O originário e o recalque primário

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O originário e o recalque primário

Considerações sobre a formação do sujeito psíquico e as novas patologias

O originário e o recalque primário

Considerações sobre a formação do sujeito psíquico e as novas patologias

Ana Maria Sigal

O originário e o recalque primário: considerações sobre a formação do sujeito psíquico e as novas patologias

© 2025 Ana Maria Sigal

Editora Edgard Blücher Ltda.

Série Psicanálise Contemporânea

Coordenador da série Flávio Ferraz

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Luana Negraes e Andressa Lira

Preparação de texto Maurício Katayama

Diagramação Negrito Produção Editorial

Revisão de texto Beatriz J. F. Acencio

Capa Leandro Cunha

Imagem da capa iStockphoto

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Sigal, Ana Maria

O originário e o recalque primário : considerações sobre a formação do sujeito psíquico e as novas patologias / Ana Maria Sigal. – São Paulo : Blucher, 2025.

176 p. (Série Psicanálise Contemporânea / coord. Flávio Ferraz)

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2533-1 (impresso)

ISBN 978-85-212-2532-4 (eletrônico – Epub)

ISBN 978-85-212-2531-7 (eletrônico – PDF)

1. Psicanálise. 2. Inconsciente (Psicologia). 3. Recalque (Psicologia). 4. Recalque originário. 5. Epistemologia da psicanálise. 6. Fundamentos da psicanálise. 7. Id (Psicologia). 8. Constituição do sujeito. 9. Clínica psicanalítica. 10. Ciência na psicanálise. 11. Metapsicologia. I. Ferraz, Flávio. II. Título. III. Série.

CDU 159.964.2

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

CDU 159.964.2

Conteúdo

Prefácio – O necessário trabalho de Ana Maria Sigal 9

Flávio Ferraz

Introdução 15

1. O originário: um conceito que ganha visibilidade 25

2. O arcaico nas patologias contemporâneas 43

3. Francis Bacon e o pânico: um estudo sobre o recalque primário 51

4. A formação do eu: um estudo para ler o estádio do espelho 69

5. Dialogando com a psiquiatria 85

6. Ainda a psicanálise no campo da sexuação 107

7. Notas sobre o sexual infantil 127

8. Notas sobre o complexo de Édipo 149

1. O originário: um conceito que ganha visibilidade1

O conceito do originário foi retomado, nos últimos anos, por vários autores, com a intenção de ampliar e recolocar o status metapsicológico das primeiras inscrições (Mezan, 1995).

Uma forma de colaborar na consolidação do campo da psicanálise consiste em revisar o estatuto teórico que dá fundamento à clínica, especialmente num momento histórico e político difícil como o que atravessamos no fim do século XX. Isso afeta as instituições psicanalíticas e o campo da subjetividade, que vem sendo foco de disputa entre o misticismo, o organicismo e o confessional.

Uma razão mais que suficiente para empreender o esforço de encarar as dificuldades que a feiticeira – como Freud se refere à metapsicologia – nos propõe é pensar que os modelos teóricos que elaboramos nos auxiliam passo a passo no fazer cotidiano. Eles são a condição necessária para que a clínica não se transforme numa técnica ou numa teoria do fazer.

A pulsão, o recalque, as identificações, a forma de pensar o inconsciente, os registros do tópico, dinâmico e econômico em

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Percurso, 16(30), 59-66, 2003

o originário: um conceito que ganha visibilidade

Freud, o originário, o primário e o secundário em Piera Aulagnier, bem como o imaginário, o simbólico e o real em Lacan, pertencem ao mundo da metapsicologia em seu sentido amplo.

Essas hipóteses teóricas, que estão na base do sistema psicanalítico, são o que nos permite compreender a formação da subjetividade, assim como abordar a complexidade da constituição e do funcionamento do aparelho psíquico. Sem esses conceitos seria impossível pensar a formação e os caminhos do sintoma, a constituição das neuroses e as diversas abordagens psicopatológicas.

Para um psicanalista, a teoria é mais do que uma aventura epistemofílica. É uma tentativa de resposta aos enigmas que a clínica apresenta.

Há alguns anos, venho me interessando pela obra de Jean Laplanche e Piera Aulagnier. Os dois trabalham o tema do originário, e creio que esse conceito tem em ambos os autores elementos que dialogam entre si. Diálogo entre diferentes autores, entre diferentes psicanalistas, fundamental para romper com os feudos narcisistas, tanto teóricos quanto institucionais, que desconhecem tudo o que não é igual a si.

Piera Aulagnier formula três registros para pensar a constituição do psiquismo e especialmente a atividade de representação. Seu modelo defende a hipótese de que a atividade psíquica é constituída por três modelos de funcionamento ou três processos de metabolização: o originário, o primário e o secundário.

Jean Laplanche dedica-se a um profundo estudo do conceito de recalque originário, pois é ele que cria a distinção entre pré-consciente e consciente como uma clivagem que dará origem à tópica e às primeiras inscrições.

Meu interesse pelo estudo do recalque originário decorre de uma pesquisa clínica realizada com pacientes com pânico. Esse estudo me levou a pensar que, em alguns casos, o pânico (quando não

2. O arcaico nas patologias contemporâneas1

Num olhar atento aos trabalhos apresentados recentemente nos numerosos encontros de psicopatologia, vemos um aumento no interesse da psicanálise por manifestações que, até alguns anos atrás, não demandavam nossa atenção de forma tão veemente. Essa mudança é produto do número crescente de consultas com nossos pacientes que nos levam a refletir, pesquisar e reconsiderar nosso repertório teórico para dar conta dos problemas que enfrentamos hoje.

Nas patologias contemporâneas, podemos considerar duas vertentes fundamentais sobre as quais trabalhar: a primeira se refere às condições de produção da subjetividade, ou seja, às modificações que acontecem no sujeito em decorrência de fatores históricos, políticos, sociais e econômicos; a segunda diz respeito à própria estruturação do aparelho psíquico, a qual, inscrita historicamente, merece considerações metapsicológicas. Ambas as vertentes estão entremeadas e produzem efeitos de ressignificação permanente.

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 4(4), 112-118, 2001

O consumo desenfreado; a vertiginosidade imprimida ao tempo, que faz com que não seja possível suportar e sustentar projetos de longo prazo; o imediatismo, que transforma a satisfação sem demora no leitmotiv do prazer cotidiano; a falta de solidariedade e de utopias; a política de esgotamento rápido do objeto, que não deixa marcas e impede que o mundo interno seja povoado de conteúdos próprios; a constante intervenção de uma mídia que provoca paralisia, promovendo a passividade, transformando o sujeito em objeto e atacando os processos criativos e de pensamento; a corrupção social e o desemprego, que aprofundam o sentimento de desamparo e ruína e colocam o eu em posição de falência – essas são algumas das inumeráveis mudanças históricas, políticas, sociais e econômicas que dão um novo rumo às patologias do homem atual, transformando sua subjetividade, operando sobre ela.

Neste trabalho, tomando a segunda vertente mencionada, analisarei algumas das causas que operam na constituição do psiquismo, em seus aspectos mais arcaicos, e que me permitiram pensar as formas de operação e funcionamento do pânico a partir de um ponto de vista metapsicológico. Ao abordar as patologias contemporâneas, destaco a leitura freudiana, que considera a importância do pulsional, mantendo vivo o papel da sexualidade infantil, sem esquecer o lugar que o trauma ocupa nas perturbações psíquicas. Se nas neuroses dirigíamos o olhar para as questões edípicas e seus destinos identificatórios – considerando o papel fundamental do recalque secundário, com a produção de sintomas resultantes do conflito entre instâncias intrassistêmicas –, hoje, para compreender melhor as patologias, se faz necessário dirigir nossa atenção para elementos mais arcaicos, nos quais (por uma impossibilidade de tradução, porque não puderam estabelecer uma ligação que lhes permitisse fazer sentido) a pulsão, sem ter sido tramitada no registro simbólico, irrompe. Assim, esses primeiros elementos, que na teoria freudiana corresponderiam às primeiras inscrições da

3. Francis Bacon e o pânico: um estudo sobre o recalque primário1

Desejo iniciar estas reflexões lembrando algumas palavras de Freud (1917/1984b) em “Luto e melancolia”: “A melancolia, cuja definição conceitual é flutuante mesmo na psiquiatria descritiva, se apresenta em múltiplas formas clínicas, cuja síntese em uma unidade não parece certificada” (p. 241).

Aqui, Freud nos alerta, mais uma vez, sobre a necessidade de tratar os fenômenos clínicos com todo o cuidado, conservando a complexidade que lhes é própria, desistindo de aprisioná-los numa nosografia totalizante. Mantendo esse espírito, inclino-me a pensar que o pânico aparece como manifestação clínica em quadros diversos e com origens diferentes.

Em outro texto (Sigal, 1997), abordei a questão do pânico num diálogo com a psiquiatria. Neste texto, os esforços se dirigem para a compreensão de por que certos fenômenos que a psiquiatria descreve como condutas de ordem puramente biológicas – como condutas sem história – podem ter outro estatuto a partir de uma

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em L. B. Fuks & F. C. Ferraz (Orgs.), A clínica conta histórias (pp. 217-230), Escuta, 2000

escuta mais apurada, que torna visíveis cadeias associativas que encobrem/revelam a situação de origem. Nesses casos, o pânico surge como um sintoma propriamente dito, no qual o que se evidencia é alguma situação ligada a elementos recalcados secundariamente, enlaçados ao complexo edipiano.

Minha tentativa é a de adentrar a metapsicologia, pensando não mais nos casos em que o pânico aparece como produto do momento agudo de uma fobia, constituindo uma neurose histórica ou uma psiconeurose, mas sim nos casos em que o pânico aparece, como descrito pela psiquiatria, como uma série de fenômenos físicos sem uma ligação específica a algum acontecimento que os justifique, impedindo-nos de reconhecê-los como parte de uma inscrição significativa na vida do sujeito. Esses fenômenos seriam manifestações no corpo, aparentemente fora de toda rede de significação.

Minha hipótese, a partir da clínica com alguns pacientes que sofrem de pânico, é que a aparição desses signos somáticos é produto de uma invasão no eu de elementos arcaicos inscritos na psique, que se presentificam como corpos estranhos, sem possibilidade de tradução, devido a um fracasso do recalque primário, que deveria tê-los sepultado definitivamente.

Como Freud (1896/1986a) menciona na carta 52 a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, porque fracassaram em sua possibilidade de ligação, esses elementos não favorecem nem facilitam a aparição da angústia-sinal, irrompendo como energia não ligada, determinando assim um colapso do eu, acompanhado de descargas neurofisiológicas e distúrbios na representação. Em outras palavras, há um desamparo do eu diante da invasão pulsional, um reencontro com o objeto-fonte da pulsão.

Entendemos que o objeto-fonte é decorrente da marca mnêmica depositada pela sexualidade pulsante da mãe. Na concepção de Laplanche, a criança recebe da mãe uma mensagem que apenas

4. A formação do eu: um estudo para ler o estádio do espelho1

Este trabalho se propõe a oferecer elementos para facilitar a leitura do texto “O estádio do espelho como formador da função do eu”. Lacan o apresenta pela primeira vez no 14o Congresso Internacional de Psicanálise, em Marienbad, 1936; logo o retoma e o apresenta no 16o Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique, 1949. Nesse texto, Lacan propõe elementos para pensar a constituição do eu, trabalhando o fenômeno pelo qual uma criança reconhece sua imagem no espelho, fenômeno que se dá por volta dos 6 meses de idade. É a partir do movimento que se produz entre a criança e sua imagem refletida no espelho que se logrará a constituição de um eu unificado ortopedicamente.

A imagem virtual, inexistente como realidade (já que ao se retirar o espelho ela desaparece), serve como primeira identificação de um si mesmo. Nessa imagem, a criança se aliena, fazendo desse eu a sede do desconhecimento. Embora no texto de Lacan encontremos reiteradamente a palavra je, nos deparamos com uma

1 Trabalho apresentado no seminário “As diferentes teorias sobre a constituição do sujeito e suas consequências na clínica”, promovido pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em 2001

70 a formação do eu: um estudo para ler o estádio do espelho dificuldade. A edição brasileira, em nota, esclarece que se trata do eu como je (sujeito do inconsciente). Na verdade, para nós, Lacan está se referindo à constituição do moi, porque é uma tentativa de elaboração de uma teoria que dê conta do primeiro esboço de eu, que se constitui como eu ideal e tronco das identificações secundárias, sede do narcisismo.

Pensamos que, apesar de Lacan já haver começado a esboçar a diferença entre je e moi, em 1949 ainda não os diferenciava claramente. Lembremos que, naquela época, na psicanálise francesa, era frequente traduzir Ich por je. 2 O je e o moi são duas articulações possíveis do Ich (eu). Separa-se o sujeito que fala do sujeito como instância narcísica.

O je é o sujeito da oração, o que fala na primeira pessoa do singular. A criança demora muito mais tempo para poder dizer o eu do je do que o mim (moi). Ela diz “Neném quer água” ou se denomina pelo nome antes de dizer o eu: “Sussu gosta de cachorro”. Mas pode dizer antes: “Dá pra mim”. O eu (moi) se constitui sobre a imagem do próprio corpo. O corpo do recém-nascido apresenta um caos interoceptivo, transbordado em sensações incoordenadas, que configuram um corpo fragmentado.

O eu é efeito de uma imagem, efeito psíquico de uma imagem virtual de si, que o produz, o que não é dizer pouco. Estudaremos como a imagem vem para pôr uma ordem nesse caos sensorial. Veremos de que modo, quando o bebê se olha no espelho, rebota (a partir do espelho) a imagem tranquilizadora de uma integração que acalma, alegra, produz júbilo a esse bebê em caos.

Que promessa! Logo você será assim, será Um, integrado, dominará um corpo que você não domina. Ele se constituirá em Um a partir da imagem. Portanto, ela antecipa algo, é constituinte de

2 Alguns autores propõem traduzir o je como eu formal, diferenciando-o do moi (eu), substantivo.

5. Dialogando com a psiquiatria1

Quando começou a circular nos meios psiquiátricos a conceituação de uma nova doença que se convencionou chamar de síndrome do pânico, surgiu um especial interesse na procura das características dessa nova constelação sintomática, que tanto se diferenciava da nosografia conhecida.

Tive a oportunidade de trabalhar clinicamente com pacientes bastante afetados por situações de medo, que se manifestava frequente ou esporadicamente, e que, por alguns momentos, acabava por se configurar em pânico. E quanto mais a mídia investia na difusão dessa nova doença, a “síndrome do pânico”, mais pacientes se viam no consultório e em supervisões com tal síndrome. Os próprios pacientes se diagnosticavam, de acordo com o que tinham ouvido sobre as características da doença. Antes, os pacientes chegavam falando de suas dificuldades, angústias e medos, relacionados ou não com as causas existentes. Decorrido certo tempo, já não era mais possível saber o que sentiam ou pensavam; apresentavam-se com um diagnóstico já definido, “síndrome do pânico”, e um tratamento já estabelecido, medicação.

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Percurso, 10(19), 73-82, 1997

Simultaneamente, os laboratórios começaram a minar nossa capacidade de reflexão crítica mediante a divulgação de certas drogas que, como uma panaceia, eliminariam a doença. Isso acabou por produzir uma espécie de orgulho nos consumidores dessas drogas, as quais magicamente seriam capazes de resolver os indesejáveis sintomas. Os inequívocos e desejáveis avanços na área da farmacoterapia passaram a ser utilizados como prova de que a dimensão psíquica dos quadros de pânico (e também de outras entidades clínicas, como as chamadas doenças obsessivo-compulsivas) tem importância secundária na abordagem clínica dos pacientes. Como costuma acontecer com frequência na área da saúde mental, radicalizaram-se as posições, fecharam-se as trincheiras e restringiram-se as comunicações entre os profissionais com diferentes enfoques. Para os organicistas, o controle da intensidade e frequência das crises de pânico por meios químicos demonstrava a fragilidade dos postulados psicanalíticos. Por sua vez, os psicanalistas mais dogmáticos fizeram ouvidos moucos às evidências do sucesso da farmacoterapia.

Independentemente de pesquisarmos e trabalharmos com o referencial psicanalítico, é importante ressaltar que interessantes pesquisas na área biológica vêm sendo desenvolvidas. Estas buscam compreender o componente orgânico de certas doenças, para que seja possível promover alívio em pacientes que sofrem de grande dor psíquica. É justamente com esses trabalhos que eu gostaria de dialogar, uma vez que, no caso de determinadas perturbações, medicação e psicanálise operam em conjunto de forma adequada. Nós, psicanalistas, já não mais acreditamos que a medicação seja um obstáculo em nosso trabalho. Ao contrário, diante de depressões, crises agudas e psicoses graves, a medicação nos possibilita trabalhar o sintoma, o que acaba por fazer com que o tratamento psicanalítico opere no nível das causas que o originam. Aliviar o sofrimento ou a angústia não impede que, em paralelo,

6. Ainda a psicanálise no campo da sexuação1

A única maneira de manter a psicanálise viva é pensar novas formas de produção do conhecimento que incorporem o novo e reorganizem o já conhecido dentro dos paradigmas que nos caracterizam como especificidade científica. Para dar conta da ideologização que se infiltra no campo psicanalítico e das novas questões que se apresentam, é preciso não tomar a teoria como um corpo morto, coagulado ou estagnado. É trabalhando-a e aprofundando-a que conseguiremos avançar. Faz-se necessário retrabalhar a obra freudiana à luz dos progressos da ciência, da filosofia, da antropologia, da sociologia, da economia, das artes e da cultura em geral.

É nessa trilha que desenvolverei este trabalho, porque – a partir de novas leituras, das questões com que a transmissão nos confronta, da clínica que apresenta novos modos de expressar a patologia ou simplesmente de uma subjetividade que assume novos devires – um incômodo nasceu em mim: percebi no âmbito da psicanálise certa confusão quanto ao modo de incorporar os novos conhecimentos.

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em Estudos de Psicanálise, 47, 35-46, 2017. Agradeço à psicanalista Sílvia Nogueira pela revisão do texto em português.

108 ainda a psicanálise no campo da sexuação

Entendo que se trata de ampliar o pensamento, mas sem descaracterizar aquilo que, em nosso saber, tem sido construído no decorrer dos últimos cem anos. Hoje vou considerar especialmente os efeitos em nosso campo da incorporação dos estudos provenientes das teorias de gênero. Estas, em vez de oferecer ferramentas diferenciadas, que nos obriguem a repensar alguns elementos e a elaborá-los em função de questões da época em que foram produzidos, vêm ocupar um lugar na teoria, empobrecendo-a ou desqualificando-a. Essa dificuldade não é necessariamente fruto das teorias de gênero, e sim da forma como a psicanálise se apropria delas.

Quando o novo invade e não se imbrica de maneira necessária com aquilo que é especificamente psicanalítico, quando o que chega de fora tenta dar uma explicação totalizadora a elementos que, na psicanálise, poderiam ser revisados a partir de sua própria metodologia, estamos no caminho errado. Perdemo-nos nas lutas científicas de poder, e não propriamente acrescentamos. Uma psicanálise com a qual temos sido sempre solidários vem, há anos, questionando-se sobre o lugar que os fenômenos histórico-sociais têm na formação do inconsciente e do supereu. Pensar de que modo esses fenômenos incidem no inconsciente não o descaracteriza como aquele que, segundo suas próprias leis, determina nossas condutas desejantes.

Na época em que Freud elaborou o arcabouço científico sobre o qual desenvolveria seu modelo metapsicológico, as ciências estavam impregnadas pelos modelos da termodinâmica e pelos modelos deterministas de causa e efeito. Hoje os novos paradigmas científicos nos permitem pensar de um modo diferente, oferecendo-nos postulados que abrem novas maneiras de entender os fenômenos dos quais teremos que dar conta.

7. Notas sobre o sexual infantil1

Vamos falar sobre a sexualidade infantil.

1 Desejo frisar que, nestas notas, faço uma leitura dos conceitos na obra freudiana levando em conta que foram elaborados numa época que determinou historicamente sua produção, aí deixando suas marcas. Com o passar do tempo e o decorrer da história, muitos desses conceitos foram revisitados, fazendo-se necessário ressaltar que Freud produziu suas considerações tomando o menino como referente de sua construção. Críticas e deslocamentos foram feitos e, fundamentalmente, o conceito de inveja do pênis foi reconsiderado, entendendo-se que Freud, ao produzir a teoria, estava identificado com sua masculinidade, deixando brechas para que repensássemos suas formulações sobre a mulher. Mas, para se fazerem críticas, é necessário conhecer a formulação freudiana. Abordar a questão epistêmica exige esclarecer categorias lógicas, indagar os a priori lógicos que pressupõem a possibilidade de um saber, assim como é necessário refletir, segundo Foucault (1997), sobre os a priori históricos constitutivos pelos quais transita o discurso. É aqui que a dificuldade aparece. Freud assimila o genérico humano ao masculino, e, portanto, onde o genérico não é visto na sua totalidade, Freud produz um deslocamento a partir do qual se perde a riqueza da diversidade e se instala a diferença. A diferença em relação ao um, que representa a totalidade, implica um problema. Levando-se em conta essas considerações, limito-me neste texto a trabalhar os conceitos freudianos entendendo que é de fundamental importância conhecê-los para, a partir deles, fazer uma reflexão crítica.

É interessante lembrar que, desde o “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1950[1895]/1986a) até o Esboço de psicanálise (Freud, 1940[1938]/1986m), Freud mantém a sexualidade infantil como aquilo que, fundamentalmente, se recalca.

Poderíamos dizer, contudo, que é bem mais categórico nos seus primeiros trabalhos, porque a primeira teoria pulsional que desenvolve estabelece uma dualidade entre as pulsões sexuais e as de autoconservação, possibilitando atribuir com maior facilidade ao sexual o caráter do recalcado.

No texto de 1938, deixa claro que, mesmo mudando a teoria pulsional – definida em 1920 como pulsões de vida e de morte –, nunca abandona a ideia de conflito psíquico. Embora pudéssemos pensar que, quando fala do conflito entre o eu e o supereu, este fosse um conflito de ordem geral, Freud reafirma no fim dessa obra que o recalcado está sempre ligado ao sexual. Por essa razão, abordar o sexual em psicanálise se faz necessário.

Vou examinar esse conceito a partir de duas perspectivas. Num primeiro momento, vou me referir ao lugar que ele ocupa na história da disciplina e ao papel que desempenha como divisor de águas em relação ao que consideramos analítico ou não analítico. Posteriormente, vou abordar a definição do conceito e seu lugar na metapsicologia, tanto na formação de sintomas quanto na estruturação do aparelho psíquico.

Lugar do conceito na história da disciplina

A ideia de inconsciente já tinha sido postulada por vários autores dentro da filosofia, e também tinha sido enunciada por Janet, Charcot e Breuer. Lembremos que esse último, ao trabalhar o caso de Anna O., descobriu a sexualidade como um elemento central nessa primeira cura. Mas, devido às complicações transferenciais e contratransferenciais que apareceram no tratamento, Breuer

8. Notas sobre o complexo de Édipo1,2

Que problemáticas nos propõe o complexo de Édipo?

Ele nos introduz às seguintes questões: o que se deseja, o que está proibido desejar, que ameaça existe em transgredir essa proibição, por que temos de nos defender e que elementos há para simbolizá-lo.

É difícil apresentar a noção de Édipo na obra freudiana. Não há um trabalho específico dedicado ao tema. Sendo um conceito fundamental, é necessário garimpá-lo ao longo da obra. Para tratar desse conceito, tomarei alguns escritos fundamentais, deixando

1 Aula proferida como professora convidada no Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), para o curso “Diagnóstico e inclusão escolar de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento”, em 1998. Agradeço a Flávio Veríssimo a revisão do português deste trabalho.

2 Estas notas se referem exclusivamente à forma como Freud percorreu suas ideias sobre o complexo de Édipo. Considero de fundamental importância conhecê-las e compreendê-las para podermos nos debruçar sobre as complicações epistemológicas em que ele incorreu. Hoje em dia vemos o quanto do “continente desconhecido” que a mulher representava para ele aparece em suas investigações. Freud faz uma generalização ao tomar o lugar do menino, com quem estava identificado, como parâmetro de seu pensamento, que aqui vamos acompanhar.

de lado muitos outros textos interessantes de Freud, que oferecem elementos de esclarecimento e belos exemplos, como o caso do pequeno Hans (1909/1986c), “Bate-se numa criança” (1919/1986h), “A cabeça da Medusa” (1940[1922]/1984e) e “Dostoiévski e o parricídio” (1928[1927]/1986i).

Não é possível entender esse conceito nos pós-freudianos sem esclarecer o percurso na obra de Freud, ponto de partida dos diversos caminhos que se apoiam em elementos enunciados por ele. Falar do complexo de Édipo não é dizer o que dele se pensa, mas é pensá-lo em sua articulação.

Com base nisso, poderemos compreender tanto a constituição da subjetividade quanto a formação das patologias. Partindo do estudo dos quadros clínicos, Freud trilha um caminho no qual começa a descobrir a sexualidade infantil e os desejos edípicos, e chega à conclusão de que a sexualidade infantil e o complexo de Édipo são invariantes universais, que se dão em todos os seres humanos.

A questão é como articular complexo de Édipo, sexualidade infantil e inconsciente. Quando o erótico ou as etapas de desenvolvimento circulam por um caminho e o edípico por outro, isso demonstra que o conceito nuclear não foi entendido.

Tentativa de articulação

As organizações pré-genitais da libido seguem um caminho que desemboca na primazia do falo como órgão em volta do qual se organiza o desejo. Nesse momento do desejo infantil, os pais se colocam como objeto prioritário de amor, numa relação intrincada de amor e identificação, que introduz o Édipo complexo. O conjunto das aspirações sexuais se dirige a uma única pessoa e nela quer alcançar sua meta. Esse desejo é interditado pela ameaça de castração, ameaça que se dirime entre a realização do desejo e o narcisismo. A lei que interdita o incesto põe o complexo de castração num

É a partir de um longo e rigoroso trabalho metapsicológico e de uma ética cristalina que Ana Maria Sigal escreve este livro, um trabalho incansável para compreender conceitos fundamentais e transmiti-los com clareza e precisão. A autora mergulha às vezes nos primeiros escritos freudianos, mas mostra que é em manifestações clínicas muito atuais, como o pânico, que os conceitos ali presentes ganham força e importância.

Reconhecendo a sexualidade no seu espectro amplo – do sexual à sexuação – como pilar fundamental da teoria, defende com afinco essa posição, opondo-se aos pensamentos que tentam esvaziá-la. Propõe um trabalho permanente da teoria, para apontar onde a ideologia de cada época nela se infiltrou, a fim de reformulá-la. Mas deixa claro que “nem tudo é negociável”.

– Silvia Leonor Alonso série

Coord. Flávio Ferraz

PSICANÁLISE
PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA

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