Sexualidade

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SEXUALIDADE O tumulto das diferenças

Organizadoras

Ana Clara Duarte Gavião

Ana Cláudia Zuanella Silvana Torres

Sexualidade: o tumulto das diferenças

© 2025 Ana Clara Duarte Gavião, Ana Cláudia Zuanella, Silvana Torres (Organizadoras)

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Juliana Midori Horie

Preparação de texto Ariana Corrêa

Revisão de texto e diagramação Equipe editorial

Capa Juliana Midori Horie

Imagem da capa Febrapsi Dep. de Divulgação

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Sexualidade : o tumulto das diferenças / organizadoras Ana Clara Duarte Gavião, Ana Cláudia Zuanella, Silvana Torres. São Paulo : Blucher, 2025

700 p. : il.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2614-7 (Impresso)

1. Psicanálise. 2. Orientação sexual. 3. Identidade de gênero. 4. Sexualidade e gênero – Psicanálise. I. Título. II. Gavião, Ana Clara Duarte. III. Zuanella, Ana Cláudia. IV. Torres, Silvana.

CDD 159 964 2

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise CDU 159.964.2

Conteúdo

Luiz Celso Toledo

1. Sexualidade, o tumulto das diferenças: de Freud à contemporaneidade 17

Maria Elizabeth Mori

2. Diversidade sexual e de gênero: desafios postos à psicanálise na contemporaneidade 33

Almira Correia de Caldas Rodrigues

3. 52 gêneros: guarda-chuvas para angústias identitárias? 47

Maria Thereza de Barros França

4. Sexualidade e gênero: indagações 65

Regina Elisabeth Lordello Coimbra

5. Conjecturas imaginativas e fatos 72

Celso Antonio Vieira de Camargo

6. A mente do analista e barreiras autísticas em pacientes neuróticos: uma mudança de paradigma 80

Celia Fix Korbivcher

7. Sobre o feminino 90

Claudio Castelo Filho

8. Homossexualidade à luz da psicanálise: uma reflexão 111

Philipe Almeida Spolti

9. Homossexualidade, homofobia e psicanálise: comentário 120

Patrícia Lima de Oliveira

10. Corpo e psiquismo da mulher na menopausa: um estudo psicanalítico 125

Úrsula Miotti

11. Tumultos da psicossexualidade, da feminilidade e da finitude

Comentários sobre o trabalho “Corpo e psiquismo da mulher na menopausa: um estudo psicanalítico”, de Úrsula Miotti (GEPSC) 141

Ana Clara Duarte Gavião

12. Quantas cores tem o arco-íris? 150

Luis de Paiva Silva

13. Diferenças anatômicas entre os sexos têm alguma coisa a ver com as identidades sexuais? 155

Augusto M. Paim, Ignácio A. Paim Filho

14. O corpo que habito: a singularidade das configurações psicossexuais 172

Lidia Queiroz Silva Magnino

15. Tumulto: tumor, dor, amor 183

Denise Lea Moratelli

16. Navegando nas marés das diferenças: tumulto, tormentos e tormentas 189

Nelson José Nazaré Rocha

17. Quero fechar o meu amor na mão: raízes do desejo e da sexualidade 196

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

18. As múltiplas dimensões de Édipo 204

Vera Lamanno-Adamo

19. Corações dilacerados: breve comentário de “As múltiplas dimensões de Édipo”, de Vera Lamanno Adamo 213

Maria Carolina Scoz

20. Sexualidade: o tumulto das diferenças – Que tumulto é esse? 223

Ângela Piva

21. Sexualidade: o bem-vindo tumulto das diferenças 231

Maria Cristina Garcia Vasconcellos

22. Sobre a bissexualidade: que tumulto é esse? 241

Daniela Bormann Vieira

23. Depois de Freud, o que mudou na sexualidade?

Gley P. Costa

246

24. Desde Freud, o que mudou na sexualidade 252

Marli Bergel

25. Identificação e introjeção: diálogo entre Freud e Ferenczi para a constituição do sujeito e das escolhas objetais

Osvaldo Luís Barison

260

26. Sexualidade infantil e bissexualidade nas análises com pacientes adultos: fantasias subjacentes 272

Maria Aparecida Sidericoudes Polacchini

27. Psicanálise e as neossexualidades 279

Heleny Silvia S. Romero

28. Identificações sexuais: caminhos do desejo 289

Jurenice Picado Alvares

29. Como lidamos com as nossas instituições? 301

Luiz Celso Toledo

30. (Homo)sexualidades e as instituições: entre teorias e silêncios 309

Hemerson Ari Mendes

31. Sexualidade na clínica: do instinto à pulsão 326

Bruno Salesio S. Francisco

32. Toda nudez ainda será castigada? 334

Berta Hoffmann Azevedo

33. Transferência (contratransferência) e sexualidade 343

José Francisco Rotta Pereira

34. Resumo do caso clínico Dora – Freud 1905 349

Juliano Romano Porto

35. Sobre o caso Dora 359

José Luiz Meurer

36. Sexualidade, gênero, sexo e o Sexual 363

Marilia Macedo Botinha

37. O Édipo simples e o Édipo complexo: algumas conjecturas sobre a complexidade na psicanálise

Renato Trachtenberg

368

38. Em torno da cena: sexualidade, arte e psicanálise 394

Magda Guimarães Khouri

39. Arte e sexualidade 404

Maria Bernadete Amêndola Contart de Assis

40. O masculino em turbulência 411

Sergio Eduardo Nick

41. A relação espectral tumulto ←→ harmonia, a construção do olhar e a possibilidade da palavra que toca o coração 422

Andreas Zschoerper Linhares

42. A mulher que não estava lá 436

Sonia Regina Saborido Gazziero

43. As múltiplas faces da sexualidade: entre o desejo, o pensamento e o inacabado. Um ensaio psicanalítico 443

Sérgio Seishim Kaio

44. Ilusões da igualdade: espelho e realidade 453

Márcio Antônio Johnson

45. O anatômico e o psíquico: do tumulto das diferenças às funções feminina e masculina da mente 461

Cleuza Mara Lourenço Perrini

46. Pornografia e subjetividade: reflexões psicanalíticas 474

Silvana Marta Santos Torres

47. Pensando em histórias que me contaram 484

Solange Luiz Caldas dos Santos

48. Buscas incessantes: o abrigar em mim e o habitar-se em si mesmo 490

Marina Vidal Stabile

49. Caso Dora: os tumultos da escuta 500

Ana Cláudia Zuanella

50. Identidade de gênero − sua importância na prática analítica: uma visão teórica 508

Rui Hansen de Almeida, Rosely C. Brajterman Lerner

51. Novas formas de subjetivação na clínica 519

Susana Salete Raymundo Chinazzo

52. Trans-adolescências: indagações a partir da clínica 530

Ana Maria Sabrosa Gomes da Costa Nogueira, Cassiane Crestani

Haydée Cortes de Barros Silveira Piña Rodrigues

Marcela Couto e Silva de Ouro Preto Santos, Maria Noel Brena Sertã

53. Bissexualidade e subjetivação 540

Fabio F. Lopes

54. Primeiro, não cause danos: reflexões adicionais sobre o distúrbio de identidade de gênero em crianças e adolescentes 552

David Bell

55. Sexualidades 568

Adalberto A. Goulart

56. Da neurótica ao inconsciente: a sexualidade na psicanálise 579

Maria Arleide da Silva

57. Constituição da sexualidade humana: visão a partir do bebê 586

Maria Cristina Dias

58. O tempo do paradoxo: sobre os sofrimentos de gênero na criança e no adolescente

Sandra Trombetta

591

59. Ensaio sobre os vínculos amorosos 603

Alirio Dantas Jr.

60. Perversão e poder 608

Valton de Miranda Leitão

61. Trauma, abusos sexuais e pedofilia 617

Sônia Maria Carneiro de Mesquita Lobo

62. As pesquisas sexuais em pessoas com síndrome de Down 626

Francisco Helder Lima Pinheiro Junior

63. Freud e Winnicott: cada qual no seu tempo

Fases do desenvolvimento infantil com aportes da Observação de Bebês-Método Esther Bick 642

Lúcia Moret

64. Édipo polimorfo precoce: fenômenos identitários, subjetivação e questões de gênero na contemporaneidade 654

David Léo Levisky

65. O amor e a sexualidade na velhice 673

Cláudio Laks Eizirik

Sobre os autores 685

1. Sexualidade, o tumulto das diferenças: de Freud à contemporaneidade1

Acredito que eventos da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), que antecedem os nossos congressos brasileiros, são essenciais para estimular o pensamento, colocando-nos em contato antecipado com o tema psicanalítico escolhido pela nossa Federação.

O artigo “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (Freud, 1925/2011) completa 100 anos, neste ano de 2025, quando ocorrerá o 30o Congresso Brasileiro. Após muitos anos de prática clínica e elaboração teórica – e com o aumento do número de colaboradores – Freud sente-se justificado a comunicar seu achado “universal”. Ele afirma: “alguns resultados da pesquisa psicanalítica, resultados muito importantes, se demonstraram universalmente válidos” (p. 284).

Minha proposta neste capítulo, portanto, é problematizar essa ousadia epistemológica freudiana – a afirmação de universalidade ao se tratar de seres humanos – para pensar a sexualidade hoje.

1 Grande parte deste capítulo foi apresentado em mesa homônima no Evento Preparatório para o 30o Congresso da Febrapsi – “Sexualidade: o tumulto das diferenças” –, realizado pela Sociedade de Psicanálise de Brasília, nos dias 24 e 25 de maio de 2024. Agradeço à Diretora Científica da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb), Daniela Prieto, pelo convite. O texto apresentado foi publicado originalmente pela Revista Bergasse 19, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP), com o título “Sexualidade: de Freud à contemporaneidade”, a quem também agradeço pela autorização para a publicação neste livro.

2. Diversidade sexual e de gênero: desafios postos à psicanálise na contemporaneidade1

Este capítulo está dividido em três partes. Na primeira, reflito sobre a relação entre as noções de diversidade e de dissidências no campo da sexualidade e do gênero; em seguida, trago alguns elementos para pensarmos sobre as origens das noções de sexualidade e de gênero na psicanálise; e, por fim, elenco dois fenômenos na contemporaneidade que considero paradigmáticos das mudanças no campo – a transgeneridade na infância e a não binariedade em termos de sexualidade e de gênero, autonomeação que vem se expandindo entre jovens.

Diversidade e dissidências no campo da sexualidade e do gênero

As noções de diversidade e de dissidências no âmbito da sexualidade e do gênero estão alinhadas aos tempos pós-modernos em que se destacam a pluralidade de apresentações e de relações, e, consequentemente, o distanciamento de modelos únicos e de verdades universais.2

1 Este capítulo tem como base a apresentação da autora em uma das mesas do Pré-Congresso para o XXX Congresso da Febrapsi, promovido pela Comissão Científica da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb) e Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), realizado em Brasília nos dias 25 e 26 de maio de 2024

2 Cabe registrar que a International Psychoanalytical Association (IPA) criou o seu Comitê Científico de Estudos sobre Diversidade Sexual e de Gênero em 2017. Em 1998, quase 20 anos antes, havia criado o Comitê Científico Mulheres e Psicanálise – Cowap para investigar as relações entre as categorias de sexualidade e gênero.

3. 52 gêneros:1 guarda-chuvas para angústias identitárias?

Introdução

O tema da sexualidade, muito caro à psicanálise, tem marcado forte presença na mídia e nas manifestações de ativistas, mas não havia sido alvo de um estudo mais aprofundado da minha parte.

Venho me dedicando à clínica e ao estudo da vida emocional de bebês, crianças e adolescentes, bem como a pesquisas sobre o atendimento psicanalítico de crianças com autismo, as quais envolvem o contato íntimo com aspectos primitivos do funcionamento mental, a constituição da subjetivação, da identidade, da vida psíquica de modo amplo.

Essas experiências não deixam dúvida de que a psicanálise é uma disciplina em constante transformação. Freud, construtor de seus alicerces, foi exemplo desse dinamismo pelas constantes revisões que fez de sua obra ao longo da vida. E muito evoluímos depois dele, com novas demandas que nos forçam a rever a metapsicologia que nos ampara e a buscar novas abordagens técnicas.

A contemporaneidade nos confronta com a rapidez de mudanças de paradigma e, por meio de uma postura crítica e reflexiva, procuramos lidar com elas da melhor forma possível.

1 Este capítulo é uma versão do artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, 56(4), 75-91, 2022

4. Sexualidade e gênero: indagações

O tema deste capítulo contém dois conceitos que requerem análise: sexualidade e gênero são enfoques amplos no tempo e no espaço, podendo ser considerados multidisciplinares. A teoria da sexualidade criada por Freud está à disposição para a leitura de seus diversos artigos. Os autores pós-Freud e suas muitas teorias concordam sobre a presença da sexualidade humana em um universo somatopsíquico expresso pelas pulsões libidinais a partir dos primeiros momentos de vida do bebê. Enquanto gênero, um conceito mais recente, com forte componente de outras áreas como sociologia, antropologia, psiquiatria, busca definir a masculinidade e a feminilidade que se expressam na maneira de falar, andar e vestir-se, por exemplo.

O caminho que escolhi para conversar com vocês parte de algumas indagações construídas a partir de minha experiência clínica como psicanalista. Aprendi a valorizar a linha do desenvolvimento emocional desde bebês até o mundo adulto. Vou começar destacando a importância de conhecermos os estados mentais primitivos e sua função estruturante, pois na falta dessa competência haverá prejuízos na construção da subjetividade com repercussões em várias áreas do desenvolvimento emocional. Este será o vértice da apresentação das minhas ideias, enfim indagações que têm me acompanhado.

A psicanálise desde bebê até adultos está apoiada nos mesmos conceitos fundamentais que constituem o método psicanalítico. Assim, não existem duas psicanálises, há uma só com peculiaridades e especificidades técnicas próprias de cada faixa etária: desde bebê/criança/latente/adolescente até a vida adulta. Serão momentos de passagem e de transitoriedade dialética da corporeidade à

5. Conjecturas imaginativas e fatos

O tumulto das diferenças entre mulher e homem nos propõe um tema que é complexo e inevitável. Ele nos coloca diante de fatos e questões ainda sem respostas.

Vou iniciar com uma história, que me foi contada por um colega. Ele tinha uma funcionária preta, que se integrou à família de modo que acabou por fazer parte dela. Cuidava de tudo e de todos com tal carinho que meu amigo fez um plano de saúde desses considerados bons para ela. Tinha direito a ótimos hospitais, dos quais nunca precisava, pois tinha ótima saúde.

Certa ocasião, no entanto, precisou ser internada, pois, já bastante idosa, ficou mais seriamente doente. Já no leito hospitalar, viu que seria acompanhada por uma enfermeira branca, e isso a incomodou de tal maneira que meu amigo teve problemas para contornar a situação. E a questão que surgira era a seguinte: ter sido designada uma enfermeira branca para cuidar dela, preta, significava que a tal enfermeira não devia ser uma boa pessoa. Como uma branca de bom caráter poderia ser encarregada de cuidar de uma preta como ela?

A questão racial estava de tal maneira “encarnada” nela que isso só podia ser um indicativo de que a enfermeira branca “não era boa pessoa”. Hoje temos encarado a questão racial de outra maneira, mas fatos como esse nos mostram que certas situações sociais ficam entranhadas em nós a ponto de perdemos a capacidade de pensar com liberdade.

Agora vou aplicar essa ideia a nosso caro antepassado Freud, que tanto fez pelas mulheres, mas que manteve sempre a ideia da “inveja do pênis”, que muito

6. A mente do analista e barreiras autísticas em pacientes neuróticos: uma mudança de paradigma1

Introdução

Estamos atualmente vivendo tempos de mudanças drásticas e de desordem, mudanças que ocorrem numa tal velocidade que é difícil acompanhar. Mudanças que provocam um tumulto em nossas mentes e abalam a nossa estabilidade e a capacidade para pensar. A ameaça de rápidas transformações tecnológicas, substituindo o ser humano em suas próprias decisões, as sequelas de uma longa pandemia, causada pela covid- 19 , e, além disso, duas guerras em curso; esse é o cenário com o qual estamos convivendo. Trata-se de uma crise global com desafios socioculturais que envolvem choques de valores, questões religiosas de fanatismo, de racismo, além de questões de gênero e de novas organizações familiares.

Esse é um mundo caótico, de aleatoriedade em que perdemos as bases sobre as quais sempre nos ancoramos. Estamos num momento em que as minorias passaram a se expressar e clamam para serem escutadas. Impõe-se a percepção aguda da necessidade de abandonarmos preconceitos e adotarmos uma postura ética de acolhimento às “diferenças”. Esta me parece ser uma mudança de paradigma importante na qual o “diferente” passa a ser incluído e a ocupar um lugar significativo dentro da comunidade.

1 Este capítulo é uma versão modificada do trabalho “A mente do analista e as transformações autísticas”, publicado no livro Transformações autísticas: o referencial de Bion e os fenômenos autisticos, de Celia Fix Korbivcher (Imago, 2008).

7. Sobre o feminino1

O seio, como percebeu a grande psicanalista Melanie Klein a partir de seu trabalho primoroso com crianças, campo em que ela foi pioneira, seria mais importante do que o pênis, como pensava e formulou Frank Julian Philips (1997),2 diversamente do que pensou Freud. Para mim, não obstante, a evidente primazia do seio,3 são complementares. O seio e o pênis representam funções mentais, 4 e como tais, que aqui estão sendo considerados. A mãe e o rêverie da mãe, como denominou outro gênio da psicanálise, Wilfred Bion, também analisado por Melanie Klein, é a relação mais importante para o desenvolvimento da capacidade de pensar de qualquer indivíduo.

Klein postulou que no início de nossas vidas como bebês, nosso equipamento mental é muito pouco desenvolvido. Assim como nosso trato digestivo que não é capaz de digerir alimentos, salvo aqueles que de alguma forma já foram digeridos e transformados pela mãe em forma de leite, nossa mente também precisaria da

1 Este capítulo foi apresentado na Jornada Preparatória em Florianópolis, em novembro de 2024 no 30º Congresso Brasileiro de Psicanálise e também é um fragmento do primeiro capítulo, de minha autoria, e de mesmo nome, do livro Sobre o feminino: reflexões psicanalíticas, publicado pela Editora Blucher, que também organizei, em 2018

2 Analista didata e um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Foi analisado por Klein e depois por Wilfred Bion, tornando-se amigo dele após o término de sua análise. Também era membro da British Psychoanalytic Society.

3 É notoriamente conhecido por pessoas que trabalham com pacientes em estados terminais que estes costumam clamar pela mãe nos seus últimos momentos.

4 Ou elos, como assinalou Bion em Transformações

8. Homossexualidade à luz da psicanálise: uma reflexão

Introdução

O dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, conhecido como Zé Celso, construiu uma carreira artística repleta de conquistas. No entanto, sua história também foi atravessada por uma profunda tragédia: o violento assassinato de seu irmão, Luís Antônio, em 1987. Luís, que era homossexual, foi morto com 107 golpes de faca. Sempre emocionado ao abordar o episódio, Zé Celso dizia que poucas facadas seriam suficientes para tirar a vida de alguém, mas que cento e sete buscavam eliminar algo mais profundo – algo impossível de ser apagado.

Este capítulo busca refletir, sob uma perspectiva psicanalítica, sobre o que Zé Celso questionava: o que se pretende eliminar ao atacar alguém por sua orientação sexual? Discutiremos aspectos da homossexualidade à luz da psicanálise, bem como suas implicações sociais e o impacto dessa questão na formação analítica.

Relato

Em 2021, em meio ao isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, três homens gays – Gregori, Jonatan e Marco – foram assassinados de forma brutal depois de marcarem encontros por um aplicativo de relacionamento LGBTQIA+, revelando a vulnerabilidade dessa população mesmo em espaços virtuais de sociabilidade. Gregori, um professor universitário de 36 anos, dedicava-se ao ensino remoto e à finalização de seu doutorado. Como muitos, ele buscava, por meio da internet, formas de suprir a ausência de encontros presenciais. Foi em abril de 2021 que,

9. Homossexualidade, homofobia e psicanálise: comentário

Inicio este capítulo com um contraponto à parte final da fala de Philipe Spolti, na qual ele tece considerações muito sinceras e importantes.

Cresci vendo Os Trapalhões na TV, e dei muita risada do Didi tirando sarro do parceiro Dedé com o famoso jargão: “ele escamoteia”. Vivi a trajetória poética e decadente do Cazuza, amando suas músicas, e foi a Legião Urbana que compôs os hinos da minha geração. Talvez tenha sido isso que me aproximou tanto do que Philipe quis aprofundar em seu trabalho. Também sinto ser essa aproximação um ótimo exemplo do que nos propomos a debater em nosso 30o Congresso da Febrapsi, em 2025, sobre esse tumulto entre as diferenças, que também inclui um tumulto entre as gerações. Penso que esse tumulto, que também ocorre pela aproximação, pode ser muito fértil.

Mas para que possa ser fértil e transformador, precisamos antes falar sobre a violência contida no que Philipe se propõe a estudar e entender. A violência explícita nos crimes, mas também implícita no preconceito e nos fatos que muitas vezes são difíceis de entender e processar, como o preconceito ainda vigente em instituições importantes como a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), que respeitamos e à qual pertencemos.

Por meio do relato sobre a história verídica de um serial killer, Philipe se propõe a entender a necessidade de matar tantos homossexuais, uma tentativa de colocar a homofobia (nesse caso, assassina) no divã.

10. Corpo e psiquismo da mulher na menopausa: um estudo psicanalítico

Introdução

A escrita deste capítulo foi motivada pela observação da tristeza e da solidão de algumas mulheres próximas a mim, ao falarem sobre o climatério e a menopausa. Percebi em suas falas sentimentos de muita tristeza, vergonha e solidão frente aos seus sintomas desse momento de suas vidas.

O climatério e a menopausa, embora marquem a fase final da vida reprodutiva da mulher, nem por isso equivalem a um momento final em termos das repercussões emocionais e também físicas que ela necessita enfrentar. Ao contrário, é nesse momento da vida que a mulher vê despertar em si uma variedade enorme de sentimentos, sensações e emoções com as quais começará a lidar. A subjetividade feminina é marcada por fases, ciclos que demandam vigoroso trabalho mental – intensas ligações somato-psíquicas. Para além da maternidade, a feminilidade tem muitas outras nuances, características que podem ser reatualizadas na mulher madura. Poder acessar e entender essas matizes foi motor para o presente estudo.

Este trabalho, longe de esgotar o assunto, busca fazer uma aproximação e algumas amarras teóricas entre o que dizem Freud, Klein e Lasnik sobre esse momento particular na vida das mulheres. Com Freud e Klein será possível pensar a construção da feminilidade, na sua relação intensa e ambivalente com a mãe, assim como o lugar feminino no complexo de Édipo, interpretado como terceiro tempo do Édipo para Helene Deutsch, aqui traduzido na obra de Marie Cristine Lasnik.

11. Tumultos da psicossexualidade, da feminilidade e da finitude

Comentários

sobre o trabalho

“Corpo

e psiquismo da

mulher na menopausa: um estudo psicanalítico”, de Úrsula Miotti (GEPSC)

Quero agradecer à Gladis Garcia, ao Fabio Lopes, à Ana Michels e a todos os colegas do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Santa Catarina (GEPSC) pela oportunidade de realizarmos esta jornada ainda em 2024, o que significa uma valiosa contribuição à agenda científica da Febrapsi.

E agradeço especialmente pela oportunidade de comentar o trabalho da Úrsula Miotti, que me permitiu resgatar várias reflexões que estavam arquivadas em minha memória, relacionadas aos estudos sobre o envelhecimento que realizei durante os anos 1990, em que trabalhei no serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Na época, não me dediquei especificamente ao tema da menopausa, mas ele estava de algum modo sempre presente, entre tantos desafios que caracterizam a etapa final da vida.

Portanto, sou grata pela oportunidade de conectar estudos atuais sobre psicossexualidade, estimulados pelo próximo congresso da Febrapsi, com experiências clínicas e de pesquisas que realizei há cerca de 30 anos, quando meu próprio envelhecimento parecia tão distante… Como que num piscar de olhos, a “terceira idade” chegou, e inevitavelmente conquistas e lutos mais frequentes nessa faixa etária podem ser elaborados ou concebidos teoricamente de maneira mais substancial.

Referi-me a conquistas e lutos, pois um dos inúmeros aprendizados que obtive na clínica psicanalítica geriátrica foi o de que a ênfase culturalmente dada às perdas durante o envelhecimento tem a ver com uma realidade biológica e social de limitações crescentes, porém, subestimando os ganhos advindos da idade avançada.

12. Quantas cores tem o arco-íris?

O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.

Guimarães Rosa1

Quero falar de Betânia e Fernando, de Freud, de meninas e meninos, neste mundo cheio de gente andando por aí feito manequins. Por que não citar sofisticadas teorias de um mundo que engatinha e arrisca pequenos passos? Quero falar (falo-ar) da vagina e do pênis, destes volumes e reentrâncias que já vêm no pacote, inspirando desejos ou invisivelmente pisando nas crateras da colorida periferia.

Gente homem, gente mulher, gente viado e sapatão, gente trans/trava, gente que não é, mas brinca com brincos, piercings e bigodes: que composição, que fluidez. Gente, arte, cria e criação-performática, razoável. Tira dali põe de cá, enfia de um jeito, sente de outro, escondem, mostram. Amam? Ou querem amar? Qual cicatriz produziu a ferida? Ou qual ferida cicatrizou? Dias atrás, o armário escondia o ar comprimido, a ciência esfoliava para confirmar a natureza das coisas. A batina ereta e bem-passada, fiel ao deus reto, plano e bem-formado, suplicava perdão. E agora? O que reza a cartilha?

Estranho pensar que o colorido performático do gênero “conquistado” desfila ousadia/rebeldia, mas não cansa de apanhar de sangrar: luta dura sol a sol, esperando a noite cair, aí sim, mesmo com cara borrada, sambam a alegria de existir. Sandálias, botas, reticências e proezas gritam por aí que nossa luz quase fálica

1 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

13. Diferenças anatômicas entre os sexos

têm alguma coisa a ver com as identidades sexuais?1

“Titia, fale comigo! Estou com medo porque está muito escuro”. E a tia respondeu: “de que adianta isso? Você não pode me ver”. “Não faz mal”, respondeu o menino, “quando alguém fala fica mais claro.” (Freud, 1969d, p. 211)

A interrogação impressa no título do texto se fez presente em nossos pensamentos a partir da escuta de alguns fenômenos da ordem social, que tendem a desconsiderar o lugar da anatomia na constituição da psicossexualidade, em especial a identidade sexual.2 Entre esses, destacamos a proliferação de ideias que advogam, em nome da liberdade de escolha dos filhos, que os pais não identifiquem se seus rebentos apresentam pênis ou vagina, ou ainda, que essa diferença entre os sexos seja um detalhe, não tendo relevância na constituição do sujeito. Parece-nos que vivemos em um

1 Trabalho publicado no livro Identificação: a imanência de um conceito (Paim Filho e Moreno Garcia, Blucher, 2023), revisto e ampliado para atividade realizada junto ao Grupo de Estudo Psicanalítico de Uberaba, em novembro de 2024.

2 Essa expressão não é encontrada no pensamento freudiano. Devemos sua introdução nos referenciais teóricos da psicanálise a Robert Stoller (1968). Stoller a partir dessa proposição desenvolveu suas ideias sobre a identidade de gênero. Essa que visa discriminar a masculinidade e a feminilidade baseada em aspectos psicológicos, diferenciando da dimensão biológica do sexo anatômico. No presente texto, usaremos a identidade sexual no sentido de ser produto do processo identificatório. Processo que se constitui no intercâmbio do ser e do ter o objeto. Fato que determina que em toda a identificação, no decurso de sua assimilação, esteja implicado um trabalho de luto.

14. O corpo que habito: a singularidade das configurações psicossexuais

A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Freud, 1921/1969

Como pensar a questão da sexualidade e o tumulto das diferenças? Que corpo é este que eu habito? É feminino ou masculino? Como nos estruturamos como sujeitos?

Convido-os a pensar essas questões no vértice psicanalítico em que o corpo é porta voz de uma comunicação primitiva, é palco do nosso teatro interno, encenando e comunicando nossos dramas ocultos.

Freud (1905/1969) desde o início de sua obra, faz uma expansão conceitual do que é sexualidade, diferenciando-a de genitalidade. Discrimina o corpo biológico do pulsional, erógeno. Ambos atravessados pela cultura, precisam ganhar inscrição psíquica para ter sentido para o sujeito e para o social. Freud veio perturbar o sono da humanidade, dizendo que somos herdeiros de uma bissexualidade, que há disposições masculinas e femininas desde o nascimento, que nossas escolhas se regem pelo inconsciente, que o eu não é dono da sua própria casa. Comprometido com o pensamento científico e evitando apresentar a psicanálise como autossuficiente, com respostas para tudo, diferencia sexo, gênero e desejo, esclarece como esses elementos vão nos constituindo, se articulando, sendo apreendidos psiquicamente no corpo erógeno, em uma criação com esses objetos. Assinala um diálogo contínuo entre a anatomia biológica, dada pela genética e a anatomia psíquica, construída com outros destinos elaborados em parceria com as figuras parentais e a cultura.

15. Tumulto: tumor, dor, amor

Ando tão à flor da pele

Qualquer beijo de novela me faz chorar

Ando tão à flor da pele

Que teu olhar flor da janela me faz morrer

Ando tão à flor da pele

Que o meu desejo se confunde

Com a vontade de não ser

Ando tão à flor da pele

Que a minha pele tem o fogo do juízo final

Um barco sem porto

Sem rumo, sem vela Cavalo sem sela

Um bicho solto

Um cão sem dono

Um menino, um bandido

Às vezes me preservo

Noutras, suicido

“Flor da pele”, Zeca Baleiro (1997)

Desde os primórdios da psicanálise, especialmente nos estudos sobre a histeria, a sexualidade foi considerada um aspecto central na etiologia dos sintomas. Freud e outros pioneiros reconheceram que, muitas vezes, as manifestações psíquicas tinham uma conexão profunda com os conflitos sexuais. Assim, mesmo que a

16. Navegando nas marés das diferenças: tumulto, tormentos e tormentas1

Plutarco nos conta que o general romano Pompeu Magno, que viveu entre 106 e 48 a.C., para encorajar seus marinheiros que não queriam embarcar de volta para Roma por conta do mau tempo, disse a frase que ficou famosa em latim: “Navigare necesse est, vivere non est necesse”, que pode ser traduzida por “Navegar é necessário, viver não é necessário”.

Vamos navegar!

O texto para o qual estamos nos preparando nos oferece diversas cartas náuticas, diferentes possibilidades de navegação. Como bem nos lembra Toledo (2024), Freud era um pensador inserido no seu tempo e no seu espaço, implicado na realidade que vivia.

Gosto muito da maneira pela qual Thomas Ogden (2012) descreve o texto freudiano, diz ele que há escritores que pensam com a caneta, que nos dão a clara ideia de como seu pensamento se processa porque parece que o pensamento acontece no correr da pena, revelam, assim, seu pensamento por meio da escrita. Freud é um desses escritores.

No texto em questão, essa característica fica evidente. Freud (1925/2011) está mais circunspecto, digamos assim, pelas razões pessoais que Toledo acabou de nos apresentar, mas continua claro em seus argumentos e, desse ponto de vista, é bastante

1 Trabalho apresentado no “Encontro Preparatório para o 30o Congresso da Febrapsi”, realizado pela Febrapsi e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCamp), em 21 e 22 de março de 2025, em Campinas.

17. Quero fechar o meu amor na mão: raízes do desejo e da sexualidade

Procurei então, mais uma vez, fechar meu amor na mão. Mas para que havia eu de querer uma felicidade tranquila? A que Marceline me dava, a que ela representava para mim, era como um repouso para quem não se sente cansado. Mas, como eu a sentia exausta e necessitada do meu amor, fingia que o amor de que a cercava era uma necessidade minha. Sentia intoleravelmente seu sofrimento; e era para curá-la que eu a amava.

André Gide, O imoralista (2018, p. 109)

Introdução

Identificar emoções, num encontro analítico é observar o que escapa à linguagem, captar às turbulências, articulações e desarticulações. Assim, por que não deixar o fantasma de uma marionete ganhar vida ou, ainda, deixar o coringa, uma síntese psicótica, penetrar a racionalidade e romper as barreiras do sentido matemático?

(Antonino Ferro, 2024).

Temos essencialmente duas importantes maneiras de desenvolver as nossas experiências psicanalíticas: a primeira está ligada à modalidade epistemológica, e a segunda, à modalidade ontológica. A primeira diz respeito a uma abordagem teórica, referindo-se como exemplo: à interpretação dos sonhos e ao complexo de Édipo; e a segunda traz a experiência entre analista e analisando e as emoções vividas. Há uma fome, que antes de ser percebida como tal foi experimentada como dor, provável inferno ou catástrofe.

18. As múltiplas dimensões de Édipo

O mito de Édipo tem sido amplamente explorado na literatura, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na antropologia, na psicanálise por revelar um enigma que todos nós reconhecemos e sentimos. Como todo enigma, esse também, o de Édipo, não se resolve pela simples resposta de uma palavra certa, de uma interpretação definitiva, evidenciando um vaivém em que a última palavra, a última interpretação, a última compreensão ainda não foi dita e nunca será.

Apresento mais um desses vaivéns considerando como o triângulo edipiano, elaborado por Freud a partir do Édipo de Sófocles, foi se transformando ao longo dos anos, evidenciando cada vez mais um Édipo complexo, multidimensional que incita infinitas vertentes. Cada uma delas, em sua multiplicação revela a sua incompletude, o seu imprevisto, a sua imprecisão.

Para tanto, vou me valer do filme Édipo Rei, de Pasolini, apresentado em 1967. Um filme, cinema-poesia, criado a partir de imagens, expressões faciais, de comunicação entre olhares e falas provenientes do interior dos personagens. Palavras são raramente proferidas.

O enredo se movimenta numa sobreposição da leitura de Pasolini da peça de Sófocles, da leitura de Sófocles por Freud e de memórias-sonho de sua própria infância. Por meio de recursos simbólicos, Pasolini conta a história do seu próprio Édipo, a dimensão autobiográfica do mito. Em entrevista, declara que esse filme apresenta a história do seu próprio complexo de Édipo: “O filho apresentado no prólogo sou eu mesmo, o pai dele é o meu pai e a mãe é a minha mãe”.

19. Corações dilacerados:

breve

comentário

de “As múltiplas dimensões de Édipo”, de Vera Lamanno Adamo

O tema para o qual Vera Lamanno Adamo nos convida já nos põe no clima do mito de Édipo: pensando que sabemos muito, que já tínhamos visto o suficiente, acabamos por descobrir que estávamos não exatamente cegos, mas, pelo menos, um tanto míopes. Roosevelt Cassorla diria aqui: obnubilados. Ele gostava dessa palavra (eu também gosto) e a pronunciava num dialeto pessoal que provavelmente misturava sua origem chilena e sua formação psiquiátrica. Não saberia, enfim, reproduzir… (há algo de “nunca mais”, de perda irreparável, de anseio edípico, quando recordamos a voz de uma pessoa querida pronunciando certa palavra.) Estamos obnubilados quando andamos em frente cercados de névoa, como se pesadas nuvens descessem do céu e confundissem nossas percepções. Roosevelt pensava na tragédia de Édipo como uma ciranda de erros causados pela arrogância de achar que sabemos algo que, na realidade, deduzimos a partir de fragmentos insuficientes de realidade. Insuficientes por quê? Porque nossa reflexão solipsista, nossa autoanálise, é sempre bastante limitada. Talvez o texto em que ele mais tenha desenvolvido essa ideia seja “Édipo, Tirésias e a Esfinge: do não-sonho às transformações em sonho”, inserido em seu último livro, O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment.

Nesse capítulo ele nos faz lembrar que:

Édipo foge de Corinto, insurgindo-se contra a profecia de que mataria seu pai e desposaria sua mãe, sem prever que assim a realizaria.

Édipo pensa ter solucionado o enigma da esfinge, sem imaginar que o maior enigma viria depois: Quem é ele próprio? Qual sua história? Qual seu desejo?

20. Sexualidade: o tumulto das diferenças –Que tumulto

é esse?

Introdução

Puget (2009; 2012) e Rodulfo (2012; 2013) sinalizam que os conceitos psicanalíticos, que foram os pilares de nossas concepções sobre o funcionamento psíquico, encontram-se em crise. Eles não nos permitem abordar questões que a atualidade propõe. Entre os conceitos considerados em crise, destacam-se:

A. a questão da origem, do desamparo originário – dá a ideia de que o presente, de alguma forma, sempre remete ao passado. A origem remete ao centro, e a fidelidade ao centro pode perturbar qualquer desenvolvimento posterior. Temos que buscar começos que diferem entre si, começos sem origem, pontos de partida múltiplos. O Big Bang, a versão científica mais respeitada da origem do universo, implica a existência de múltiplos Big Bangs e múltiplos universos;

B. a edipinização da subjetividade (Rodulfo, 2012) converte o Édipo em seu elemento nuclear. Essa fixação do psiquismo no complexo de Édipo reflete a manutenção da necessidade de um centro e um tipo de retrocesso do movimento que a psicanálise fez ao retirar a consciência do cerne da vida psíquica. Contudo, tal descentramento não removeu a base de sua posição;

C. as explicações causais e deterministas recobrem apenas uma parte dos problemas que o presente oferece e a relação sempre incerta com o outro e “entre” outros. O outro é um outro, mais que um substituto da figura materna ou paterna;

D. a identidade não leva em conta as múltiplas possibilidades que cada situação cria;

E. a identificação não dá lugar ao outro como alteridade e concebe os vínculos sobre a base da semelhança;

21. Sexualidade: o bem-vindo tumulto das diferenças

Esses dias eu estava em uma sala de espera acompanhada de outras pessoas – que também esperavam –, cada uma delas com o olhar devidamente voltado ao seu celular. Inclusive eu. Em algum momento, uma senhora se aproxima de mim e, visivelmente angustiada, me pede ajuda. Ela estava tentando sem sucesso enviar um WhatsApp ao seu marido. Olho em seu celular, onde o WhatsApp estava aberto, e vejo que ela tinha conseguido enviar a mensagem, observo também que ela tinha sinal, e penso que possivelmente a dificuldade estava no celular de seu marido, que não havia recebido a mensagem. Talvez não houvesse problema algum. Digo isso a ela, ao que me responde, ainda angustiada, que precisava comunicar-se com ele, pois o professor de tênis dele daria apenas uma aula e não duas, conforme o combinado, e ele precisaria saber antes de dirigir-se para lá.

Em vez de tranquilizar-se com a minha informação, ela parece mais agitada ao perceber que não teria como avisá-lo. Fico observando-a e penso: mas ela está tentando avisar! se não der, pode ser um transtorno para ele, mas paciência, faz parte. Entretanto, observando sua angústia abro espaço para minha imaginação e penso que talvez ela estivesse preocupada de que ele não reagisse bem por não saber da mudança de planos para sua aula, poderia ficar frustrado, chateado, não sei… Sigo questionando-me: por que é ela quem está coordenando o horário da aula de tênis dele? por que aquele problema, naquele momento era dela e não dele? e se ele não reagisse bem, o que me parecia possível diante da angústia dela, o que isso queria dizer?

22. Sobre a bissexualidade: que tumulto é esse?

Ao pensar sobre a bissexualidade psíquica, suscitaram várias questões que estou trazendo de forma sintética neste capítulo. Logo me recordei da fala de uma paciente. Uma mulher alta, forte e assertiva que me contou reflexiva sobre uma pergunta que sua filha lhe fez: “Mãe, você já se sentiu masculina?”. A pergunta da filha era a forma dela entender como a mãe, que tinha atributos identificados como masculinos, tinha organizado sua identidade, já que ela própria, a filha, também tinha essas características. A paciente respondeu que no tempo dela isso não era uma questão, não se pensava sobre isso. Mulher era mulher, homem era homem. Mas, pensando bem, sim. Ela lembrou que já tinha se sentido masculina.

Gostava das brincadeiras dos meninos, e muitas vezes achava que deveria proteger suas amigas, vistas por ela como mais frágeis. Essa questão deveria ter aparecido de fato, contradizendo o que ela havia dito inicialmente, pois se lembrou de uma frase de sua mãe: “minha filha, você é muito feminina”. Essa frase materna soou como um bálsamo sobre esse conflito de identidade. Sua masculinidade não se transformou em problema de identidade, já que teve sua feminilidade reconhecida por quem tinha verdadeira autoridade para reconhecer; sua mãe.

Como se sabe, o conceito de bissexualidade é originalmente de Fliess (Freud, 1898, carta 153), como constitucional e fundamentado na biologia, mas ampliado por Freud para o de bissexualidade psíquica. Partindo da anatomia, masculino se refere ao órgão genital masculino, com sua produção, os espermatozoides de característica ativa. O feminino é o órgão que contém óvulos e que recebe os espermatozoides, contendo sua fusão para gerar vida. Em ambos os sexos existem

23. Depois de Freud, o que mudou na sexualidade?1

Este capítulo, proposto a esta mesa preparatória ao 30o Congresso Brasileiro de Psicanálise, enseja três inter-relacionados questionamentos:

1. Passados 100 anos, o que permanece da teoria freudiana sobre a sexualidade?

2. Quais as descobertas sobre a sexualidade reveladas pela ciência depois de Freud?

3. O que mudou na cultura desde os tempos de Freud?

Nos 30 artigos de Freud dedicados ao tema, duas passagens configuram a essência da sexualidade, conforme a concebeu:

A primeira encontra-se nos “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905/2017), quando diz que todo ser humano apresenta uma disposição bissexual inata.

A segunda, vamos encontrar cinco anos mais tarde, em “Sobre psicanálise ‘selvagem’” (1910/2016), quando subtrai a sexualidade do puro instinto e a considera integrante da vida afetiva, ao propor que a palavra “sexualidade” deve ser empregada no mesmo sentido abrangente em que a língua alemã usa a palavra lieben (amor), razão pela qual criou o termo psicossexualidade, acentuando que o elemento psíquico da vida sexual não deve ser esquecido nem subestimado. Relacionado com a bissexualidade inata, ele foi capaz de conceber a existência de uma sexualidade infantil, polimorfa e perversa, a qual se encontra na base da

1 Trabalho apresentado na Jornada Preparatória do 30º Congresso da Febrapsi, realizada nas sedes da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), dias 28 e 29 de março de 2025

24. Desde Freud, o que mudou na sexualidade

Neste capítulo serão abordados apenas alguns pontos desse tema tão amplo. E, sendo a sexualidade na psicanálise uma psicossexualidade, o grau de amplitude aumenta.

Como introdução, considero importante revisitar Freud, a começar por “Três ensaios para uma teoria da sexualidade” (1905/1989), texto no qual ele desvincula sexualidade e reprodução no ser humano e aponta como a sexualidade, devido à singularidade de cada um, tem um destino muito particular.

Ao revisitar esse texto, impressionou-me a atualidade, o cuidado, o esmero e a criteriosa atenção com que Freud se debruça sobre as questões sexuais. Nele já está presente a diversidade sobre a qual tanto debatemos nos dias de hoje.

Nesse texto, Freud destaca “a observação . . . mostrará um grande número de desvios” (p. 127) com relação a suposta norma, tanto no que diz respeito ao objeto sexual, como ao alvo sexual. Nos desvios com respeito ao objeto, “o número de tais pessoas é bastante considerável” (p. 128), as variações “são muitas e coexistem independentemente umas das outras” (p. 129) e “graus intermediários são abundantemente encontrados...” (p. 129). (Os grifos são nossos com a intenção de chamar a atenção para a quantidade, já observada por Freud)

Freud manifesta sua não concordância com o termo “degeneração”, utilizado na época, no que se refere as “inversões” (denominação utilizada por ele para se referir à homossexualidade). Isso porque, argumenta, encontra-se a inversão em pessoas que não exibem nenhum outro desvio grave da norma, a eficiência delas

Identificação e introjeção: diálogo entre Freud e Ferenczi para a

constituição do sujeito e das escolhas objetais

Quem eu sou? O que desejo?

A constituição do sujeito se realiza por meio de sofisticados processos, os quais desafiam o nosso conhecimento, sendo, contudo, questões que nos apresentamos constantemente. Na outra face da nossa constituição, derivam outras perguntas, tais quais: por que gosto disso e não daquilo? Qual é a maneira que faço para ter prazer? Ou como nos perguntam os Titãs: “Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?”. Ou seja: o que desejo?

Na psicanálise, temos algumas tentativas de explicações para essas perguntas e – seguindo Freud –, chamamos a esse processo com o nome de “identificação”. Todo o edifício freudiano sobre a constituição do sujeito e as escolhas objetais está baseado no mito de Édipo, o qual a identificação encontra o seu modelo. Entretanto, isso é um processo complexo, sendo que o próprio Freud se debruça sobre essa questão desde antes da origem da psicanálise.

As ideias sobre o termo aparecem em diversos momentos de sua obra, criando uma zona de penumbra em torno do conceito, o que dificulta uma definição estanque. No entanto, o que é central está melhor enunciando em “Psicologia das massas e análise do eu”:

A psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa. Ela desempenha um determinado papel na pré-história do “complexo de Édipo”. O garoto

26. Sexualidade infantil e bissexualidade nas análises com pacientes adultos: fantasias subjacentes

Segundo alguns autores da psicanálise – e, aqui, cito Kancyper (2011) –, o conceito de sexualidade foi ampliado por Freud, ao inscrever a sexualidade onde até então ela era impensável: na infância e no inconsciente.

A sexualidade se constitui desde os primórdios de vida do bebê, já de início gerando conflitos, provocados pelos impactos entre a pulsionalidade do bebê e as limitações da realidade externa.

A criança, no desenvolver de sua sexualidade e vida mental, atravessa estágios libidinais pelas zonas erógenas, fases que se interpõem – oral, anal, fálica, latência –, chamadas de organização pré-genital, até alcançar, com a puberdade, a fase genital, quando as pulsões se unificam e estão a serviço da função de reprodução.

Essa teoria das fases evolutivas não é sequencial. Como a ela me referi, são fases que se interpõem, o que implica, segundo Fiorini (2014) “coexistências e ressignificações” (p. 49).

A sexualidade infantil é atemporal, quando convivem esses registros de diferentes épocas, no mesmo espaço, sem diferença de tempo, de sexo ou de gerações (André, 2009).

Não há estados de mente dessexualizados e a origem da psicossexualidade se dá na intersecção entre o somático e o psíquico (Goulart, 2023). Para além do corpo biológico, o pulsional.

Para Orduz (2017), a concepção da sexualidade infantil, como base do inconsciente, levou Freud a pensar numa sexualidade simbólica, ou seja, uma sexualidade observada, desde sempre, em seu “caráter múltiplo e diverso” (p. 20).

27. Psicanálise e as neossexualidades

E Terêncio disse: Nada do que é humano, considero alheio a mim. (Avenburg, 2014)

Em sua 16a conferência “Psicanálise e Psiquiatria”, Freud escreveu: “Não desejo suscitar convicção; desejo estimular o pensamento e derrubar preconceitos” (Freud, 1917/1969).

Nos últimos anos, a psicanálise vem enfrentando grandes desafios e, como uma ciência aberta ao novo, tende a estabelecer mudanças paradigmáticas em seu modo de ver a clínica e a teoria, apesar das resistências que, aos poucos, vêm se flexibilizando.

Nesse movimento de expansão e renovação, dois fenômenos me chamam a atenção.

Um deles acontece em relação aos chamados “casos difíceis”.

Propõem-se, então, mudanças que promovam novos olhares para a clínica, fazendo ressurgir estudos dos novos/antigos autores que propuseram algumas dessas mudanças. Somente citando alguns deles: Ferenczi, Winnicott, Bion e outros.

Outro fenômeno, que se pode considerar mais difícil de ser revisitado, talvez por desacomodar nossos referenciais, tem a ver com as mudanças e modos de se abordar a sexualidade.

O 30o Congresso da Febrapsi – que acontecerá em outubro de 2025, na cidade de Gramado – abre possibilidades para se estudar o novo a respeito das múltiplas formas de lidar com o desejo.

28. Identificações sexuais: caminhos do desejo1

Revisitar a obra de Freud com um visão atualizada é uma possibilidade de encontrarmos novos caminhos e desenvolvimentos tanto teórico como clinico, lembrando que Freud com seu olhar criador, considerando o momento cultural da sua época, observou várias questões que se ressaltam na contemporaneidade. Hoje atravessamos o nosso momento e precisamos adotar pensamentos reflexivos considerando a cultura, o social e a clínica.

Bion (1977) diz não haver uma solução final, cada solução em sua singularidade, abre um novo universo e a pessoa fica aberta para aprender mais.

Chegamos ao tumulto que as diferenças ocasionam, contemplando o tema do 30º Congresso Brasileiro deste ano (2025), Sexualidade: o tumulto das diferenças, comemorando o centenário da publicação do texto de Freud de 1925 (Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos).

O tema que selecionei – Identificações sexuais: caminhos do desejo – nos remete a identidade de gênero, a sexualidade e como o desejo se forma e se articula a partir das identificações subjetivas.

Um assunto necessário para a saúde pública e fundamental para a formação do psiquismo, pois é pelas identificações que o processo de subjetivação se desenvolve formando as bases da vida, que nos levam aos caminhos do desejo.

1 Trabalho apresentado no evento preparatório ao 30º Congresso brasileiro “Sexualidade: o tumulto das diferenças”, em 26/4/2025, no GEP de Marília e Região.

29. Como lidamos com as nossas instituições?

O tema sobre o qual conversaremos hoje é incomum e, talvez por isso, seja especialmente enriquecedor. Agradeço a diretoria científica da SPPEL1 pela oportunidade de trocar ideias com vocês a respeito das nossas instituições. É um tema amplo, complexo e relevante para toda a comunidade psicanalítica.

Para começar, quero compartilhar as duas primeiras associações que me ocorreram quando comecei a pensar sobre esse encontro. Ambas, curiosamente, se referem a autores que não são psicanalistas e isso não é um acaso, como vocês verão. Acredito que autores de outras áreas possam colaborar conosco, sugerindo caminhos para pensarmos sobre velhos temas.

A primeira dessas associações foi uma frase, um pequeno trecho teórico de um professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo, o Guilhon de Albuquerque, cujo trabalho me foi apresentado pela Marlene Guirado, também na USP, há muitos anos. Aliás, aproveito para mencionar que o que penso hoje sobre as instituições tem raízes no que estudei com ela.

Guilhon escrevia sobre as instituições de uma forma diferente do habitual, suas ideias permaneceram décadas após a minha passagem pela Universidade. Alguns autores são assim, a gente lê e há um impacto permanente. Foi o caso com o Guilhon, ou da maneira como a Marlene me apresentou a ele. O que quero dividir com vocês é um trecho que, para mim, foi e segue sendo inspirador. Vou

1 Este trabalho foi apresentado e debatido durante o evento preparatório para o Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Pelotas, Rio Grande do Sul, no dia 23 de maio de 2025

30. (Homo)sexualidades e as instituições: entre

teorias e silêncios

Aprendi desde criança

Que é melhor me calar

E dançar conforme a dança

Do que jamais ousar

Mas, às vezes, pressinto

Que eu não me enquadro na lei

Minto sobre o que sinto

Esqueço tudo o que sei

Só comigo ouso lutar

Sem me poder vencer

Tento afogar no mar o fogo

Em que quero arder

De dia caio minh’alma

Só à noite caio em mim

Por isso me falta calma

E vivo inquieto assim

Introdução

Canção da Alma Caiada, Antônio Cícero (2019), é a poesia enviada por um analisando quando soube da morte assistida do autor. No contexto associativo, fantasiava como poderia viver sua sexualidade sem precisar fazer uma eutanásia na sua orientação. Trans(forma)ações como tema proposto talvez dialogue com, ainda hoje, a necessidade da formação de psicanalistas com uma contínua

31. Sexualidade na clínica: do instinto à pulsão1

Continuidade e contiguidade: significados e traduções

No caminho de criação do arcabouço teórico da psicanálise, Freud tomou de Fechner,2 entre alguns conceitos desse psicofísico, a ideia de uma energia mental (Ellenberger, 2023), para formular um aparelho mental dinâmico, em movimento e movido a forças. Da libido à catexe, chegou no instinto e na pulsão.

A primeira ideia de força veio por meio da libido,3 uma energia que resulta das transformações da pulsão sexual em relação ao objeto e a correspondente catexe, esta um conceito econômico de unidade de força, numa analogia metapsicológica que posteriormente ocorreria e se repetiria entre a ideia de uma pulsão e sua pressão (unidade de força ou drang).

Pulsão é um termo que surgiu na França em 1625, derivado do latim,4 empregado por Freud, a partir de 1905, definido como carga energética da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente. O específico da

1 Trabalho apresentado no Evento Preparatório do 30o Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado na Sociedade Psicanalítica de Pelotas, entre 23-24 de maio de 2025

2 Gustav Theodor Fechner (1801-1887), psicofisiologista que levou Freud a incorporar na sua metapsicologia as noções de energia mental, o conceito topográfico, o princípio do prazer-desprazer e o princípio da repetição.

3 Freud tomou emprestado de A. Moll e consta no Manuscrito E, endereçado a Fliess, em 1894.

4 Pellere (pepuli, pulsum) cujo significado é bater a terra com os pés, dançar, tocar, impelir, fazer recuar, golpear, impulsionar etc.

32. Toda nudez ainda será castigada?

Em 1912, veio a público o texto de Freud “A dinâmica da transferência”. No mesmo ano, nascia no Brasil Nelson Rodrigues, considerado um dos mais influentes dramaturgos do nosso país e dono de frases lapidares. Cito algumas (Rodrigues, 2020, p. 41): “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”; “O pudor é a mais afrodisíaca das virtudes”; “Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”; “O amor entre marido e mulher é uma grossa bandalheira. É degradante que um homem deseje a mãe de seus próprios filhos”; “Só o inimigo não trai nunca”; “Convém não facilitar com os bons, convém não provocar os puros. Há no ser humano, e ainda nos melhores, uma série de ferocidades adormecidas. O importante é não acordá-las”; “Toda mulher bonita é um pouco a namorada lésbica de si mesma”; “O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu”.

Muitas dessas fórmulas provocativas estão desdobradas na peça Toda nudez será castigada (1965/1973), que confronta a sexualidade aos valores religiosos de uma sociedade puritana. Essa peça que escolhi para nos acompanhar em minha contribuição neste capítulo faz, como outras, uma crítica afiada à hipócrita moral burguesa da família brasileira. As aparências de virtude são todas desmontadas no texto por meio da história de Herculano – um viúvo rico e conservador que, após a morte da esposa, promete ao filho adolescente, Serginho, que jamais se casaria novamente. Apesar dos seus já 18 anos, Serginho era contrário ao sexo dentro ou fora do casamento. Criado por três tias solteiras e beatas, o jovem não se despia nem em frente ao médico, embora fosse ainda banhado pelas pudicas

33. Transferência (contratransferência) e sexualidade

Transferência e sexualidade são dois conceitos seminais da psicanálise. Todo candidato que é admitido num Instituto sabe que passará muitos anos lidando com eles na sua prática e na sua formação. O terceiro conceito, a pedra angular da psicanálise, é o Inconsciente. Este então será citado infinitas vezes ainda que não saibamos exatamente do que estamos falando e não nos surpreende que cada um tenha um conceito próprio acerca desse termo. Menos surpreendente será o uso original que cada analista faz na sua prática quando utiliza a expressão ouvir o inconsciente O que esse analista quer dizer com esse verbo ouvir? Que dispositivo, à semelhança de Roussillon, construiu para semelhante escuta? Como o decodifica? Talvez com os dados trazidos por Freud no capítulo VII da Traudentung? Lapsos, troca de nomes, sintomas, símbolos presentes nos sonhos? Será suficiente?

Freud invocou a bruxa da metapsicologia (Análise terminável, interminável) e no singular cap. VII nos iluminou com uma radiografia do Inconsciente demonstrando funções, esclarecendo características e estabelecendo leis ou regras de seu funcionamento. Cento e vinte anos depois muitos autores trouxeram luzes ao funcionamento do Inconsciente, mas podemos considerar que ainda engatinhamos nessa jornada compreensiva. A meu entender a dificuldade em definir e qualificar o substrato fundamental da psicanálise – o inconsciente – torna difícil inserir a psicanálise junto às ciências reconhecidas e a deixa alvo de severas críticas. Com licença poética podemos comparar o conceito de inconsciente com a borda do universo, pois este é tão intangível como aquele, mas nem por isso alguém ousa desconfiar que o universo exista.

34. Resumo do caso clínico Dora – Freud 1905

Contexto da obra

Com o nome “Análise fragmentária de uma histeria”, a obra foi escrita por Freud em 1901 (e só publicada em 1905), logo na sequência da publicação de “A Interpretação dos Sonhos” (1900). Tem como objetivos principais ilustrar o trabalho da análise dos sonhos e discutir a formação e tratamento dos sintomas nos quadros de histeria. Acaba abordando também temas como a importância da análise da bissexualidade, a origem da perversão na sexualidade infantil e zonas erógenas. Temas esses que Freud estava pesquisando e desenvolverá nos “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905). Além disso, acaba destacando, até mesmo pelo desfecho negativo que o tratamento teve, o trabalho primordial da transferência na psicanálise. Na obra, vemos um Freud (1905/2016) muito empenhado em demonstrar os resultados de suas investigações teóricas e em encontrar uma aceitação para a psicanálise e pouco sensível à situação de sua paciente e ao contexto familiar e social em que a moça de 18 anos estava inserida.

Modelo

da mente

É relevante destacar que nessa época Freud tinha como modelo a mente formada por inconsciente, pré-consciente e consciente, configurando a chamada primeira tópica. Nesse modelo, tudo podia ser representado, as energias podiam ser ligadas e havia estabilidade na mente. Isso mudará após 1920 e o surgimento dos

35. Sobre o caso Dora

Este breve capítulo pretende chamar a atenção para alguns aspectos do famoso e muito estudado caso clínico da paciente denominada Dora na obra de Sigmund Freud (1905/1953). Algumas das ideias que aqui exponho são certamente conhecidas, já tendo sido abordadas por inúmeros autores, porque o caso de Dora trata-se de um tratamento psicanalítico cujas particularidades ilustram o que é, ou deveria ser, uma psicanálise. Sei que o que vou expor é matéria lida e conhecida dos colegas especialistas, assim, o que exponho tem por objetivo principal relembrar certos detalhes do caso que poderia acrescentar a nossos conhecimentos.

“Fragment of an Analysis of a Case of Hysteria” [Análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”)] (Freud, 1905/1953) é muito estudado porque contém elementos dos primórdios da prática psicanalítica, suas hipóteses teóricas, acertos e equívocos, vislumbres iniciais sobre a teoria e a técnica, que eventualmente vieram a se consolidar e dar fundamentação à nossa prática e ao nosso pensar psicanalítico. Nessa narrativa de Freud, podemos destacar temas que depois se definiram como elementos fundamentais: a transferência (e a contratransferência), com suas variadas manifestações na relação, a motivação e os interesses em jogo no tratamento, por parte do paciente e do terapeuta; as complexidades da vida mental, o valor inestimável dos sonhos para conhecimento do inconsciente e as interferências, inevitáveis, às vezes, perturbadoras ou facilitadoras da evolução do caso, a realidade impactante das relações interpessoais na vida do paciente e do analista, a importantíssima vinculação entre a vida infantil do paciente e sua

36. Sexualidade, gênero, sexo e o Sexual

Partindo de Freud, na constituição do psiquismo, há, como vivência fundamental, a experiência de Satisfação na qual, em um primeiro momento, o bebê mama porque está com fome e, depois de saciado, o sugar continua porque algo ocorre quando traz prazer. Podemos pensar nessa experiência não só como fundante do funcionamento psíquico, mas também como uma das primeiras estimulações sexuais. Sexual, no sentido de o corpo reagindo a um prazer que é impulso de vida.

O bebê, desde seu nascimento e, talvez, intrauterinamente, tem em sua superfície corporal um lugar de prazer ao toque que, ajudado pelos órgãos dos sentidos, poderá experimentar estimulações que farão o psiquismo se desenvolver e desenvolver, também, as várias zonas erógenas da criança.

Levando em conta um dos principais textos de Freud, “Os três ensaios da teoria da sexualidade”, de 1905, podemos perceber ser este um trabalho especial em que Freud, por mais de 20 anos escreveu acréscimos, mostrando que essa pedra fundamental pôde ser completada com mais conhecimentos, à medida que a Psicanálise era também construída.

A ideia da disposição perversa polimorfa, do autoerotismo traz uma importante visão do desenvolvimento sexual e seus desvios sexuais, como eram chamados, assim como a descrição de que a pulsão sexual não tem um objeto definido.

Tudo isso abre espaço para se entender o desenvolvimento da sexualidade.

Para Freud, a perversão receberia a denominação de patológica somente se este comportamento fosse exclusivo e fixo. Assim, ele utiliza a ideia de perversão

37. O Édipo simples e o Édipo complexo: algumas conjecturas sobre a complexidade na psicanálise

Introdução

Neste capítulo destaca-se a complexidade como o fator fundamental para uma definição contemporânea daquilo que se convencionou denominar, a partir de Freud, de complexo de Édipo. Na verdade, trata-se de um vértice que privilegia a ausência de centros estruturais, de núcleos centrais, e a presença de zonas de transição, de fronteiras não rígidas entre aquilo que é e aquilo que não é. A complexidade se define, entre outras características, pela presença e tolerância aos paradoxos. O e em lugar do ou, inclusões em lugar de exclusões. Autores como Winnicott e Bion desenvolveram diferentes noções que levaram em conta a necessidade de pensar a psicanálise como pertencente ao campo da complexidade. Em Winnicott, as noções de zona intermediária, espaço potencial, objetos e fenômenos transicionais etc., se mostraram potentes e necessárias. Com Bion, revela-se a importância de sua teoria sobre o pensar, as noções de modelo espectral, cesura e simetrias heterogêneas, que resultaram fundamentais para discutir a noção de uma ética complexa (Morin) confrontada com a presença da moralidade, a ética simples (Morin). As lógicas binárias excludentes da moral se confrontam com as lógicas terciárias ou edípicas, da ética. Busca-se por meio dessas noções trazidas à psicanálise por Bion, discutir, refletir e revitalizar o (seu?) pensamento psicanalítico sobre a importância da complexidade na ampliação teórica e clínica do conceito de complexo de Édipo na atualidade.

38. Em torno da cena: sexualidade, arte e psicanálise

O espectador convidado a participar como parceiro da obra, a percorrê-la não apenas com os olhos, mas também com o corpo, tem sido uma das marcas relevantes observada na arte contemporânea. As obras, que nascem sem dúvida das fantasias do artista, são criadas de forma aberta como algo incompleto, plural, descentrado, e nesse caminho enlaçam o outro, convocando o sujeito a fantasiar, a se apropriar, a reconstituir a seu modo, na sua experiência. Como se sabe, dentro dessa perspectiva não linear está o objeto de busca da psicanálise, que se aproxima do sujeito na sua errância, nos seus desvios, naquilo que lhe escapa. Conhecer o mundo também pelas suas frestas, pelo que surpreende, sem a preocupação em se alcançar uma visão totalizante dos fenômenos, pode ser um bom ponto de partida para o diálogo entre psicanálise e a arte, em todas as suas manifestações.

Uma das abordagens nesse complexo campo de relações entre arte e psicanálise vai na direção de deixar a obra falar, onde o espectador pode se deixar afetar pela criação do artista. Trata-se de um exercício de conhecer e ver as construções artísticas à maneira de um psicanalista diante das experiências vividas. Dados abordados por meio da atenção flutuante da escuta psicanalítica, fiel ao método inventado por Freud, que insere o observador de modo encarnado, transformando seu inconsciente em instrumento de trabalho, tal como acontece no campo transferencial psicanalítico.

Jorge Coli, professor titular em História da Arte e da História da Cultura da Unicamp, em uma Aula Magna ministrada na Unicamp, dá ênfase ao que considera fundamental na formação de um historiador da arte. Na sua trajetória, além

39. Arte e sexualidade

Para abordar o tema Arte e Sexualidade, escolhi o vértice do encontro entre obra & espectador. Focalizo meu olhar na confluência entre duas mentes, inspirada pela clínica psicanalítica, em que duas mentes se entrelaçam e – caso haja campo favorável – alcança-se uma linguagem, que anuncia o grande acontecimento que é o encontro humano.

Como diz Derrida (2004), a chegada do outro é da ordem do incalculável, o que inclui o mistério. O encontro humano excede a máquina, diz ele. Afirmação relevante nesses tempos maquinais que estamos vivendo, em que há uma espécie de risco de que a máquina possa exceder o humano…

Sobre o encontro com o outro, Derrida escreve:

Isso [o que chega] pode muito bem ser igualmente uma “vida” ou mesmo um “espectro” de forma animal ou divina sem ser “o animal” ou “Deus”, e não apenas um homem ou uma mulher, nem uma figura sexualmente definível segundo as garantias binárias de homo ou heterossexualidade.

Eis o que pode ser, o que deve ser um evento digno desse nome, uma chegança que me surpreenda absolutamente … o que chega ou que funda em mim, aquilo a que estou exposto, para além de qualquer controle. (Derrida, 2004, p. 69)

Desde Freud (1905/1989) sabemos que a sexualidade está presente nas relações interpessoais, quaisquer que sejam: nas relações amorosas (nessas, aceita-se como

40. O masculino em turbulência1

Introdução

Ao pensar sobre o masculino, e, consequentemente, o homem, devemos nos ater, enquanto psicanalistas, na sua psicossexualidade? Sim e não. Pois, se a Psicanálise, desde o princípio, demonstrou que nem o feminino se refere apenas à mulher, nem o masculino ao homem, a norma comum tende a fazer esse tipo de reducionismo. Assim, é mister pensar tanto o masculino como conceito psicanalítico, como as formas com que ele vai se produzindo na cultura.

Sob essa perspectiva, a desconstrução das tradicionais concepções de masculino e feminino, impulsionada pela revolução cultural pós-feminista e pelas teorias psicanalíticas, fragilizou as definições tradicionais e binárias de gênero. Com isso, um número cada vez maior de gêneros vem sendo anunciado, o que motivou a adesão de muitos conservadores às agendas anti-LGBTQIA+, defendidas pela extrema-direita. Diante disso, não nos é estranho ver tantos movimentos conservadores incentivarem uma masculinidade pura, alheia a quaisquer resquícios de feminino no ideal de Homem que se quer promover. Ao entremear cultura e psicanálise, busco pensar as masculinidades atuais, de forma a ilustrar algumas das questões que nos chegam ao consultório hoje.

Neste capítulo, ademais de listar algumas das masculinidades já nomeadas, proponho uma ideia de masculinidade ainda pouco conhecida e discutida, que decorre de uma série de estudos sociais, culturais e psicanalíticos.

1 Originalmente publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, 59(2), 2025

41.

A relação espectral tumulto ←→ harmonia, a construção do olhar e a possibilidade da palavra que toca o coração1

Um dos pontos básicos da existência humana é a percepção das relações interpessoais e dos afetos que são despertados por essas relações. O ser humano, no contato com outras pessoas e seu entorno, depara-se com um espectro entre a harmonia e o tumulto e as consequências advindas dessas relações. Freud (1915/1987) propôs que o ser humano é portador de necessidades instintuais que o dirigem a uma busca do atendimento de suas satisfações no meio externo. Bion (1962/2021) propõe que o ser humano nasce com um conjunto de preconcepções que visam o encontro de sua realização. Muitas vezes, é a partir dessa relação do indivíduo com os outros, que o ser humano alcança a necessidade de relacionar-se consigo mesmo.

Será então possível perceber uma realidade psíquica que promove afetos, representações, fantasias, percepções e encobrimentos em cada um dos participantes dessas relações? O pessoal e o interpessoal se interpenetram. Desse modo, a percepção da dimensão espectral do tumulto ←→ harmonia, pode ser mais bem observada.

Freud (1925/1987d), partindo da distinção anatômica entre o menino e a menina, no contexto da sexualidade infantil, ilustrou esses movimentos psíquicos em seu texto “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”. Observa-se que a dimensão do perceber e ocultar, dos afetos e do sentimento, do pensamento e da fantasia, da ação e da passividade estão profundamente relacionados e se interinfluenciam, na dinâmica própria intrapessoal e interpessoal.

1 Trabalho apresentado no Encontro “O tumulto das diferenças – sexualidade – elaboração – expansão”, realizado em Curitiba nos dias 27 e 28 de junho de 2025

42. A mulher que não estava lá1

IAo pensar sobre qual caminho tomaria para organizar essa apresentação, veio-me a lembrança uma pessoa, que atendi durante vários anos, com questões importantes a respeito do seu corpo/gênero, motivo pelo qual buscou análise comigo, permanecendo por vários anos, numa frequência de cinco sessões semanais.

Relendo sobre essa experiência, após alguns anos do término desse trabalho analítico, percebo quantas mudanças se deram comigo e na minha forma de pensar e trabalhar em psicanálise. Provavelmente, eu trabalharia de forma diferente de como pude fazer naquele momento, considerando as questões de gênero com as quais ela se apresentava, como aspectos profundamente perturbados das experiências e da personalidade dessa paciente, na qual a realidade emocional se apresentava em grande parte não representada, impensável e não-experenciada. Portanto, seria necessário ir além dos limites das representações para um trabalho analítico ontológico-experiencial em direção a condição de ser-um-com-a-realidade-psíquica (at-on-ment).

Lembro aqui algumas ideias que Bion desenvolveu ao final de sua vida (entre 1976 e 1979), quando passou a ter uma nova visão sobre o funcionamento mental,

1 Celia Maria Blini de Lima escreveu um trabalho cujo título “Procurando o homem que não estava lá” (2005) serviu-me de inspiração para o título desse texto.

43. As múltiplas faces da sexualidade: entre o desejo, o pensamento e o inacabado.
Um ensaio psicanalítico1

“Se os mitos privados são usados reforçando uma causalidade linear, dão lugar a símbolos estereotipados com um significado fixo que lhes impede evoluir. Esta cristalização do significado simbólico, seguramente alcançado através de mecanismos de controle onipotente, reduz o símbolo a um sentido unívoco, cristalizado em um só vértice e desvitalizando por sua vez a experiência emocional.”

Lia P. de Cortiñas e Silvia N. de Dimant (In Bion, Conocido/desconocido, 1999)

Introdução

Sexualidade: tradição e invenção

O tema desta apresentação decorre de algumas reflexões que venho fazendo sobre o tema do Congresso Brasileiro de Gramado e aqui de nosso Pré-Congresso, sobre a sexualidade em suas múltiplas faces. Por uma questão de tempo vou me resumir assinalando aspectos vinculados à dicotomia tradição e invenção. Esclarecendo melhor, entendo a abordagem da sexualidade como um arcabouço teórico clínico ligado à tradição, e a sexualidade como “coisa-em-si”, uma realidade última como invenção que escapa a qualquer saber objetivo, algo como o “O” (Realidade última de Bion) de uma sexualidade encarnada. Seria uma

1 Trabalho apresentado em Curitiba, no dia 28/06/2025, no Pré-Congresso ao Congresso Brasileiro da Febrapsi de Gramado.

44. Ilusões da igualdade: espelho e realidade

Vou partir da proposta tradicional dos Congressos: resgatar e homenagear o centenário de textos capitais de Freud. Sendo um clássico, ou seja, um texto que continua a dizer, expandir e lançar questionamentos, mesmo muito tempo após ter sido escrito, fazendo-nos parecer que o estamos lendo pela primeira vez, trata-se de um estímulo valioso. Possui uma ligação com outros textos de anos anteriores e posteriores, dentro de um processo elaborativo. Visando iluminar fenômenos da clínica, Freud buscava os mecanismos envolvidos nas psicoses, desde 1911, com Schreber, quando descreveu a projeção, sua relação com o narcisismo, a paranoia e a homossexualidade. Novamente no terreno da sexualidade, mais precisamente das descobertas e teorias sexuais infantis, desde 1905 (“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”), “Organização sexual infantil” (1924), Freud observou um mecanismo diferente da repressão, que chamou verleugnung, traduzido por recusa. Freud usava palavras da linguagem coloquial germânica, transitando entre a cultura, a psiquiatria e a alma humana, que apresentam complexa rede de significado. Neste caso, resumidamente, leugenen significa “negar”, “desmentir”, “contestar a veracidade”. Ou ainda, corresponde a algo ambíguo, entre a verdade e a mentira. Seus significados podem referir-se a: 1) desmentir algo; 2) agir contra a própria natureza; 3) negar a própria presença (mandar dizer que não se está presente. Considerando a negação da percepção da ausência de pênis na menina como um protótipo da recusa incidindo no primeiro momento da psicose. A consequência dessa negação seria a instituição de duas correntes independentes no interior do psiquismo: uma que percebe a realidade e outra que nega a percepção,

45. O anatômico e o psíquico: do tumulto das diferenças às funções feminina e masculina da mente

Se Freud pudesse retomar a existência corporal hoje, ele ficaria surpreso ao encontrar sinais externos voltados não tanto a marcar a diferença entre os sexos, mas [de] torná-la menos nítida. (Scarfone, 2019)

Já vivi bastante para ver que a diferença gera ódio… (Stendhal, O vermelho e o negro, 1830/2021)

Costumeiramente expressamos que aceitamos as diferenças, mas observo que, de maneira reiterada, as colocamos como contrários, opostos e não complementares. Realmente o diferente nos incomoda, pois nos apresenta a incompletude, como na epígrafe em que Scarfone salienta que Freud ficaria surpreso, nos tempos atuais, ao perceber sinais externos voltados não tanto a marcar a diferença entre os sexos, mas de torná-la menos nítida. E, se a diferença for inconciliável, são acionadas fantasias de onipotência em prol de um idílio no qual a busca por “igualdade de direitos”, maior do que a por oportunidades, dispersa mais do que contribui para nos tornar quem somos (independentemente de questões de gênero). Mais con(fundindo) e endossando a certeza de que é o outro que atravanca o nosso caminho, assim como Sartre assinala: “o inferno são os outros”.

Viva a igualdade, entoamos com vigor, muitas vezes calcados em uma moralidade que abone as defesas maníacas, afiançados pelo discurso narcísico.

46. Pornografia e subjetividade: reflexões psicanalíticas

A internet, especialmente por meio de jogos e redes sociais, tornou-se uma realidade alternativa, um espaço onde muitos buscam refúgio. Esse habitat digital é tão sedutor que alguns falam sobre as estratégias que utilizam para evitar a armadilha de um envolvimento excessivo, temendo não conseguir escapar. Nesse contexto, a pornografia emerge como uma manifestação complexa que, embora muitas vezes confundida com o erotismo, carrega nuances distintas. Os limites entre esses dois conceitos podem se tornar nebulosos, dependendo da subjetividade de quem observa. O erotismo pode ser utilizado com fins pornográficos, enquanto o que é considerado pornográfico pode ser sentido como erótico, revelando a fluidez entre essas categorias.

Na perspectiva psicanalítica, a pornografia é um recurso que o desejo utiliza ao recorrer a fantasias emprestadas para animar a vida sexual. Ela se torna um meio que permite explorar o ato de olhar e ser olhado, funcionando também como uma forma de “sexo global” imaginário. Assim, a pornografia pode ser vista como um aditivo para o desejo, uma tentativa de viabilizar a relação sexual ou de fortalecer o cenário para a masturbação.

Entretanto, o encontro precoce com a pornografia pode deixar crianças e adolescentes com imagens e questões que ainda não conseguem processar adequadamente. O drama que essas exposições precoces podem gerar é o analfabetismo erótico e amoroso que ela pode desenvolver. A vida sexual, longe de ser um centro elevado das fantasias masturbatórias, frequentemente se torna uma experiência em que o outro é reduzido a condição de objeto. Embora essa dinâmica possa ser

47. Pensando em histórias que me contaram

Solange Luiz Caldas dos Santos

Nas histórias que me contaram

Encontrei elementos para minha participação neste livro. Foram conversas em que estava presente este tema fundante da psicanálise: sexualidade e seus tumultos.

O estímulo também veio da minha participação em um grupo que estuda a função feminina e a função masculina da mente, coordenado pela Cleuza Perrini, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e de um grupo que estuda a obra de Clarice Lispector, coordenado pelo Carlos Vieira, da Sociedade de Brasília.

O meu modo de olhar para esses dois contos de Clarice Lispector, que apresentarei a seguir, foi estimulado pela presença do que resultou em mim como participante desses grupos. As função feminina e masculina da mente, quando integradas, favorecem que a incompletude presente, em cada um de nós, ceda lugar a um potencial de desenvolvimento. Encontrei nesses contos elementos para intermediar uma conversa.

Não penso em discuti-los, a intenção é tomar emprestados personagens e parte do enredo de Clarice Lispector como ponto de partida para nossa conversa. Como Clarice não nomeia seus personagens, seguiremos ela nesse gesto, não faria sentido dar nomes. A única figura identificável é a narradora. Nos contos, é Clarice; aqui, sou eu.

Os contos são: “Felicidade clandestina” e “Restos do Carnaval”, que, juntos com “Cem anos de perdão”, compõem a chamada “Trilogia do Recife”, histórias de crianças destinadas ao leitor adulto (Brites, 2021). Todos estão reunidos no livro

48. Buscas incessantes: o abrigar em mim e o habitar-se em si mesmo1

A busca: uma força inerente ao ser

I can’t go on. I’ll go on.

[Não posso continuar. Vou continuar] (Beckett, 1958, p. 103)

Desde que temos notícias dos movimentos da existência humana, uma força motriz parece impulsionar-nos para além do conhecido, para a exploração do inédito. Intrigam-me os movimentos do ser que se configuram como essa busca constante. Nos primórdios da nossa história, por exemplo, movido por esse algo que mistura necessidade e curiosidade, o humano dominou o fogo, inventou a roda, concebeu as canoas de tronco e assim por diante. Em contrapartida, o mesmo humano foi impelido por seus impulsos à escravidão, guerra, morte…

A história é, em parceria com outras áreas do saber (filosofia, arte, ciência etc.) a narrativa dessas incessantes buscas e de suas miríades de invenções, conquistas que transcendem o âmbito puramente material.

É a partir da interação desses movimentos divergentes que carregam em si uma busca incessante que apresento aqui uma forma de olhar o tumulto das diferenças. Nesse caso, o tumulto advindo da tensão intrínseca a essas interações na

1 Trabalho apresentado no Encontro Pré-Congresso intitulado Tumulto das Diferenças Sexualidade – Elaboração – Expansão, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Curitiba (SBPCuritiba), com apoio da Febrapsi, em 28 de junho de 2025

49. Caso Dora: os tumultos da escuta1,2

Inicio este capítulo com o relato de uma sessão realizada no início da análise de uma jovem de 17 anos. Ela compartilhou a seguinte experiência:

“Quando estava com 13 anos, aconteceu-me uma coisa, um amigo muito próximo da família havia marcado um encontro comigo e outras pessoas para assistirmos a uma procissão da sacada de sua loja. Quando cheguei, percebi que ele havia dispensado todos os funcionários e não havia nenhum convidado, ficando apenas nós dois. De repente, ele me encurralou num canto da escada e me beijou à força. Senti um nojo enorme e fugi. Nunca contei isso para ninguém e desde esse dia evito estar sozinha com esse homem.”

O analista ouve em silêncio enquanto pensa: “o comportamento dessa garota é completamente histérico, em vez de uma sensação genital, que certamente não faltaria numa jovem saudável em tais circunstâncias, ocorre nela a sensação desagradável de nojo”.

Quando me deparei com essa sessão, fiquei bastante incomodada. Encontrava-me diante da narrativa de uma cena de abuso sexual, ocorrida com uma garota de 13 anos e que, para mim, não parecia ter sido verdadeiramente ouvida pelo seu

1 Trabalho apresentado no Encontro Preparatório para o 30o Congresso de Psicanálise da Febrapsi, realizado em Curitiba em 27 e 28 de junho.

2 Agradecemos à Editora-Chefe da Revista da SPPA, Ana Cristina Pandolfo, que autorizou a publicação deste capítulo que contém parte de um artigo intitulado “Compreendendo Dora através do enactment”, o qual foi parte integrante da referida Revista.

50. Identidade de gênero − sua importância na prática analítica: uma visão teórica1,2

Freud deixou-nos importantes instrumentos psicanalíticos para a compreensão da sexualidade humana e seus distúrbios. Porém, desde o início da história da psicanálise, algumas de suas descobertas foram contestadas por vários autores, destacando-se Horney (1924) e Jones (1933, 1935).

O estudo do desenvolvimento emocional da criança feito por Klein (19211960) e seus seguidores, trouxe importantíssimas contribuições, permitindo o conhecimento da sexualidade infantil de forma mais profunda, com a psicanálise de crianças.

Na década de 1960, Stoller iniciou seus estudos sobre a identidade de gênero e sua conceituação, trazendo novas discussões sobre o tema. Embora desconhecido até hoje pela maioria dos psicanalistas, a sua contribuição é extraordinária permitindo-nos compreender melhor os pacientes com distúrbios da sexualidade,

1 Trabalho apresentado na Reunião Científica de 9 de junho de 1997 da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro. Apresentado à International Psychoanalytical Association, Research Training Programme, Fellow desde 27 de junho de 1997, Barcelona Congress. Apresentado, por convite, à SPP em 4 de outubro de 1997

2 Os autores têm o objetivo de esclarecer, teoricamente, conceitos básicos sobre identidade de gênero e sua importância para a psicanálise. Examinam e criticam alguns conceitos de Freud na teoria da sexualidade e acompanham ideias que se desenvolveram até a atualidade, tais como, bissexualidade, masculinidade e feminilidade. Examinam questões difundidas atualmente entre o público leigo, mencionando distúrbios como o transexualismo, o travestismo, e as últimas contribuições médicas sobre o assunto.

51. Novas formas de subjetivação na clínica

O tema escolhido para a trigésima jornada da Febrapsi – “Sexualidade: o tumulto das diferenças”, que ocorrerá no mês de outubro do corrente ano, na cidade de Gramado/RGS, sem dúvida, já está nos provocando a pensar e analisar sobre a temática, como também, sobre o nosso papel, como psicanalista na atualidade, e as grandes mudanças no mundo contemporâneo. Nesse sentido, o presente texto tem o intuito de provocar uma reflexão filosófica e psicanalítica sobre a diversidade sexual e de gênero, e sobre as novas formas ou novos formados de subjetivação que vem aparecendo na nossa clínica contemporânea.

Pensar este tema é fundamental para nós psicanalistas, é uma forma de nos responsabilizarmos pela psicanálise e pelo seu legado para as próximas décadas. Na história da psicanálise atestamos seu avanço e os seus benefícios para a civilização sobre a barbárie. No livro “Porque a Psicanálise?” de Elisabeth Roudinesco, a autora procura responder a relevância e a importância da Psicanálise para a atualidade, mesmo se deparando com as dificuldades institucionais e críticas que enfrenta. Como diz a autora:

A morte, as paixões, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr termo a isso, felizmente. A psicanálise atesta um avanço da civilização sobre a barbárie. Ela restaura a ideia de que o homem é livre por sua fala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico.” (Roudinesco, p. 4)

52. Trans-adolescências: indagações a partir da clínica1

Ana Maria Sabrosa Gomes da Costa Nogueira

Cassiane Crestani

Haydée Cortes de Barros Silveira Piña Rodrigues

Marcela Couto e Silva de Ouro Preto Santos

Maria Noel Brena Sertã

O prefixo trans é oriundo do latim e significa “além de”, “para além de”, “o outro lado” ou “o lado oposto”. Será que ser adolescente não seria em si ser “trans-alguma-coisa”?

Turbulência, transição, transgênero

A adolescência é um processo fortemente afetado pela cultura e por todas as mudanças do mundo. Temos visto tantas transformações nos últimos anos que, quando pensamos as turbulências emocionais de nossos pacientes adolescentes, em suas vivências singulares, as indagações são em maior número do que as respostas que temos a oferecer.

Cada vez mais nos parece importante a ideia de que em psicanálise o sujeito precisa ser visto em sua singularidade, para além das teorias (que evidentemente estão em nós) e todo encontro psicanalítico é absolutamente único, irreplicável e praticamente irreproduzível.

Estamos de acordo com os que entendem o momento da adolescência como um período de reorganização simbólica, em que as representações da infância – incluindo as figuras parentais idealizadas – entram em xeque e precisam dar espaço

1 Este capítulo foi preparado para o 35o Congresso Latino-Americano de Psicanálise, realizado no Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 2024. Foi apresentado por Ana Maria Sabrosa e comentado por Ruggero Levy e Luiz Celso Toledo. O tema central do congresso foi “Intolerância, fanatismo e realidade psíquica”.

53. Bissexualidade e subjetivação

Introdução

Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (Freud, 1925), texto centenário, foi escolhido para dar norte ao tema do Congresso da Febrapsi de 2025, “completa”, por assim dizer, a teorização de Freud sobre o complexo de Édipo ao assinalar os diferentes desdobramentos de sua resolução no menino e na menina. “A anatomia é o destino”, frase emblemática que marca a concepção freudiana da inexorabilidade do comportamento do homem e da mulher ante a ferida narcísica da castração, das diferenças sexual e geracional, e de seus decorrentes papéis psíquicos e sociais. Esse texto, em apertada síntese, considera a concepção da castração – ausência do falo – como resolutiva da conflitiva edípica no menino e fundante na menina: no primeiro, a pulsão autoconservativa levaria ao abandono do investimento sexual na figura materna e à consolidação da identificação com a figura paterna; na segunda, a “constatação” da ausência de pênis acionaria impulsos agressivos à mãe e escolha do pai como objeto amoroso, posteriormente, substituído pela maternidade, pela criação artística ou pela homossexualidade. Freud considera que a feminilidade é um caminho mais tortuoso e difícil que o masculino, em termos psíquicos, uma vez que, além da substituição do objeto primário de amor, na mulher haveria a mudança da zona erógena clitoridiana pela vaginal, considerada por ele como representante da maturidade sexual. O tema da bissexualidade perpassou toda a obra de Freud, desde sua carta a Fliess de 1º de fevereiro de 1896, na qual menciona a ideia de uma bissexualidade inata e sugere que todos os seres humanos carregam em si disposições tanto

54. Primeiro, não cause danos: reflexões

adicionais sobre o distúrbio de identidade de gênero em crianças e adolescentes

Desde a publicação de um artigo na Revista Internacional 2021 (Bell, 2021), continuei profundamente engajado na compreensão dos distúrbios de identidade de gênero em crianças e adolescentes. Esse, é claro, continua sendo um assunto que mobiliza sentimentos e desentendimentos intensos e, ao longo dos anos, respondi a várias críticas. Mas antes de me voltar para isso, posso, agora que me aposentei da Tavistock, dar mais detalhes sobre os antecedentes.

Durante um período em 2018, um terço de todos os funcionários que trabalhavam no GIDS (Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero da Tavistock para crianças e adolescentes) me abordaram, com profundas preocupações éticas e clínicas sobre a forma como crianças e jovens estavam sendo mal administradas. Eles me procuraram porque eu era seu representante no Conselho de Governadores da Tavistock. Todos, exceto um, se sentiram incapazes de me encontrar em meu gabinete na Tavistock e, em vez disso, foram entrevistados em meu consultório particular, alertando-me sobre o nível de ameaça e intimidação a que estavam expostos. Um terror de ser “descoberto”, de ser acusado de ser “transfóbico”. Ou seja, o engajamento ponderado foi tratado como uma espécie de inimigo – uma experiência bastante familiar para médicos que trabalham em serviços de gênero.

Essa intolerância à dúvida e ao pensamento que caracteriza certos tipos de estados mentais aqui se extravasa e se torna uma força no âmbito social.

Isso reflete uma transformação cultural mais ampla que afeta muitos discursos, às vezes chamados de “cultura do cancelamento”, um mundo binário peculiar

55. Sexualidades

É isto, amor: o ganho não previsto, O prêmio subterrâneo e coruscante, Leitura de relâmpago cifrado, Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre, Salvo o minuto de ouro no relógio Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite, Depois de se arquivar toda a ciência Herdada, ouvida.

Amor e seu tempo (Carlos Drummond de Andrade, 2012)

No mundo em que vivemos, não é novidade para ninguém que ideais questionáveis como a religião, a política, o poder e, consequentemente, as tentativas frustradas de abolição das diferenças, não guardam nenhuma relação com a psicologia, a medicina, a psicanálise, a ciência, mas podem dar origem, e dão, como assistimos cotidianamente, ao preconceito e à violência.

Quatro anos antes de sua morte, Freud recebeu a carta de uma mãe, solicitando que ajudasse seu filho. A resposta enviada há 87 anos, continua fundamental e deveria nos surpreender por ainda tornar-se necessária.

56. Da neurótica ao inconsciente: a sexualidade na psicanálise1

Um estudo aprofundado das manifestações sexuais infantis provavelmente revelaria os traços essenciais do instinto sexual, mostraria seu desenvolvimento e nos faria ver sua composição a partir de várias fontes. (Freud, 1905/2019a, p. 73)

De alguma forma, considerando-se a ampla discussão a propósito do tumulto das diferenças na contemporaneidade, ou talvez estejamos equivocados e tenha sido desde sempre, poderíamos pensar que essa epígrafe é uma contribuição psicanalítica recente. Entretanto, a citação é de Freud (1905/2019a) nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, o ensaio sobre a sexualidade infantil, em que há mais de um século, Freud ratificou a teoria sobre a vida sexual dos seres humanos. Olhando ainda mais retrospectivamente, outro marco referencia para o conhecimento atual, a celebre carta de Freud a Fliess, datada de 21 de setembro de 1897, que anuncia o abandono da sua “Neurótica”. A cena de sedução na história das pacientes histéricas, da qual Freud se ocupara durante os últimos quinze anos até então, deixa a cena do trauma real, que originaria a neurose. Entra em cena, para se estabelecer até a contemporaneidade, o resultado da compreensão freudiana da fantasia de sedução e demais fantasias, com valor de realidade psíquica. Talvez nos seja possível pensar que lá, Freud realizou o primeiro corte epistemológico na

1 Trabalho para a XXVI Jornada de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPRPE), XXII Encontro de Psicanálise da Infância e Adolescência, Encontro Preparatório para o 30º Congresso Brasileiro de Psicanálise, em 2025

57. Constituição da sexualidade humana: visão a partir do bebê1

A “cria humana” – o bebê – atravessa um período de dependência absoluta no primeiro ano de vida em especial e, em proporção decrescente, nos dois anos subsequentes. Nos primeiros tempos o bebê é vulnerável e dependente de quem dele cuida. O desamparo impera!

A qualidade dos cuidados físicos e do amparo emocional que o bebê recebe estrutura o psiquismo do pequeno ser em desenvolvimento, lança as bases para a integração psíquica da sexualidade, bem como as bases de seu funcionamento mental.

Freud impacta o conhecimento da sua época e rompe paradigmas ao nos apresentar uma nova dimensão do conhecimento: a sexualidade infantil como constitutiva do ser humano; a sexualidade humana nascente já nos primeiros contatos do bebê com quem dele cuida. Ele também abre caminhos ao destacar a interação inerente entre o biológico e o psíquico – entre o corpo e a mente. Postula a pulsão (1915) como o representante psíquico de um estímulo que nasce no corpo, uma exigência de trabalho constante, âmago da constituição do psiquismo e estruturante da subjetividade humana. O bebê como um ser pulsional, um ser desejante.

Diferentemente do instinto animal, que já traz em si uma direcionalidade de objeto de satisfação, a sexualidade humana é marcada pela ausência de objetos de satisfação definidos previamente. A pulsão busca a satisfação. A sexualidade

1 Trabalho apresentado na XXVI Jornada da Sociedade Psicanalítica do Recife; XXII Encontro de Psicanálise da Criança e do Adolescente da Sociedade Psicanalítica do Recife e Evento Preparatório para o 30º Congresso da Federação Brasileira de Psicanálise.

58. O tempo do paradoxo: sobre os sofrimentos de gênero na criança e no adolescente

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Clarice Lispector, 2002

Desde o rompimento do milênio, a humanidade tem assistido a extraordinárias mudanças, nas mais diversas áreas que contemplam a sua existência. Dos costumes às tecnologias, da geopolítica às sexualidades, do que consideramos infância ao que nomeamos velhice, nenhum aspecto parece escapar às profundas transformações, pondo-nos a observar, entre curiosos e assustados, para onde caminha a nossa civilização. Uma dessas inovações, por impactar na saúde física e mental de crianças e adolescentes, merece a nossa especial atenção. Refiro-me ao quadro emocional que a medicina mui recentemente nomeou de disforia de gênero, e à indicação de redesignação sexual para crianças e adolescentes como alternativa de tratamento.

Em palavras simples, a disforia de gênero é o subjetivo sentimento de não pertencer ao sexo que o corpo biológico informa, cuja ocorrência na infância é delimitada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos mentais (DSM-5) a partir de oito critérios que avaliam esse aspecto de sua subjetividade. Diante da importância desta referência para o nosso estudo, citarei integralmente os itens elencados, tal como se apresentam no Manual (American Psychiatric Association, 2014):

Disforia de Gênero em Crianças 302.6 (F64.2)

A. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis

59. Ensaio sobre os vínculos amorosos

“Toda concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta.”

(George Bataille)

“I love thee with a love I seemed to lose With my lost saints – I love thee with the breath, Smiles, tears, of all my life! – and, if God choose, I shall but love thee better after death.”

Elizabeth Barrett Browning, “How do I love thee?”

O mais interessante quando abordamos a questão do amor é o fato de ele ser uma palavra polissêmica, que possui uma longa lista de definições. Entretanto não podemos deixar de reconhecer que nele reside uma possibilidade única de unir, numa relação particular, dois sujeitos humanos. Podemos observar que a experiência do vínculo amoroso é a que mais realiza o homem como sujeito. E aquela que mais fortemente confere significado à vida e ao desejo. Ao mesmo tempo, esse vínculo pode ser, como poucas, uma experiência de grande desilusão e sofrimento.

Segundo Roland Barthes (2003), encontramos pela vida milhões de corpos; e, desses milhões, podemos até mesmo desejar centenas. Dessas centenas, amamos apenas um. E este pelo qual estamos apaixonados designa a especialidade do nosso desejo. Muito significativa na esfera do amor, essa é a condição pela qual o

60. Perversão e poder

Portanto, uma vez que não posso e não sei agir como um amante, a fim de me ocupar nestes dias de elegância e de eloquência, estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje.

(Shakespeare, Ricardo III, Primeiro Ato, Cena 1)

1

Desde quando escrevi A paranoia do soberano (2000), tenho reiteradamente afirmado que a paranoia é a doença do poder. E agora, sem abdicar do sistema conceitual desenvolvido, tanto no citado livro quanto no Inimigo necessário (2015), quero trazer para a reflexão sobre o fenômeno político o tema da perversão. Neste capítulo, articulo o tema da paranoia às manifestações perversas, seja na política, seja na religião.

O conceito de perversão vem se constituindo ao longo da história da sexologia e da psiquiatria, tendo adquirido feição mais definida na teorização de Freud (1905/1972), nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. O texto freudiano, entretanto, está centrado nas perversões sexuais, sendo o gozo pela violência pouco examinado nas produções psicanalíticas. O mal radical será tematizado por Freud nas chamadas obras sociológicas, nas quais a destrutividade surgirá como fenômeno antropológico. Eros e Tânatos estarão unidos no sadismo e no masoquismo. Assim, a libido poderá ser uma atenuante para a destrutividade tanática, mas essa condição se trans-forma quando prevalece a pulsão de morte. O sublime

61. Trauma, abusos sexuais e pedofilia

Ao longo das minhas vivências no atendimento psicanalítico, observei que os maiores traumas foram identificados em analisandos que sofreram abusos sexuais.

Na minha compreensão, as crianças e os adolescentes, em geral seduzidos, ao serem abusados sexualmente, sentem uma excitação que não conseguem conter. A violência sexual sofrida por eles ressoa em suas mentes, causando inúmeras sequelas psicológicas, que variam desde a inapetência sexual até o suicídio. Essas vítimas ficam envergonhadas com o abuso, muitas vezes passam a usar drogas, sentem dúvidas sobre sua sexualidade, deprimem-se e podem até morrer.

Quando crianças, ficam com medo; desenvolvem sintomas neuróticos; têm pesadelos e problemas escolares; apresentam agressividade e, por vezes, são regredidas.

A esse respeito, Cosimo Schinaia (2015), membro didata da Sociedade Psicanalítica Italiana, ressalta a grande responsabilidade que o molestador, inserido em uma relação assimétrica de poder com o molestado, assume, na medida em que causa danos gravíssimos, às vezes irremediáveis, ao desenvolvimento psicoemocional da vítima, podendo ser responsável, inclusive, por sua morte.

Todavia por meio da análise, felizmente, é possível ajudar essas pessoas a elaborarem melhor a violência sexual vivenciada e, assim, a não sucumbirem ao trauma.

Como exemplo disso, citarei alguns trechos de sessões de uma analisanda, que denominarei “Márcia’’ e que foi vítima de abusos sexuais cometidos pelo avô.

Márcia era uma moça com boa aparência. Os pais dela, ambos profissionais liberais, mantinham um casamento bem estruturado.

62. As pesquisas sexuais em pessoas com síndrome de Down

Se você deseja que seu adolescente mude, mude seu olhar sobre ele!

A motivação deste trabalho é apresentar os primeiros achados sobre as pesquisas sexuais de adolescentes e jovens adultos com trissomia do cromossomo 21 (T21) – amplamente conhecida como Síndrome de Down (SD) –, vinculados à Associação Fortaleza Down, com base nos atendimentos realizados no segundo semestre de 2024.

Antes de avançarmos na discussão do material, cabe destacar que a formação dessa proposta de atendimento nasceu da queixa de um dos jovens, aqui chamado de Vitor. Na ocasião, ao conversarmos sobre questões do cotidiano, Vitor sugeriu a criação de um espaço, na associação, onde pudesse sobre as inquietações que o atravessavam, próprias de quem busca construir e sustentar um relacionamento afetivo com outra pessoa. A essa queixa, somaram-se a de outras pessoas, mas tomo como exemplo a queixa de Vitor que não sabia como enfrentar as dificuldades vividas com a namorada e temia que, frente à permanência das dificuldades, pudesse ocorrer o término do relacionamento.

As solicitações dos jovens somaram-se a situações vividas no contexto social da associação. Cito, entre elas, uma conversa entre as mães de um jovem casal de noivos, que discutiam sobre em qual das casas seus filhos morariam após o casamento. Na ocasião, testemunhei o aumento do mal-estar quando perguntei se elas haviam consultado os filhos sobre o que pensavam a respeito ou mesmo

63. Freud e Winnicott: cada qual no seu tempo

Fases do desenvolvimento infantil com aportes

da Observação de Bebês-Método Esther Bick1

A maneira como o bebê é mantido e cuidado nos primeiros meses de vida influencia profundamente a sua capacidade de formar vínculos e de enfrentar o mundo emocionalmente.

(Esther Bick)

A psicanálise, desde suas origens, se debruça sobre a infância como um campo decisivo na constituição do sujeito. Sigmund Freud, ao formular a teoria da sexualidade infantil, inaugurou uma nova forma de pensar o desenvolvimento ao afirmar que o desejo inconsciente e a pulsão sexual estão presentes desde os primeiros anos de vida. As suas cinco fases do desenvolvimento psicossexual – oral, anal, fálica, latência e genital – oferecem um modelo estruturante, baseado no corpo e nos conflitos intrapsíquicos que atravessam a infância.

Embora outros autores, como Karl Abraham (1924), tenham aprofundado as fases do desenvolvimento psicossexual propostas por Freud, destacando a importância das experiências precoces na formação da personalidade, e suas contribuições tenham influenciado pensadores como Melanie Klein e Donald Winnicott, que expandiram essas ideias com foco nas relações objetais e no ambiente. Neste capítulo, darei ênfase a Winnicott, especialmente em razão de sua trajetória como pediatra, atuando diretamente com mães e bebês.

1 Ancorado nos principais pressupostos da psicanálise.

64. Édipo polimorfo precoce: fenômenos

identitários, subjetivação e questões de gênero na contemporaneidade

Introdução

A população LGBTQIA+ vem crescendo. Na clínica é cada vez mais frequente adolescentes que manifestam dúvidas quanto à sua identidade, gênero e escolha das fontes de prazeres sexuais. São pessoas em plena fase de desenvolvimento a revelar dificuldades na aceitação do próprio corpo ou como se sentem quanto ao gênero marcado pela definição anatômica e geneticamente. Levanto, como hipótese, a existência de um processo simbólico que ocorre muito cedo na vida mental e relacional do bebê, cujo início pode se dar antes mesmo do seu nascimento, no inconsciente dos futuros pais ou cuidadores; processo que denomino: Édipo polimorfo precoce (EPP), conceito complementar que emerge da percepção de Freud sobre a sexualidade infantil com suas manifestações perverso-polimorfas da infância. Na adolescência, graças ao conjunto de fenômenos que ocorrem com a crise adolescente, características que Aberastury e Knobel descreveram como “Síndrome normal da adolescência”. Período vulnerável e conflitivo no qual o primitivo e o atual da mente se conflitam até sua resolução com a maturação, experiências emocionais, frustrações e realizações nos processos de subjetivação e busca de autonomia. A proposição do EPP pretende compreender melhor as diversidades de gênero, de escolha de objetos de prazeres sexuais em meio a tantas diversidades nos processos de subjetivação humana da contemporaneidade.

65. O amor e a sexualidade na velhice

Como sempre, começo com o eterno Drummond:

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo

E ele não pesa mais que a mão de uma criança. Drummond

Borges (1985) inicia o prólogo de seu último livro, Os conjurados, com estas palavras:

Ninguém pode se surpreender que o primeiro dos elementos, o fogo, não abunde no livro de um homem de oitenta e tantos anos. Uma rainha, na hora de sua morte, disse que era fogo e ar; eu costumo sentir que sou terra, cansada terra. Mas continuo, no entanto, escrevendo. Que outra formosa sorte me resta?

Um terceiro poeta, o nosso Mario Quintana, uma vez disse que não identificava influências no seu trabalho, mas sim confluências.

Afinal, o que é a velhice? O que significa suportar o mundo nos ombros? Pode ele ser tão pesado como uma tonelada ou tão leve como a mão de uma criança? Quanto fogo, quanta água, quanto ar, quanta terra pode haver no corpo e na alma de uma pessoa de oitenta e tantos, noventa, setenta e tantos anos? Que confluências acompanham essa etapa do ciclo vital, e a tornam mais leve ou mais pesada?

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Sexualidade by Editora Blucher - Issuu