tenho vontade de escrever uma música, que posso dar sentido às minhas ações . Mas a música em si não existe, ela é o que busco ser (o ser que não sou).

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E sou eu que dou sentido a ela; a partitura em branco na minha frente seria indiferente se eu não tivesse as noções de harmonia para compor uma música, ou se não tivesse inspiração e vontade de compô-la. O mundo é indiferente em si mesmo, minha consciência, que se desprende de mim e se joga no mundo, é que da essência às coisas. Até mesmo o ato de compor pode ter um sentido diferente dado por minha consciência. Se for um músico contratado para compor uma sinfonia, mas estiver sem inspiração, meu trabalho será uma “obrigação”, algo que “devo fazer”; mas se, ao contrário, faço isso por alguém que estou apaixonado, então farei uma música “por amor”, “para conquistar minha amada”. ”Em todos os meus gestos, minha consciência projetiva serve de mediadora entre duas situações objetivas” (Perdigão, 1995). Estas constituem as principais diferenças do Em-si e do Para-si. O Em-si é o que é, o corpo, o passado, o definitivo. O Para-si é a consciência, aquilo pelo qual o nada vem ao mundo, o futuro, o vir a ser, ou, em uma frase: “aquilo que não é o que é e é o que não é”. Por meio destes conceitos, agora esclarecidos, temos ferramentas para entender o que acontece quando nos encontramos com o outro, quais são as implicações desse encontro, quais as transformações que se dão nessas duas formas de manifestação do Ser. A Consciência de ser visto Para melhor entendermos os processos que ocorrem quando há a consciência de ser visto, vamos analisar o olhar. Para termos a consciência de ser visto precisamos, antes, ter consciência de um olhar sobre nós. Sartre não procura provar a existência do outro, para ele, esse fato é um fato concreto, uma certeza, do contrário cairíamos num solipsismo

do qual não poderíamos escapar. Não sei da existência do Outro através da objetividade, conheço-o através da intuição. Sei que ele existe, sei que por trás daquele que vejo existe, assim como eu, outro Para-si, outro ego, mesmo que não possa vê-lo ou prová-lo eu o afirmo. Tenho certeza que não estou sozinho no mundo por meio da intuição. “(...) se devo duvidar da existência de Pedro, meu amigo – um dos outros em geral -, na medida em que esta existência está, por princípio, fora de minha experiência, é preciso duvidar também de meu ser concreto, de minha realidade empírica de professor dotado de tais ou quais inclinações, hábito e caráter. Não há privilégio para meu eu: meu Ego empírico e o Ego empírico do outro aparecem ao mesmo tempo no mundo; e a significação geral de ‘Outro’ é necessária à constituição de cada um desses ‘egos’” (Sartre, 1999)

Deste modo, pulo as provas da existência do outro, porque negá-lo seria o risco de negar a mim mesmo, para compreender o que é o outro e como interagimos com ele. “O outro é aquele que me exclui sendo si mesmo, aquele que excluo sendo eu mesmo.” (Sartre, p. 306), só posso conhecer o outro como não sendo eu mesmo, como sendo aquele que não sou. Meu Parasi conhece o outro como não-sendo-eu, como sendo outro Para-si (do qual não tenho acesso) separado de mim. Portanto, assim como eu, ele também está aí, no mundo, se construindo, ele também possui sua própria contingência, mas, ainda assim, num primeiro momento, apreendo o outro como sendo um objeto, um Em-si. Vejamos esse exemplo: digamos que um pianista toque toda terça-feira num restaurante, quando ele chega lá, abre suas partituras e começa a tocar. Como mencionamos anteriormente, seu circuito de ipseidade, o Para-si que se joga no

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futuro, está fechado em si mesmo no sentido de terminar-a-música-sem-errar, lembrar-daquelapassagem-complicada. Ele está ciente dos clientes que estão jantando, está ciente de que são pessoas comuns, como ele, que estão à procura de um jantar agradável, mas ele os ultrapassa, os transcende definindo-os como ouvintes, como aquelesdos-quais-depende-meu-couvert. O que isso significa? Nosso músico nega a eles a existência como seres reais? Ele os vê como marionetes, como robôs? Num primeiro momento, sim. Apesar de saber que existem pessoas por detrás, ou por debaixo, de suas peles e roupas, ele não os “vê” como tais. Tudo gira ao seu redor, é ele quem dá as regras do jogo, todas as distâncias são suas distâncias no sentido de que este piano é o piano que ele toca, a música é a música que ele proporciona, os ouvintes são seus ouvintes. Mas, se posso observar o outro, e sei que o outro é um ser como eu, isso significa que o outro também pode observar-me. Nesse momento toda minha maneira de ser se transforma, “se há em verdade um Eu para o qual o outro é objeto, é porque há um Outro para quem o Eu é objeto” (Sartre, 1999). É nesse momento que o ser-Para-outro se manifesta, através do olhar do Outro. Porque da mesma maneira que posso olhar o outro e defini-lo através de minha subjetividade, sei que o outro pode olhar-me e definir-me através de sua subjetividade. Nesse momento, sou um serPara-outro, sou objeto do olhar de outra pessoa, ele me vê como objeto no mundo, ele dá suas distâncias para mim, o jogo inverte e ele passa a dar as cartas do jogo. Sartre define isso como uma forma de escoamento de meu mundo para fora de mim, uma “hemorragia interna; é o sujeito que a mim se revela nesta fuga de mim mesmo rumo à objetivação” (Sartre, 1999). Mas o outro que me olha não é seus olhos, seus olhos fazem parte do Em-si, assim

como seus braços e suas pernas, o outro que me olha não se define por sua retina, ou seu nervo óptico, isso apenas dá suporte para seu olhar. O olhar é muito mais que isso, está além disso. Captar um olhar é mais que captar um objetoolhar, é transcender o olho para ter consciência de ser visto. O olhar me remete a mim mesmo, não no sentido de Para-si, não no sentido daquele que é o que não é e não é o que é, mas no sentido de ser-no-mundo, ter-de-ser-alguém. O outro faz essa mediação entre mim e eu mesmo; de certa forma, é através do outro que passo a existir no mundo no modo de ter-de-ser. Por isso a analogia com a hemorragia, porque o outro me transforma em objeto, passo a ser algo, não mais sou aquilo que não sou, definição primordial de Para-si, não mais me lanço no futuro; o outro me capta com seu olhar e me prende em mim. Corro constantemente esse perigo, sou escravo do olhar do outro, e através de seu olhar passo ao mesmo nível dos objetos do mundo1. Ser visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha. É mais como uma solidificação, uma estratificação; fico congelado perante um olhar. ”Se me olham, tenho consciência de ser objeto” (Sartre, 1999), e é apenas o outro que me permite captar-me como tal. Através de meu Para-si não posso deixar de me lançar no futuro e me negar no presente, fujo constantemente de meu Em-si, mas através do olhar do outro, quando tenho consciência de ser visto, meu ser-Para-si escorrega para o mundo, meu Para-si cai no mundo e eu não sinto isso, eu sou isso. E não importa o que o outro me diga que sou algo, não posso ver-me como tal, não posso ver-me como Em-si, mas sei que o outro me capta assim. Portanto, através do Outro capto a última estrutura de meu ser. “Meu ser-Paraoutro é uma queda através do vazio absoluto em direção à objetividade” (Sartre, 1999).

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É preciso deixar claro que o ser-Paraoutro não deriva do Para-si. Existe três maneira de existência do ser: Em-si, Para-si e ser-Paraoutro. Elas são independentes, e no caso das duas primeiras, independentes da existência de um terceiro para existir. Mas o ser-Para-outro necessita de Outro para existir, não do Para-si. Prova disso é que somo Para-outro antes mesmo de sermos Para-si. Quando nascemos já éramos Em-si e Para-outro, já no útero de nossa mãe éramos Para-outro: ganhamos um nome e fomos vistos no ultra-som. É nesse sentido que sou Paraoutro, existo no mundo, o outro me olha e me faz existir no mundo. A partir de então, constituímonos e interiorizamos o outro em nós de modo que, num dado momento, o olhar do outro cai sobre nós sem que necessariamente esteja lá. Então, ao ouvir um barulho atrás de mim, sentirei que estou sendo olhado, e me darei conta de meu ser-Paraoutro. Posso me virar e descobrir que não havia ninguém, nesse caso, o meu ser-Para-outro era menos real do que se houvesse alguém? Não, diria Sartre, através da consciência de ser visto, tenho consciência de mim no mundo, através dela passo a existir como facticidade, mesmo que o outro não esteja lá de fato, essa terceira maneira de ser (Para-outro) já se realizou. Num sentido mais amplo, podemos dizer que, para os religiosos, o conceito de Deus é um Outro constantemente presente, que nos observa e no julga. Posso sentir-me constantemente observado por Deus e sentir minhas possibilidades e referências todas a partir de um ser superior. Sartre expõe três modos de captar meu ser-Para-outro: a vergonha, o orgulho e o medo. Para expor esses sentimentos, voltaremos ao exemplo do músico: ele abre uma nova partitura e se dá conta de que está em face de uma música muito difícil. Então, começa a tocá-la ao modo de tocar-sem-errar, ele transcende as notas e o

movimento dos dedos nas teclas do piano para ser (ao modo de não ser o que é e ser o que não é) aquele-que-não-erra-a-música. Nesse momento ele se utiliza do circuito de ipseidade, seus movimentos presentes só têm sentido porque ele se lançou no futuro; “aquilo que não é” é o que dá sentido ao seu presente. Mas ele erra. Então, imediatamente, alguém na plateia olha para ele. Subitamente seu ser se esvazia e cai na realidade, o outro o temporaliza, o joga no presente (que ele negava) fazendo-o ser. O outro nega sua transcendência para jogá-lo no real, transforma todas as suas possibilidades, para ele, o músico é simplesmente aquele-que-errou. Para o Outro, não há diferença entre o músico que erra e um disco riscado, os dois são apenas objetos, sem transcendência alguma. Então, se dá a vergonha. A vergonha é esse apreender-se no mundo, à deriva, para que o vejam. Ter vergonha é, com efeito, ter vergonha de si para alguém, é escorregar para fora de mim para ser apreendido. Com a vergonha passo a viver, e não conhecer, a situação de ser-visto, perco-me de mim. O outro, quando me olha, passa a dar suas distâncias, seus valores, sua transcendência; por isso me constituo como objeto, sou objeto sobre fundo do mundo de outrem. Minha transcendência é transcendida, fico alienado. O outro é um lugar inacessível onde não posso entrar, como um buraco negro onde tudo entra e nada sai. Sartre nos trás a ideia de escoamento porque não posso reaver o que me foi tirado com o olhar do outro, está perdido dentro dele. Mas ao mesmo tempo, é esse olhar que me remete a mim como aquele-que-errou, é necessário esse olhar para poder constituir-se essa essência, porque o Para-si não pode definirse. Com efeito, o Para-si nem se via tocando, ele estava se jogando constantemente no futuro, ele negava o presente para ser aquele que acertava a música inteira até o último acorde. Mas de

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alguma forma, o Para-si não pode constituirse, a música era muito difícil, os acordes eram muito complicados, seus dedos (Em-si) não acompanharam a velocidade do andamento da música. Ele errou, e nesse momento, toda sua transcendência se desvaneceu e ele caiu como chumbo na realidade ao ser olhado pelo Outro. A vergonha é apenas o sentimento original de ter meu ser do lado de fora, comprometido em outro ser e, como tal, sem qualquer defesa, iluminado pela luz absoluta que emana de um puro sujeito; é a consciência de ser irremediavelmente aquilo que sempre fui. (Sartre, 1999).

A vergonha é a porta pela qual temos condições de formular um juízo sobre nós mesmos no mesmo sentido que formulamos juízos sobre objetos, porque, através do Outro, tenho condições de aparecer como objeto a mim mesmo. É o conhecimento que vem do outro, na forma de juízos, que possibilita-me conhecerme. O saber que vem do outro é o fator principal para formar o conceito de mim mesmo, na forma de Em-si. Na obra “Saint Genet: ator e mártir”, Sartre descreve a metamorfose que se dá com a palavra vertiginosa: ladrão. “A vergonha do pequeno Genet descobre para ele a eternidade: é ladrão de nascença, será assim até a morte. [...] Genet é um ladrão: essa é a sua verdade, a sua essência eterna” (Sartre, 2002). A vergonha provém do contato com o outro, o contato com o olhar, e o olhar sobre Genet o condenou a ser algo, no sentido de ter-de-ser. Genet não podia ser mais nada além de ladrão, ele se tornou a essência dessa palavra. A vergonha o jogou no mundo e ele foi engolido pela essência que lhe deram.Se existisse apenas eu no mundo, todas as distâncias partiriam de mim, todas as essências viriam de mim, mas eu não saberia quem sou, porque o Para-si não pode voltar-se para si mesmo, afinal,

ele é nada. Também não poderia conhecer-me através do Em-si, ele é fechado nele mesmo, não se relaciona com nada além dele mesmo. O orgulho é segundo modo de reconhecer meu ser-Para-outro. Ele deriva da vergonha, no sentido em que me sei visto pelo Outro e que me encontro no mundo como objeto para ser visto; mas, nesse caso, o orgulho assume a postura oposta: suponhamos que nosso já citado músico agora toque de maneira sublime e maravilhosa aquela música difícil que dissemos anteriormente e no fim receba uma salva de palmas esfuziante. Como não se sentir orgulhoso numa situação dessas? Ele se levanta e faz uma reverência, agradecendo o reconhecimento. Ele se sente orgulhoso, mais do que isso, ele é orgulho. De que modo isso difere da vergonha? Num sentido original, nada. Ele vive a mesma situação, mas de maneira oposta. Ao se sentir orgulhoso, ele também é apreendido no mundo, ele também é olhado, também é alienado de seu Para-si, mas ao modo de músico-talentoso, de grande-pianista. A diferença essencial é que, nesse caso, ele quer ser aquilo que dizem que ele é, resigna-se com sua condição. Tem orgulho de ser o que é, mesmo que seja Para-outro; nega sua transcendência, que é nada, para afirmar-se como aquilo que é Para-outro. Veste a carapuça que lhe dão, mas põe essa carapuça sobre nada, porque nunca será o que quer ser. Nega seu vir-a-ser para perder-se nesse Em-si que lhe foi dado. Mas essa situação não pode sustentar-se, o Para-si se joga constantemente no futuro, se desprende e foge do Em-si o tempo todo. Só podemos ser aquilo que somos na morte, quando o Para-si é finalmente alcançado pelo Em-si e, somente nesse caso, somos plenamente objeto, mas deste modo já não podemos nos revelar como sujeito. Por meio do conceito do orgulho, Sartre tem condições de desenvolver um importante

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estudo sobre a vaidade, a sedução e o amor. Nos dois primeiros casos me mostro como objeto positivo, me construo e me apresento como Em-si, e utilizo isso como “moeda de troca” para ganhar a admiração do Outro, para tentar seduzi-lo ou fazê-lo me admirar. Seguindo esse raciocínio, poderíamos dizer que “pela sedução, busco constituir-me como uma plenitude de ser e fazê-lo reconhecido como tal.” (Sartre, 1999). Reduzo-me à simples facticidade, mesmo sabendo que não sou isso, para me mostrar melhor do que sou realmente e assim conquistar o Outro. Procuro me afirmar e me limitar ao meu ser-Para-outro. O mesmo acontece com o amor, porque este “é o projeto de fazer-se amar” (Sartre, 1999); quando amo alguém, busco o amor dessa pessoa, busco transformar-me numa totalidade– objeto; quero, aos olhos do Outro, ser melhor do que sou. Mas não podemos nos manter como ser-Para-outro indefinidamente, esta postura fatalmente acarretará num fracasso. O orgulho e seus derivados (amor, sedução) estão fadados ao fracasso porque não somos Em-si. “o conflito é o sentido originário do serPara-outro [...] se partir-mos da revelação inicial do outro como olhar, devemos reconhecer que experimentamos nosso inapreensível ser-Para-outro na forma de uma posse. Sou possuído pelo outro; o olhar do outro modela meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, o produz como é, e vê como jamais o verei. O outro detém um segredo: o segredo do que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e essa possessão nada mais é que a consciência de me possuir. E eu, no reconhecimento de minha objetidade, tenho a experiência de que ele detém essa consciência. Atitude consciência, o outro é para mim aquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que ‘haja’ um ser que é o meu.” (Sartre, 1999)

Outra vez, vemos que o olhar do Outro também pode cair sobre nós sem que o queiramos, dando a nós uma essência, contrária a que queremos. Sartre também mostra bem isso em sua obra “Entre Quatro Paredes” onde Inês afirma: “Você é um covarde, Garcin, porque eu quero que você seja um covarde. Eu quero, compreende? Eu quero! No entanto, veja que fraquinha eu sou: um sopro. Sou apenas o olhar que está vendo você, o pensamento incolor que está pensando em você” (Sartre, 2005)

Inês procura dar uma essência a Garcin, transformá-lo em Em-si, tudo isso com o olhar, que mostra o ser-Para-outro. Logo em seguida Inês afirma “Eu estou vendo vocês, vendo vocês! Eu sozinha sou toda uma multidão!” (Sartre, 2005), Inês sabe da força que seu olhar tem sobre Garcin, e é isso que o faz dizer a frase mais importante da peça: “O inferno são os outros!” (Sartre, 2005) O medo é o terceiro modo de captar meu ser-Para-outro. Consideremos agora que após mais uma noite tocando no bar, nosso músico se dirija para sua casa. Ele passa por uma rua escura pelo caminho e então escuta um barulho no beco ao lado. Ele sente medo, seu corpo se enrijece, suas pupilas se dilatam e sua freqüência cardíaca aumenta. O medo é mais que as reações fisiológicas proporcionadas pela adrenalina que é liberada pela supra-renal. Tudo isso está no nível do Em-si: é o que é. Tudo isso são reações que não dizem respeito a nada além delas mesmas; o seu corpo não se importa se a adrenalina foi liberada por medo ou por uma injeção aplicada por um médico porque as condições químicas só se relacionam com elas mesmas. Também podemos dizer que o seu ser-assaltado, seu Parasi, que nega a realidade para se jogar num futuro

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sendo assaltado, não é seu medo. O que constitui o medo é o fato de saber que se possui um corpo que pode ser ferido, saber que se corre um perigo real de ser assaltado porque se está no mundo; é seu ser-Para-outro que se manifesta através do olhar-do-ladrão e que se percebe como vítima. Saber da existência do Outro, e saber que se existe para esse outro, é isso que dá medo, o fato de se descobrir no mundo, um mundo onde um possível agressor transcende sua transcendência. E este possível ladrão não está mais à distância, ele está aí. Ao ouvir o barulho no beco ao lado, é possível sentir o olhar do ladrão sobre si, é possível sentir sua transcendência transcendendo nossa transcendência e nos dando a essência de homemcom-dinheiro ou como homem-indefeso; somos objeto para este outro que nos dá suas utilidades. O mundo nos supera e nos encontramos no meio dele, indefesos. Através do medo, nos damos conta de nossa fragilidade e nossas limitações e o olhar do outro não faz nada além disso: limitar nossa liberdade frente aos nossos possíveis. Uma possível derivação do medo é o ódio. Em face de um mundo que nos ultrapassa e nos ameaça, podemos negá-lo odiando-o. O ódio é a tentativa de negação do mundo, ou melhor, a tentativa de negação do Outro. Se é o Outro que me traz o conhecimento de mim, na forma de Em-si, negar o outro é, com efeito, negar meu Em-si, é uma tentativa de constituir-me apenas como Para-si. Quando tenho medo de ser assaltado, vejo meu corpo como objeto em perigo; se, com efeito, for assaltado, verei meu corpo como objeto transcendido pela transcendência do Outro; é dessa situação que pode vir o ódio, ódio daquele que me transcendeu. O ódio busca negar minha objetidade tentando negar o Outro. São essas as situações em que se revelam o Outro, o olhar e o ser-Para-outro. Mas ainda vale lembrar que “minha certeza da existência do

outro independe dessas experiências, e é ela, ao contrário que as torna possíveis” (Sartre, 1999). Sei que o outro existe, não posso duvidar disso; sei também que assim como posso apreender o outro como objeto sobre fundo do mundo, também posso ser apreendido por ele através do olhar e isso o torna “o mediador indispensável entre mim e mim mesmo” (Sartre, 1999). Ante o olhar do outro, o Para-si corre o risco de perderse de sua liberdade essencial, esse lançar-se ao futuro. Mas é parte dele ser essa incógnita, o que o define é, precisamente, não ter definição, “não-ser-o-que-é-e-ser-o-que-não-é”. O homem deve superar sua transformação em objeto para apropriar-se de seu projeto fundamental. O Parasi não pode ser determinado pelo exterior, já vimos como sua tentativa de transformar-se em Em-si é impossível, e, portanto, deve prosseguir com sua busca, responsabilizando-se por ela. Conclusão Se na filosofia de Sartre o Para-si é esse constante se lançar no futuro, essa fuga do que se é, Em-si, para o que se não é, então só podemos entender o ser-Para-outro como o fracasso do Para-si, que se torna algo, passa a ter a definição que o Outro lhe dá. O perseguidor-perseguido é paralisado pelo olhar. Através da consciência de ser visto, eu experiencio meu ser-Para-Outro, sou transformado em objeto, ele transcende minha transcendência. Quando o Outro me olha, ele não mais se mostra como objeto para mim, não posso mais tratá-lo como uma máquina, ele se torna seu olhar, que faz o mundo escoar para fora de mim em direção a ele, uma hemorragia. Deste modo, minha relação como o Outro é e sempre será cindida: ou eu o apreendo como objeto - sem que, nesse caso, possa apreender seu ser - dando-lhe minhas significações e situando-o em relação a mim; ou o apreendo como olhar,

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me transcendendo e me limitando, situando-me em relação a ele. Não há síntese possível entre essas duas posições e me relacionarei com o Outro como num jogo sem fim onde estarei ora nesta ou naquela posição, saindo de uma para inevitavelmente cair na outra. A consciência de ser visto é esta primeira relação, na qual me encontro com o outro e me torno objeto para ele. O outro é aquele que me possibilita conhecer-me, aquele que traz meu conhecimento de mim para mim. Ele me traz ao mundo, ou melhor, ele me joga no mundo, me prende a ele. Com o outro passo a ser limitado, sou um ser acabado por ter minha transcendência transcendida. Sou o que sou, ao modo de ter-de-ser. Posso ter vergonha do conhecimento que o outro me traz ou posso orgulhar-me dele, ou ainda, posso ter medo, e odiá-lo. Essa relação de conflito não tem fim, é um jogo eterno, cheio de jogadas e viradas. A consciência de ser visto, o instante que avisto o olhar, é apenas o começo, o movimento inicial.

Referências Bibliográficas: BORNHEIM, Gerd A. Sartre: Metafísica e Existencialismo. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. HÜBNER, Maria Martha. Guia para elaboração de monografias e projetos de dissertação de mestrado e doutorado. São Paulo: Pioneira, Ed. Mackenzie, 1998. MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Sartre: Vida e Obra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1995. PESSOA, Fernando. Obra Poética. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.

Nota: 1

É importante notar como muitas vezes a literatura aborda a ideia do Outro de forma semelhante a Sartre. Fernando Pessoa em seu poema “Primeiro Fausto” afirma: “O horror metafísico de Outrem!/ O pavor de uma consciência alheia/ Como um deus a espreitar-me/ Quem me dera/ Ser a única [cousa ou] animal/ Para não ter olhares sobre mim! [...] Sinto horror/ À significação que olhos humanos/ Contêm”. Através de meios poéticos, Fernando Pessoas expressa o horror que é ser visto por outro, ter todas as suas possibilidades transformadas em mortipossibilidades. Esse trecho mostra muito bem como podemos chegar às conclusões de Sartre não só através dos meios filosóficos, mas artísticos também.

SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999. ______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. Entre Quatro Paredes. São Paulo: Civilização Brasileira, 2005.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 157-168.

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Tradução

Por que a política da competição é mais acirrada entre os super-ricos Serviços públicos essenciais são cortados a fim de que os mais abastados paguem menos impostos. Mas nem mesmo sua ostentação os faz felizes. George Monbiot1

Tradução de

Lívia de Souza Lima

Graduanda em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e colaboradora do Diário da Liberdade.

“Eu nunca fiz nada por dinheiro. O dinheiro nunca foi colocado como objetivo final. Foi um resultado”. Assim afirmou Bob Diamond, antigo presidente executivo do Banco Barclays. Ao fazer essa afirmação, Diamond coloca em xeque a justificativa que o seu e outros bancos (e seus inúmeros apologistas no governo e na mídia) desenvolveram para praticar níveis surreais de remuneração – incentivar o talento e o trabalho duro. Prestígio, poder, senso de propósito: para eles, estes são incentivos suficientes. Outros de sua classe – Bernie Ecclestone e Jeroen van der Veer (o antigo presidente executivo da Shell), por exemplo, trabalham com a mesma dialética. A concentração de tanta riqueza nas mãos de ocupantes de altos cargos executivos não possuem nenhuma função útil. O que os muito ricos aparentemente valorizam é a remuneração relativa. Se os executivos fossem todos remunerados em apenas 5% de seus níveis atuais, a competição entre eles (de todos

os modos uma virtude questionável) não seria menos acirrada. Ou ainda, como comentou há algumas décadas o imensamente rico HL Hunt: “Dinheiro é somente uma maneira de controlar a pontuação”. O desejo de avançar nessa escala parece ser simplesmente insaciável. Em março de 2013, a revista Forbes publicou um artigo sobre o Príncipe Alwaleed, que, dentre outros príncipes sauditas, dificilmente deve sua fortuna ao trabalho duro e às suas capacidades empreendedoras. De acordo com um dos antigos funcionários do príncipe, a lista dos mais ricos do mundo, produzida pela revista Forbes, “é a maneira pela qual ele deseja que o mundo julgue seu sucesso ou sua alteza”. O resultado é “um quarto de século de lobby, bajulações e ameaças, quando se trata dessa lista de patrimônio liquido”. Em 2006, o pesquisador responsável por calcular sua riqueza declara que “quando a Forbes estimou que a

Jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido. Seu artigo foi publicado no The Guardian, em 06.05.2013, e está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/may/06/politics-envykeenest-rich. 1

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 169-171.

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Tradução

Por que a política da competição é mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot Lívia de Souza Lima

riqueza do príncipe era na realidade 7 bilhões a menos do que ele afirmou ter, recebi em casa uma ligação dele, praticamente em prantos, um dia depois que a lista foi publicada. ‘O que você quer?’, ele dizia, me oferecendo seu banqueiro pessoal na Suíça. ‘Me diga o que você precisa’”. Nada importa que ele possua seu próprio 747, no qual ele se senta em um trono durante os voos. Nada importa que o seu “palácio principal” tenha 420 quartos. Nada importa que ele possua o seu próprio parque de diversões e zoológico – e, ele afirma, $700 milhões em joias. Não importa que ele seja o homem mais rico da Arábia Saudita, avaliado pela Forbes em $20 bilhões, e que ele tenha assistido sua riqueza aumentar em $2 bilhões no ano passado. Nada disso é suficiente. Não há nenhuma linha de chegada, nenhuma aterrisagem tranquila, mesmo em um jato particular. A política da competição é mais acirrada entre os super-ricos. Essa disputa pode sugar a vida de seus aderentes. No maravilhoso documentário The Queen of Versailles (A Rainha de Versailles), de Lauren Greenfields, David Siegel – o Rei do timeshare dos Estados Unidos da América – parece abandonar todo seu interesse pela vida ao enfrentar a perda de sua coroa. Ele ainda vale milhões de dólares. Ele ainda tem uma esposa e crianças adoráveis. Ele ainda está construindo a maior habitação familiar dos Estados Unidos da América. Porém, à medida que a venda do arranha-céu que leva o seu nome e simboliza sua preeminência começa a se tornar inevitável, ele se afunda em uma impenetrável depressão. Cabisbaixo, ele se senta sozinho em seu cinema privado, vasculhando obsessivamente os mesmos papéis, como se entre eles pudesse ser encontrada a chave para a sua restauração, se recusando a

passar tempo com sua família, aparentemente preparado para arruinar a si mesmo ao invés de simplesmente perder uma estúpida torre. A fim de garantir aos ricos esses prazeres, o contrato social é reconfigurado. O sistema de bem estar social desmantelado. Serviços públicos essenciais são cortados para que os ricos possam pagar menos impostos. A esfera publica é privatizada, são abandonadas as regulações que restringem os ultrarricos e as empresas que eles controlam, e níveis eduardianos de desigualdade são quase que fetichizados. Os políticos justificam essas mudanças, quando não recitando argumentos de araque sobre o déficit, com os incentivos hipoteticamente criados por elas. Por trás disso se encontra a promessa ou a impressão de que todos seremos mais felizes e satisfeitos como resultado final. Mas essa acumulação insensível e sem sentido não pode satisfazer nem mesmo seus beneficiários, exceto talvez – e temporariamente – o homem oscilando bem no topo da pirâmide. O mesmo se aplica ao crescimento coletivo. Os governos de hoje em dia não enxergam nada além do crescimento econômico. Eles não são julgados pelo número de pessoas empregadas – muito menos pelo número de pessoas em empregos prazerosos e satisfatórios – e pela felicidade da população ou pela proteção da natureza. Um mundo sem emprego e destrutivo é aceito, desde que haja crescimento. Os fins não existem mais, há somente meios. Em seu livro interessante, porém curiosamente incompleto, How much is enough? (Quanto é suficiente?), Robert e Edward Skidelsky notam que “o capitalismo se baseia justamente nessa infindável expansão de desejos. Essa é a razão pela qual, por todo seu sucesso, ele permanece tão estimado. O capitalismo nos

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 169-171.

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Tradução

Por que a política da competição é mais acirrada entre os super-ricos, George Monbiot Lívia de Souza Lima

deu riqueza além da medida, mas nos tirou o maior benefício da riqueza: a consciência de ter o bastante... o sumiço de todos os fins intrínsecos nos deixa com apenas duas opções: estar à frente ou atrás. A nossa sina é a luta por posições”. Eles demonstram que as nações com as mais longas horas de trabalho – os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a Itália, no gráfico das nações pertencentes à OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que é publicado no livro – são as nações com maiores níveis de desigualdade. Eles poderiam ter também adicionado o fato de que essas nações são também as três com os menores níveis de mobilidade social.

elementos que se autoperpetuam e destinados a fomentar o desespero. Será que seremos capazes de superar essa questão? Será que seremos capazes de buscar satisfações que não nos custem o planeta Terra e pareçam alcançáveis? O principal objetivo de qualquer nação rica deveria ser: “já temos o suficiente”.

Diante desse quadro, podem-se tirar quatro possíveis conclusões. A primeira é de que a desigualdade realmente encoraja as pessoas a trabalharem com mais afinco, como os Skidelskys (e muitos outros neoliberais) afirmam: quanto maior a lacuna, mais as pessoas irão se esforçar para fechá-la. Ou talvez, pode ser simplesmente que as pessoas estejam desesperadas uma vez pressionadas pela pobreza e pelo débito. Uma explicação alternativa é o fato de que as desigualdades políticas e econômicas andam lado a lado: nas nações mais igualitárias, os patrões são capazes de direcionar seus trabalhadores mais rigidamente. A quarta observação possível é de que a desigualdade no trabalho possa estimular as pessoas, não auxilia no preenchimento das lacunas e no crescimento da mobilidade social. Parece também que não nos deixa coletivamente mais ricos. Os holandeses ganham uma média de $42,000 per capita sobre 1400 horas de trabalho por ano, ao passo que os britânicos ganham $36,000 por 1650 horas. Desigualdade, competição e a obsessão por riqueza e posicionamento social parecem ser

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 169-171.

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Alabastro: ISSN 2318-3179 S達o Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013


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