
PSICANÁLISE
Sérgio Prudente
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Sérgio Prudente
Série
Dor e Existência
Vergonha e a política do afeto: uma contraexperiência
© 2025 Sérgio Prudente
Editora Edgard Blücher Ltda.
Série Dor e Existência, organizada por Cibele Barbará, Miriam Ximenes Pinho-Fuse e Sheila Skitnevsky Finger
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia
Produção editorial Ariana Corrêa e Andressa Lira
Preparação de texto Ana Maria Fiorini
Diagramação Thaís Pereira
Revisão de texto Rodrigo Botelho
Capa Laércio Flenic
Imagem da capa Sérgio Prudente
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.
Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570
Prudente, Sérgio
Vergonha e a política do afeto : uma contraexperiência / Sérgio Prudente. – São Paulo : Blucher, 2025.
336 p. : il. – (Série Dor e Existência / org. Cibele Barbará, Miriam Ximenes Pinho-Fuse e Sheila Skitnevsky Finger).
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2707-6 (impresso)
ISBN 978-85-212-2705-2 (eletrônico - Epub)
ISBN 978-85-212-2706-9 (eletrônico - PDF)
1. Psicanálise. 2. Freud, Sigmund, 1856-1939. I. Título. II. Série. III. Barbará, Cibele. IV. Pinho-Fuse, Miriam Ximenes. V. Finger, Sheila Skitnevsky.
CDU 159.964.2
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
CDU 159.964.2
Prefácio
1. A vergonha, que vantagem?
2. Eu: pecado enantiomórfico
3. O olhar e a vergonha
4. Repete-se: o ponto a partir do qual
5. Vergonha como contraexperiência do sujeito –Enlaces entre a vergonha e o proletário, no laço social 187
6. Da dor de existir ao buraco de onde jorra o significante-mestre
Outros títulos da Série Dor e Existência
A beleza é uma coisa terrível e espantosa. Terrível, porque indefinível, e não se pode defini-la porque Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas.
F. Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi1
É tomando essa provocação que tentei formular uma resposta cumprindo um horizonte em que a experiência de um sujeito na psicanálise só pode ser pensada em sua dimensão clínica, que não comporta uma simplória divisão entre dentro e fora, interior e exterior.
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan fala que o “avesso é assoante com a verdade”.2 Mas de que verdade se trata?
Da verdade que sustenta o discurso. Esta verdade é sempre semidita, há uma interdição que se coloca entre a produção e a verdade. Neste
1 Dostoiévski, F. M. (1971). Os irmãos Karamázovi. Abril Cultural. (Trabalho original de 1881).
2 Lacan, J. (1992). O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise. Jorge Zahar, p. 57. (Trabalho original de 1969/1970).
sentido, a verdade interdita é a de um mestre castrado e que, por isso, não garante a identidade ôntica do sujeito, sua estabilidade narcísica. Em decorrência da divisão/castração do sujeito, vem sua vergonha, ou seja, a vergonha de não somente ser castrado, mas também a vergonha de um Outro barrado.
Lacan joga com a assonância dos significantes avesso e verdade, que é imperceptível em português, mas marcada na língua francesa nas palavras envers e verité.3 Nesse sentido, a forma como a falha na imagem de si engendra uma entrada no simbólico, tornando-se significante que bascula entre uma imagem de brilho fálico e uma imagem castrada. Para isto, é necessário considerar um percurso mediante o avesso da imagem, passando por uma individuação da imagem de si como separação do Outro, mas que, ao situar-se em relação a este campo, o afirma, ou seja, aliena-se a ele. Assim, tanto a imagem especular quanto o eu do sujeito se constituem e se dão a ver em uma relação íntima com a frustração de uma identificação dessa imagem com a castração imaginária (-φ). Esta será a marca de uma impostura estrutural que oscilará, através da imagem de si, entre os polos da insuficiência (castrado, não ser e não ter) ao polo de ter o falo.
É ao apontar para o buraco que propus que a vergonha pode fazer frente ao discurso do capitalista por meio da efetivação da singularidade como traço distintivo do significante-mestre; em outras palavras, a vergonha sinaliza e marca um modo singular de gozo à revelia do empuxo à homogeneização do mercado. Nesse sentido, ao conceituar e localizar a vergonha escolhi privilegiar três dimensões principais: a imagem, o objeto e os discursos. Esses três caminhos foram abordados pelo avesso, ou melhor, retomando a psicanálise pelo avesso (l’envers et verité).
3 Ibid., p. 227, n. 13 do tradutor.
Portanto, a estratégia é perseguir na estrutura o que é inassimilável no significante, ou seja, um discurso sem palavras. Seguir o avesso é apontar para a relação intrínseca entre pecado, objeto, significante, discurso e gozo.
Nos últimos anos imergimos em uma situação política cujo horizonte apresenta muitas características, dentre as quais recortei aqui uma espécie de exibição do ridículo cujo olhar parece não ter mais um efeito de castração nisso que se apresenta ao espetáculo do mundo.
As redes sociais enquadram e dirigem a cena que comporta uma ligação comum; esta retroalimenta a estética do tosco e capitaliza o dismorfismo psicológico, disciplinando corpos e tornando palavras projetos na direção de um inimigo no qual se localiza a própria identidade como oposição dentro de uma rivalidade e de uma disputa. É nesse sentido que questiono: há uma falta de vergonha?
A vergonha nos interroga sobre os limites do intolerável. Esse intolerável comporta tanto a falha na imagem de si mesmo (e sua qualificação) quanto atos e ações aos quais nos identificamos. Logo, quando o intolerável passa por alguma saturação, corremos o risco de nos identificarmos com ele, devido a sua presença recorrente.
Ou seja, aquilo que Laclau4 chamou de significante vazio forma uma unidade a partir de uma cadeia de equivalência diferencial, que alinha demandas preexistentes reunidas em conjunto. O intolerável é qualidade daquilo que na imagem passa ao significante como inassimilável e espantoso. Logo, o intolerável tem o poder de unir as pessoas de um certo grupo, a partir de uma positivação da
4 Laclau, E. (2013). A razão populista. Três Estrelas.
identidade por oposição àquilo que um grupo elege como contraponto ao intolerável.
Da mesma forma que Lacan faz o questionamento “a vergonha, que vantagem?”, Dunker o faz sobre o tosco: “pra que serve?”.5 Convergência que não é à toa, pois indica esse espetáculo público, que Feldman chamou de “apelo realista”, em que se aponta para uma espécie de transparência irrestrita da realidade, onde representações se mostram a partir de uma proposta de verdade sem versões, no campo político, por meio da impressão de autenticidade das imagens amadoras.6 Assim, o apelo realista fala de uma eliminação da distância entre a experiência e a mediação, hoje sob a tag retórica de “narrativa”. Portanto, “aqui se mostra! Aqui está tudo claro!”. Como resultado, temos um simulacro de um espetáculo que não mais simula, que agora mostra a vida real, verdadeira, realidade da experiência de pessoas “de verdade”.
O espetáculo do tosco é um desdobramento do que Foucault chamou em Os anormais de poder ubuesco.7 Este poder nos permite interrogar sobre a razão pela qual um néscio chega a lugares de poder e liderança ou até mesmo a uma presidência da República. Isso seria um desdobramento de uma despolitização que parte de uma
5 Dunker, C. I. L. (2019). Ensaio sobre o “Tosco Brasileiro” na Filosofia e nas Artes. Arte Brasileiros. https://artebrasileiros.com.br/opiniao/carteiro-do-inconsciente/ensaio-sobre-o-tosco-brasileiro-na-filosofia-e-nas-artes/
6 Feldman, I. (2008). O apelo realista. FAMECOS, 15(36), 61-68. https://doi. org/10.15448/1980-3729.2008.36.4416.
7 O termo “ubuesco” é inspirado na peça “Ubu Rei” (Ubu Roi). Escrita por Alfred Jarry em 1896, é uma obra teatral satírica e absurda que critica o poder, a ganância e a estupidez humana. O protagonista, Pai Ubu (Père Ubu), é uma figura grotesca e caricatural, simbolizando a corrupção e o autoritarismo. A peça é uma paródia de tragédias clássicas, especialmente Macbeth, de Shakespeare, mas com um tom exagerado e burlesco. Ela inaugura o espírito do teatro do absurdo e influenciou profundamente movimentos artísticos como o dadaísmo e o surrealismo.
A sutileza da vergonha. – Os homens não se envergonham de pensar coisas sujas, mas ao imaginar que lhes são atribuídos esses pensamentos sujos. F. W. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 841
O erotismo articula o eu ao Outro, pois é o simbólico que consiste no sistema estrutural de leis que definem a forma como o outro pode aparecer para os sujeitos: “O eu é um objeto particular dentro da experiência do sujeito. Literalmente o eu é um objeto – um objeto que preenche uma certa função que chamamos aqui de função imaginária”.2
Mas as formas definidas pelo Outro não são garantias de estabilidade e encaixe entre o eu e o corpo. A experiência física de mudanças corporais, e a história vivida como sucessão cronológica
1 Nietzsche, F. W. (1998). Humano, demasiado humano. Companhia das Letras. 2 Lacan, J. (1985). O seminário, livro II: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (p. 63). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1954/1955).
e sínteses autobiográficas, recoloca a estranheza em que o eu perde identidades. Eus passam a ser outros nos quais não mais me reconheço. A errância da identidade esvazia a consistência imaginária do eu e produz angústia.
Como aponta Heidegger, o princípio de identidade fala de igualdade, ou seja, A é ele mesmo. Para o filósofo alemão, a fórmula mais correta seria: “consigo mesmo é cada A ele mesmo o mesmo”,3 em que em cada identidade reside a relação “com”, que consiste em uma mediação que forma uma síntese em uma união ou unidade. Logo, pelo princípio de identidade, a igualdade dos dois termos não se encaixa na leitura de que um é espelho do outro. Por essa via, temos um problema. Há uma contradição entre o eu e [eu] no estádio do espelho, na medida em que, por uma certa diplopia,4 se tenta fazer entrar esse eu no [eu]. Assim, A seria um outro, pois o seu reflexo aparece invertido e simétrico, pelo princípio do enantiomorfismo.5
Pelo princípio de identidade, o [eu] seria ele mesmo, o mesmo, não um outro. No entanto, pelo princípio do estádio do espelho, a relação com a identidade comporta uma ilusão que podemos localizar na imagem virtual formada pelo espelho côncavo, que organiza o vaso e as flores e que é refletida como imagem real no espelho côncavo, se transformando na imagem enantiomorfa, duplo simétrico invertido da imagem virtual, que pode ser captada pelo olhar no cone. É esta imagem que sofrerá a transformação da palavra, que formará o Ideal de eu.
3 Heidegger (1957-1971). Identidade e diferença (1957). In Que é isto – A filosofia?: identidade e diferença (E. Stein, Trad., p. 50). Livraria Duas Cidades.
4 Lacan, op. cit., p. 62.
5 Enantiomorfismo consiste na simetria da imagem de dois objetos que não se sobrepõem. É o nome “ambulância” escrito ao contrário, mas que aparece correto no espelho. É a mão direita e esquerda, que, apesar de semelhantes, não se sobrepõem.
Assim, ao recorrer à frase “eu é um outro”, marco um desencontro que não é só o do imaginário, mas também do simbólico. A lógica formal da nossa razão/consciência segue o princípio de identidade que coloca o eu como: diferença do outro, igual a si, ou diferente de forma absoluta. É neste sentido que o universal se institui como valor de verdade, pela razão, como um páthos da verdade.6 No entanto, desde Freud,7 o eu não é senhor de sua própria casa. Para Lacan, o eu não é uma função autônoma, mas uma “função de desconhecimento é o que ele é na análise, como aliás, numa grande tradição filosófica”.8
A tensão entre identidade e diferença mantém as identificações como um processo dialético. Ao afirmar que o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência, Lacan aponta para o que, na clínica psicanalítica, encontra-se como contradições que são tidas como “pensamentos errados”, ou “identidades inadequadas”, na medida em que há uma invalidez da proposição destes, por não fazerem parte da formalidade racional. O que é tido como oposições, contrários ou diferenças aparece no inconsciente como metáforas e metonímias. É esta dinâmica subversiva do desejo que constitui o seu descerramento ao universal.
Assim, o que constitui o eu não é a sua “mesmidade”, mas a inadequação excluída pela estabilidade lógico-formal da razão, via linguagem. O “eu é um outro” nos coloca esse sobressalto ilógico
6 Nietzsche (sobre a verdade e a mentira) chamou de páthos da verdade essa ilusão que afasta o humano do mundo real e presente para colocá-lo em uma eternidade e universalidade.
7 Freud, S. (1917/1996). Conferência XVIII: fixação em traumas – o inconsciente, 1917. In S. Freud, Conferências introdutórias sobre psicanálise (continuação). Imago, (p. 281-292). (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 16).
8 Lacan, J. (1979). O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (p. 78). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1953/1954).
de uma proposição que resiste à identidade uniforme e estável, sem deixar de contê-la. Assim, este eu que é um outro contém a alteridade e a “mesmidade” em constante contradição, em um movimento estabilizado pelo ponto de estofo da identidade. Identidade e contradição que se movem a partir da questão: que queres de mim? (Para que eu seja!).
Rimbaud9 brinca com a lógica e a gramática para, a partir de uma pequena frase, nos fazer sentir o estranhamento do desencaixe do eu do sujeito que pensa a partir de onde não é. É neste sentido que o imaginário é ocupado pela palavra, abrindo para uma possibilidade de brincar com a experiência instável do presente, como nos diz Manuel de Barros: “Poesia é ocupação da palavra pela Imagem/ Poesia é ocupação da Imagem pelo ser”.10
Quando a imagem ocupa a palavra, a lei se institui como condição para o sujeito. É o que Lacan chamará, na década de 1970, de discurso do mestre. Mas a lógica da lei é sempre subvertida, às vezes pervertida ou foracluída, pois as contradições retornam inexoravelmente. Por isso, o eu sempre será eus diferentes de acordo com contingências históricas.
Portanto, o “eu é um outro” denota a contradição constitutiva do sujeito, pois comporta a contradição inerente à própria imagem, reflexo (imagem real) invertido de uma imagem virtual, que ocupa a palavra. O Outro é condição de um ser que encerra em si mesmo o seu inverso. Neste sentido, o “eu é um outro” de Rimbaud pode
9 Em carta datada de 13 de maio de 1871, à Georges Izambard, Rimbaud faz o seguinte comentário: “É incorreto dizer: Eu penso: deveríamos dizer pensam-me. – Desculpe pelo jogo de palavras. Eu é um outro. Uma pena para a madeira que se descobre violino e às favas os inconscientes, que tagarelam sobre o que ignoram completamente!”. (Rimbaud, A. (2009). Correspondência (I. Barroso, Trad.). Topbooks.).
10 Barros, M. de. (1991). Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave (p. 28). Civilização Brasileira.
O olhar é esse avesso da consciência. Lacan, O seminário, livro XI1
Sartre é uma incontornável referência para o tema da vergonha. É também um autor que travou um importante debate com a psicanálise. Em Sartre, recorto a primeira alusão que Lacan faz à vergonha.
Em O seminário I, Lacan alude ao capítulo de O Ser e o Nada em que Sartre nos fala sobre a vergonha: “Toda fenomenologia da vergonha, do pudor, do prestígio, do medo particular engendrado pelo olhar, está aí admiravelmente descrita, e eu os aconselho a se reportar a isso na obra de Sartre”.2 E conclui, ainda com Sartre, em 1964, dizendo
1 Lacan, J. (1998). O seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Jorge Zahar. (Trabalho original de 1964).
2 Lacan, J. (1979). O seminário, livro I: os escritos técnicos de Freud (p. 246). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1953/1954).
que: “O olhar se vê – precisamente esse olhar de que fala Sartre, esse olhar que me surpreende, e me reduz a alguma vergonha, pois que é este o sentimento que ele esboça como o mais acentuado”.3
A descrição da vergonha feita por Sartre em O Ser e o Nada: “Tenho vergonha de mim frente ao outro, dizíamos . . . Mas o outro não é objeto da vergonha: os objetos são meu ato ou minha situação no mundo”,4 temos algo que do ato se transforma na mácula da imagem. Esse ato gruda no Ser do sujeito, de modo que ele passa a ser o próprio sujeito que, simplesmente, o experimenta, o atua, no modo do para-si. Sartre escreve: “Mas, de repente, levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha”.5
O olhar é o elemento crucial na linha de pensamento sartreana sobre a vergonha, pois situa uma relação primordial com a alteridade. Para Sartre, o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao Outro.6 Nesse sentido, é na aparição para o Outro que o juízo sobre si, como objeto, pode ser formulado. É o momento de reconhecimento de si situado pelo olhar do Outro.
Em sua primeira grande obra de filosofia, O Ser e o Nada, Sartre aborda a problemática das relações com o outro por meio do questionamento das dinâmicas intersubjetivas, do reconhecimento e do problema entre o ego7 e o Outro. Suas teorizações que convergem para o olhar e a vergonha alinham-se a uma crítica ao problema
3 Lacan, op. cit., p. 84.
4 Sartre, J.-P. (2013). O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica (P. Perdigão, Trad., p. 350). Vozes. (Trabalho original de 1943).
5 Ibid., p. 289.
6 Ibid., p. 290.
7 Neste tópico sobre o Olhar em Sartre optei por manter a palavra ego, pois é assim que está presente na tradução para o português de O Ser e o Nada utilizada neste trabalho.
do solipsismo. De maneira geral, a ideia central do solipsismo é a de que “só eu existo e de que todos os outros entes (homens e coisas) são apenas ideias minhas”. Para Wittgenstein, um dos nomes fortes do solipsismo, os limites do mundo são os próprios limites da linguagem, tese que Lacan critica em O seminário 17, o qual, curiosamente, ele conclui falando sobre a vergonha.
O que está em jogo aí é a prova da existência do outro como instância alter da qual podemos apreender outras, e a existência de outras consciências.
Tal problema já é abordado de modo consistente desde Hegel, passando por Husserl e Heidegger.8 Mas Sartre introduz a questão da experiência do outro como aspecto fundamental para refutar o solipsismo. A experiência do outro que é dada essencialmente pelo olhar e pela vergonha. Para tanto, Sartre formula uma fenomenologia do olhar, tendo como sentimento principal a vergonha.
Para Sartre, somos seres olhados. Isto não nos reduz a olhos que nos acompanham todo o tempo. Este olhar é muito mais uma aparição de uma forma sensível em nosso campo de perspectiva, ele é uma convergência de olhares. Se para Sartre a vergonha refuta o solipsismo, e isto se dá pelo inquestionável sentimento da presença do Outro, por ela, questiono: como a vergonha se manifesta? A via pela qual Sartre responde a esta pergunta é a do olhar. Com a fenomenologia do olhar, Sartre, em consonância com sua tese de que a existência precede a essência, entende que um ente não se define a partir de uma essência ou por propriedades objetivas ou características. Um ente se define pela sua relação a si no tempo, com suas possibilidades de Ser manifestadas no presente.
Neste sentido, as existências, na medida em que se reconhecem e se cruzam, são, sobretudo, um cruzamento de olhares. Ao falar de
8 É especificamente com esses três filósofos que Sartre dialoga em O Ser e o Nada.
olhar, Sartre não se refere ao órgão, ou seja, o olhar não é o olho. Ele apresenta um caráter incorpóreo, opondo-se ao corpo sem deixar de tê-lo como suporte necessário. Olhar e olho são partes contidas no corpo.
Ao olhar, posso apreender o olhar do outro, ou posso somente perceber seus olhares como partes de um corpo. Assim, ao olhar nos olhos de alguém, o olhar do outro escapa ao sujeito, pois o olhar pode não se concentrar nos caracteres objetivos do órgão olho como a cor, a retina, a forma etc. “De modo algum o Outro nos é dado como objeto. A objetivação do Outro seria o colapso de seu ser-olhar. Por outro lado, como vimos, o olhar do Outro é a desaparição mesmo dos olhos do Outro como objetos que manifestam o olhar”.9
É por isso que existe um caráter invisível no olhar, que Sartre assinala pela ubiquidade com a qual sentimos a presença do olhar no espaço, mesmo quando não temos um olho nos mirando.
O incorporal do olhar apresenta uma estrutura especular, isto é, como nos espelhos, cuja invisibilidade não está na transparência, mas na propriedade de reflexão do mundo. Neste sentido, o olhar também é especular, pois há nele algo que nos faz experimentar a presença de um Outro. Todavia, o que o sujeito vê pelo olhar do Outro, imagem especular recebida do Outro, é o próprio sujeito visto e avaliado pelo Outro:
O olhar que os olhos manifestam, não importa sua natureza, é pura remissão de mim mesmo. O que capto imediatamente ao ouvir o ranger de galhos atrás de mim não é a presença de alguém, mas o fato de que sou vulnerável, tenho um corpo que pode ser ferido, ocupo
9 Sartre, 2013/1943, p. 345.
Quando da treva dos enganos
Meu verbo cálido e amigo
Ergueu a tua alma caída, E, plena de profunda mágoa, O vício que te envolvera; Quando açoitaste com a lembrança
A consciência que olvida, E me fizeste o relato De tudo o que houve antes de mim, E, de repente, o rosto oculto, Repleta de vergonha e horror, Tudo desabafaste: um pranto De indignação, de comoção…
N. A. Niekrassov1
1 Dostoiévski, F. M. (2004). Memórias do subsolo (p. 55). Editora 34.
A repetição é um aspecto da teoria psicanalítica importante para entendermos a característica estrutural da vergonha. A vergonha é estrutural por incidir como um sintoma impedidor no cotidiano das pessoas, ou como um ponto limite de ações. Consideramos que o texto fundamental sobre repetição na obra freudiana é Recordar, repetir e elaborar. 2 Nele, a dimensão clínica do conceito é observada na prática. Freud contrapõe repetição e recordação ainda na esteira do tratamento hipnótico. A catarse e a hipnose serviam para uma terapêutica que tinha a recordação e a ab-reação dos afetos como eixo. Freud comenta que, nos tratamentos hipnóticos, o processo de recordar se dava de forma muito simples. O paciente voltava para uma situação anterior, sem confundi-la com a atual, relatando os pensamentos que pertenciam a ela, na medida em que permaneciam normais. A isso era acrescentado o que surgia no processo de transformação dos processos que, antes inconscientes, passaram à consciência.
Recordar e ab-reagir eram a direção da cura nessa fase do tratamento psicanalítico. Ela visava à reprodução de componentes psíquicos que produziam o sintoma, para assim esvaziá-lo de afeto na descarga ab-reativa. No entanto, Freud descobriu que havia uma força impeditiva no processo, uma resistência ao tratamento que o fez repensar sua prática. Podemos, resumidamente, dizer que foi esse o elemento que o levou a progredir da hipnose e da catarse para a associação livre.
A resistência foi tomada por Freud como um elemento útil ao tratamento. Ela deveria ser interpretada para o paciente, que, ao conhecê-la, poderia ter avanços em sua análise. A atualização da técnica permitiu a Freud concluir que o paciente não recorda, necessariamente, do que esqueceu, mas atua-o (acts it out), reproduzindo
2 Freud, S. (1969). Recordar, repetir e elaborar. In ESB, vol. 12. Imago. (Trabalho original de 1914).
como ação, em repetição, sem saber o que está repetindo. Logo, não se trata de uma lembrança, mas de uma repetição em ação.
Portanto, o que se recorda é o que pode ser lembrado. Como força contrária, a repetição é o acting out das forças psíquicas recalcadas e atualizadas na análise. É por isso que Freud considera a resistência da repetição como um elemento útil para o tratamento, pois se na hipnose ela era posta de lado em um atalho que ia direto aos processos mentais envolvidos na formação do sintoma, com a análise das resistências temos a possibilidade de identificar e interpretar resistências que devem ser conhecidas pelo paciente. Com isso, Freud inclui uma dobra temporal que antes não era levada em conta, ou seja, o presente de uma fala que está vinculado a acontecimentos do passado e que se expressa na resistência. Assim, quanto maior a resistência, mais o acting-out irá substituir a rememoração, já que a recordação ideal, como na hipnose, implica uma anulação completa da resistência.
Freud liga a repetição à transferência. Como um “passado esquecido”, a transferência atualiza “séries psíquicas” ou “clichês estereotípicos”3 presentes no paciente. A repetição, ao atualizar esses componentes do psiquismo, traz à tona o que não podia ser recordado, mas que influencia diretamente situações da vida do paciente. Quanto mais intensa a transferência, então, menos se recorda e mais se repete e resiste. A repetição é, deste modo, uma força das pressões do presente que está ligada ao passado, mas que impede a sua recordação.
Uma outra forma de ler Freud pode ser encontrada pela lente lacaniana. Para Lacan, Recordar, repetir e elaborar aponta para o limite do Real. Existe um eixo em volta do qual a repetição segue
3 Freud, S. (1969). Dinâmica da transferência (p. 134). In ESB, vol. 12. Imago. (Trabalho original de 1912).
tangenciando o irrepresentável que a recordação coloca insuficientemente em palavras. Assim, o ato de recordar deixa furos que não são preenchíveis pelo simbólico, mas que podem ser retomados por fragmentos mnêmicos que, no real, produzem significantes. Recordar e repetir são coisas distintas. A repetição, agora, é presentificação em ato, pois ela não aparece de forma clara, como uma reprodução de algo. Como ato, a repetição comporta uma interrogação que a coloca em relação ao real.
Em Lacan, temos uma perspectiva de repetição que está diretamente ligada ao objeto a. O resto encarnado no objeto a é o que fica fora da cadeia significante, mas agindo como o ponto que a linguagem irá sempre tentar metabolizar. O objeto a é a própria negação interna do sistema da dialética do desejo. A fantasia estabiliza conflitos pulsionais internos a partir desses restos que formam o objeto a, causa do desejo. Entretanto, sempre resta algo desses objetos, aspecto que os torna sublimes e fascinantes. O fascínio do objeto a se dá pelo fato de ele ser objeto do desejo, mas, ao mesmo tempo, um objeto aterrorizante, por possuir um traço próprio do sujeito como objeto a. Esse traço identificatório eleva o objeto à dignidade da Coisa, mas, também, homogeneiza a fantasia. Decorre da fantasia a produção de uma exceção que fixa o elemento faltante para o universal que ela promete. Isto que falta é o próprio sintoma que, como negação interna, carrega dentro de si as propriedades formais da fantasia da qual se origina. É atrás da forma da fantasia sustentada pelo objeto que se esconde o mistério, a saber, o vazio da própria forma – de gozo – encoberta pelo a.
É neste sentido que Fink4 observa que a repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar. Pelo pensamento,
4 Feldstein, R., Fink, B., & Jaanus, M. (Orgs.). (1997). Para ler O seminário 11 de Lacan: os quatro conceitos fundamentais em psicanálise (D. D. Estrada, Trad.; p. 241). Jorge Zahar.
o proletário, no laço social
O diabo é quem sabe de tudo. O coração acha beleza até na vergonha, no ideal de Sodoma, que é o da imensa maioria. Conheces esse mistério? É o duelo do Diabo e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha.
F. Dostoiévski, Os irmãos Karamázovi1
Até aqui notamos que a vergonha é parte fundamental de uma relação com o Outro, com seu olhar e avaliação. Por isso, podemos concebê-la, necessariamente, como um efeito do laço social e do discurso. É no final do seminário O avesso da psicanálise que Lacan, ao passar pela sua teoria dos discursos, chega à vergontologia (hontologie). Lacan destaca uma vergonha de viver que é a vergonha “daquilo que não merece a morte”. Nesse momento do seminário, Lacan apresenta estes dois aspectos, em que podemos observar uma questão que a princípio pode parecer um paradoxo, mas que
1 Dostoiévski, F. M. (1971). Os irmãos Karamázovi. Abril Cultural. (Trabalho original de 1881).
se desenrola em uma tese bastante crítica à subjetividade do sujeito contemporâneo – tese cuja sustentação encontra-se na vergonha.
Do que trata esse aparente paradoxo?
Por um lado, Lacan sustenta que a vergonha de viver é produzida pelo que denominou “discurso do mestre pervertido”.2 É uma vergonha contemporânea, situada historicamente, pois é resultado do discurso do mestre moderno. Todavia, ficamos diante da constatação do próprio Lacan de que “não há mais vergonha”.3 Isto nos leva a crer que a vergonha de viver, produzida pela versão moderna do discurso do mestre, afeta de forma contraditória este sujeito, aparentemente sem-vergonha. Esta vergonha assume a forma de uma espécie de arrogância defensiva.
Cabe aqui uma breve digressão a respeito do que chamamos de subjetividade do sujeito contemporâneo. Tomamos como princípio a diferenciação que Askofaré4 faz entre sujeito e subjetividade. Por sujeito Askofaré entende, em sua leitura da obra de Lacan, a estrutura que sustenta a fala, ou seja, o falasser. Este sujeito é efeito do significante, suporte material da função da fala; é por isso que, enquanto houver fala, haverá sempre sujeito. Já por subjetividade Askofaré entende “uma forma histórica e determinada de traços, de posições e de valores que os sujeitos de uma época têm em comum, em suas relações com o Outro, como discurso”.5 Portanto, nas formulações que se seguirão no presente capítulo, ao falarmos de subjetividade do sujeito contemporâneo, estaremos nos referindo ao efeito do significante que sustenta a fala em um sujeito historicamente situado
2 Lacan, J. (1992). O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise (p. 194). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1969/1970).
3 Ibid., p. 193.
4 Askofaré, S. (2009, jan./jun.). Da subjetividade contemporânea. A Peste, 1(1), 165-175.
5 Ibid., p. 170.
em nosso contemporâneo, com suas contingências e “traços, posições e valores”.
Para nos auxiliar a entender a arrogância, recorreremos ao texto Sobre a arrogância, de W. R. Bion. O argumento de que a subjetividade do sujeito contemporâneo apresenta esta qualidade se sustenta na forma de uma indiferença em relação a seu próprio mal-estar e à respectiva atribuição deste ao outro: “o paciente dá a impressão de não ter problema algum a não ser a existência do próprio analista”.6
Outro aspecto é a impossibilidade criativa que surge a partir de um par frustrado, ou seja, da relação frustrada com o outro, há uma implicação criativa que se expressa pela comunicação mutilada: “analista e paciente formavam um par frustrado . . . o próprio paciente notou que o método de comunicação estava mutilado a tal ponto que era impossível o trabalho criativo”.7 Bion ressalta o sentimento do paciente de estar “barrado em seu intento de estabelecer um contato criativo”.8
Diante disso, Bion encaminha-se para uma conclusão interessante: a de que ele, como objeto perseguidor, para seu paciente, “não conseguiria aguentar aquilo”, não poderia permitir qualquer relacionamento criativo. Este “aquilo” é a própria relação, um laço em que o paciente podia colocar tanto sensações más quanto partes boas no analista, ou seja, para seu paciente, Bion era um “objeto ideal”. Mas até esta conclusão, a arrogância era um sintoma de uma
6 Bion, W. R. (1994). Sobre a arrogância (p. 103). In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original de 1958).
7 Ibid., p. 105.
8 Ibid., p. 106.
força obstrutora que, diante da curiosidade, fazia o paciente recuar para preservar um objeto que não suporta suas projeções.
Notemos que nessa apresentação da arrogância existem elementos que nos servem de prólogo de nossa perspectiva no que diz respeito à precariedade do laço, à impressão de que não há problema, à comunicação mutilada, à criatividade embotada, ao sentimento de ser barrado e à relação tensa com um objeto ideal.
Voltando à vergonha, mas ainda com Bion, temos a diferenciação entre personalidades em que predomina o instinto de vida e nas que predomina o instinto de morte. Na primeira, o orgulho se converte em respeito a si; na segunda, o orgulho se converte em arrogância.9 É interessante apontar que o respeito a si nos abre uma dimensão de entendimento que comporta um aspecto social do ser em um campo de reconhecimento autenticado no respeito espelhado ou encarnado no semelhante. Em contrapartida, a arrogância parece desfazer esse laço por meio do orgulho que relega ao semelhante a condição de objeto.
É neste sentido que nos lembro da diferenciação que Marcus
André Vieira10 faz entre pulsão de vida e pulsão de morte. Para Vieira, o Outro social é o espaço do que Freud chamou de pulsão de vida. Ele nos lembra de que a pulsão de vida “não é definida como impulso vital, mas como reino das identidades, sempre coletivas, sempre tendendo à ‘formação de agregados’”. Já na pulsão de morte impera uma forma mais disforme do sexual, um aspecto enlouquecido da pulsão, em que ela age desenfreada, mortífera e sempre com vontade de mais. A vida, então, seria a articulação
9 Ibid., p. 101.
10 Vieira, M. A. United Symptoms (ou A felicidade do sintoma: do ideal ao consenso). http://www.litura.com.br/artigo_repositorio/united_symptoms___a_felicidade_do_sintom_1.pdf
Por que morrer, tal havia sido a sua astúcia para dar ao nada um corpo. No momento em que tudo se destruía, ele tinha criado o mais difícil, e não tirar alguma coisa de nada, acto sem alcance, mas dera ao nada, na sua forma de nada, a forma de alguma coisa. O acto de não ver possuía agora o seu olho integral.
M. Blanchot, Thomas o Obscuro1
Ao falarmos da diferença, remetemo-nos ao “cartão de visita pelo qual um significante representa o sujeito pra outro significante”,2 cartão que traz a marca do S1 e que engendra o que Lacan chamou de vergontologia (hontologie). Mas o que torna a vergonha da vergontologia um afeto específico da singularidade?
1 Blanchot, M. (2021). Thomas o obscuro (M. de Freitas, Trad.). E-Primatur.
2 Lacan, J. (1992). O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise (p. 191). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1969/1970).
A vergonha que põe em jogo o “cartão de visita”, o “ser para morte”, coloca em xeque o afeto de ex-sistir e, com isso, concerne ao campo do “cruzamento do pequeno a com o que do significante se define como ser”.3 Portanto, quando falamos de uma vergontologia, referimo-nos a algo que podemos incluir na vergonha de viver, algo da ordem da dor de existir, que aponta para o buraco do real.
Lacan não evoca explicitamente uma vergonha ligada ao afeto de ex-sistir. Ele nos fala, na verdade, de uma dor de existir 4 e de um afeto de existir.5 A existência propriamente dita afeta o ser falante na ocasião da vergonha e frequentemente na dor. Essa dor real é notável se considerarmos, como Vieira6 apontou, o fato de Lacan jamais ter mencionado algo que pudéssemos conceber como oposto a ela, isto é, um prazer de existir. Com a dor de existir no sujeito da mais-valia que acabamos de ver, passamos ao que Lacan chamou de menos-valia subjetiva, 7 ou seja, a posição subjetiva do “ser em falta”.
Em A interpretação dos sonhos, Freud nos traz o sonho do homem que, após a morte do pai, sonha que ele estava vivo de novo. Isto acontecia em uma conversa usual, que foi marcada pela constatação justamente de que ele havia, de fato, morrido, mas não sabia. Para Freud, o sonho só se torna inteligível se: após as palavras “mas ele havia realmente morrido”, inserirmos “em consequência do desejo do sonhador”, e se explicarmos que o que “ele não sabia” era que o sonhador
3 Lacan, J. (1974/1975). R.S.I. O seminário, aula de 21 jan. 1975. (Inédito).
4 Cf. Seminário 6 e Kant com Sade.
5 Lacan, op. cit.
6 Vieira, M. A. (2001). A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Jorge Zahar.
7 Lacan, J. (1958/1959). O seminário, livro VI: o desejo e sua interpretação (p. 132), aula de 7 jan. 1959. (Inédito. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre).
tivera esse desejo. Enquanto cuidava do pai, o filho desejara repetidamente que ele morresse, isto é, tivera o que, a rigor, era um pensamento piedoso, no sentido de que a morte poderia pôr termo aos sofrimentos dele.8
A sentença “em consequência do desejo do sonhador” marca tanto a interpretação do sonho quanto a realização do desejo, que Freud destaca ao falar que o que “ele não sabia” era que o sonhador tivera esse desejo. O “ele não sabia” marca um nonsense cuja ambiguidade cria um paradoxo sem realidade factual, pois podemos imputar o “não sabia” tanto àquele a quem é atribuído (que seu pai havia morrido) quanto ao próprio sujeito em sua ignorância.
Lacan9 observa que o sujeito é a posição do outro subjetivo, um “ser em falta”. O “estar morto” conserva o ser em falta no paradoxo dessa posição simbólica em que não há ser do ser, ou seja, afirmar que o pai está morto o imortaliza. No entanto, a sentença de que o pai havia morrido não aponta simplesmente para a sua condição de ser morto, ela indica, sobretudo, o sujeito como aquele que não sabe. É nesta ignorância que ele se situa diante do Outro.
É na ignorância do sujeito que não sabe que Lacan localiza a significação do sonho desse sujeito e a natureza do que ele experimenta como dor da existência, na medida em que “ela subsiste no limite, nesse estado em que mais nada é ainda apreendido, o fato do caráter inextinguível dessa mesma existência e a dor fundamental que acompanha quando todo desejo se apaga nela, quando todo desejo se desvaneceu”.10
8 Freud, S. (1969). A interpretação dos sonhos (p. 456). In ESB, vols. 4 e 5. Imago. (Trabalho original de 1900).
9 Lacan, op. cit.
10 Ibid., p. 133.
Lacan coloca a ignorância como uma noção dialética na forma de uma espécie de marcha da “consciência” (Aufhebung), na direção de um saber sobre o desejo que é só encontrado a posteriori, mas que já está lá desde o começo. A verdade sobre a verdade, viria ao final depois de superações. Para isso, o sujeito precisa colocar em questão a referência à verdade. A ignorância sobre o desejo está em contraposição a uma verdade sobre ele. Para isto, é preciso se engajar em uma busca por essa verdade. Sem isso, não haveria nem mesmo realidade ou aparência.
Este estado limite da dor de existir é o ponto de divisão em que podemos situar a questão da honra no caráter trágico do herói. Refiro-me aqui ao me phynai proferido por Édipo, o “verdadeiro ser-para-morte”, que coloca sobre a mesa o duplo limite de uma morte real arriscada e a morte preferida, que se apresenta sob um véu. É no triunfo da morte que Lacan11 lê, na tragédia de Édipo, a relação da ação com o desejo. Isto se dá no triunfo do ser-para-morte em que figura, na tragédia, a negação idêntica à entrada do sujeito no suporte do significante.
É neste sentido que é preciso engajar o sujeito em uma busca pela verdade, que começa quando ele constitui sua ignorância. A ignorância é o que é expresso no processo da Verneignung, que nesse ponto estático é o desconhecimento. Nesse sentido, a dor presente na dimensão trágica ultrapassa o serviço dos bens. É um ponto extremo em que se chega ao S1 para além de sua relação com outro significante, termo último de sua existência. É neste limiar do real que o gozo se inscreve como desaparecimento do desejo. É o que podemos ler em Antígona, em seu ato sustentado até as últimas consequências, para além do quadro seguro da fantasia, que poderia defendê-la por meio da garantia fantasmática do saber do desejo do
11 Lacan, J. (1988). O seminário, livro VII: a ética da psicanálise (p. 376). Jorge Zahar. (Trabalho original de 1959/1960).
A proposta de Prudente, anunciada já em sua introdução, não é somente uma revisão do afeto da vergonha na perspectiva da psicanálise de Freud e Lacan. Isso bem feito já seria interessante. Mas a ideia é sustentar mesmo uma tese: de que a vergonha é, nas palavras dele, “um afeto eminentemente social”.
Isso já diz o tamanho da empreitada: pensar e estabelecer a noção de vergonha na psicanálise lacaniana e sustentar todas as suas dimensões, a saber, sua operacionalidade clínica, sua vertente teórica – no que diz respeito à vergonha como afeto de constituição e na sua relação com a malha conceitual – e, ainda, como se torna um conceito central do modo de se pensar os fenômenos do laço social da psicanálise. Assim, este livro de Prudente segue da vergonha na clínica para chegarmos ao seu estatuto social.
Ivan Estevão
Psicanalista e Prof. Dr. da USP
