Boletim da AHAS | ano 2 | n.º 1

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terça-feira,14deFevereirode2023|nº1|ano2

Ficha Técnica

Textos:

Gerardo Vidal Gonçalves

Dina Borges Pereira

Isabel Garcia Cabral

Paulo Travassos

Fotos:

Gerardo Vidal Gonçalves

Dina Borges Pereira

Isabel Garcia Cabral

Contactos:

Associação de História e Arqueologia de Sabrosa

Polo Arqueológico da Garganta

CM1262-4, 5060-422 São Martinho de Anta

SABROSA

Contacto: +351 937 363 606

Email: geral@ahas pt

www ahas pt

Escavações na Necrópole Medieval das Touças, Aldeia da Garganta, S Martinho de Anta, Sabrosa 4

Prémio ao projecto mais inovador para a AHAS 5

Nota Biográfica de Jacques Le Goff 6

A AHAS e o projecto europeu LVIN #C 7

Açafrão-bravo (Crocus serotinus Salisb ) 8

O Livro das Aves

Índice Índice 2 Editorial 3
9

Editorial

Falar sobre património é, essencialmente, falar sobre um conceito abstracto Contudo, esse conceito ou essa palavra está, evidentemente, nas bocas de mais de “meio mundo” Todos falamos de património, todos ou quase todos Os jovens falam de património, com várias ideias e várias opiniões, umas positivas ou outras muito menos positivas. Os não tão jovens, esses também falam de património, possivelmente com opiniões mais críticas, os especialistas também falam sobre património, mesmo que de forma mais teórica e sem uma consciência um tanto quanto prática e “terra a terra” sobre o assunto Os chamados “agentes do património”, isto é, os operadores turísticos, guias, gentes das galerias, palácios, museus, centros de cultura, centros de ensino, empreendedores, associações, cooperativas, em suma, também eles falam sobre o chamado Património.

Na verdade, o conceito passou por várias fases ao longo da sua história É bem conhecido, este conceito, desde época romana, pelo menos No entanto, este assunto abstracto foi sendo alterado na sua percepção, abrangência, dinamismo e entorno cultural. O chamado património de hoje em dia não se adequa ao antigo conceito que passou por uma série de alterações, pela revolução francesa, pela revolução industrial, pelas guerras mundiais do século XX, pelos regimes fascistas, comunistas e centristas da Europa e de outras latitudes e longitudes

O conceito de património é, sem sobra de dúvidas, intrínseco ao animal cultural que é o Homem O património é e sempre foi um legado, um legado de “algo” ou “algos” vindos de um passado próximo ou longínquo. Na verdade, esse “algo” teve e continua a ter uma ligação especial com a família, a comunidade e as pessoas de um determinado grupo, grupos, regiões ou localidades.

O património hoje é vasto e divergente, amplo e aglutinador, dinâmico e globalizado O património é algo que nos faz percorrer caminhos e trilhos, nos faz, em certa medida, viajar, despender ou dispensar parte do nosso orçamento. Por ventura, não se trata somente de ir ver e conhecer o chamado património de outras paragens e terras longínquas ou, inclusivamente, de terras não tão longínquas, trata-se sim de complementar a nossa necessidade em ir “espairecer” e “fugir” de uma rotina e assimilar, através de caminhos e paisagens, outras realidades.

Hoje, mais do que nunca, ir descobrir “coisas”, monumentos, gastronomia, bebidas, artes ou arte, palácios, monumentos, poesia, trilhos e demais elementos culturais “estranhos” à nossa cultura é, na grande generalidade dos casos, um prazer e um privilégio que todos procuram, em fim, os que podem evidentemente No entanto, em contraciclo, conviver, compreender e aceitar “gentes” estranhas, de outras culturas e regiões, de outras línguas, credos e religiões ou crenças não é assim tão desejado ou procurado.

O património é, no geral, o que admiramos e o que não admiramos, o património é algo que se diversificou e passou, naturalmente, de um conjunto de monumentos construídos e com um certo cunho patriótico ou nacionalista para um conjunto de muitas outras coisas menos materiais e mais etnográficas e imateriais. A partir dos anos de 1982, na cidade do México, promulgou-se que, no essencial, o património não seria exclusivamente edifícios, pontes, sítios arqueológicos, conventos, mosteiros, cidades, lugares, etc , seria também um outro tipo de elementos menos materiais, um tipo de património imaterial e vivo. Aguardamos que, brevemente, as diferenças entre as pessoas não sejam, necessariamente, um motivo para conflitos e descontentamentos, mas sim um património que, naturalmente, é de todos e que todos deveríamos conhecer melhor.

Gerardo Vidal Gonçalves

Escavações na Necrópole Medieval das Touças, Aldeia da Garganta, S. Martinho de Anta, Sabrosa

Decorreram, no passado mês de Agosto deste ano, as escavações arqueológicas no sítio arqueológico da Necrópole Medieval das Touças A escavação arqueológica realizada já no terceiro ano consecutivo colocou a descoberto uma série de achados arqueológicos relevantíssimos para a compreensão do passado do território a Norte do Rio Douro.

A escavação contou, este ano, com a participação de alunos de arqueologia

de universidades portuguesas, das universidades de Coimbra e da Universidade do Porto e também com alguns jovens residentes na aldeia da Garganta e no concelho de Sabrosa. Tivemos, este ano, a importante colaboração de uma arqueóloga croata que colaborou na intervenção. Foi também importante a participação de alguns dos sócios da AHAS na escavação, realizando, no geral, grandes descobertas.

A escavação colocou a descoberto um significativo número de achados arqueológicos, artefactos arqueológicos como cerâmicas decoradas com decoração plástica, provavelmente enquadrável ainda na Idade Média, muito semelhante à cerâmica medieval do castelo de Arouca, diversos pesos de tear em quartzito, provavelmente também de origem medieval, fragmentos de metais e um cinzel em ferro fundido, utilizado possivelmente para a construção dos diversos sarcófagos em granito localizados no sítio arqueológico.

No entanto, um dos achados mais fantásticos e significativos foi uma fíbula ou fivela de cinto em bronze de cronologia visigótica, uma fivela de tipo liriforme (em forma de lira, um instrumento musical de cordas), a qual remonta ao século XVII ou XVIII depois de Cristo

Esta descoberta, no mínimo, importantíssima para melhor compreender a ocupação visigótica de Trás-os-Montes e Alto Douro é, manifestamente, o ex-libris do espólio arqueológico de todo o concelho de Sabrosa. Trata-se de uma peça raríssima na região e mais rara é ainda por ter sido recolhida em contextos arqueológicos, em contextos de escavação arqueológica

plano para as escavações a realizar em 2023

Sendo este um projecto de investigação e um projecto de valorização cujo promotor é a AHAS, importa destacar a excelente colaboração e apoio da Câmara Municipal de Sabrosa, a qual garantiu as condições logísticas, de alimentação e alojamento dos mais de 15 alunos das diversas universidades que connosco colaboraram nesta demanda pelo conhecimento e valorização do património arqueológico do concelho de Sabrosa. Um agradecimento muito especial à Junta de Freguesia de S. Martinho de Anta e Paradela de Guiães, aos Sapadores Florestais de S. Martinho de Anta, aos nossos parceiros do Laboratório de Ecologia

Aplicada da UTAD, ao Rotary Clube de Vila Real pelo importantíssimo contributo, aos nossos sócios e amigos e a todos os que, de uma ou outra forma, fizeram possível que o trabalho chegasse a bom porto Obrigado a todos.

Gerardo Vidal Gonçalves & Dina Borges Pereira

Foram ainda, no decorrer da escavação, realizadas diversas visitas ao local com explicações para os visitantes, pequenas charlas e diversos workshops para os alunos das universidades participantes.

Após a conclusão da escavação, proceder-se-á ao estudo dos materiais arqueológicos, desenho arqueológico dos mesmos, elaboração do relatório arqueológico para submeter à tutela da arqueologia (DGPC) e preparar o

Prémio ao projecto mais inovador para a AHAS

No passado mês de Agosto de 2022, a Associação de História e Arqueologia de Sabrosa foi distinguida com o “Premio al Proyecto más Innovador”, atribuído pelo projecto Cultural + e a Asocicación Estratégica del programa

ERASMUS + “Entrepreneurship

Education and Cultural Heritage

Creative Management for Rural Development” (ref

Figura2Fivelaliriformevisigótica

2019-1-ES01-KA204-065372) O júri foi composto por 5 especialistas de Espanha, Grécia e México

Nota

Biográfica

de Jacques Le Goff

De entre os historiadores mais relevantes do século XX, a personagem de Jacques Le Goff destaca-se, naturalmente, por integrar um grupo de historiadores franceses de reconhecida importância Jacques Le Goff nasceu na cidade francesa de Toulon, situada no departamento do Var, na região de Provença-Alpes-Costa Azul (Provence-Alpes-Côte d'Azur), a 1 de Janeiro de 1924. Jacques Le Goff foi, em suma, um dos mais importantes e influentes historiadores franceses da segunda metade do século XX.

Jacques Le Goff iniciou os seus estudos na Escola Normal Superior de Paris, uma grande école francesa, cujo campus principal está situado na “rue d'Ulm, no 5º arrondissement” de Paris. É vinculada directamente ao Ministério do Ensino Superior e da Pesquisa da França. Foi, no entanto, aluno na Universidade Carolina de Praga, fundada em 1348 pelo imperador romano-germânico Carlos

Jacques Le Goff é, reconhecidamente, um dos historiadores medievais mais importantes da Europa Foi professor de história em 1950 e membro da École Française de Rome, foi também nomeado assistente da Faculté de Lille entre 1954 e 1959 antes de ser nomeado investigador no CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica), no ano de 1960.

Foi também mestre-assistente da VI seção da École Pratique des Hautes Études a partir de 1962 Sucedeu a Fernand Braudel, um dos mais importantes historiadores franceses, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde também foi director dos estudos. Na qualidade de director de estudo na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Jacques Le Goff publicou estudos que renovaram a investigação histórica nas áreas das mentalidades e sobre a antropologia da Idade Média Os seus seminários exploraram os caminhos da antropologia histórica Jacques Le Goff publicou diversos artigos sobre as universidades medievais, o trabalho, o tempo, as maneiras, as imagens, as lendas, as transformações intelectuais da Idade Média.

Foi ainda co-diretor da Escola dos Annales, nos estudos sobre a Nova História Nos anos 1980 trabalhou na biografia de São Luís, já publicada em 1996 Jacques Le Goff empenhou-se no sentido de levar a História para além do mundo académico, apresentando um programa na rádio estatal francesa France Culture, sendo consultor de produções para a TV e cinema, incluindo o filme O Nome da Rosa, adaptação do livro de Umberto Eco, protagonizado por Sean Connery

IV
Figura 1 Jacques Le Goff

e Christian Slater, e a direção de Jean-Jacques Annaud[3] Era poliglota, sendo fluente nos idiomas inglês, italiano, polonês e alemão Jacques Le Goff veio a falecer a 1 de Abril de 2014, em Paris.

De entre os seus trabalhos mais importantes destacamos a) “Mercadores e Banqueiros na Idade Média", 1956; b) "Os Intelectuais na Idade Média", 1957; c) "A Civilização do Ocidente Medieval", 1964; d) "Para um Novo Conceito da Idade Média", 1977; d) "O Homem Medieval", 1994; f); "São Luís, Biografia", 1996; g) "O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval"; h) "Em Busca do Tempo Sagrado", 2011 [1,2].

Após 9 anos do seu desaparecimento, Jacques Le Goff continua a motivar jovens historiadores, novas pesquisas, realidades antropológicas diversas sobre a Idade Média e é, naturalmente, uma inspiração para os amantes da história, os investigadores e os interessados nas ciências sociais e humanas.

Gerardo Vidal Gonçalves

A AHAS e o projecto europeu LVIN #C

No passado dia 1 de Janeiro de 2023 iniciou-se o projecto LVIN #C (Learning Villages Network In Town #C), um projecto europeu integrado no programa CERV da Comissão Europeia (Programa Cidadãos, Igualdade, Direitos e Valores 2021-2027), um programa resultante da fusão do programa “Direitos, Igualdade e Cidadania” (REC) e do programa “Europa para os Cidadãos” (EfC), tem os seguintes objectivos específicos, desdobrando-se em 4 vertentes:

Referências

[1] J. Le Goff, P. Toubert, Une histoire totale du Moyen Âge est-elle possible?, em Actes do 100e Congrès National des Sociétés savantes, Secrétariat d’État aux Universités, Paris, 1977.

[2] J Le Goff, L’apogée de la France Urbaine Medievale, Editions du Seuil, 1980.

a) Valores da União “proteger, promover e aumentar a consciencialização sobre os direitos, os valores da União e o respeito pelo Estado de direito e contribuir para a construção de uma União mais democrática, para o diálogo democrático, para a transparência e para a boa governação ”; b) Igualdade, Direitos e Igualdade de Género “promover os direitos, a não discriminação e a igualdade, incluindo a igualdade de género, e fomentar a integração da perspectiva de género e da não discriminação.”; c) Envolvimento e participação dos cidadãos “Promover o envolvimento e a participação dos cidadãos na vida democrática da União e os intercâmbios entre cidadãos de diferentes Estados-Membros, sensibilizando para a sua história europeia comum ”; d) Daphne “Prevenir e combater todas as formas de violência baseada no género contra as mulheres e as raparigas, a violência doméstica, os jovens e outros grupos de risco, como as pessoas LGBTIQ e as pessoas com deficiência.”

A Associação de História e Arqueologia de Sabrosa é a coordenadora do projecto, contando com diversos parceiros nacionais e internacionais de entre os quais se destacam: a) Time Heritage (Atenas, Grécia). Verdemente (Cáceres, Espanha), Município de Farkadona, na Grécia, Município de San Xoán del Rio, Ourense, Espanha, Município de Cori, na Itália, a ADEMED, na Roménia, O município de Torreorgaz, em Cáceres, na Espanha, o Município de Torrequemada, também em Cáceres, na Espanha, a ASP Poligonal, também em Cori, na Itália e, naturalmente, a Câmara Municipal de Sabrosa.

Açafrão-bravo (Crocus serotinusSalisb.)

Logotipo do Projecto

O projecto tornará possível, no essencial, entre outras coisas, integrar Sabrosa como uma das Learning Villages da Europa, uma “Aldeia da Aprendizagem” Neste sentido, serão efectuadas diversas actividades e acções que, em conjunto com os parceiros, procuraram valorizar o território do interior e destacar alguns dos problemas e soluções para melhorar a vida das comunidades rurais do interior do território.

Gerardo Vidal Gonçalves

O Crocus serotinus pertence à família Iridaceae, ao qual se dá vários nomes vulgares como Açafrão-bravo, Açafrão-de-outono e Pé-de-burro.

A floração do Açafrão-bravo começa em Setembro e vai até Dezembro As suas flores pintam, com tons de azul e lilás, os campos e as bermas dos caminhos e surge habitualmente após as primeiras chuvas de Outono.

O Açafrão-bravo tem um porte herbáceo e encontra-se em habitats como terrenos secos, pedregosos, áridos, frequentemente ácidos, em zonas de matos abertos, pinhais, carvalhais e pastos de montanha, entre os 900 e os 1900 m de altitude

É uma espécie endémica na Península Ibérica, pois encontra-se naturalmente apenas em Portugal e

Foto: Isabel Garcia-Cabral

um pouco por toda a Espanha, na região de Castela e Leão

Referências

https://www.wilder.pt/diversoes/o-qu e-procurar-no-outono-o-acafrao-brav o/

https://jb.utad.pt/especie/Crocus ser otinus subesp serotinus

O Livro das Aves

Um dos livros mais antigos existente em Portugal, o Liber auium(ou “Livro das aves”) séc. XII, foi executado no scriptorium do mosteiro do Lorvão (autor anónimo 1176-1200) [1,5] O livro demonstra a importância e o interesse com que este grupo de vertebrados têm sido olhado pelo Homem, neste caso, pelo menos, desde os primeiros séculos da idade média.

O nome da espécie tem a sua origem nos significados de Crocus que deriva do grego – krókos – que significa “açafrão” e serotinus, do latim que significa “tarde”, ou seja, planta que floresce mais tarde.

Como curiosidade, o Açafrão-bravo pertence ao mesmo género do verdadeiro açafrão (Crocus sativus), uma planta nativa da Ásia menor e dos Balcãs, que também floresce no Outono É desta planta que se extraí o açafrão, uma das mais delicadas e apreciadas especiarias do mundo.

O Crocus serotinus, em Portugal Continental, tem um estatuto de conservação de “Não Avaliado” (NE).

O Livro das Aves deriva do bestiário De bestiis et aliis rebus(“Dos animais e outras coisas”), da autoria do clérigo Hugo de Folieto (1130-1140), autor representativo do espírito medieval [2,7]. O bestiário é uma forma de texto descritivo de criaturas naturais e fantásticas, com interpretação moralizadora, que deriva diretamente do Fisiólogo (séc. I a III), ou Physiologus em Latim, que é um manuscrito grego antigo que resulta da compilação de uma série de lendas e ao qual foram acrescentadas as contribuições gregas dos textos clássicos sobre o mundo natural de Aristóteles, Heródoto, Plínio e outros naturalistas [7].

Foto: Isabel Garcia-Cabral

Figura 4 De Merula (o Melro) Fonte: Egeas Arquivo Nacional Torre do Tombo. Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/in dex php?curid=31845272

Neste livro, são descritas diferentes espécies como, por exemplo, a Rola, o Pardal, a Andorinha, a Cegonha, o Melro, o Pato, a Gaivota e a Poupa, ou outras aves de lugares distantes como a Avestruz o Pelicano ou o Pavão. As espécies aqui representadas eram conhecidas pelo homem medieval, e grande parte das aves descritas são reconhecidamente comuns nos nossos dias (e presumivelmente à data do manuscrito) porém, não serão necessariamente portuguesas pois, do que se conhece, o autor não é português.

Ao longo do livro, onde as iluminuras (as imagens das aves) são utilizadas para melhor nos dar a conhecer o conteúdo do texto, são destacadas as características mais evidentes de cada uma das espécies, e elaboradas considerações sobre a fisiologia e a morfologia das aves facilmente

interpretáveis à luz do conhecimento da época, e de fácil compreensão pelos iletrados. A título de exemplo ilustrativo [4], no capítulo XXXVIII, pode ler-se (no estudo e tradução de Maria Gonçalves [3]) uma comparação das penas de avestruz com as da garça e do falcão: «Aspenas do avestruz são parecidas com as penas da garça e do falcão (Job). Quem não saberáquantoagarçaouo falcão ultrapassam as outras aves em velocidade e voo? O avestruz assemelha-se a eles nas penas mas não têm a mesmarapidezdevoo. Não consegue elevar-se daterraeergueas asas aparentemente para voar, sem, todaviaseelevardaterra, voando.»

Porém, a citação do livro de Job (em que o profeta incentiva os homens a perguntarem às feras, aves e peixes acerca de ensinamentos das coisas e do mundo divinamente inspirado)[8] não é inocente e o próprio autor, no prólogo afirma [3]: « tenho que escreverpara um iletrado(...)oque a Escritura indica aos sabedores indicará a pintura aos simples » Desta afirmação, transparece, desde logo, que a obra não se trata apenas de um livro de história natural e, de facto, no desenvolvimento deste mesmo capítulo (capítulo XXXVIII) que decorre em torno das penas do avestruz que o impede de voar, esta ave é equiparada ao hipócrita: «São assim, por certo, todos os hipócritas que, ao imitarem a vida dos bons, apenas imitam a imagem da santidade, mas não têm a verdade da açãosanta».

Ora, a leitura dos textos desta obra (estudo e tradução de Maria Gonçalves [3]) depressa nos leva a descobrir que nos encontramos perante um livro de Ornitologia moral [4] pois, se por um lado, o seu texto, enuncia características atribuídas às

aves (que já tinham surgido em obras anteriores mais antigas) por outro, transmite ideias simples que ajudam a estabelecer paralelismos entre as características das aves e os textos bíblicos, de acordo com uma descrição e interpretação das qualidades de cada uma das aves

Nesta obra, as características morfológicas das aves são apontadas para servirem de elemento comparativo da simbologia mística da igreja [2]: a pomba de Noé, é o símbolo da quietação; a de David o símbolo da fortaleza; a de Cristo o símbolo de salvação; e a prateada com reflexos de ouro o símbolo da Igreja Por outro lado, cada ave corresponde a um humor ou carácter, a um comportamento ou a um vício [1,2]: o galo é o pregador que anuncia a boa nova; o primeiro que acorda a manhã, ou seja, aquele que orienta as pessoas; a avestruz, com o seu pescoço muito alto, que dá nas vistas, é como os fariseus e os hipócritas; o milhafre, de voo mole, representa a tentação da volúpia, e o pavão, que levanta a cauda quando se lhe fala, transforma-se completamente e parece-se com o adulador.

F . Fonte: Egeas Arquivo Nacional Torre do Tombo. Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/in dex.php?curid=31845272

Isto é, as aves possuem um conjunto de características que revelam a sua natureza, tal como as suas virtudes, que quando convenientemente exaltadas, ilustram referências bíblicas precisas e, por isso, segundo o autor «poderão doutrinar-se as mentes dos simples para a mudança de vida». É, pois, um discurso didático que pretende ensinar o homem, através da representação das aves, as morais cristãs personificadas que deveriam servir de exemplo ao comportamento dos monges e à vida claustral [1,5,6].

dex.php?curid=31845276

Figura 6: De Corvo (o Corvo) Fonte: Egeas - Arquivo Nacional Torre do Tombo, Domínio público, https://commonswikimediaorg/w/in

Estamos assim perante uma obra que se integra na grande tradição da cultura greco-latina que, adaptação após adaptação, veio a integrar a cultura cristã medieval [9] Este livro, para além de beneficiar consulta das fontes bíblicas, dos autores da antiguidade clássica, e dos autores medievais, o autor ao acrescentar a observação naturalista, e em resultado disso incluir o comportamento das aves, acabou por registar o que na época se conhecia ou o que de novo se descobrira, sobre este grupo de vertebrados, juntando-lhe a interpretação simbólica [6]

Paulo Travassos

Referências

[1] P. Pereira. Arte Portuguesa. Círculo de Leitores e Temas e Debates 2020

[2] Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Torre do Tombo.

https://digitarq.arquivos.pt/details?id =4381076

[3] M I R Gonçalves Livro das aves 1ª ed. Obras clássicas da literatura portuguesa. Texto e tradução. Colibri, 1999.

[4] J. Meirinhos. Livro das Aves, Edição do texto latino a partir dos manuscritos portugueses, tradução do latim e introdução por Maria Isabel Rebelo Gonçalves. Mediaevalia vol 20: 171-176 2001

[5] Maria João Melo (Requimte e DCR-FCT-UNL) e Maria Adelaide Miranda (IEM, IHA e FCSH-UNL) À descoberta da cor na iluminura medieval com o Apocalipse do Lorvão e o Livro das Aves. Introdução Cadernos de Apoio.

https://www dcr fct unl pt/arquivo-di gital/luminura-medieval.

[6] M. E. B. Ribeiro. Entre saberes e crenças: o mundo animal na idade média História Revista Vol 18 n 1 Pp 135-150 Goiânia 2013

[7] T O V Silva Evidências de Patrocínio em Bestiários Medievais Medievalista 29, Janeiro-Junho 2021.

[8] P. C. L. Fonseca. Animais medievais e configurações de gênero na cronística colonial: estratégias discursivas e ordem política. Mirabilia Journal 34 (1):242-259. 2022.

[9] I. B. Dias. Peregrinação e encontros com aves. Homenagem a Aires A. Nascimento pelo seu 80º aniversário, Lisboa: Centro de Estudos Clássicos - FLUL, 2022, pp. 187-200

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