AFF #1 (prévia)

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A Fortaleza Frontal #1 AbstinĂŞncia

L. J. Trainor





Entre na Fortaleza Frontal ✶ As rodas de cada ano passam, mas nenhuma fica para trás. O tempo pode ser tão fértil quanto cruel, transformando nossas identidades e, com sorte, fazendo felizes os nossos passos por esta Terra. Deixamos objetivos para trás, ou caminhos, ou até pessoas, mas a parte mais dolorosa de se abdicar são nossos sonhos. Cada vez em que me dizem que tenho de levar uma rotina “normal”, endireitar a vida e tirar a cabeça das nuvens, mais sinto que é preciso me agarrar ao que me dá motivos para existir. Escrever é esse suspiro de liberdade e... Humanidade. Esse trabalho é uma tentativa, em nome de mim e das pessoas que posso representar, de abrir espaço para a história que quero que exista, tanto na literatura quanto nas mentes de todo mundo que possa ser alcançado. Entre de mãos abertas e queixo erguido. E obrigada por ler e participar disto!

L.

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AFF #1

Abstinência

São Paulo capital, janeiro de 2014. Todo mundo tem uma luz em torno de si, por onde transborda o que existe por dentro. Mas, naquele dia, eu queria não ser capaz de enxergar. Ouvi o barulho de cortinas sendo abertas, com seus grampos de metal se arrastando pelo teto, e logo uma claridade enorme encobriu meus olhos. Um vulto veio em minha direção, embaçado contra a luz, logo contornando a cama e se jogando atrás de mim, ao canto. Meu primeiro reflexo ao acordar foi encobrir meu peito no edredom, depois coçando os olhos e me virando na cama, olhando para ele, que mexia no celular. Apesar da cara de preguiça, sorrir ao vê-lo foi algo automático. Aquela foi, por acaso, nossa primeira noite juntos. E por acaso também foi como ela aconteceu, depois de um jantar onde perdemos a hora, passamos do horário de funcionamento do metrô e então ele me chamou para dormir em sua casa, até então sem nenhuma outra intenção. Eric era um garoto legal, e que havia me feito bem desde que nos conhecemos havia alguns meses, mesmo ele sendo tão novo - e também meu calouro na faculdade. Às vezes eu tinha de ir com calma. Mas aquela noite acabou acontecendo e, por bem ou por mal, fui o primeiro cara com quem ele teve algo. Eu provavelmente olhava para ele com alguma expressão boba, tentando sutilmente não tornar aquela situação estranha. Só que ele, não tirando os olhos da tela do celular, não ajudava muito. - Hey. - Chamei. De nada adiantou. Pensei tê-lo visto olhar de canto de olho bem rapidamente, mas eu nunca teria certeza. Forcei a vista, levando toda a concentração possível à aura dele, para que eu pudesse ver com mais clareza. Vi todo aquele vermelho sobre ele, com algo turbulento demais passando por sua mente. - Eric... - Tentei de novo, estendendo a mão mais próxima até o braço dele, e então ele recuou um pouco para o canto da cama, afastando-se de mim ainda mais. Seus dedos começaram a se forçar sobre a tela, e minha preocupação a tomar uma proporção bem mais grave. Levei a mão mais distante sobre ele, de certo modo tentando o abraçar, e ele reagiu, empurrando meu braço. Acabei insistindo por reflexo e estresse, enquanto decidia questionar. - O que há de errado, cara? Ainda assim, ele me afastou com o braço, empurrando-me para o lado com apenas um grunhido de esforço. Então largou o celular sobre o colchão, usou uma mão para me pressionar na cama e disparou a outra mão fechada contra mim.

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O soco atingiu o travesseiro, passando de raspão pela minha orelha, com força a ponto de o estrado da cama estalar e fazer um barulho bem alto. Eric parou bem em cima de mim, com suas pernas prendendo as minhas, a mão do soco a tremer e seus olhos carregados de uma raiva bem nítida. Sua aura se erguia em vermelho acima dele, incendiando-o. Sentindo sua mão bem ao meu lado enquanto minha orelha queimava pelo golpe, eu estava muito assustado. Havia raiva em sua mente e olhar, e eu podia prová-la por inteiro, com sua aura inflamada me sussurrando tudo o que ele sentia... Confessando o quanto seria tudo mais fácil se eu não existisse. - Eu não posso fazer isso... - Ele falou, com a voz engasgando. - O quê, Eric? - Logo perguntei, sem entender nada daquela situação. - O que aconteceu, afinal? Seus dentes se apertavam e ele não tinha certeza se me olhava diretamente, mas a raiva parecia o permitir fazer isto sem muito remorso. - Você, cara... Você me forçou a ir longe demais. Eu não podia acreditar no que estava acontecendo. - Ahn!? - Foi a única reação que consegui ter. E não pareceu melhorar nada. A expressão em seu rosto só se fechava mais, e se fecharam também suas mãos, estremecidas, no lençol. - Eu fui ingênuo demais, não é? - Continuou a falar. - Você se aproveitou disso e me convenceu de que eu era gay usando essas suas bruxarias... Nada disso deveria ter acontecido, cara. Já quase gritava quando terminou. - Você se aproveitou de mim! De repente algumas batidas surgiram na porta do quarto, com uma voz feminina a chamar: - Eric... Está tudo bem aí, meu filho? Entrei em choque ao ouvir tudo aquilo. Toda a nitidez da minha visão se perdeu quando meus olhos se molharam, ainda que eu tentasse me segurar e encontrar algum sentido naquela situação toda... Alguma coisa que resolvesse aquilo tudo. Nunca havia usado magia para convencer ninguém a nada, de maneira alguma. Eu era um mero entusiasta pagão, escondido nas sombras, com medo de que o mundo soubesse que eu enxergava ​ coisas​ . Nunca o havia forçado a nada, sempre deixando que ele tomasse o primeiro passo em tudo... Mesmo naquela noite, quem antes avançou o sinal foi ele. Não fazia sentido que eu o houvesse forçado. Mas até onde eu tinha o direito de decidir se as emoções dele eram justas ou não? Ele sentia raiva de mim... Uma raiva que chegava a parecer ódio e que, através da sua aura, invadia-me por inteiro, queimava, e me fazia odiar a mim mesmo.

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Eu só... gostava dele. E se, mesmo sem perceber, por algum descuido qualquer, meu desejo de ficar ao lado dele o houvesse obrigado a algo, então eu era mesmo um monstro. Encarando seu olhar tão nervoso em cima de mim, queria responder a ele e me justificar, mas nada realmente parecia justo. - Eu... - Tentei. - Desculpe-me... - Vai embora, cara... - Eric disse, rangindo os dentes em raiva e desgosto, já mal conseguindo olhar para mim. - Só vai embora. Uma lágrima quente escorreu pelo meu rosto, e então tudo estava perdido. Levantei, coloquei minha camiseta de volta e reabotoei a calça. Movia-me depressa, tremendo demais, prestes a perder o controle. Parecia tentar fugir de mim mesmo. Eric se deitou de novo sobre a cama, escondendo a cabeça contra o travesseiro. Sua mãe ainda chamava e batia à porta. Joguei meu casaco sobre mim e saí do quarto o quanto antes. Passei pela mãe dele, que perguntou sobre estarmos bem ou algo do tipo, sem que eu conseguisse ouvir naquele momento. Pedi desculpas a ela, murmurando e não deixando de andar. Ela não sabia de nada e eu não queria trazer mais caos à vida daquele garoto do que já, aparentemente, havia trazido. Chegando à porta da sala, não pensei duas vezes antes de mover uma mão em direção à maçaneta e destravá-la por dentro com minha mente. Ele queria magia? Então ele teria magia. Daniel, meu irmão, esperava ao lado de fora, e veio até mim assim que saí do apartamento, parecendo muito preocupado. - O que aconteceu? Senti você chorando lá dentro, mas não consegui entrar. Ele, além de ser meu irmão gêmeo, era um fantasma, conectado a mim a todo momento. Por dentro, eu estava banhado em uma sensação de abandono, frustração, raiva e desespero, e Daniel podia sentir isto tudo. Tentei chamar o elevador, que estava muitos andares abaixo, então mudei de ideia depressa e parti pelas escadas. Aceitava qualquer caminho que me tirasse dali o mais rápido possível. Daniel me acompanhava, atravessando uma ou outra pessoa que passasse por nós, sendo que só eu poderia enxergá-lo ali. Sua voz, além de preocupada, ia ficando também irritada. - Cara, fala comigo. O que foi que aquele infeliz fez com você? Eu tentava conter toda a tempestade dentro de mim, para evitar que acabasse desabando em frente a qualquer outra pessoa que pudesse me fazer mal. Fechei o

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rosto numa expressão séria. Naquele estado era difícil confiar que qualquer um, exceto meu irmão, não fosse apenas me deixar pior. Ainda

assim,

as

gotas

da

tormenta

me

vazavam

pelos

olhos,

silenciosamente. Afinal o rapaz de quem eu gostava havia acabado de esfregar a verdade neles: eu era um monstro. Eu, minha natureza, minha mente, todas as auras que eu via e qualquer outra bizarrice que partisse de mim... Nada de bom viria de nós. Pude responder a Daniel apenas com um olhar melancólico. Deixei que ele visse o restante por si mesmo em minha mente. Abri meus pensamentos a ele e deixei que concluísse sozinho. Enquanto isso, eu caminhava o mais rápido que podia, deixando o prédio e subindo a rua até o metrô. Não reparava em nada à minha volta, nem sentia qualquer outra coisa além de tudo o que já havia para ser sentido na minha mente naqueles momentos. Levaria muito tempo até digerir tudo aquilo. Daniel se perdeu no mar de emoções que entreguei a ele, e não consegui sentí-lo por perto enquanto isso, provavelmente por ele mergulhar na minha mente em si. Entrei no metrô, esbarrei em algumas pessoas, e não tive qualquer remorso nem dei atenção a elas. Ninguém mais parecia importar. Lá dentro, andando pela plataforma e tentando me afastar de todos, eu quis gritar, sem que isto fosse ajudar. Olhava para as cores em toda aquela gente e cada uma delas parecia se tingir de cinza, encobrindo meus olhos, e então o próprio mundo já era cinza e sem sentido também. Meu grito não valeria de nada ali. Até que Daniel surgisse outra vez, vindo atrás de mim. - Hey! - Ele chamou, falando bem alto. - Calma aí, cara! A sua frequência está caindo muito rápido. É perigoso! É melhor ligar para o tio vir nos buscar! Olhei em sua direção, vendo que ele parecia assustado com algo. Havia também uma intensa ventania batendo contra seu corpo fantasmagórico. Mas sustos ou medo não faziam sentido então para mim. Eu já não sentia nada. Minha visão estava completamente acinzentada, e cada pequena luz naquele mundo parecia forte demais. As emoções se ofuscaram diante daquilo. Poderia ser mais fácil eu somente fechar os olhos e me render à escuridão. Sim, poderia ser. Não consegui pensar sobre isto, atingido nas costas pelo vento frio, embora coberto em meu moletom. Virei àquela direção e avistei uma mulher isolada, de cabelos volumosos, coberta em um manto escuro, parada diante da borda da plataforma. Dela, como um tornado, vinha todo aquele vento, com ela prestes a se atirar nos trilhos.

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Logo que a vi, caminhei em sua direção. Ninguém parecia notar sua presença ou sentir a ventania exceto Daniel e eu. Todas as outras pessoas se tornaram borrões irreconhecíveis, perdidos no cinza do mundo. Tudo o que eu podia sentir vinha daquela mulher: uma série de emoções entristecidas atiradas ao vento. Fui até ela, resistindo ao vento que tentava me fazer desistir e assim permitir que ela desse fim ao seu sofrimento. Daniel, desesperado, tentou me seguir, mas o vento parecia ainda mais forte para ele. Consegui chegar perto o bastante para que ela notasse minha presença e olhasse para mim com um profundo desolamento, em transe. Aquilo me fez sentir minha própria dor outra vez. Só que não era disso que eu precisava. Ergui uma mão para aquela mulher e toquei seu ombro. Era a sua dor que eu queria naquele momento. Abri minha mente e coração. Deixei que suas emoções me contassem tudo... Nós estávamos então na mesma frequência. Assim eu pude ver tudo: ela e seu marido dormindo à noite, havia algum tempo... Barulhos surgindo no andar de baixo... Vozes assustadas no escuro... Uma sombra surgindo no quarto... Uma correria... Seu marido desaparecendo... E desde então nenhum sinal dele. Com minha mão em seu ombro, senti tudo em seu lugar, transferindo suas emoções para mim até que elas se tornassem uma lágrima em mim mesmo. Toda aquela dor, distinta da minha, fez com que eu esquecesse até minha existência por alguns instantes, como se me dopasse. E mentalmente, enquanto isto, eu dizia a ela: - Deixe o vento levar a dor junto... Ao menos por hoje, não desista... Pinte, escreva, compre algumas flores. Ao menos por hoje... Você é forte. Ele sabe disso... Você foi forte com ele, e foi forte por todo esse tempo, até hoje... Ele vai precisar de você quando voltar. Seu olhar cinza e vazio me encarava paralisado. Ela respirava fundo e devagar, ouvindo aquilo tudo, permitindo que ao menos naquele momento a dor fosse embora. E assim, sorrindo para ela enquanto as lágrimas secavam em minha mão e rosto, encerrei: - Nós todos ficamos mais fortes por quem amamos... Vai ficar tudo bem. Eu prometo. A mulher fechou seus olhos e respirou fundo. A imagem se iluminou, tornando o cinza em um branco que quase cegava, e por fim a ventania e o nosso tremor pararam. Olhando outra vez para mim, ela sorriu timidamente. Ambos sabíamos que a dor voltaria de novo e de novo enquanto sua vida não se resolvesse. Mas, por pelo menos mais um dia, ela continuaria sendo forte.

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Recuei minha mão de volta, notando que minha visão ganhava cores outra vez. Então a mulher me deu um curto abraço e partiu, andando devagar rumo à saída da estação, passando ao lado de Daniel, que a observava com cuidado. Alguns instantes depois ela já não se lembraria de que aquilo tudo aconteceu, mas isto não era mesmo preciso. Ela continuar a resistir já me fazia sorrir, não importando o quanto ainda, no fundo, doesse. Notei de repente o barulho do metrô, que parou ao meu lado em seguida. Embarquei sem pressa, havendo mais ninguém na porta junto de mim, e escondi com o capuz as manchas de lágrimas no meu rosto. Daniel então entrou correndo no vagão, atravessando-o até parar junto de mim e me dar um abraço forte. Mentalmente, prometemos um ao outro que ficaria tudo bem. E percebi em fim que as auras de todos já eram nítidas outra vez, colorindo meu mundo.

- Continua na versão completa, em dezembro!

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