

APOIO:


AS RUÍNAS DE ATHENAS
Costumamos andar por nossa cidade na mais habitual indiferença. Nada parece nos chamar a atenção. Passamos pelas mesmas ruas e mesmas praças, vemos as mesmas coisas, vamos aos mesmos lugares. Caminhamos por locais que parecem sempre ter estado onde estão, exatamente iguais, ainda que tenham sido construídos ou reformados há pouco tempo. Até as novidades se adequam à monotonia. Sentimos o mesmo senso de familiaridade em todos os cantos. É como se o tempo estivesse parado, ou apenas se repetisse, como os ponteiros de um relógio, que andam apenas para retornar às mesmas posições. Nesse ambiente tomado pelo mais do mesmo, seguimos nossos caminhos sob a intensa luz do sol. Passamos por uma rua movimentada, congestionada pelo trânsito de mão única. Pessoas vão e vem pela calçada. Paramos na esquina e lemos na placa azul: “Rui Barbosa”; “Marechal Deodoro”. Nada de novo, tudo completamente habitual. Viramos e passamos por uma sombra. Olhamos pra cima e vemos um prédio alto, uma imponente fachada branca. Uma águia nos olha de volta. Intrigados, porém sem ligar, avançamos como de costume. Viramos na Barão do Rio Branco. Lembramos que precisamos passar em uma farmácia e descemos pela Benjamin Constant. O sol fustigante é cortado pela sombra das árvores de uma praça. Alguns lembrarão ser a 9 de Julho; outros, daquele sinistro comentário da avó, que certa vez disse que ouviu de alguém que ali havia sido um cemitério. De qualquer forma, não tem importância. Saindo da farmácia, sentimos fome. Há uma pastelaria perto. Descemos a rua e viramos à esquerda. No caminho, quase tropeçamos em uma calçada toda esburacada. Tentando desviar do chão em pedaços, nossos olhos seguem para um degrau de mármore amarelado, subindo para uma porta de ferro e por janelas de vidro quebrado – quando há vidro. A tentação de se olhar pra dentro da construção abandonada é irresistível: uma escadaria conduz a um salão fantasma. Não esquecemos do pastel, logo na esquina ao lado e seguimos. Entramos e pedimos um cigarrete. Enquanto eeramos, saímos para a calçada para enviar um áudio. Sem querer, vemos a
placa do cruzamento: “13 de maio”; “São Sebastião”. O cigarrete ficou pronto. Melhor ir comendo, precisamos ir no correio. Caminhamos até virar na avenida Pintos. Nome engraçado. Quem teve essa ideia? Enquanto eeramos para atravessar a rua, o ônibus para no ponto em que uma dúzia de pessoas eeram. Ao fundo, as sombras da enorme praça. Nada de novo, tudo como sempre.Afonte, o coreto, o espaço amplo, a catedral. Afinal, sempre estiveram ali, não? Alguém, claro, os construiu, em algum momento. Mas quando?
Alguns talvez se lembrem da época em que a Festa do Quitute era ali; a fonte, o coreto e a catedral já existiam. Outros, do tempo em que não havia fonte, e no lugar, estava o coreto. Outros, ainda, de que ouviram dizer que antes de ser “Joaquim Batista”, era a “Praça da República”. Muito improvavelmente, alguém saiba que naquele espaço amplo, esteve uma igreja com um campanário de madeira, talvez a capela construída na primeira metade do século XIX e em torno da qual a cidade se desenvolveu, o primeiro núcleo, a origem da cidade; que ali estavam casarões, dos quais sobrevivem apenas reminiscências; que nas poucas ruas do entorno, circulavam carroças, soldados da Guarda Nacional e escravizados; que se discutia nas vendas a chegada das tropas de boi, das sesmarias e das terras do sertão, aquele “pra lá do Jaboticabal”; que a política se dava em termos da atestação dos votos no distrito, direito de titulares, que, quando ausentes, era exercido por suplentes; falava-se do Imperador, das guerras, da abolição e da república. Todos os dias, andamos por ruínas, resquícios de um passado que resiste em meio a um cotidiano sem história. Elas nos transportam a outros tempos, mas dos quais sabemos e falamos pouco. Quando muito, nos limitamos a exaltá-las como glórias de um tempo perdido. Acidade a que pertenceram, entretanto, nos é distante. Ou melhor, cidades, pois são mais de uma. O que conhecemos por “Jaboticabal” viveu inúmeras transformações que mudaram radicalmente o ambiente urbano e suas formas de socialização e organização.
De um pequeno núcleo rural, apoio para as primeiras fazendas que se estabeleciam na região, a cidade se tornou um dos principais centros que fomentavam a ocupação e abastecimento do noroeste paulista, transformando-se, em seguida, em umas das maiores cidades do estado. Era a época do café, da ferrovia e das promessas. De 1875 a 1928, a cidade ganhou mais de 50 mil habitantes. Foram construídos ao menos dois teatros, um cinema, quatro tipografias e mais de vinte instituições de ensino, entre escolas, ginásios e faculdades; as vias foram calçadas, instalou-se energia elétrica; as praças foram reformadas e se tornaram jardins; a cidade tornou-se a sede da nova diocese. O ambiente de proeridade fomentava as bandas e os bailes, criou-se uma orquestra. Falava-se da “Cidade das Rosas”, da “Cidade da Música”, da “Athenas Paulista”. Mas veio a crise e o café quebrou; a ferrovia foi expandida em outra direção. A antiga linha férrea, agora apenas uma ramificação, minguou até ser extinta.
A cidade insistiu por suas indústrias, possibilidade graças ao surto manufatureiro entre as décadas de 1920 e 1960. Foi a época de sua expansão urbana, em que bairros inteiros foram construídos em meios às heranças de outrora. Dentre eles, uma “Nova Jaboticabal”, ao modelo da Pampulha, reflexo das mesmas pretensões modernistas que levantaram estradas pelo país e uma nova capital no planalto. Mas as indústrias não resistiram e poucas delas sobraram. A instalação de uma universidade estadual contribuiu para novos ares. Surgiram centros de convivências, a música ganhou novo impulso com os festivais. As heranças de outrora se fundiam com novos movimentos e expectativas. O caminho, no entanto, havia sido interrompido décadas antes. A cidade já vivia uma estagnação, nunca superada. Nada se fincou. Ficaram as frustrações e o sentimento do não realizado. As marcas de seu passado então se converteram em sombras e ruínas. Tornaram-se símbolos de um tempo perdido, em torno dos quais se reuniam as lembranças de outrora; lembranças essas que pouco a pouco, também começaram a esvanecer. A vida cotidiana absorveu o que restou em uma paisagem à deriva.
A cidade insistiu por suas indústrias, possibilidade graças ao surto manufatureiro entre as décadas de 1920 e 1960. Foi a época de sua expansão urbana, em que bairros inteiros foram construídos em meios às heranças de outrora. Dentre eles, uma “Nova Jaboticabal”, ao modelo da Pampulha, reflexo das mesmas pretensões modernistas que levantaram estradas pelo país e uma nova capital no planalto. Mas as indústrias não resistiram e poucas delas sobraram. A instalação de uma universidade estadual contribuiu para novos ares. Surgiram centros de convivências, a música ganhou novo impulso com os festivais. As heranças de outrora se fundiam com novos movimentos e expectativas. O caminho, no entanto, havia sido interrompido décadas antes. A cidade já vivia uma estagnação, nunca superada. Nada se fincou. Ficaram as frustrações e o sentimento do não realizado. As marcas de seu passado então se converteram em sombras e ruínas. Tornaram-se símbolos de um tempo perdido, em torno dos quais se reuniam as lembranças de outrora; lembranças essas que pouco a pouco, também começaram a esvanecer. A vida cotidiana absorveu o que restou em uma paisagem à deriva.
Nas celebrações do centenário, em 1928, Affonso de Escragnolle Taunay, historiador brasileiro, afirmou que “Jaboticabal, lugar recente que attinge seu primeiro centenario, não póde naturalmente ainda, contar em sua historia grandes lances”. Taunay, afeito “aos grandes lances” da História Nacional, permaneceu insensível às histórias locais, aos “pequenos lances” vividos pela população. Talvez tenhamos nos acostumados, tal como Taunay, a pensar a história de nossa cidade como algo desinteressante. Não poderíamos estar mais errados. Decorriam-se apenas cem anos desde a povoação de suas terras, hoje metade do tempo de sua existência, e a cidade já contava com suas histórias. Elas estavam nas relações compartilhadas, nos diferentes grupos, nos casos cotidianos, nos dramas da ocupação de uma região remota, nas dinâmicas da vida rural, nas disputas de poder e em seus projetos. Em suma, em todas as formas com que seus habitantes se relacionaram entre si e com o ambiente que construíram.
Hoje, Jaboticabal possui quase duzentos anos. Em 2028, a cidade celebrará o bicentenário de sua fundação. Para colocarmos o tempo de sua existência em perectiva, cabe dizer que o mais antigo registro relativo às terras pertencente a Jaboticabal é a escritura da compra da “sesmaria do Bonfim”, lavrada em 1811. Napoleão governava meia Europa e a família real portuguesa se instalara em solo americano três anos antes; o futuro João VI ainda não era rei e o Brasil, ainda unido à Portugal. Quando João Pinto Ferreira doou as terras para a instalação do curato, em 1828, ato considerado seu marco fundacional, Pedro I havia dado o grito do Ipiranga há apenas seis anos; a primeira Constituição tinha quatro e a guerra de independência terminara oficialmente há dois. Os primeiros registros civis na cidade, resguardados até hoje no arquivo da diocese, remontam a 1843, momento em que Pedro II completava seus primeiros três anos de reinado. Quando elevada a vila, emancipando-se de Araraquara, em 1867, o Brasil se encontrava em guerra com o Paraguai. Jaboticabal conviveu com a escravidão, abolida somente em 1888, por ao menos sessenta anos. A cidade viu a queda da monarquia e a proclamação da República; vivenciou coronelismo e agitações político-sociais; encarou crises econômicas; se envolveu no levante de São Paulo em 1924 e na Revolta de 1932; acompanhou duas Guerras Mundiais; esteve sob duas ditaduras, participou de duas aberturas políticas e conheceu sete constituições.
A cidade vivenciou todos esses momentos, refletindo o que eram tendências do cenário nacional e regional a sua maneira. As marcas desse passado estão por toda parte. Elas são nossas ruínas, as lembranças que restam. São elas que rompem o imobilismo de nosso cotidiano, evocando outros tempos. Falamos não apenas de prédios, mas de praças e ruas, cujos nomes e traçados foram decididos quando a cidade era outra; da disposição dos diferentes grupos sociais pelo espaço urbano; nas histórias dos mais velhos. Como isso tudo construiu o que entendemos hoje por “Jaboticabal” e o que nos legou é algo que, em grande parte, ainda precisamos contar e compreender.

OS PRIMEIROS JABOTICABALENSES
Os primeiros registros de ocupação nas terras da nossa atual cidade remontam a 1811, por meio das concessões aos primeiros posseiros que obtiveram, da coroa portuguesa, os direitos de posse. Elas permitem inferir a presença de sertanejos e desbravadores pelo menos desde 1809.1 Pouco sabemos sobre esse período, e apenas os nomes dos proprietários chegaram até nós. No entanto, podemos eecular a presença de posseiros que adentraram o sertão e aqui estabeleceram suas roças, a grande maioria nunca regularizada e oficializada; também a presença de trabalhadores, livres ou escravizados, e agregados que acompanhavam essas entradas, estabelecendo a população que daria origem ao povoado que ficaria conhecido como Jaboticabal.
Do nome, tudo indica que se deve à presença de jabuticabeiras na área em torno do córrego que ficaria conhecido como “do jaboticabal”, grafia novecentista que conservamos até hoje. Uma outra explicação já foi aventada, atribuindo ao nome uma etimologia tupi: Yab-ytic’-abá , cujo significado seria o de “muitas fendas e derrocamentos” ou “rachaduras e deslizes”, em referência à serra que se encontra entre nossa cidade e Taquaritinga 2 Trata-se de uma hipótese improvável, embora a população fosse majoritariamente de ascendência indígena e o uso de termos em tupi fossem comuns entre os habitantes do interior de São Paulo no século XIX.3
Não dispomos de qualquer informação sobre a presença de comunidades indígenas na região anteriores ao início da ocupação pelos posseiros. Isso, no entanto, não significa que a cultura indígena esteve ausente em nossa história. A ocupação de Jaboticabal se insere em um processo de mapeamento e povoação do interior do território que remonta às bandeiras, sendo sua localização entre os rios Tietê e Grande, com acesso pelas vias fluviais do Mogi-Guaçu e Pardo. Tudo indica que a população que para cá se dirigia, durante o século XIX, fosse majoritariamente mestiça, com forte ascendência
indígena, de acordo com a caraerística populacional do interior de São Paulo. Em 1856, o primeiro pároco da cidade, Justino Ferreira da Rocha, dizia que, no território da capela, habitavam “índios, pouco brancos e negros, e foragidos da lei”.4 Trinta anos depois, em 1886, o viajante João Arruda descreve a população da cidade em termos semelhantes: “Também tenho observado que muitos dos neo-bandeirantes e dos filhos do sertão, indígenas a rigor do termo, envergonham-se a qualquer referência que faça eu à vida primitiva nessa região”.5 À parte sobre a “vida primitiva”, é a caraerização dos habitantes como “indígenas a rigor do termo” a que nos detemos, os mesmos que, pouco após a descrição, João Arruda diz produzir e transportar para Rio Preto as “telhas com sacrifício, em carros, do barreiro de Jaboticabal, celebre pelo sua boa qualidade, que se supunha mesmo produzir porcelana”.6 Os dados populacionais de 1872 corroboram a afirmação de uma sociedade majoritariamente não branca, embora em termos mais contidos. Em um total de 3125 indivíduos, são contados 1.361 brancos, 1.169 pardos, 551 negros e 44 caboclos, portanto, uma população composta por 43% de brancos, 38% de pardos – incluídas a descendências indígena e africana – e 17% preta. 7 Esse quadro geral somente se alteraria com as imigrações no fim do século XIX e começo do XX.
1 A data é inferida a partir da descrição das terras no registro de venda da Fazenda Cachoeira, em 1816, por João Rodrigues de Lima, a João Pinto Ferreira. Nela, é descrita a presença de “bananeiras de seis ou sete anos”, de onde a possibilidade de sua ocupação desde 1809. CÂMARA DE JABOTICABAL (org.). Jaboticabal no Primeiro Centenário de sua fundação: Historico e Estatistica. São Paulo: Typographia Rio Branco, 1928. pp. 14-15.
2 CÂMARA DE JABOTICABAL (org.). Jaboticabal no Primeiro Centenário de sua fundação: Historico e Estatistica. p. 11.
3 NAVARRO, Eduardo de Almeida. “Introdução”. _______. Dicionário de tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil. São Paulo: Global, 2013. p. XI.
4 ANDRÉ, Antônio Pacoal. Diocese de Jaboticabal – 1929 – 2004. Jaboticabal: Gráfica e editora Santa Teresinha, 2004. p. 9.
5 ARRUDA, Braz de Sousa. “Três vultos de escol”. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [s.l.], v. 44, pp. 113-127, 1949. p. 116.
Justino Ferreira da Rocha foi o primeiro pároco do curato de Nossa Senhora do Carmo, figurando como testemunha no registro de doação das terras para a Igreja por João Pinto Ferreira, em 1844. Apesar dessa data, o documento informa as delimitações do terreno em 1828. Justino se empenhou na organização do curato e percorreu o enorme território sob sua responsabilidade, o qual chegava a incluir as terras da atual Rio Preto, realizando inúmeros batismos e casamentos, o que regularizava a situação em terras distantes e de difícil acesso, em um contexto em que cabia à Igreja Católica a regularização da vida civil. Justino patrocinou Antônio Moreira Neves, primeiro professor da cidade, ao qual concedeu uma pequena escola de “uma mesa e dois bancos” nas dependências da capela. O padre atribuía a esse motivo as desavenças com a família Pinto Ferreira, as quais resultaram em sua saída do curato. Não sabemos mais nada sobre o destino de Justino e de demais razões para a disputa política. Sobre a escola, ver ANDRÉ, Antônio Pascoal. Diocese de Jaboticabal – 1929 –2004. Jaboticabal: Gráfica e editora Santa Teresinha, 2004. p. 9.
JABOTICABAL E A ESCRAVIDÃO
Pouco se fala, mas a escravidão faz parte da história de Jaboticabal. Em seus quase duzentos anos de existência, ao menos sessenta se deram na presença de pessoas escravizadas. Obrigados a trabalhar nas fazendas e nas casas de seus proprietários, eles contribuíram para a edificação do povoado que se tornaria a nossa cidade, deixando não apenas o legado de seus trabalhos, mas também suas heranças culturais e formas de socialização. Os inícios de Jaboticabal se deram nos primeiros decênios do século XIX, quando a pressão pela abolição começava a se intensificar. Internacionalmente, a Inglaterra atuava pelo fim do tráfico atlântico. Dentre os acordos para o reconhecimento da independência do Brasil, mediado pelos ingleses em 1825, o jovem país se comprometia com a proibição da entrada de escravizados, ato oficializado pela Lei Feijó, em 1831. No entanto, o comércio continuaria de forma ilegal até a década de 1860, o que valeria à lei a expressão “para inglês ver”. Em 1845, a Inglaterra iniciou a apreensão de navios negreiros no Atlântico por meio da Bill Aberdeen, lançando nova pressão sob o tráfico. Cinco anos depois, em 1850, dava-se a aprovação da lei Eusébio de Queiroz, reafirmando a proibição da entrada de escravizados no país. A abolição, no entanto, viria apenas em 1888, por meio da Lei Áurea. Como apontado pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro, o período entre 1831 e 1888, viu cerca de 700 mil pessoas serem escravizadas ilegalmente.8
Diante das tentativas de impedir a entrada de escravizados africanos no Brasil, intensificou-se a venda e compra pelo comércio interno. Os escravizados deslocados para Jaboticabal eram, assim, adquiridos a partir de regiões do Nordeste e Rio de Janeiro, de acordo com o fluxo que se estabelecia para o Sudeste por conta do ciclo do café. Amaioria dessa população descendia daqueles africanos escravizados à revelia da lei, em sua maioria provenientes das regiões de Angola e norte do Congo, pertencentes ao grupo etnolinguístico bantu. 9
A história da população africana e afrodescendente em Jaboticabal ainda precisa ser contada e dispomos de informações documentais para tal. No arquivo da diocese, há um levantamento realizado pelo primeiro pároco, Justino Ferreira da Rocha, o qual aponta o nascimento de dez crianças e o falecimento de onze indivíduos escravizados em 1856.10 No censo de 1872, são contados 364 escravizados na cidade, sendo 178 nascidos no Sudesteprovavelmente, São Paulo, então província - 12 no Rio de Janeiro e 18 na Bahia. A conta não fecha e não sabemos as origens dos outros 156. Talvez proviessem da própria África, e dada a condição ilegal do tráfico, nunca foram devidamente naturalizados.11 A cidade também possui os livros de compra e venda de escravizados conservados em cartório, os quais compreendem os anos de 1880 a 1888.
Sabemos sobre a presença de pessoas escravizadas em Jaboticabal, possuindo acesso a nomes, registros e histórias que nos permitem recompor o quadro desse período, os seus dramas, manifestações, resistências e lutas. De onde vinham? Onde se instalavam? Como resistiram e quais marcas deixaram em nossa cidade? Quais memórias possuímos pelas lembranças, pela disposição espacial e bens materiais? Essas são algumas perguntas, dentre tantas outras possíveis, que permitem resgatar as vivências dessa população e suas contribuições para a cidade. Em outras palavras, permitem o resgate de um passado que não passou, cujas marcas continuam evidentes na sociedade brasileira, e pelas quais podemos recontar e devolver à população afrodescendente a participação o seu protagonismo na construção de nossa história.
6 ARRUDA, Braz de Sousa. “Três vultos de escol”. pp. 118-119.
7 “Provincia de S. Paulo – Quadro Geral da População da Parochia de N. S. do Carmo do Jaboticabal”. Recenseamento do Brazil em 1872. Pp. 421-423. Disponível em: http://memoria.org.br/pub/meb000000359/recenseamento1872bras/ImperioDoBrazil1 872.pdf .
8 Entrevista concedida ao Instituto Lula, em 3 de setembro de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r6sDn2tEvfI&list=PL2eR9h1Ns6Fz3dbfHElnt2ZVg ssxrGVlB&ab_c hannel=InstitutoLula.
9 PRADO JÚNIOR, Manoel Batista. “O Atlântico, um mar de identidades: etnias africanas no Sudeste brasileiro (Mangaratiba, século XIX)”. Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. Edição n° 46, fevereiro de 2011. pp. 3-4.
10 ANDRÉ, Antônio Pascoal. Diocese de Jaboticabal – 1929 – 2004. Jaboticabal: Gráfica e editora Santa Teresinha, 2004. p. 9.
11 Provincia de S. Paulo – Quadro Geral da População da Parochia de N. S. do Carmo do Jaboticabal”. Recenseamento do Brazil em 1872. p. 421. Disponível em: http://memoria.org.br/pub/meb000000359/recenseamento1872bras/ImperioDoBrazil1 872.pdf .

Anúncio de fuga publicado no Correio Paulistano por Manoel Martins Fontes, em 1862.
Correio Paulistano. Anno IX, n° 1846. 3 de julho de 1862. Folha 4. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_02&pesq=jabutic a bal&pasta=ano%20186&hf=memoria.bn.br&pagfis=6916.
ESCRAVIZADOS E CORONEIS - DUAS HISTÓRIAS DE VIOLÊNCIA E VINGANÇA NA BOCA DO SERTÃO
Para além dos dados populacionais, temos também histórias que nos chegaram por relatos. Certamente, não são as únicas e aqui nos resumimos a duas. Muitas outras eeram para serem descobertas e contadas.
Justino Ferreira, o primeiro pároco da cidade, em 1859, envolveu-se em um conflito com a família Pinto Ferreira. Em um episódio de desavenças, que renderam duas trocas de acusações publicadas no jornal Correio Paulistano, Manoel Fortunato Homem o denunciou publicamente ao bispo diocesano de São Paulo, acusando-o de estar suenso das ordens e, mesmo assim, continuar a ministrar batismos e casamentos. Não apenas, também o acusava de concubinato e de ter desferido “uma tremenda bordoada” em um escravizado de João Pinto Ferreira, suficiente a ponto de lhe ter aberto a cabeça.12
Justino respondeu nomeando os nomes por trás da denúncia de Manoel Fortunato: Alexandre e Antônio Pinto Ferreira, ambos filhos de João, que o atacavam pelo apoio ao primeiro professor de primeiras letras, Antônio Moreira Neves, que assumira o posto sob a patrocínio do pároco, em 1857. Sobre o golpe, justificava-se dizendo que o escravizado teria avançado a cavalo sobre um grupo de crianças, agrupadas na frente da escola de primeiras letras, e que teria gritado e golpeado, com uma vara, o homem, apesar de ter intencionado atingir o cavalo.13
Para além de qualquer julgamento sobre o corrido, o relato é importante por atestar a presença de escravizados nos primeiros tempos de Jaboticabal, e também por nos lembrar de que participaram da fundação e do ambiente da cidade ao lado de seus proprietários, dentre os quais, o “nosso fundador”. Uma outra história envolve a família de uma outra figura proeminente em nossa cidade, José Manuel de Vaz Sampaio, conhecido por nós como o “coronel Vaz”. Sua família, os Vaz de Arruda Sampaio, dominaram a política na cidade ao fim do século XIX. Oriundos de Tietê e Sorocaba, instalaram-se na região entre 1875 e 1880, possuindo ao menos duas fazendas, a Lageado, em
Araraquara, e a Santa Cruz, na atual Guariba. Por essa época, Francelina, irmã do coronel, mudou-se para essa última com seu segundo marido, Benedito Alves de Lima, ocupando um desmembramento das terras batizado de Fazenda Capuava. Essa história nos é conhecida pelo relato de Orôncio Vaz de Arruda, sobrinho neto dos irmãos José Manuel e Francelina.14
A mudança do casal para Capuava envolveu, como era costume, a transposição não apenas de móveis e pertences, mas também de todo o pessoal vinculado à antiga fazenda, localizada em Sorocaba. Essas mudanças poderiam mobilizar dezenas de pessoas, dentre os quais familiares, agregados, trabalhadores livres e escravizados, como foi o caso. Francelina e Benedito trouxeram consigo dez escravizados, incluindo um jovem de nome Gaudêncio, de dezenove anos. Gaudêncio foi obrigado a se separar da mãe e da noiva, que por se encontrarem sob posse do pai de Francelina, Adão Antonio Vaz de Sampaio, permaneceriam em Sorocaba. Mesmo diante de inúmeras súplicas de Gaudêncio, solicitando que fosse vendido a Adão, a fim de ficar junto à família, ou que comprassem a noiva, para que permanecessem juntos, Francelina foi inflexível. Segundo o relato, ela teria se oposto mesmo diante das considerações do marido em atender o desejo de Gaudêncio, afirmando que “Negro não tem querer. Negro a gente trata com chicote”. O jovem, nas novas terras, continuou com os pedidos, sempre se deparando com a recusa de Francelina: “Não vai de volta coisa nenhuma. Fica aqui mesmo e sem conversa!”. Gaudêncio guardou sua tristeza e ira até à noite em que invadiu a casa e esfaqueou o casal, matando Francelina e deixando Benedito ferido, entregando-se à polícia logo em seguida.15
Não temos detalhes da repercussão do acontecimento. Podemos apenas presumir o alto impacto que teve na região, resultando em tensões entre proprietários e a população cativa. A inferir pelo relato, o episódio ocorreu após 1875, em um contexto em que as discussões sobre o fim da escravidão tomavam o debate público no país. Foram episódios do tipo que exacerbaram a violência e as injustiças do sistema escravista, aumentando a pressão pelo seu fim.
Gaudêncio permaneceu trinta anos preso, período que ultrapassou a abolição. Quando livre, encontrou trabalho como rachador de lenha em Piracicaba. Provavelmente, nunca mais reencontrou a noiva ou a mãe, as quais podem ter alcançado a liberdade em 1888. Nada mais sabemos sobre Gaudêncio ou sobre os caminhos nos quais que teve a escolha de seguir.
12Correio Paulistano. Anno V, n° 906. 5 de abril de 1859. Folha 3. Disponível em: https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_01&Pesq=%22jo% c3%a3o%20pinto %20ferreira%22&pagfis=6334.
13 Correio Paulistano. Anno V, n° 969. 26 de junho de 1859. Folhas 2-3. Disponível em:
https://memoria.bn.gov.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=090972_01&pesq=%22jo %C3%A3o%20pint
o%20ferreira%22&pasta=ano%20185&hf=memoria.bn.gov.br&__cf_chl_tk=aN7ourAt a5mLVKNbtagQ
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14ARRUDA FILHO, Oroncio Vaz de. Andanças. São Paulo: Nobel, 1987. pp. 116-147.
15 ARRUDA FILHO, Oroncio Vaz de. Andanças. São Paulo: Nobel, 1987. Pp. 134-138.

Acusações de Manoel Fortunato Homem ao padre Justino, na qual se lê: “ensopou suas vestes no sangue de um escravo pertencente ao capitão João Pinto Ferreira.”
José Manuel Vaz de Sampaio (1854/1856-1933) foi o principal expoente político da família Vaz de Arruda Sampaio, fazendeiros influentes que dominaram a cena política de Jaboticabal no fim do século XIX e começo do XX, possuindo terras também em Araraquara. Era detentor da patente de “Coronel” da Guarda Nacional, de onde o título “Coronel Vaz”. Sua derrocada é atribuída a gastos políticos. As disputas e alianças, no entanto, nos são pouco conhecidas até o momento. O que sabemos é, que ao fim da vida, empobrecido, foi desbancado por outro chefe político, José Augusto de Oliveira, conhecido por “Juca Quito”, o qual teria vida curta, abrindo caminho para um afilhado de José Manuel Vaz de Sampaio, João Batista Novaes, detentor da patente de “major” na guarda nacional, e por isso chamado “Major Novaes”. Esse foi o período em que a cidade mais explicitamente foi governada pelos famosos “coronéis” do fim do Império e Primeira República, aqui denominados “jucas”. Ver ARRUDA FILHO, Oroncio Vaz de. Andanças. São Paulo: Nobel, 1987. pp. 147-149; “CASEMIRO, Zina Assirati. “O poder econômico e o poder político dos coronéis”; BELLODI, Zina C. “Alguns dados bigráficos da família do Coronel Vaz”. BELLODI, Zina C. et al. Grupo Escolar ‘Coronel Vaz’: lembranças, memórias e fatos. Jaboticabal: Maria de Lourdes Brandel -ME, 2013. pp. 15 17; 19 20.
JABOTICABAL E SUA HISTÓRIA
No ano de 1922, o Brasil celebrava seus cem anos de independência. O país se encontrava em intensa efervescência, vivenciando transformações sociais e convulsões políticas. A República, que então completava 31 anos, ainda procurava se afirmar em relação ao seu passado imperial e sua particularidade frente às demais nações americanas. O café fazia a força de São Paulo, e Jaboticabal encontrava-se como um dos principais polos de desenvolvimento no noroeste paulista. Em fevereiro desse mesmo ano, um grupo de intelectuais e artistas organizaram a Semana de Arte Moderna, propondo a construção de uma identidade nacional e a renovação artística por movimentos de vanguarda. Em julho, as convulsões políticas quase derrubaram o governo do então presidente Epitácio Pessoa. Uma rebelião estourou no Forte de Copacabana e lançou as bases do tenentismo, reconduzindo de vez os militares à cena política, prenúncios das revoltas que se sucederiam e dos ares d os novos tempos que se anunciavam. Jaboticabal, seguindo os passos da nação, começava a discutir a sua identidade e a construir a sua história.
Nesse mesmo ano agitado de 1922, Arthur Paqueroby Aguiar Whitaker publicou o artigo O Centenário de Jaboticabal no periódico Polyanthéa (“muitas flores”, “buquê” em grego), mantido pelo Ginásio São Luiz. Nesse artigo, levantava-se pela primeira vez documentos sobre a história da cidade: as doações de terra na região; a descrição dos pormenores nas escrituras de cartório, como relevo, delimitações e produções; a compra por João Pinto Ferreira da Fazenda Cachoeira e sua decisão de doar as terras para o curato de Nossa Senhora Aparecida, delimitado em 1828, ato considerado a partir de então, o marco fundacional da cidade.16 O artigo de Whitaker foi o primeiro impulso que culminou com a instalação de uma comissão pela Câmara Municipal a fim de realizar uma publicação comemorativa dos cem anos da cidade. Assim nasceu o livro Jaboticabal no Primeiro Centenário de Sua Fundação: História e Estatística, o livro que nos deu uma história.17 Ao lado do artigo de 1922, foram reunidas as
transcrições dos documentos de concessão das primeiras sesmarias –as das fazendas Bonfim e Cachoeira – da doação de terras ao curato, dados estatísticos sobre a população, criações e culturas, finanças, transcrições dos primeiros códigos de postura da câmara, e demais aectos gerais sobre a cidade. Convidou-se ninguém menos que Affonso d’Escragnole Taunay (1876-1958) para compor o brasão da cidade, comentado e impresso na publicação. Taunay foi um dos maiores nomes da historiografia positivista do Brasil, e na altura do convite, presidia o Museu Paulista (atual Museu do Ipiranga) e lançava o quinto volume da monumental História Geral das Bandeiras Paulistas, trabalho que consolidaria o “mito dos bandeirantes” em São Paulo. Ao nosso brasão, deu o lema latino perdurat in me paulistarum spiritus, ou “Em mim perdura o espírito dos paulistas”.
O livro lançou os aectos gerais da história que todos aprendemos nas escolas, que frequentemente ouvimos em falas oficiais e que até hoje reproduzimos quando falamos de nossa cidade. Ele consolidou a fundação em 1828, determinou seu fundador, deu uma lenda às lideranças políticas e oficializou as alcunhas que Jaboticabal já possuía, mas que se consolidariam a partir de então: “A cidade das Rosas”, a “Athenas Paulista”. Nesse processo, apagou-se o que fora a história de um povoado sertanejo, habitado por uma população majoritariamente pobre, cuja fortuna se deu em parte à escravidão. Uma Jaboticabal festiva, reflexo do entusiasmo com a riqueza do café e de seus barões, apagou o que então se tornara uma cidade irreconhecível. Cem anos depois, é a Jaboticabal de 1828 que se tornou irreconhecível, uma cidade cujas particularidades se apagaram nas profundas transformações de sua sociedade, legando apenas ruínas. Cabe, nesse momento em que a cidade se aproxima dos seus duzentos anos, redescobrir os segredos que resguardam. Em cada rua e esquina, em prédios abandonados, em pilhas de papéis guardados e livros esquecidos, nas lembranças e memórias de cada um de seus habitantes estão os pedaços de nossa história, peças de um passado que ainda vemos como um esse enorme templo incompleto.
16 WHITAKER, Arthur Paqueroby Aguiar. “O Centenario de Jaboticabal”. In CÂMARA DE JABOTICABAL (org.). Jaboticabal no Primeiro Centenário de sua fundação: Historico e Estatistica. São Paulo: Typographia Rio Branco, 1928. pp. 11-19.
17 CÂMARA DE JABOTICABAL (org.). Jaboticabal no Primeiro Centenário de sua fundação: Historico e Estatistica. São Paulo: Typographia Rio Branco, 1928.


Capa do livro Jaboticabal no Primeiro Centenário de sua fundação: Historico e Estatistica, no qual foram reunidos os primeiros ensaios e documentos sobre a nossa história, em 1828. Ao lado, Brasão da cidade original, impresso no mesmo volume, tal qual idealizado por Affonso Taunay.

Nos fios tensos da pauta de metal
Ou nos galhos secos de uma arvore qualquer
Grande arvore de galhos retorcidos em direção ao céu e raízes tão profundas que grande parte já fora consumida pelo magma do centro da terra muito se fala, pouco se sabe Muito se sente, nada se vê os dias passam tão iguais
E as folhas da grande arvore farfalham com jatos de glifosato aplicados por drones
Aprendi isso com amigos o sopro do vento é sempre paleolítico
E pouco a pouco vamos perdendo nosso horizonte Todo microcosmos é um universo o mais gostoso é poder olhar para si e dizer: Bicho, isso aqui parece twin peaks.

Campanha contra a fome
O Povo tem fome, fome de gente. De gente ?
É, de gente, gente diferente, de ideias novas, de novos lugares, de sentar na calçada, de sentar na praça.
o povo cança, por isso quer sentar, por trabalhar seis dias e não descançar no sétimo porque tem casa pra arrumar.
O povo quer fazer cultura, quer ver cultura, quer mostrar a sua cultura, o povo é cultura.
O povo quer sentir, o povo quer saber, quer aprender, quer desaprender, quer crescer.
O povo quer ser notado, se fazer notar,ser escutado,quer comentar, quer julgar tão quanto é julgado.
O povo quer matar a sede e a fome de conhecimento, de curiosidade, quer abstração enquanto só o que conhece é a realidade.

Equipe:
Camila Fernanda de Lira Rodrigues: Diretora Criativa,desing de capa, arte nº1, poema nº2, edição e diagramação.
Franco Alves Biondi: Pesquisa Histórica e Criação dos textos.
Matheus Bruno Neves: Arte nº2.
Vinicius de Oliveira Santos: Poema nº1.
Vinicius Berchielli: Arte nº3.
Thiago Henrique Petruccelli: Arte nº4.
Luiz Eduardo Mascaro: Revisão Final e Impressão.
Agradecimento Especial ao Ponto de Cultura e Espaço Cultural Cinema de Quintal.
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