AFF #2 Dente-de-Leão: Brisa

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A Fortaleza Frontal #2 Dente-de-Leão: Brisa

L. J. Trainor




Sobre esta edição ​ ▼ Às vezes somos capazes de nos imaginar em situações hipotéticas e, como num sonho, simular uma realidade inicialmente alheia a nossas vidas. Uns enxergam este ato como uma fuga da realidade - outros, como crescimento. Eu enxergo como um possível exercício de empatia.

Dente-de-Leão é uma história “satélite” à história central, sob um ponto de vista diferente, dedicada àquele que primeiro me disse que voar era possível​ .

Cabine ​ ♪ A​ música ​ é, mais do que uma poderosa fonte de energia, uma tempestade como um todo. Ela atinge e influencia mesmo que você não esteja buscando isto. A água, os ventos e os raios, como numa sinfonia, destroem ou dão vida. Na edição anterior, algumas músicas me atingiram com força, e recomendo a seguir. ​ I Had This Thing (de Röyksopp) se afeiçoa um tanto a diversas cenas do episódio, como na cena do metrô e, principalmente, quando Patrick está dançando na Augusta e se conectando às auras de todos ali.

Espirais ​ (de Marjorie Estiano) é de derreter o coração durante a cena onde Luffs e Liffs aparecem pela primeira vez, no avião. Outras faixas legais são ​ I Can Dream (de Skunk Anansie) e também ​ goods ​ (de iamamiwhoami), que recomendo para as cenas de alucinação de Patrick.

L.


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AFF #2

Dente-de-Leão: Brisa

Noite após noite uma batalha aqui me desperta, e na noite de hoje não há nada de diferente. A luz esmaecida se despeja sobre meus olhos enquanto a gravidade me derruba sobre a cama. E a cada amanhecer me pergunto: qual delas, a luz ou a gravidade, viria me derrotar primeiro? Talvez ambas quisessem apenas me trazer de volta ao mundo humano, vivo por mais um dia, e então elas competissem por quem me faria despertar antes. Mas seu vigor e empolgação não me contagiavam tanto. De todo jeito, não adiantava fugir para o mundo dos sonhos, pois a gravidade me arrastaria de volta e a luz me bateria aos olhos como castigo. O mesmo sabor de grama adocicada me surpreende o paladar por mais um dia, logo ao acordar, ainda sem que eu saiba de onde ele vem. E com isto cada um dos sentidos vai se revivendo. O peso em meu peito me causa um suspiro, logo preenchendo o quarto com meu hálito. E o ar de suspiro rodopia pelo quarto ainda escuro, fazendo-se uma ventania. Meu corpo pálido e descoberto então ergue no ar uma nuvem de pequenos esporos esbranquiçados e sem muito significado, saindo da minha pele como a poeira que surge sobre a mobília vinda de lugar algum. Meus lábios secos e abertos continuam a perder o ar, e de repente meu rosto se ergue um pouco, como se eu despertasse de um pesadelo, porém incapaz de me recordar dele, restando apenas um suspiro sem significado. Eu não tenho mesmo acesso a quase nenhuma memória deste corpo, na verdade. A cada noite na qual eu desperto, pareço perder mais uma porção do que no dia anterior seria minha memória. Penso - e tenho medo disso - que viveria assim até não conseguir me recordar sequer mais do presente, e tal seria minha última noite de existência. E então vejo a moça ainda deitada sobre meu ombro enquanto eu a abraço, com seus cachos se espalhando pelos meus ombros. As pontas dos meus dedos tocam seu braço, e ela ainda não pode me sentir. O espaço, os sentidos, os sonhos, os retratos nos corredores são todos dela, e eu mal posso lembrar como fui parar ali. Mas sei que a cada noite eu acabo pousando naquele quarto outra vez. Ergo o corpo mais um pouco e, com um suspiro profundo, faço-me em esporos outra vez, sem controle, com todo o meu ser se transformando no que mais parece um monte de poeira, vagando na ventania do quarto, rugindo em velocidade, até me montar outra vez já de pé ao lado da cama. Meu corpo é pesado, grande, um tanto inapropriado na maior parte do tempo, desproporcional para a pequena criatura que sou. Mal posso o dominar direito e, quando vou me mover muito rápido, ele se desfaz, repartido em uma legião de

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fragmentos brancos, leves o bastante para qualquer brisa o carregar. Tem sido assim por toda a minha existência... Ou ao menos nos últimos dias, que são o máximo de que consigo me lembrar ao longe. Mas não há muito problema nisso, nem tempo para viver uma vida humana, ou mesmo em um corpo humano... Sei que a qualquer momento os ventos me levam outra vez - os mesmos ventos frescos e cheirando a grama. Ultimamente vêm com menor frequência, somente a cada amanhecer. Então, até que meu corpo se desintegre de novo e voe para longe, eu posso fingir ter uma existência leve. Posto de pé e ainda inteiro, encaro aquela moça esbranquiçada debaixo dos lençóis, tão ridiculamente em paz. Ela se mexe um pouco sobre o travesseiro e, sem querer que ela me veja sob tanta luz, faço-me num enxame de esporos outra vez e fujo apressado do quarto, encontrando brechas ao redor da porta. Não quero que encare minha pele tão pálida sob a luz, revelando todas essas cicatrizes em forma de grama. Não quero que me veja como um monstro desfalecido... Mas sequer poderia confiar em uma suposta memória e garantir que iria me lembrar do seu rosto no outro dia. Não por desprezo ou desimportância, mas por minha própria existência questionável. Noto então que já não me lembro de seu nome. Mas, se eu ainda existir no dia seguinte, torceria para que ela me contasse outra vez, com aquele sorriso de que, com esforço, tento não me esquecer também. Atravesso o corredor com o frio sob meus pés e apenas uma calça no corpo. Não faço barulho algum pois os esporos quase me mantém a flutuar. Ando rápido para jogar o ar contra meu rosto e me fazer sentir vivo só por um instante. Sigo até a varanda como se algo lá convocasse minha presença - algo que, por isto, também me faz sentir que realmente existo. E a sensação é boa, como se os pedaços de mim se fizessem mais firmes, e meu corpo e mente enfim mais consistentes - ​ existentes​ , talvez. Ao chegar à pequena varanda do apartamento, vejo ao longe, recortado entre os prédios, o leve e tímido alaranjado do mar sob o sol. Reconheço a cidade por mais um dia: é Santos, no litoral de São Paulo. E então consigo sentir todas as linhas de vento dali, atravessando meu corpo e levando a luz fria da manhã para todos. Mas me sinto prestes a despedaçar outra vez. Reluto por um momento e me agarro com angústia às grades da varanda, desejando me prender àquele lugar ao menos para conseguir ver o nascer do sol.

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Eu arfo com um leve desespero, mas já nem sei de onde vem tal sentimento. Até uma sombra pousar de repente ao meu lado. Encaro-a por reflexo, curvando meu tronco, ainda tremendo sob a ventania, e vejo um corvo bem ali, empoleirado nas grades, inclinando o pescoço enquanto também me encara com curiosidade. Não faço nada, sem entender o que um pássaro como aquele faria ali, e então ele grita com toda a sua voz estridente à minha frente. Recuo minha postura um pouco, mas me esqueço de largar as grades. O corvo só continua a me encarar, como se achasse graça do meu espanto. E eu mesmo o entendo, pois não tenho qualquer lembrança do que se chamaria de

espanto​ . É como se eu o sentisse pela primeira vez. Em seguida o corvo agita o bico para cima e para baixo, de um jeito um pouco sem jeito, e não sei explicar o que me faz crer que esteja me chamando. Tomo proximidade devagar e levo uma mão até sua testa franzina, sentindo sua fria plumagem até o pescoço, onde lhe afago a pele por baixo de toda aquela escuridão. O corvo fecha seus olhos em concordância, como se sorrisse, e assim me faz sorrir junto dele. E então para junto de nós vem também uma pancada de vento, que nos arrebata, e tudo acontece outra vez. Afinal, os ventos retornam sempre, rumando ao destino que bem queiram. Fios loiros claros e curtos pontilham minha cabeça, mais parecendo espinhos de tão brancos, mesmo sobre minha pele apavorada, e são eles os primeiros a notar cada ventania. Sinto-me um animal a prever a tempestade. Sinto os ventos a me carregar mais uma vez... Sinto minha existência se curvar e a eles se entregar, despedaçada. A brisa me encobre num abraço, onde me pego sorrindo sem razão. E então o frio me arrebata o corpo, logo antes de um empurrão. No calafrio meu olhar se encerra e no frio me anestesio. Entro na escuridão de olhos fechados e sinto a brisa invadir meu corpo, enquanto sua força apenas me carrega com uma intensidade inabalável. Sinto-me a brisa, leve, pacata e infinita. Sinto-me um dente-de-leão desfeito em esporos sob o vento. Mas um cheiro de grama me parece familiar e ouço um gira-gira ainda a se girar. Recupero meus olhos, ajoelhado sobre aquele gramado outra vez. Vejo as cinzas sobre o verde e luto em minha mente contra o que o tempo fez. Levo uma mão até as folhas, quebrando-as mesmo sob um toque tão delicado. Por baixo das manchas envelhecidas, aquele verde é muito do meu agrado, familiar, recorrente, tal como as memórias enterradas no fundo de minha mente.

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Talvez eu possa as desenterrar através da grama. Mas se há algo já desenterrado neste momento, é minha esperança. Minha visão aos poucos se desembaça e surgem ao meu redor alguns brinquedos de metal, quase do meu tamanho, com um prédio a umas duas dezenas de metros. Talvez as gangorras daquele parque pudessem me soprar adiante. Ao tentar me levantar do chão, quase desabo, ainda sem muito jeito, já que não é fácil dominar um corpo feito de verdes, folhas, cílios e pétalas. Noto que aquele parece ser o parque de uma escola. E logo de repente quando me vem isto à mente, os vultos esbranquiçados das crianças aparecem à minha volta, correndo, brincando e rindo como se eu apenas agora pudesse os enxergar. Ainda encaro o gira-gira, sem pestanejar, e nele rodopiam os vultos de três crianças, para onde começo a arriscar alguns passos tortos. Os esporos do meu corpo parecem ter atravessado muitos quilômetros para chegar ali, e cada um deles parece assim desgasto e exausto neste momento. Caminho como um morto-vivo em direção àqueles três. Um menino corre em torno do brinquedo, puxando-o, tomando impulso, fazendo-o girar, para então saltar sobre ele e se deixar rodopiar junto daquilo tudo. Uma menina e outro menino riem junto dele, segurando firme. Em silêncio, continuando a andar, assisto aos três se inclinarem para trás em sincronia, deixando seus cabelos se bagunçarem no vento, e mal noto um som estridente surgindo ao meu lado. Enquanto continuo a observar com uma estranha admiração, o som se repete. - Cráááá! - Fez o corvo à minha direita, empoleirado num balanço vazio quando olhei em sua direção. Paro onde estou para o encarar, sem propósito, apenas tentando entender como chegou ali tão depressa. Meu olhar se ergue confuso, e creio que me compreende aquele pássaro tão astuto. Então estendo uma mão a ele, tentando o trazer para junto de mim, para enfim o cumprimentar direito, como fazia naquela varanda do apartamento. E ele voa em minha direção, com suas asas de escuridão trazendo clareza àquele lugar, tornando minha visão enfim nítida e me permitindo entender aquilo aos poucos. Eu sorrio, aliviado. Ele se transforma em puro escuro e então num rapaz da minha altura, vestido em um casaco preto, e em olheiras profundas como numa noite virada, e também em um sorriso angustiado, caminhando em direção a mim.

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De repente, uma das crianças corre com alegria à minha frente e, sem notar minha presença, passa por mim, atravessa meu corpo e leva junto parte do que me compõe. E tudo acontece outra vez. Minhas pernas e tórax se desfazem em esporos que, ao tímido movimento da brisa da grama, erguem-se e se espalham, e assim todo o meu ser acompanha. Aos poucos tudo de mim se faz em esporo no ar, sem qualquer das crianças ali poder me enxergar. E levam também o cheiro da grama onde me ergo e o sorriso do rapaz que me observa. Ao canto do gramado, uma porção de dentes-de-leão se sopra e solta junto de mim. O vento levanta o gramado e atravessa meu corpo. Por um momento, tudo aquilo sou eu. O rapaz se faz em pássaro outra vez, dançando no ar através de mim e daquela nuvem de brancura vazia, e apanhando um dente-de-leão para levar junto de si, bem na ponta de seu bico. Mais que tudo, o vento nos sopra, ainda. E eu existia ainda.

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