O bebê nasce pela boca

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Inês Catão

O bebê nasce pela boca

Voz, sujeito e clínica do autismo

2ª edição revista e ampliada

O bebê nasce pela boca

Voz, sujeito e clínica do autismo

Inês Catão

Revisão técnica

Flávia Goulart Garcia Rosa

2a edição revista e ampliada

O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo

© 2009 Instituto Langage

© 2025 Inês Catão

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenadora de produção Ana Cristina Garcia

Produção editorial Ariana Corrêa e Andressa Lira

Preparação de texto Alessanda de Proença

Diagramação Thaís Pereira

Revisão de texto Maurício Katayama

Capa Laércio Flenic

Imagem da capa Maria Else Figueira Leite

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil

Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Heytor Diniz Teixeira, CRB-8/10570

Catão, Inês

O bebê nasce pela boca : voz, sujeito e clínica do autismo / Inês Catão. – 2. ed. rev. ampl. – São Paulo : Blucher, 2025. 320 p. : il.

Revisão técnica de Flávia Goulart Garcia Rosa. Bibliografia

ISBN 978-85-212-2102-9 (impresso)

ISBN 978-85-212-2099-2 (eletrônico - epub)

ISBN 978-85-212-2100-5 (eletrônico - pdf)

1. Psicanálise. 2. Autismo. 3. Transtorno do espectro autista (TEA). 4. Autismo em crianças. 5. Inconsciente (Psicologia). 6. Fundação do inconsciente. 7. Clínica psicanalítica. 8. Prática psicanalítica com crianças autistas. 8. Psicanálise e linguística. 9. Psicolinguística dos bebês. 10. Voz. 11. Psicologia do comportamento verbal. I. Título.

CDU 159.964.25

Índices para catálogo sistemático:

1. Psicanálise

2. Autismo

CDU 159.964.2

CDU 616.896

Conteúdo

Prefácio à primeira edição 17

Marie Christine Laznik

Introdução 25

Parte I Da fundação e da fundamentação do inconsciente

1. O funcionamento pré-especular no pensamento de M. Klein e F. Dolto 33

2. Da primeira experiência de satisfação: a inscrição das primeiras marcas mnêmicas e o recalque originário 61

3. Nascimento do Outro e suas vicissitudes: construções em análise em um caso de autismo 81

Parte II Função e primazia da voz

4. O estabelecimento do circuito pulsional: o objeto voz 135

5. A anterioridade lógica da voz 177

6. As três

da voz

7. A pulsão invocante e o evitamento seletivo da voz

Parte III A voz, o corpo e a letra

8. A gramática do inconsciente: do traço à letra e sua relação com significante

9. Da letra e de suas relações com a voz: o papel da voz na incorporação da linguagem

1. O funcionamento pré-especular no pensamento de M. Klein e F. Dolto

Vários autores da psicanálise se interessaram pelos primórdios da estruturação psíquica, a começar pelo próprio Freud. Para ele, em função da prematuridade, do inacabamento do bebê humano ao nascer, a condição primeira de sua sobrevivência física e psíquica, absolutamente imbricadas, é o acolhimento por um Outro, que não pode ser um qualquer, nem tampouco uma instância vaga, pois é na relação, no contato com o outro (Outro), que se dá, ou não (como no autismo), o nascimento do sujeito. Esse contato não é decorrente de um aprendizado ou da pura e simples imitação do semelhante. Trata-se, antes, de um processo dialético bem mais complexo, que implica em ser capturado e deixar-se capturar por um Outro encarnado.

Várias são as questões suscitadas acerca desse momento fundador: sua datação, a participação do recém-nascido no movimento que o funda como humano, as “qualidades” necessárias ao Outro cuidador no desempenho de sua função, entre outras. Diferentes autores propuseram diferentes respostas – por vezes controversas –, o que resultou numa pluralidade de trabalhos clínicos que hoje compõem a literatura da psicanálise com crianças.

Freud, como sabemos, jamais recebeu bebês ou crianças pequenas em sua clínica. A análise da fobia de um menino de 5 anos, o Pequeno Hans (Freud, 1909/1977), foi feita por meio da escuta dos relatos de seu pai. Embora tenha pontuado o valor do brincar como modo infantil de expressão, e a possibilidade de a criança expressar seus desejos por intermédio do jogo, Freud não propôs nenhum modelo técnico de trabalho com crianças, mas deixou elementos teóricos fundamentais, como suas observações sobre o sonho infantil, as fantasias, a organização pulsional, que puderam ser utilizados por seus seguidores, com maior ou menor fidelidade ao seu legado.

A grande pioneira da psicanálise com crianças foi Hermine von Hug-Hellmuth, bastante desconhecida no meio analítico. Sua obra inspirou o trabalho de Anna Freud e Melanie Klein, e sua morte prematura e trágica, em 1924, coincide com os primeiros anos do desenvolvimento dos trabalhos dessas duas psicanalistas. Pretendo, aqui, contextualizar epistemologicamente a discussão sobre as etapas iniciais, ditas precoces, da organização psíquica, recorrendo a Melanie Klein e a Françoise Dolto, que, pela singularidade de suas propostas, me ajudaram a pensar as etapas pré-especulares da vida psíquica.

Na teorização de Melanie Klein, fica patente o que é designado como prevalência do registro imaginário, para fazer referência aos três registros da realidade humana, fundados por Lacan: Real, Simbólico e Imaginário (1953/1982). Em Dolto, por sua vez, evidencia-se a prevalência do registro simbólico. De todo modo, tanto numa quanto noutra dessas propostas fundadoras, parece não haver destaque ao registro do Real, registro do nonsense, que define o inconsciente tanto em Freud como em Lacan.

Às avessas de Klein, Lacan privilegia um trabalho na direção do não sentido radical, embora em sua estratégia clínica utilize, por vezes, o manejo do duplo sentido das palavras enunciadas e priorize a enunciação em detrimento do enunciado. Algumas de suas noções,

2. Da primeira experiência de satisfação: a inscrição das primeiras marcas

mnêmicas e o recalque originário

“Titia, fale comigo! Estou com medo do escuro.” [Ao menino de 3 anos], sua tia respondeu: “De que adiantaria? Você não pode ver-me”. “Não importa”, respondeu a criança, “se alguém falar, a luz vem.” Freud, 1905/1977b

Foi entre 1891 e 1900 que Freud delineou seus quatro modelos teóricos do “aparato psíquico”. Em todos eles, é claramente exposta uma disjunção entre a percepção da realidade externa e sua representação. Em outras palavras, desde o princípio, em Freud, a questão da representação da realidade é a questão de sua própria construção. Assim, a percepção do mundo sensível pelo bebê é, desde antes do “Projeto”, uma construção com base em um laço com o Outro da linguagem, encarnado na figura do outro semelhante. O fato perceptivo surge, a posteriori, do lado do Outro.

Em seu retorno a Freud, Lacan radicaliza a distinção entre o que nomeia Real e a realidade, que é sempre realidade psíquica, construída a partir do que, do Real, se deixa capturar no campo da linguagem. Por meio de sua noção de objeto a cujo paradigma é o olhar, Lacan

(1988) desloca a percepção do registro fenomênico, uma vez que, diferentemente dos registros oral e anal descritos por Freud, o olhar é evanescente e inapreensível. Ele não é um atributo do sujeito, nem se encontra dentre os objetos do mundo sensível. Ainda assim, ele é objeto da pulsão, na medida em que esta o contorna.

A voz, igualmente inapreensível como objeto do mundo sensível, é também proposta por Lacan como objeto a, e desempenha um papel crucial no estabelecimento do funcionamento pulsional característico do humano. Nos anos 1980, pesquisas de psicolinguistas demonstraram que o bebê, desde o seu nascimento e mesmo antes de ter havido qualquer satisfação alimentar, se interessa por certa qualidade da voz (Fernald & Simon, 1982), ou seja, certo brilho sutil da voz parece atrair o interesse do bebê no outro (Outro) que, entretanto, ele ainda não reconhece como tal. Em anterioridade ao olhar, num tempo lógico de instauração primordial do funcionamento psíquico, a voz do outro (Outro) participa da inscrição dos traços mnésicos.

É em termos de quantidade (Q) que Freud primeiro explica o funcionamento do aparato psíquico. Nos termos do “Projeto”, a quantidade (Q) é a energia que circula pelos neurônios, capaz de deslocamento e descarga. Freud distingue dois tipos de quantidade: Q e Qn. A primeira designa a energia de fonte exógena e é da mesma ordem de magnitude que as quantidades do mundo externo; a segunda designa a energia de fonte endógena, cuja magnitude é de ordem intercelular e, portanto, inferior à de Q. Em geral, o termo quantidade aplica-se a algo efetivamente medido ou mensurável, e opõe-se à qualidade, que se refere aos aspectos sensíveis da percepção.

Em “As psiconeuroses de defesa”, Freud distingue nas funções psíquicas algo que assimila a uma cota de afeto (Affektbetrag) ou soma de excitação (Erregungssumme), o que nos faz pensar em um fator intensivo, mais do que em uma quantidade pura (Freud, 1894/1977).

3. Nascimento do Outro e suas

vicissitudes: construções em análise

em um caso de autismo

É verdade que, os lírios do campo, bem podemos imaginá-los como um corpo inteiramente entregue ao gozo. Cada etapa de seu crescimento, idêntica a uma sensação sem forma. Gozo da planta. Nada, em todo caso, permite escapar a isso. É, quem sabe, uma dor infinita, ser planta.

Lacan, 1992b

Apresento aqui o caso clínico de uma criança de 6 anos, trazida ao meu consultório por sua mãe, com diagnóstico de autismo.1 Recortes clínicos do caso ilustram de que se trata nas operações de constituição subjetiva, pelo viés do que não ocorreu. De que modo o fracasso na instalação de um corpo pulsional, como ocorre no autismo, pode contribuir para esclarecer as operações constitutivas do sujeito, a função da voz, o estatuto da letra e do significante na clínica psicanalítica?

1 Antes de chegar ao meu consultório, entre 3 e 6 anos de idade, Filipe (nome fictício) recebeu tratamento psicanalítico e fonoaudiológico. Ao longo deste livro, serão apresentadas passagens de diferentes momentos do tratamento.

Freud já chamava nossa atenção para os ensinamentos que a patologia psíquica pode aportar ao funcionamento normal.2

Ao exigir resposta para a pergunta: “o que preside a incorporação do significante?”, a clínica do autismo torna-se o lugar teórico privilegiado para interrogar o estatuto da letra e a instalação do funcionamento psíquico (Leite, 2002a). O estudo do fracasso na constituição subjetiva nos ensina quais as condições necessárias ao advento do Outro e suas vicissitudes. Ele nos ensina sobre o momento mítico de articulação do significante com o corpo.

A letra, suporte material do significante, é o traço da marca de um “prazer” que se inscreve no que virá a ser o corpo pulsional. O autismo expõe como característica uma posição do ser que opera na ausência de uma relação autoerótica com o que lhe é Outro. Como se articulam, no autismo, o olhar e a voz maternos com o real do corpo do infans? A voz e o olhar da mãe, objetos da pulsão, são produtos da linguagem que afetam o corpo, fazendo borda entre os significantes do discurso materno e o corpo real da criança. A imagem do corpo próprio se constitui a partir de uma imagem real que, falicizada pelo Outro semelhante, vem se conjugar ao seu correlato real. Portanto, é necessário supor uma identidade entre função materna e gozo. Antes que o desejo se organize como tal – e para isso é preciso a instalação de um interdito –, o discurso materno tem que “saber fazer” do autoerotismo um jogo (Leite, 2002b). A mãe ensina ao pequeno infans algo a respeito da relação que ela (mulher) tem com o gozo: “[a mulher] ensina seu pequeno a se exibir” (Lacan, 1992b).

Mas qual a condição para o corpo real da criança ser tomado como correlato especular de sua imagem no eu da mãe, ou seja, como

2 Freud, S. “A dissecção da personalidade psíquica”, In Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise (1933/1977). Ver passagem desse artigo citado na Introdução deste livro.

4. O estabelecimento do circuito pulsional: o objeto voz

Se, em Freud (1915/1977a), a pulsão é um conceito-limite entre o psíquico e o somático, o representante psíquico das excitações provenientes do interior do corpo, com Lacan (1985c), a pulsão deixa de ser um conceito de articulação entre o biológico e o psíquico para se tornar um conceito que articula o significante e o corpo. Por conseguinte, trabalhar a encarnação do simbólico no real é trabalhar o modo segundo o qual se estabelece o funcionamento pulsional no infans.

Octávio de Souza (2001) relembra duas maneiras de Freud se referir à pulsão A primeira, como limite entre o psíquico e o somático ou como a medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua ligação com o corpo. E a segunda, como representante psíquico das excitações vindas do interior do corpo. Souza indica duas posições diversas quanto ao entendimento das relações entre corpo e linguagem, conforme se adote uma ou outra das definições referidas. Nesse sentido, se adotarmos a definição segundo a qual a pulsão é o limite do psíquico, compreendemos que ela se contrapõe ao aparelho psíquico tomado como organização representacional. Mas, se privilegiarmos aquela em que a pulsão é tomada como representante psíquico, passamos a considerá-la como efeito da incidência da

linguagem sobre o vivo. Diante das questões que venho trabalhando, resolvi adotar a segunda posição.

Conceito principal da psicanálise, presente em Freud desde o “Projeto” (1895), embora com nome diverso, a pulsão é a medida do esforço imposto ao aparelho psíquico pelo fato de haver corpo. Definida por sua força constante (konstante Kraft), parte de uma borda corporal dita erógena (fonte) e tem como alvo sua própria satisfação. Ela, porém, não conta com um objeto capaz de satisfazê-la completamente.

Tanto em Freud como em Lacan, a satisfação da pulsão não se dá no encontro com o objeto – para sempre perdido –, mas em percorrer um certo caminho circular que o contorna retornando à fonte. O alvo da pulsão, sua satisfação, é o seu próprio percurso. O impulso parte da zona erógena, contorna o objeto perdido da satisfação e, no retorno do encontro faltoso, traz significantes em substituição ao objeto. A incidência da linguagem no ser produz um movimento que emana do ser, mas retorna ao sujeito. Os significantes se substituem, um diferente do outro. É lançando mão dos cuidados maternais que o agente do Outro mapeia o organismo vivo e seus orifícios, organismo que assim é subtraído de um gozo e revestido de tecido significante (Vorcaro, 1999).

O surgimento do conceito

No “Projeto” (1895), ou seja, antes da formalização do conceito em seu artigo “As pulsões e suas vicissitudes” (1915), Freud fala em “estímulos endógenos”. Segundo ele, à medida que aumenta a complexidade interna do organismo, o sistema neuronal passa a receber estímulos dos próprios elementos somáticos que também tendem a ser descarregados. Esses estímulos endógenos nascem nas células do corpo, mas, à diferença dos estímulos provenientes do exterior, o organismo não tem como escapar deles. Em 1905, no artigo “Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud iniciou seu discurso sobre a pulsão referindo-se,

5. A anterioridade lógica da voz

After all, the infant is learning language from the beginning. Fernald & Simon, 1982

Desde a década de 1940, pesquisas em psicologia pré-natal nos fizeram tomar conhecimento de que algo da ordem de uma relação entre a mãe e o feto começa a acontecer ainda intraútero. Um dos pioneiros da pesquisa nesse campo, o obstetra dr. Lester W. Sontag (citado por Gonçalves, 2001), descreveu, em seu artigo “A relação mãe-feto e a guerra”, suas observações feitas durante o acompanhamento de mulheres grávidas cujos maridos combatiam na Segunda Guerra Mundial. O médico propõe a hipótese de que a situação de ansiedade continuada dessas mães se refletiria em seus bebês física e emocionalmente, mais do que em outros gerados em épocas mais tranquilas. Seu trabalho não se preocupava em especificar os elementos presentes na comunicação mãe-bebê, mas em correlacionar o que chamou de “fenômeno somatopsíquico” com a ansiedade materna.

Partindo das hipóteses de Lester, os estudos realizados por dr. Dennis Sttot (citado por Gonçalves, 2001), na década de 1970, vieram confirmar que os filhos cujas mães estavam sob estresse contínuo

178 o bebê nasce pela boca

durante a gestação eram mais frágeis fisicamente ao nascer. A partir dos anos 1980, os estudos acerca da comunicação mãe-feto se complexificaram. Os trabalhos de Monika Lubesch (citada por Gonçalves, 2001), na Alemanha, acompanhando 2 mil mulheres durante a gestação e o parto, concluíram que a atitude de aceitação ou de rejeição do feto pela mãe tem impacto primordial para este. Crianças cujas mães aceitavam a gravidez nasciam mais vigorosas, física e afetivamente. As pesquisas de Gerhardt Rottmann, na Áustria, replicaram os achados de Monika Lubesch.

Ao longo dos anos, pesquisas vêm sendo realizadas visando a aprofundar os estudos sobre os meandros da interação mãe-bebê, desde intraútero. Em meados da década de 1960, o neurologista neozelandês Albert Liley (citado por Gonçalves, 2001) concluiu que o abdômen e o útero de uma mulher grávida são lugares bastante barulhentos. A criança escuta o ruído do estômago materno e a voz da mãe desde o quinto mês gestacional, assim como o barulho de seus batimentos cardíacos. Para o Dr. Liley, essa é a razão pela qual um bebê se acalma quando encostado ao peito da mãe ou ninado pelo tique-taque de um relógio.

Michele Clements (citada por Gonçalves, 2001), baseada nos estudos do dr. Liley, observou que o ritmo cardíaco de fetos se regularizava ao ouvirem Vivaldi, ocorrendo o contrário quando estes ouviam Beethoven e rock. Ainda segundo sua equipe, dentre todos os barulhos que permeiam o universo do recém-nascido existe um que é adaptado às suas capacidades auditivas: a voz humana.

As pesquisas médico-psicológicas realizadas desde meados do século XX, acerca da comunicação mãe-feto, têm sido grandemente incrementadas graças aos avanços da tecnologia médica. Tais pesquisas, lidas à luz de estudos psicanalíticos recentes sobre a importância do papel da voz materna na constituição subjetiva, nos obrigam a remeter o início da organização psíquica para desde intraútero, como propôs Piera Aulagnier. Nos dias de hoje, é possível constatar cientificamente

6. As três dimensões da voz

[A] pulsão invocante . . . é a mais próxima da experiência do inconsciente. Lacan, 1985c

O que é o manhês ou mamanhês (motherese)

Em praticamente todas as culturas, mesmo que a mulher seja mãe pela primeira vez, ela tende a utilizar um modo especial de fala ao se dirigir ao seu bebê. As mesmas características podem ser observadas na fala paterna e, de um modo geral, na interação dos adultos com crianças muito pequenas, denominadas baby-talk por C. Ferguson (citado por Ferreira, 1997) ou fala manhês por A. J. Elliot (citado por Ferreira, 1997).

A fala manhês, ou mamanhês, 1 apresenta as seguintes características:

1 Em seu livro A voz da sereia (2004), M.-C. Laznik propõe a utilização do termo parentês, dado que não são apenas as mães que falam assim com seus bebês, mas também os pais.

196 o bebê nasce pela boca

• sintáticas – frases curtas e independentes, paradas durante o enunciado, repetição;

• lexicais – simplificação morfológica, reduplicação, multifuncionalidade das palavras;

• prosódicas – tom de voz alto e bastante agudo, entonação exagerada, velocidade de emissão mais lenta, silabação, alongamento de vogais.

A abundância de marcas prosódicas parece compensar a simplificação sintática e lexical do enunciado materno, e representam uma adequação da mãe às possibilidades do bebê. Essas características coincidem com as competências do bebê de discriminação de traços prosódicos desde a vida intrauterina, quando se familiariza com as características dinâmicas da voz da mãe. O bebê é particularmente sensível aos traços suprassegmentais que se referem ao ritmo e à entonação da fala. Desse modo, parece haver dos dois lados uma predisposição à “sintonia” entre a produção vocal da mãe e a percepção auditiva do bebê (Parlato, 2002). As modificações de voz da mãe se fazem acompanhar, muitas vezes, por expressões faciais exageradas – contato olho a olho, levantamento de sobrancelhas, grandes sorrisos –, movimentos rítmicos do corpo e ajustes posturais, tais como pegar a criança no colo e aproximar o rosto. O conjunto dessas modificações focaliza a atenção do bebê e acentua o seu interesse. As experiências de Fernald e Kuhl (1987) confirmaram o grande interesse dos bebês pela palavra com características melódicas do manhês, a ponto de preferirem escutar conversas destinadas a bebês, sejam ou não em sua língua materna, sejam ou não proferidas por sua mãe. São as características de entonação do mamanhês e, mais particularmente, sua frequência fundamental (Fo) as responsáveis por esse interesse do qual não escapam nem mesmo os bebês que se tornarão autistas.

Segundo Severina Ferreira (1997), embora anteriores à emergência da linguagem, as primeiras manifestações do bebê – vocalizações,

7. A pulsão invocante e o evitamento seletivo da voz

Para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. Clarice Lispector, A paixão segundo G. H.

Pulsão invocante e dinâmica do tratamento

Fragmento 1 – De seu esconderijo, Filipe fazia um barulho. Respondi: “Tenho medo porque não sei o que é”. Ele repetia o som. Num tom de conclusão, eu lhe dizia que era barulho de gente e ia ao seu encontro. Essa brincadeira se repetiu várias vezes.

Fragmento 2 – Filipe estava escondido na sala de espera. Chamei seu nome, mas ele não respondeu. Como se pensasse alto numa estratégia para encontrá-lo, disse que se eu ouvisse sua voz eu descobriria onde ele estava. Escondido atrás da cadeira da mãe, ele recebia instruções cochichadas por ela para não falar. E não falava. Filipe era muito obediente aos mandamentos maternos. Silêncio. Fechei a porta da nossa sala dizendo que não o havia encontrado. Passado algum tempo, sua mãe decidiu procurá-lo comigo. Ele gostava muito disso. Mas, como não o encontramos (ele havia permanecido quieto), ela sugeriu

que desistíssemos, ao que eu respondi com um veemente não. A mãe, visivelmente angustiada com o silêncio do filho, começou a falar como se fosse ele, imitando a sua voz. Eu disse que aquela não era a voz de Filipe e que, desse modo, não poderia encontrá-lo; apenas quando ele falasse é que eu o encontraria.

De acordo com Jean-Michel Vives (1989), a dinâmica do tratamento psicanalítico se caracteriza, no que concerne à pulsão invocante, por uma modificação do lugar do sujeito no circuito da invocação, que se declina entre um “ser chamado”, “chamar”, “se fazer chamar”. A entrada no circuito da invocação implica, a um só tempo, o reconhecimento do Outro e sua falta (Ⱥ). Para Vives, invocar não é demandar. Na demanda, o sujeito está em posição de dependência absoluta em relação ao Outro; na invocação, ao contrário, trata-se da suposição de que uma alteridade possa advir.

Para ouvir, compreender e falar, é necessário adquirir um ponto surdo, 1 só possível em decorrência do esquecimento produzido pelo recalque originário. Para Vives (1989), a aquisição dessa surdez estrutural é o que nos protege da alucinação auditiva. Ressalte-se, porém, que esquecer a dimensão sonora originária não é o mesmo que foracluí-la. É pela ação do recalque originário que a voz primordial tornar-se-á inaudita, isto é, a um só tempo estranha e familiar.

Que barulho é esse? De impassível ao impasse e ao passo: a voz e o estatuto do Outro

Há uma subjetividade em jogo tanto na apercepção da voz quanto em sua produção. Ou melhor, sem sujeito, não há voz, mas sem voz não há sujeito. Para haver sujeito é preciso o estabelecimento de um circuito pulsional em três tempos.

1 Jean-Michel Vives forja o termo ponto surdo por analogia ao ponto cego da visão.

8. A gramática do inconsciente: do traço à letra e sua relação com significante

Da identificação: o traço unário

Freud utiliza o termo identificação, a propósito do caso Dora (1905), apenas num sentido descritivo. Só por volta de 1920 é que seu conceito passará ao primeiro plano. No Capítulo VII de seu artigo “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921/1977) ele apresenta suas formulações sobre o tema e descreve três tipos de identificação. No contexto de sua obra, identificação é o processo inconsciente realizado pelo eu quando este se transforma em um aspecto do objeto.1 Nela, não se trata de uma simples imitação, mas de apropriação.

O primeiro tipo de identificação, a identificação primária, é uma espécie de precondição mítica, mais difícil de compreender do que as outras, tanto mais que ela não está clinicamente fundamentada, como nos lembra Lacan (1960-1961/1992a). Em suma, antes mesmo do esboço da situação edípica, tratar-se-ia de uma primeira identificação ao pai mítico da horda primitiva2 por meio de sua incorporação

1 Trata-se, aqui, da identificação entre duas instâncias psíquicas: o eu e o objeto.

2 É Freud quem o indica em seu texto de 1921, ao referir seu artigo “Totem e Tabu” (1913).

pelos filhos. Diz Freud: “um dia os irmãos . . . se reuniram, mataram e devoraram o pai . . . No ato de devorar, . . . cada um se apropriou de uma parte de sua força”. Estamos diante da incorporação do objeto sob o modelo canibalístico.

O segundo tipo, a identificação regressiva, resulta de uma relação de amor, e, à medida que o objeto se recusa a esse amor, Lacan vê aqui uma indicação da necessidade de Freud propor um estágio de identificação anterior, primordial. Assim, mediante um processo regressivo, o sujeito é capaz de se identificar com o objeto que o decepciona no apelo amoroso.

Os dois primeiros modos fundamentais de identificação se fazem sempre, segundo Freud, por identificação a um traço único (einziger Zug).

O terceiro tipo, a identificação histérica, resulta do fato de o sujeito reconhecer no outro uma situação total em que ele vive.

Lacan, na esteira de Freud, situa a identificação no centro de seu trabalho teórico, inserindo-a, inicialmente, no registro imaginário.

A tese de 1936, a propósito do estádio do espelho, refere-se precisamente à assunção da imagem especular concebida como fundadora da instância do eu (moi). Essa identificação narcísica originária será o ponto de partida das séries identificatórias constitutivas do eu (moi).

No passo seguinte, ela participa dos três tempos de sua concepção do Édipo (Lacan, 1957-1958/1999): primeiro, sob a forma de identificação ao que é pensado ser o desejo da mãe; depois, sob a forma da descoberta da lei paterna; e, por fim, pela simbolização dessa lei cujo efeito é atribuir o real lugar ao desejo materno e autorizar as identificações posteriores constitutivas do sujeito.

Nos anos 1960, sobretudo em O seminário, livro 9: a identificação (1961-1962), Lacan tentará fazer valer as consequências mais radicais das posições freudianas sobre o tema. Nessa obra, ele aborda a identificação ao significante, constrói seu conceito de traço unário que irá buscar no traço único da identificação regressiva, formulada

9. Da

letra

e

de suas relações com a voz: o papel da voz na

incorporação da linguagem

Tomar o corpo à letra é, em suma, aprender a soletrar a ortografia do nome composto pelas zonas erógenas que o constituem; é reconhecer em cada letra a singularidade do prazer (ou da dor) que ela fixa e assinalar ao mesmo tempo a série dos objetos em jogo. Leclaire, 1968/1977

La voix impose le silence au réel et en particulier au réel du corps. Melman, 1985a

Caberá à letra delimitar as bordas do que será um corpo, desde sempre atrelado ao outro, ao desejo do Outro, constituindo-se, da inscrição à escrita, como efeito do Simbólico sobre o real do organismo, resultado da incorporação da linguagem.

A voz materna, portadora da lei, tem o poder de recalcar a relação de gozo entre mãe e filho, necessária num primeiro tempo. O recalque possibilitado pela voz da mãe propicia a entrada do infans na linguagem; sem isso não há corpo. Essa entrada, porém, não se dá sem perda: “[a criança] vai se perder como voz para tornar-se da língua, tornar-se

da fala” (Balbo & Bergès, 2004, p. 160). Para tornar-se da fala, há um preço a ser pago não apenas pelo que se ouve, mas pela articulação do significante ao corpo, que está sendo veiculada através da fonação, pela voz. O objeto voz tem de cair, separar-se do corpo. Mas ele só pode ser perdido caso se mantenha como inscrição significante: “isso que foi escutado dessa voz é o que se faz terceiro e mantém-se inscrito para o sujeito” (Balbo & Bergès, 2004, p. 170).

Os elementos prosódicos sutis da voz da mãe fazem com que o bebê se interesse, tão precocemente, pelo Outro materno. Desse modo, esses elementos seriam letras conduzindo a disseminação do simbólico no real do corpo, constituindo a primeira organização significante. As letras, propõe Pommier (2002), são os dentes da máquina de triturar1 do significante, pela qual a criança faz passar o significante fálico (S1) recebido da mãe; o ressignifica e, como produto dessa operação, advém como sujeito. O sujeito é produto da fala, um produto que se torna ator produzindo aquilo que o torna ator (Pommier, 2002).

A articulação do sutil e do substancial

Uma das referências clássicas da psicanálise quando se pretende articular voz e corpo, Denis Vasse, sustenta em seu livro O umbigo e a voz (1977), a tese de que, sobretudo nas estruturas psicóticas, seja em adultos seja em crianças, a voz tem algo a ver com o umbigo, no sentido de que ambos têm algo a ver com o conceito de origem. “A voz jamais é representada: ela representa, ela é o ato de uma presença que se representa ou que representa um objeto para um outro” (Vasse, 1977, p. 94). Com base nas obras de Lacan e de Françoise Dolto, Vasse corrobora a ideia de uma anterioridade da voz na organização do funcionamento psíquico.

1 Propomos assim a tradução do termo francês moulinette (moulinette du signifiant).

Para que um discurso não seja só do semblante, para que tenha consequências, é necessário que o traço que materializa a presença do outro cumpra sua função significante. Ou seja, não somente que ele precipite um significado, mas que também se libidinize.

É na medida em que o clínico perceba esse delicado cinzel que vai da voz do outro ao sujeito que logrará interpretar qual é o ponto de resistência, singular em cada autista, entre a voz e o significante. Qual a janela pulsional na qual cada autista poderá encontrar um traço para ensaiar uma identificação primordial com o Outro.

Este livro, ora reeditado, tem um papel protagonista no empenho da psicanálise em devolver o autista ao campo da palavra, resgatando-o do lugar de transtorno mecânico de alguma função.

Alfredo Jerusalinsky Psicanalista, membro da Associação Lacaniana Internacional Doutor em Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano

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O bebê nasce pela boca by Editora Blucher - Issuu