A comuna 34

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2015

SETEMBRO-DEZEMBRO

Nº34

Luta social e crise política no Brasil


Índice

03 04 11 Editorial

Lições brasileiras para processos europeus ou vice-versa

Brasil: decifra-me ou continue em transe Rudá Ricci

Bruno Góis

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Brasil: #OcupaEscola #NãoFechemMinhaEscola Bruno Góis

Propriedade União Democrática PopularAssociação Politica Rua de São Bento, 694 1250-223 Lisboa Correio eletrónico geral@acomuna.net Site www.acomuna.net Registo na ERC nº124204 Diretor Bruno Góis

Participam Almerinda Bento Ana Paula Canotilho Bruno Góis Diogo Barbosa Luca Palmesi Rudá Ricci Sandra Almeida

Design e ilustrações Maria João Barbosa

Aspectos da conjuntura da crise brasileira

Luca Palmesi


editorial

Lições brasileiras para processos europeus ou vice-versa 1. PROCESSOS EUROPEUS: Se quisermos simplificar muito a política europeia, abstraindo da complexidade das suas dezenas de nacionalidades: temos uma França como exemplo não único, nem mais grave, mas assombroso do forte ressurgimento da extrema-direita nas proximidades do poder, e uma Alemanha onde União Democrata Cristã/CSU governa coligada com o Partido Social-democrata Alemão (SPD), enquanto a principal força da oposição, A Esquerda, teve 8,6% nas eleições federais de 2013. Pares sistémicos como Nova Democracia/PASOK na Grécia, Partido Popular/PSOE no Estado Espanhol e PSD-CDS/PS em Portugal são as versões particulares da alternância entre o Partido Popular Europeu (neoliberais nos anos 1990, hoje cada vez mais conservadores) e o Partido Socialista Europeu (social-liberal, onde será raro encontrar qualquer vestígio ou relíquia da social-democracia do pós-segunda guerra). Na Grécia, o pacto do PASOK com a direita ND (em nome de um suposto “europeísmo” que mascara a austeridade e o domínio da finança) levou à sua substituição enquanto segunda força. A Esquerda Radical (SIRIZA) fez o confronto direto com a direita e chegou à liderança do governo no início de 2015. A história da posterior capitulação de Tsipras, ao aceitar a austeridade do terceiro resgate, é uma história por fazer e por concluir. Esperemos que não tenha um desfecho à italiana, que fez migrar um grande partido de esquerda (o PCI) de recuo em recuo até ao centrismo hoje chamado Partido Democrático. Em Portugal, o PS não quis cometer os erros do PASOK. Costa não é menos liberal que outros líderes dos PS’s europeus. O facto da perda de maioria absoluta por parte da direita (38,57%, 89 mandatos PSD + 18 CDS) não ter sido capitalizada pelo PS (32,31%, 86), mas pelos partidos à sua esquerda (Bloco: 10,19%, 19; CDU: 8,25%, 15 PCP + 2 PEV) foi um aviso que Costa não podia deixar de ouvir. Depois do fenómeno inaugurado na Grécia, a que já se chama “pasokisação”, os sociais-liberais europeus tremem primeiro, tornam-se astutos depois. O crescimento do Bloco de Esquerda e da CDU (PCP-PEV) foram portanto fundamentais para: a) tirar a direita do Governo português, e b) para que o PS não governasse com o seu programa liberal. Ao possibilitar um governo minoritário do PS, colocou-se um travão ao crescimento da austeridade e iniciou-se um ciclo de recuperação de rendimentos e de avanço de políticas para a igualdade e a liberdade. A esquerda não é governo mas faz parte da maioria parlamentar, o que tem vantagens e custos. Essa situação corresponde, de facto, aos interesses populares imediatos, mas não se pode perder o futuro do movimento. Cair no possibilismo seria um erro. Ser travão à luta social seria suicida. O bloqueio europeu a políticas alternativas

espreita, as forças alternativas demoram, e Costa e o PS não mudaram a sua natureza. Entretanto no Estado Espanhol, o PP ficou em primeiro nas eleições gerais, mas também minoritário (28,71%, 123 dos 350 mandatos; mesmo juntando os 40 mandatos, 13,93%, dos Ciudadanos, também da direita espanholista, isso é ainda insuficiente). Simultaneamente, os sociais-liberais espanhóis (PSOE) continuam a ter um peso parlamentar e social forte, sendo a segunda força, com 22,01% e 90 mandatos. A terceira força nas gerais espanholas foi o Podemos. É no entanto de sublinhar que esse lugar só é mais firme graças a uma articulação flexível com as causas das nações periféricas, digo isto pois os votos que teve sozinho dão-lhe 12,66%, mas chega mais além com outras plataformas: 42 mandatos das listas Podemos + 12 En Comú Podem (Catalunha) + 9 Compromís-Podemos-És El Moment (comunidade Valenciana) + 6 En Marea (Galiza) = 69 mandatos, 20,66% dos votos. A Unidad Popular (animada principalmente pela Izquierda Unida) elegeu apenas na Comunidade de Madrid, 2, e teve apenas 3,67%, um recuo grande mas que não contabiliza as plataformas onde participou junto com o Podemos. Entre as forças nacionalistas de esquerda que não foram nas convergências com Podemos, temos: NOS – Candidatura Galega (impulsionada pelo BNG) que teve 4,32% ao nível da Galiza, mas não elegeu; e Euskal Herria Bildu, elegeu 2 representantes, e teve 15,07% ao nível do País Basco. 2. LIÇÕES BRASILEIRAS: O Partido dos Trabalhadores, fundado em 1980 a partir do movimento operário brasileiro, elegeu pela primeira vez um presidente da república em 2003, derrotando o neoliberal Fernando Henrique Cardoso. Os governos do ex-sindicalista metalúrgico Lula da Silva (2003-2011) e da sua sucessora Dilma Rousseff (eleita em 2011, reeleita em 2014) iniciaram um novo momento político no Brasil, um tempo de muitas contradições. A via lulista está hoje em crise. Os artigos do cientista político Rudá Ricci e do jovem professor de história Luca Palmesi sobre a luta social e a crise política no Brasil são contributos inestimáveis não só para a compreensão do momento histórico particular que atravessa esse gigante latino-americano mas também para uma aprendizagem (mútua) das dificuldades da estruturação de um novo campo político que seja alternativo quer ao avanço conservador, quer à moderação/capitulação de grandes partidos que nalgum momento representaram a esperança do movimento dos trabalhadores. Novas maiorias sociais são necessárias. Estes artigos ajudam-nos a iluminar algumas sombras que nos confundem o caminho. Bruno Góis

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Luta Social e Crise Política no Brasil

Brasil: decifra-me ou continue em transe Rudá Ricci 1 - O “lulismo” como novo paradigma governamental e ampliação do crédito popular para compras familiares) tendo como objetivo A vitória de Lula, em 2002, não foi uma vitória qualquer. Alterou, a partir dali, a história da estrutura política brasileira, mas, também, a história do seu próprio partido, o Partido dos Trabalhadores (PT). No início de sua gestão, entre os anos 2003 e 2004, Lula criou um amálgama de políticas, típicas de todos governos petistas até então, incluindo de tudo um pouco: políticas econômicas liberais, políticas sociais de caráter participacionista (fundadas na cogestão, como no caso do Fome Zero) acompanhando, enfim, um amplo arco de alianças políticas e ideológicas. Contudo, já em 2005 ocorreu uma guinada pragmática do governo em função da primeira grande adversidade: o início das denúncias sobre pagamentos mensais de propinas a parlamentares e partidos aliados e nem tão aliados no Congresso Nacional para obter maiorias mais amplas. Logo, este esquema ganharia o apelido jocoso – uma especialidade brasileira - de “mensalão”. O governo Lula, a partir de então, adotou uma agenda tipicamente rooseveltiana. Foi o início de sua escalada para se tornar o maior líder político contemporâneo da política nacional. A agenda lulista-rooseveltiana se baseou num tripé: concentração orçamentária na União, aumentando seu grau de investimento e orientação econômica; subsídio dos gastos das famílias menos abastadas (via Programa Bolsa Família, aumento real anual do salário mínimo

forjar um amplo mercado interno consumidor, base do crescimento da indústria tupiniquim; orientação e fomento à indústria nacional (via recursos carreados do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES -, que se tornou o terceiro maior banco de fomento do mundo e orientação de investimentos via Plano de Aceleração do Crescimento – PAC – uma espécie de cardápio de investimentos públicos em infraestrutura nacional). O tripé gerou um “pacto desenvolvimentista”, constituindo um “fordismo tardio” em terras brasileiras. O problema de todo pacto desta natureza é que ele precisa de um ambiente de “conflito administrado” ou “conflito mínimo” para atrair investimentos crescentes. Do ponto de vista político, tal situação significa, na prática, a orientação para a conciliação de interesses. Assim, o PT sob a égide do lulismo foi domesticado. Movimentos sociais e organizações populares que sempre estiveram na órbita programática do PT, ingressaram em arenas de negociação de políticas públicas federais. Esta mudança de foco – das ruas para os gabinetes federais – se revelou um desastre político de amplas conseqüências, até mesmo para o governo. Num país com desigualdade social crônica, mesmo com diminuição acelerada da pobreza e fome (em dez anos de gestões lulistas, o número de famílias mergulhadas na fome diária se reduziu em 50%) o cotidiano de

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“O Governo Lula adotou a partir de [2005] uma agenda tipicamente rooseveltiana” milhões de brasileiros é marcado pela frustração e ressentimento. A malha de entidades de mediação, de presença nestes grotões de pobreza e desalento, forjada pelas ONGs, pastorais sociais, sindicatos e outras entidades sociais, constitui um importante sistema de organização de demandas sociais. A forte presença, nos anos 1980 e 1990, dessas organizações, criou uma constante atualização de agendas nacionais na área social que alimentou o crescimento do PT e da esquerda nacional. Contudo, na medida em que os governos lulistas atraíram tais organizações para o interior do Estado, este sistema de comunicação e formação de agendas sociais se desfez. Ao se desfazer, as ruas ficaram órfãs e a imensa camada de lumpensinato se fechou à sua pouca sorte e desalento. Uma tensão oculta ou latente que evidentemente desabrocharia, em algum momento, em forma de ressentimento político. Na outra ponta deste constructo govenamental que foi o lulismo, se rearranjou todo sistema partidário e de atendimento dos entes federativos. Em primeiro lugar, os anos de gestão Lula forjaram uma coalizão presidencialista que se aproximou

dos moldes parlamentaristas. O lulismo capturou, ano a ano, grande parte dos partidos políticos do nosso sistema partidário (que soma mais de 70 partidos), excluindo apenas os partidos que se tornaram adversários históricos, como o PSDB (inicialmente, socialdemocrata, mas que nos últimos anos pendeu para um programa liberalconservador) e DEM (partido ultraconservador que se aliou ao PSDB e que nos anos de lulismo definhou, se tornando um dos partidos “nanicos” do país). Lula, inclusive, atuou fortemente para aliciar lideranças desses dois partidos – em especial, do DEM – transferindo-os para partidos da base aliada, em troca de benefícios para sua base eleitoral. Daí surgiu um novo e importante papel para os parlamentares federais do nosso sistema político: o de representação cartorial. Os deputados federais passaram a se constituir como facilitadores do acesso de prefeitos (governos locais que dirigem mais de 5.500 municípios) aos convênios com agências federais que coordenam programas sociais e de infraestrutura. Na prática, o lulismo nacionalizou programas federais (como Minha

Casa, Minha Vida; Programa Bolsa Família; Mais Educação; Mais Médicos; Praças da Juventude; Programa Segundo Tempo nas Escolas Públicas; Universidade Aberta do Brasil; Farmácia Popular e outros) em virtude da concentração orçamentária (65% de todo recurso público para investimento se concentraram na União) e deste sistema cartorial alimentado pelos deputados federais. Este sistema forjado entre 2005 e 2010, sob a liderança de Lula, criou um imbricado jogo de contrapesos de difícil administração que somente sob a coordenação de um líder carismático se mantém em pé. Tal afirmação se confirmou em 2008-2009 em meio à crise internacional desencadeada pela recessão norte-americana alimentada pelo subprime. Lula veio a público e disse que se tratava de uma mera “marola” (uma agitação sem importância das ondas do mar) e que os brasileiros poderiam comprar sem preocupação para festejar o final do ano de 2008. A população atendeu o chamado o que resultou num colchão de recursos originários das vendas para promover um programa de ajuda ao sistema bancário brasileiro.

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“A “inclusão pelo consumo”, ao contrário (...) da inclusão pelos direitos, gera uma profunda passividade ou individualização social” Enfim, o “fordismo tardio” brasileiro, que ocorreu em meio a uma crise internacional de largo espectro, só floresceu em virtude da ousadia de uma liderança carismática. Até que Lula indicou para sua sucessão uma tecnocrata dura e pouco afeta ao jogo político: Dilma Rousseff.

2 - Sistema partidário esfacelado No plano político, a lenta crise do sistema de gestão montado pelos governos lulistas se alimentou de dois grandes problemas: a nova realidade social gerada pela “inclusão pelo consumo” e a corrosão do sistema partidário brasileiro. A “inclusão pelo consumo”, ao contrário da inclusão pela política (quando os segmentos excluídos socialmente se incorporam pela organização em sindicatos ou organizações de representação de interesses ) ou da inclusão pelos direitos (quando novos direitos são inscritos pela pressão

social e política), gera uma profunda passividade ou individualização social. Este fenômeno já foi percebido nos anos 1950 nos EUA: o consumo revela o prestígio social ou superação da situação anterior, de penúria. Intuitivamente, os beneficiários dos programas de promoção social procuram se distanciar rapidamente das condições de vida da fase anterior e se concentram na aquisição de bens como se fossem troféus sociais. Assim, houve uma explosão de consumo popular nos últimos dez anos (em especial, em 2010, último ano do segundo governo Lula, quando a economia brasileira cresceu 7,5% em relação ao ano anterior), com aquisição em massa de TVs de tela plana, aparelhos de telefonia celular, pacotes de viagem, compra de automóveis e acesso a cursos universitários noturnos. Deste movimento aflorou uma cultura conservadora, individualista, focada no sucesso individual ou familiar, de recusa de ações sociais e políticas de massa, direcionada à valorização do esforço pessoal e da meritocracia. Se nos recordarmos que o “fordismo tardio” lulista se apoiou na conciliação de interesses, temos um caldo

de cultura que associa emergência do individualismo popular com ausência de confrontos ideológicos, campo propício para o conservadorismo se alastrar país afora. Associemos a este cenário o afastamento das entidades de mediação que antes desenvolviam ações de organização coletiva dos interesses das populações excluídas social e economicamente. Também contribuiu para a formação de valores ultraconservadores a reação das camadas médias tradicionais do Brasil, concentradas, em especial, na porção centro-sul do país. O consumo popular acelerado invadiu aeroportos e shopping centers, templos de consumo seguro das classes médias brasileiras. A reação dessas camadas médias foi desproporcional e reacionária: as redes sociais foram inundadas por reações racistas e intolerantes com o comportamento do novo consumidor. A reação chegou ao ápice no início de 2014, quando adolescentes residentes nas periferias dos grandes centros urbanos começaram a agendar encontros em shopping centers. Denominados de “rolezinhos” (oriundo de role, pequeno giro,

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possivelmente uma corruptela da palavra francesa ou mesmo da palavra latina “rotella”, diminutivo de rota), tornou-se um movimento social envolvendo 5 mil a 10 mil adolescentes que afluíam, ao mesmo tempo, nestes centros comerciais para um encontro agendado nas fanpages do Facebook. A reação das classes médias foi desproporcional, invocando ação repressiva das polícias militares.

expõe a crise de legitimidade de todo sistema partidário em nosso continente. Este cenário decompõe uma das bases de governabilidade do lulismo que é a coalizão presidencialista. Em outras palavras, se os partidos políticos não estão inseridos na base social e não representam a sociedade nacional, a coalizão é compreendida pela sociedade como um acordo entre elites.

O outro grande problema de sustentação do lulismo foi a corrosão do sistema partidário nacional. As pesquisas sobre confiança institucional dos últimos dez anos revelam que os partidos políticos são validados por apenas 5% dos brasileiros. São as instituições menos valorizadas no país. Analistas convergem para sugerir que o motivo desta situação é a permanência da desigualdade social. Em suma, enquanto Lula liderou a implantação de amplos programas de promoção social e inclusão pelo consumo, a valorização de seu partido junto às camadas sociais menos abastadas evoluiu. Mas na medida em que a crise internacional diminuiu o fluxo de investimentos externos, a queda livre da confiança da população no sistema partidário – que já atingia toda América Latina – envolveu o Brasil.

O fato é que estes dois problemas convergiram como uma crise de confiança justamente quando Dilma Rousseff assumia seu primeiro mandato, em 2011.

Pesquisas anuais sobre confiança nas instituições desenvolvida pelo Latinobarômetro (articulação de pesquisadores sociais apoiado pelo PNUD e BID) indicam o grau de desconfiança generalizado que envolve todo continente.

3 uma

“Sem lenço, nem música emblemática

documento” (letra de de Caetano Veloso)

A Presidente Dilma Rousseff, que sucedeu Lula, foi ungida pela figura que, em 2010, se constituía como um quase mito para as camadas mais pobres da população brasileira: Lula. Ele próprio, originário da região nordeste do país, metalúrgico, líder operário, era o sinal de mudança de expectativas de ascensão social e política no Brasil. Com o amplo programa de promoção social que desfechou, revelou uma inteligência política que raramente se viu na história política brasileira. O exemplo passado mais próximo foi Getúlio Vargas, outra liderança que promoveu um pacto desenvolvimentista apoiado na conciliação de interesses e cujo destino foi trágico, se suicidando em 1954, após sofrer quatro tentativas de impeachment. Dilma Rousseff não emergiu por méritos próprios. Trata-se de uma tecnocrata, especializada em políticas da área da energia. Nunca foi liderança partidária ou se destacou em ações de massa. Veio das hostes do trabalhismo gaúcho, do sul do país (embora nascida em Minas Gerais, região sudeste do Brasil), berço político de Getúlio Vargas e Leonel Brizola (outra liderança trabalhista), ideologia e práticas políticas às quais o PT, partido de Lula, se opôs quando de sua fundação.

O gráfico acima, oriundo do último relatório anual do Latinobarômetro,

Sem brilho próprio e pouca afeta aos jogos instáveis das negociações políticas, Dilma Rousseff rapidamente decompôs o arco de alianças montado por Lula. O primeiro partido mais afetado foi justamente o PDT, o partido do trabalhismo brasileiro. Lula o atraiu com certa dificuldade, mas durante a

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“em 2013, 4 milhões de jovens saíram às ruas durante três semanas consecutivas, exigindo melhores serviços públicos [e] mudança na representação política” gestão Dilma Rousseff, foi destratado. O mesmo ocorreu com as centrais sindicais e muitos dos tradicionais movimentos sociais brasileiros, como o MST (movimento dos trabalhadores rurais sem terra). Rapidamente, as queixas ganharam volume e foram cair na mesa de trabalho de Lula, agora dirigindo seu instituto particular. Lula tentou interceder, o que gerou atrito junto à Presidente da República. As relações se deterioraram desde então. Paralelamente, a crise internacional se agravou e o grau de investimento externo, ainda que mantido em patamares acima do razoável (66 bilhões de dólares em 2014), começou a decair. O governo federal cometeu, ainda, um erro estratégico ao conter o reajuste dos preços administrados, em especial, derivados de petróleo e energia elétrica, reprimindo entre 25% e 30% do reajuste necessário o que, fatalmente, impactaria as contas públicas mais adiante. Rigidez política, crise econômica e valores conservadores em alta no interior da sociedade formaram a receita para a crise.

O primeiro estopim da crise veio em 2013, quando o Brasil teve seu “15M”. 4 milhões de jovens saíram às ruas durante três semanas consecutivas, exigindo melhores serviços públicos, mas, em especial, mudança na representação política. Estudo recente revelou que 70% das demandas apresentadas naqueles dias tinham relação com a crítica ao sistema de representação. Os governos estaduais e federal reagiram equivocadamente. Não sabiam como negociar com jovens que não apresentavam uma única agenda e não eram liderados por uma única organização. Entre o segundo semestre de 2013 e o primeiro de 2014, às vésperas da Copa Mundial de Futebol que o Brasil sediou, a reação dos governos – incluindo o de Dilma Rousseff – foi desproporcional, chegando a bradar que se tratava de terrorismo juvenil. Houve, inclusive, patrocínio governamental para treinamento de polícias militares nos EUA, nos campos de treinamento da Blackwater, organização mercenária conhecida pela brutalidade nas ações desenvolvidas no Afeganistão.

A reação violenta dos governos desarticulou este primeiro movimento juvenil, que retornaria mais tarde, sob novos signos e pautas. Em seguida, no segundo semestre de 2014, o Brasil foi tomado pela selvagem campanha eleitoral à Presidência da República. Dilma Rousseff já amargava índices de queda de popularidade, dada a situação econômica e o clima de insatisfação aberto pelas manifestações juvenis de 2013 e 2014. Nesta eleição presidencial, o governo federal tentava a reeleição e disputou com duas forças oposicionistas: Marina Silva, que tinha sido ministra do Meio Ambiente de Lula e uma liderança histórica do PT que se desentendeu no final da gestão Lula e início da gestão Dilma Rousseff, e o senador Aécio Neves, do PSDB, adversário histórico do PT. A campanha foi acirrada. Mas o profissionalismo da campanha do PT superou todas adversidades. E inovou. Pela primeira vez numa campanha eleitoral brasileira, o foco do marketing político não foi a valorização do candidato oficial, mas a desconstrução da imagem pessoal dos

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adversários. Em curto espaço de tempo (no máximo, dez dias), por duas vezes, a campanha de Dilma Rousseff disseminou informações e uma campanha emocional que desconstruíram as duas candidaturas adversárias. No final do primeiro turno, desmontou a imagem de Marina Silva, sugerindo que se tratava de uma candidata personalista, que havia se aliado com banqueiros e grandes empresários do agronegócio (num país com alta desigualdade social, esta é uma aliança desastrosa para os mais pobres, maioria do eleitorado). No segundo turno, a imagem de Aécio Neves sofreu um ataque intenso pelas redes sociais, disseminando que se tratava de um agressor de mulheres. Esta informação foi essencial para a vitória de Dilma Rousseff porque 75% dos indecisos naquele momento eram mulheres com mais de 45 anos de idade, muitas com histórico de violência intrafamiliar. Dilma se reelege com o país dividido e em guerra política. Não foi uma vitória de programas ou idéias, mas a vitória de um ataque pessoal aos seus adversários. Campanhas desta natureza transformam adversários em inimigos. E foi o que ocorreu.

O grau de desconfiança do brasileiro se generalizou para tudo e todos, como se percebe na tabela apresentada a seguir, elaborada pelo Latinobarômetro.

Como no período 2013 e 2014 o governo federal enfrentou reações negativas do alto empresariado fazendo a economia empacar, os primeiros movimentos do segundo mandato de Dilma Rousseff objetivaram acenar positivamente para as demandas das elites econômicas. Tal movimento se revelou um desastre. Nomeou como Ministro da Fazenda um tecnocrata de um dos bancos privados mais importantes do país, Joaquim Levy, do Bradesco. E anunciou um pacote monetarista, de forte restrição monetária. Ocorre que o PT cresceu contra pacotes desta natureza e a campanha da recém eleita Presidente foi de garantias que não adotaria esta agenda econômica. O Brasil, a partir daí, afundou na mais profunda recessão desde o início dos anos 1990. Uma recessão provocada pela política econômica que não se anunciava até então, como destino natural dos percalços de nossa economia. O desemprego cresceu aceleradamente, como se percebe na ilustração apresentada a seguir, atingindo justamente o eleitor preferencial do PT, desde 2006.

Sem habilidade política, sem carisma, ao adotar um pacote de restrições aos investimentos, afetando sua base eleitoral, Dilma Rousseff se viu, poucos a comuna 09


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meses após sua reeleição, em queda vertiginosa de popularidade. Em quatro meses, menos de 10% da população brasileira considerava seu governo bom ou ótimo. O brasileiro abandonou seu governo. Os casos de corrupção que ganharam as páginas dos jornais apenas deram o acabamento para este cenário já em decomposição. Para a maioria dos eleitores brasileiros, a corrupção é um dado histórico da política nacional. Em 2006, pesquisa do IBOPE revelava que 75% dos brasileiros afirmavam que se tivessem poder desviariam recursos públicos para ajudar um parente ou conhecido. Uma evidente naturalização da corrupção. Nada de novo, já que teorias funcionalistas sugerem que em países com forte desigualdade social, a corrupção se apresenta como estratégia de ascensão social. Contudo, os casos de corrupção passam a ser relevantes quando o governo que o promove ou é corroído por denúncias desta natureza, é o mesmo que promove desemprego e queda de consumo familiar. Neste ponto, o ressentimento alimenta o sentimento de injustiça, que promove reações sociais explosivas. E é justamente o que ocorre neste momento. O que cria salvaguardas ao governo federal neste momento é que não há alternativas confiáveis ao seu governo. A oposição liderada pelo PSDB é apoiada por setores médios do centro-sul do Brasil, mas gera muita desconfiança nos segmentos mais populares do eleitorado que

identifica este partido com as elites econômicas.

exatamente

Com a abertura do processo de impeachment da Presidente da República, a situação ficou ainda mais complexa e tortuosa, já que o Presidente da Câmara de Deputados que acolheu o pedido de impeachment (e abriu o processo no Legislativo) está para perder seu mandato por corrupção, com provas documentais fartamente divulgadas na grande imprensa. Em virtude desta situação das mais complexas e contraditórias, as forças políticas e sociais mais reconhecidas do país se manifestaram publicamente contra o impeachment, caso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O mesmo caminho seguiu Marina Silva, que acaba de ter seu partido legalizado oficialmente (a Rede Sustentabilidade), a ex-petista que disputou as eleições do ano passado com Dilma Rousseff. Vários partidos políticos, como a oposição à esquerda, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), também se manifestaram contra o processo de impeachment, isolando as forças que procuram promover a cassação do mandato presidencial.

econômica,

mas

política.

6 de Dezembro de 2015 Rudá Ricci sociólogo e cientista político, diretor geral do Instituto Cultiva (www.institutocultiva.com.br), membro do Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP) e autor, entre outros, dos livros “Lulismo: da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira” (Editora Contraponto) e “Nas Ruas: a outra política que emergiu em junho de 2001” (Editora Letramento). Website: www.rudaricci.com.br .

O sistema federativo brasileiro é composto por três entes teoricamente autônomos: União, Estados e municípios. São 26 Estados, um Distrito Federal (que contém a capital do país: Brasília) e 5.570 municípios. 1

Por caminhos tortuosos, o governo Dilma parece se safar, neste momento, de seu maior risco. Mesmo assim, não deixará de ser percebido como um governo dúbio ou medíocre pela maioria dos brasileiros. O país continuará mergulhado numa crise de representação. Enfim,

a

crise

brasileira

não

é

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Aspectos da conjuntura da crise brasileira Luca Palmesi

A conjuntura do Interregno e do fim de ciclo Como sugeriu o sociólogo Leo Lince, retomando a leitura dos Cadernos do Cárcere de Antonio Gramsci, os acontecimentos de junho, julho, agosto e setembro de 2013 teriam marcado no Brasil a entrada numa conjuntura do interregnum ou interregno. Esta conjuntura seria caracterizada por aqueles momentos de crise política em que o velho arranjo, o sistema vigente, se esgota, entra em colapso, “mas seu sucessor ainda não se formou”. É o tempo do não mais e do ainda não. Entre a falência histórica de um sistema em vias de consumação e sua consumação de fato, o período pode ser chamado de interregno. A falência histórica do sistema só termina quando sua falência política concreta abre espaço para afirmação de uma nova “gramática do poder”. Enquanto isso não surge, estamos sujeitos aos perigos e às incertezas do período, aparecem “sintomas mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas” (http://bit.ly/1NUFZ9R). A classe dirigente não sendo mais capaz de organizar o consenso social segundo as formas tradicionais, continua no entanto podendo utilizar-se da força legítima até o fim do agonizante processo. Ela também se reorganiza, abre-se a possibilidade de troca de programas, de líderes, o surgimento de chefes carismáticos, a tentação autoritária de pacificar a situação. Novos sujeitos políticos podem surgir em novas formas, reacendendo em quem espera uma saída progressiva, a esperança de lograr sucesso, mas também deixando o alerta para as saídas incertas e perspectivas sombrias. O ciclo que teria chegado ao fim no Brasil teria sido o do lulopetismo (2003-2013) ou pelo menos de sua fase politicamente estável. De fato, no interregno prolongam-se as ilusões. Sem apressar-nos em enterrar uma força política ainda determinante no cenário nacional, também não podemos deixar de notar os abalos sísmicos sofridos pela composição social que a sustentava. Estudiosos do chamado lulismo1 observaram que na chegada ao poder, o PT foi destruído e sobre seus escombros ergueu-se um novo partido,

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um neo-PT. A direção histórica dos movimentos sociais foi assimilada à ordem, num processo de “transformismo”, criando uma nova classe dirigente, formada pela associação da velha burocracia sindical, alojada no aparelho de estado, convertida em gestora de fundos de pensão, cujos interesses se fundiram com os dos economistas-banqueiros do governo. Um programa de fortes reformas estruturais foi abandonado em prol da ortodoxia econômica, prometida aos mercados por meio da Carta ao Povo Brasileiro (2002), antes de se eleger. A base de sustentação principal do petismo eram os movimentos sociais, que lhe proporcionavam um forte consenso ativo. Esta parcela da classe trabalhadora havia ascendido e conquistado melhores condições de vida que a grande maioria da população brasileira, excluída em grande medida da sociedade de mercado. Quando Lula chegou ao poder (2003) não realizou o programa formulado pela classe trabalhadora organizada que o havia sustentado, mas implementou um programa destinado a conquistar os setores mais pauperizados e desorganizados, incluindo-os na sociedade de consumo. Falamos de dezenas de milhões de pessoas, que sofriam com o desemprego, os baixos salários, a desnutrição, a fome, o trabalho infantil, exclusão do acesso ao ensino e finalmente a impossibilidade de consumir o que já era consumido pelos chamados “setores médios”. Assim, durante todo o período do lulismo, o governo expandiu o consumo,

incluiu milhões no mercado de trabalho, reajustando anualmente os salários e promovendo programas de assistência social. Sua base passou a ser o consenso passivo fornecido pelos setores que ascenderam ao consumo e o consenso ativo dos movimentos sociais. Esta aliança de interesses promoveu uma estabilidade política da conciliação de classes construída pelo lulismo. Em 2004 e 2005, após a Reforma da Previdência que retirou direitos dos funcionários públicos aposentados e principalmente com a crise do chamado mensalão (acusação de pagar para parlamentares votarem com o Governo, num complexo esquema de corrupção), parte dos chamados setores médios romperam com o PT. O tema da corrupção entrou na agenda dos que haviam rompido com o partido que tinha na ética política uma de suas bandeiras históricas. Uma parte destes setores médios foi para a direita, outra para a esquerda: parcela ainda pequena da classe trabalhadora organizada e setores da juventude que buscaram outros partidos (o PSOL inicia em 2004 e obtém seu registro formal em 2005). A saída das ruas também logo levou parcelas minoritárias das juventudes médias a buscar novas formas de organização, como o MPL fundado em 2005, que possuía ex-petistas, dentre seus fundadores.

As eleições presidenciais subsequentes confirmaram o êxito das políticas do PT. A valorização real do salário mínimo foi de 55% e os pobres diminuíram de 37,2% para 7,2%, entre 2003 e 2011 (http://bit.ly/1U2rvDX). O desemprego nas regiões metropolitanas saiu de 12,6% em 2002 para 6% em 2011. No primeiro mandato o crescimento do PIB foi de 3,5%/ano. e no segundo de 4,5%/ ano. O crescimento puxado pelo agronegócio conduziu ao abandono da pauta histórica da Reforma Agrária, a desindustrialização e o fortalecimento de uma economia de exportação de commodities. O governo deu uma orientação oligopolista para a economia, para criar grandes empresas brasileiras para competir no mercado internacional. O CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) passou a autorizar grandes fusões e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) passou a financiá-las. O Bolsa Família ajudou a combater a fome e a desnutrição, beneficiando com uma pequena quantia mensal, cerca de 56 milhões de pessoas, um quarto do total da população atual(!) – o programa incorporou o Bolsa Escola do governo anterior, que beneficiava um décimo deste número; o PRONAF mitigou os efeitos do abandono da Reforma Agrária, ajudando a agricultura familiar a sobrevier durante o período;

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a expansão do crédito fortaleceu o consumo; o PROUNI inaugurou uma ampla política de inclusão de estudantes de baixa renda no ensino superior privado, subsidiando seus estudos, o que gerou uma explosão do mercado das faculdades particulares; o REUNI foi a inclusão de estudantes no ensino superior público, ainda que com precarização de infraestrutura. As cotas sociais e raciais aumentaram a inclusão da juventude negra e pobre em espaços de ensino superior, de onde era historicamente excluída. Em 2008, quando estourou a crise internacional do capitalismo, Lula prometeu que a crise não abalaria o crescimento do país. Aprofundou-se a tendência anterior às desonerações fiscais de produtos industriais. O governo abandonou a pauta da Reforma Urbana e lançou o Minha Casa, Minha Vida, MCMV, programa anticíclico, voltado para subsidiar o mercado imobliário (de menos R$785 mil em 2002 a R$5,3 bilhões em 2011 - http://bit.ly/1U2rvDX), garantindo uma boa taxa de retorno em locais aonde o mercado não queria construir por falta de infra-estrutura urbana e de demanda. O programa retardou a crise econômica puxando o emprego e toda a cadeia produtiva da construção civil. O país saiu de PIB nacional e da construção civil negativos em 2009, para um crescimento nacional de 7,5%, puxado pelos 11,7% da construção civil. O resultado foi o boom imobiliário e o aprofundamento da crise

urbana. As pessoas foram morar em locais sem nenhuma infra-estrutura, estimulando a lógica da criação de periferias das periferias e das cidades dormitórios... Agravaramse com isso os problemas de mobilidade e equipamentos públicos urbanos. Uma pequena parcela do programa foi destinada aos movimentos sociais para amenizar os efeitos da crise urbana com o MCMV Entidades, que permite aos movimentos gerir uma parte dos recursos, construindo com melhor qualidade e em melhores localizações. Isto ajudou a amenizar as perdas do governo à esquerda, junto aos movimentos urbanos organizados.

A crise também é urbana A aliança do governo com o capital imobiliário financeirizado foi uma festa para as empreiteiras e construtoras, que passaram a colonizar o poder público municipal e os projetos de cidade. Leis de uso e ocupação do solo, planos diretores conquistados a duras penas pelos urbanistas progressistas foram flexibilizados ou desrespeitados sistematicamente, enquanto o preço dos imóveis sofria forte valorização. O resultado foi a expulsão da população mais pobre dos centros novamente. Desta vez um boom de ocupações urbanas explode nas metrópoles. A reação foram despejos violentos, sem menor

garantia dos direitos humanos fundamentais. Favelas centrais foram alvo de remoção ou até mesmo de incêndios criminosos para dar lugar a projetos para o capital imobiliário – como o terrível caso de Pinheirinho em São Paulo. Os megaeventos, como a Copa e as Olimpíadas anunciavam o modelo triunfante de cidade-empresa. Construções de diversos viadutos, pontes, túneis, expansão da malha asfaltada para abrigar a crescente frota de carros (desonerados desde o fim de 2008), estádios e obras não necessariamente úteis, mas voltados para gerar bons negócios para os financiadores de campanhas de prefeitos, governadores etc. acabaram tornando a vida urbana um inferno nada saudável.

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Esta tendência, aliás, mundial, de avanço do capital imobiliário financeirizado sobre a vida urbana, no atual momento, tem levado à privatização dos espaços públicos nas grandes metrópoles. A crise de 2008 colocou fogo nessa conjuntura e os movimentos Ocupa surgidos a em seu seio na Europa e nos Estados Unidos também estimularam iniciativas semelhantes de parcela engajada da juventude urbana brasileira. Estes movimentos, menos inclinados às disputas institucionais, que levantam bandeiras mais libertárias e se utilizam de novas linguagens e ferramentas proporcionadas pela web, certamente podem figurar entre os antecedentes culturais da explosão de 2013. A prioridade ao transporte individual gerou milhares de empregos, deixou de recolher bilhões de reais em impostos e enviou bilhões de dólares em remessas de lucros ao exterior, dobrou a frota de carros em 10 anos e levou o transporte público à ruína (http://bit.ly/1U2rvDX). Não era de se estranhar que os novos sujeitos que emergiram com força, animando as lutas sociais desta conjuntura sejam ambos de contexto urbano, primeiro os movimentos pelo transporte, como o MPL e em seguida os de moradia como o Movimento de Trabalhadores Sem Teto, MTST, dentre tantos outros. Nas eleições municipais de 2012 já foi possível perceber um desempenho destacado (para os padrões de então) de algumas campanhas que colocaram o

direito à cidade no seu centro. O caso mais feliz foi o da campanha de Marcelo Freixo (PSOL) à prefeitura do Rio de Janeiro, que chegou a 28% dos votos válidos no primeiro turno, um resultado surpreendente para os padrões de campanhas da esquerda não petista.

A crise também é ambiental O reforço do modelo agrário-exportador não impôs somente perdas no campo econômico, como a desindustrialização e a perda de empregos de qualidade. O modelo dá os sinais mais absurdos de seu esgotamento no campo sócio-ambiental. A consolidação do país no lugar de exportador de commodities aprofundou a dependência de atividades predatórias do meio-ambiente. Recentemente, vivemos o episódio mais trágico dos desastres ambientais do Brasil. Após pelo menos cinco acidentes semelhantes, porém de menor proporção, nos últimos anos em Minas Gerais, o já mundialmente conhecido rompimento da barragem da Samarco/ Vale/BHP Billinton soterrou um vilarejo e todo o Rio Doce com toneladas de lama tóxica, composta pelos rejeitos da atividade mineraria. Os danos se estendem ao litoral do Espírito Santo, onde grande biodiversidade teimava em sobreviver, com o árduo trabalho de profissionais que aí estavam por anos. O estado de Minas, como o próprio nome indica a sina infeliz, responde por 50% das receitas com exportações minerais do Brasil e talvez seja o estado onde a metáfora das “veias abertas” de Galeano mais

corresponda à realidade econômico-ambiental. Falase das veias abertas pensando nos tempos coloniais, da formação dos países latino-americanos, mas a metáfora vale muito mais para os tempos de hoje em estados como Minas, que possuem diversos dutos de sucção da terra, como os minerodutos. Temos o maior do mundo (Minas-Rio), que suga água da terra suficiente para abastecer uma cidade de 300 mil habitantes. A terra minerada não deixa nada em seu lugar, apenas destruição. Quando termina a jazida ou a conveniência da exploração, as cidades que se mantiveram dependentes do recebimento de sua partilha nos parcos royalties (2% é a monta atual que pagam ao estado de Minas), ficam arrasadas, sem nenhuma atividade que as sustente, pois a mineração muda toda a lógica da economia regional, em sua função e os poderes públicos municipais logo se seduzem pela ilusão da arrecadação fácil. Em terra minerada tampouco se planta. Os rejeitos tóxicos são depositados com lama, úmidos, sem cuidado algum, pois há certos interesses que não se quer impor limites. O novo código florestal e o novo código da mineração vão totalmente na contramão dessa consciência de que necessitamos todos de melhores limites e critérios para com os “recursos hídricos, florestais e minerais”. O relator da proposta do novo código da mineração, deputado Leonardo Quintão do PMDB de Minas Gerais teve sua campanha financiada em sua grande maioria por mineradoras(!), o que chega ao ponto de ir contra

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a natureza como sujeita de direitos. Trata-se também de um desastre cultural. Tudo em sacrifício pelo desenvolvimento – há que se perguntar com urgência o que entendemos por desenvolvimento. Os tempos urgem por um modelo que reconheça o valor da vida humana e da necessidade de construir outro padrão de relação com o meio-ambiente, que não seja pautado pela sua apropriação insaciável de recursos que se querem infinitos, mas não o são.

As manifestações de 2013 na conjuntura do interregno

o regimento interno da Câmara dos Deputados Federais, o que não demonstrou ainda incômodo o suficiente para retirá-lo de sua função. Fantasmas como a autorização do uso de fracking para minerar o gás de xisto pairam sobre o estado. Se a prática for adotada colocará em risco os lençóis freáticos, podendo intoxicar largas parcelas da população. O estado de Minas, por longo tempo governado pelo PSDB e que este ano passou às mãos do PT, burla as regras federais de licenciamento ambiental, criando “atalhos” pelos quais os grandes empreendimentos são fragmentados em empreendimentos menores e passam por um procedimento mais “ágil”. Muitas vezes, os estudos de impacto demonstram a

contaminação das águas, a morte dos animais, o risco de adoecimento das pessoas, mas o Estado autoriza sempre novos empreendimentos. Vivemos também uma crise hídrica, mas os governos não desistiram de instalar mais minerodutos, que bombeam o minério com água até os portos do litoral do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo, de onde zarpam para os apetites vorazes chineses ou de países centrais. O estado possui também diversas populações quilombolas (remanescentes de comunidades de exescravos) e indígenas que dependem dos rios para sobrevivência e possuem outra forma de relacionarse com o território, para os quais é muito mais traumática a destruição da terra, pois concebem

As grandes manifestações, repentinas e incapazes de serem colhidas por qualquer previsão, pois não calcadas na racionalidade clássica da esquerda que busca o acúmulo de forças, foram uma irrupção na superfície do cenário político brasileiro. Tratou-se de um sintoma, que expressava movimentações tectônicas, muito mais profundas. O movimento não possuía direção, pelo contrário, caracterizava-se justamente pela rejeição à liderança. A insatisfação generalizada encontravase livremente manifesta nas ruas, sem clareza ideológica predominante, a despeito das tentativas de diversos grupos de organizar politicamente e dar consistência programática aos anseios e protestos que se expressavam de novas maneiras. Novos sujeitos políticos, com novas formas de organização e com protagonismo de juventude puxaram boa parte dos atos contra o aumento

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das tarifas do transporte público. O caráter que predominou, entretanto, foi o do ativismo juvenil difuso, desorganizado e até anti-organização. O estopim aparente da irrupção estava relacionado a dois fatores: os aumentos de tarifas de ônibus e os gastos exorbitantes (e superfaturados) do governo com a Copa das Confederações, ocorrida naquele ano, que eram acompanhados de concessões à FIFA que pareciam um tanto quanto abusivas. O megaevento era uma prévia do que ocorreria no ano seguinte, a Copa do Mundo e a capacidade do país para recebê-lo estava sendo avaliada pelo governo e pela FIFA. Isto implicava reorganizar a estrutura viária, de atendimento turístico, de segurança, hotelaria e também a construção de estádios “padrão FIFA” para preparar as cidades para receber os turistas e as delegações que chegariam com os megaeventos. O governo, como de costume na estratégia lulista, esperava induzir o crescimento econômico, geração de empregos e movimentar o mercado interno com as Copas, além de procurar a ocasião de visibilidade para atrair investimentos externos. O resultado neste sentido foi pífio. Estimulou-se o preparo da população para o aprendizado de línguas, sobretudo o inglês, para receber os turistas. Conseguiu-se empolgar parte da população com o megaevento,

que aceitou ocupar as vagas de trabalho voluntário(!) que o governo “disponibilizou” para as Copas. Os ingressos eram absurdamente caros, excluindo o grosso da população aos jogos das duas Copas. O processo de elitização do futebol no Brasil se aprofundou vertiginosamente por causa dos megaeventos. Os novos estádios, com capacidade de público reduzida e todas as exigências FIFA de qualidade, foram entregues a consórcios privados, com contratos de exploração que garantem um negócio totalmente sem riscos e forçam os preços dos ingressos para cima. Estes novos moldes de privatização, chamados de “parceria público-privada” ou PPP são ainda piores que a privatização comum e estão difusos nos modelos de concessão em voga de portos, aeroportos, estradas, ferrovias, escolas, hospitais e praticamente toda sorte de negócios que o governo consegue multiplicar para o mercado – trata-se de um modelo de acumulação capitalista em que o Estado, por meio de seus próprios recursos, é cada vez mais importante na garantia da taxa de retorno e na criação de negócios. Neste caso a “parceria” envolve um lucro mínimo como “contrapartida” ao consórcio pela gestão do estádio. Caso o lucro não seja atingido, o retorno mínimo é garantido por recursos dos cofres públicos. Utilizando a “modernização” como respaldo, os consórcios cobram preços muito elevados dos torcedores (mesmo após o fim dos

megaeventos), que não conseguem mais encher os estádios, fechando o ano com lucros sempre abaixo do estabelecido em contrato e onerando o Estado para garanti-los. Como se não bastasse, os contratos previam a retirada de vendedores ambulantes e feirantes do entorno dos estádios, como no caso do Minas Arena (consórcio que passou a administrar o chamado Mineirão, estádio de Belo Horizonte). Estes feirantes eram responsáveis por alimentar os torcedores com comida a preços baratos e era um fator importante para viabilizar um programa acessível às faixas baixas de renda. O resultado imediato é a troca do público dos estádios, um processo análogo à gentrificação que ocorre nos espaços urbanos pela valorização da terra. Até bem pouco tempo atrás, os preços dos jogos eram muito baratos, o que garantia o perfil popular do público dos estádios brasileiros. A notável popularidade do esporte no país não carece de apresentações e pode-se imaginar o grau de revolta da população que no giro de poucos anos vêse excluída dos estádios. A expectativa popular com a realização das Copas no Brasil de poder assistir pelo menos um dos jogos nos estádios teve de ser descartada logo. Durante os anos do preparo, a mídia deu cobertura dos atrasos das obras para a Copa e das cobranças da FIFA, bem como dos valores crescentes gastos com as obras e das inúmeras

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suspeitas de superfaturação e desvios. Cresceu a consciência de que o país estava sendo movido para a realização de megaeventos dos quais não poderia usufruir. A mobilização de recursos cada vez maiores entrava em contraste com a eterna “falta” de recursos para combater a precarização dos serviços públicos do cotidiano das cidades. Os danos das Copas não acabavam por aí. Em função das obras para construção de estádios modernos e outras estruturas pessoas foram removidas de suas casas. Esta situação originou os COPAC’s, Comitês Populares dos Atingidos pela Copa, que tiveram papel fundamental em algumas cidades no começo das manifestações de 2013 – uma situação interessante foi a da “Copelada”, organizada em junho daquele ano em Belo Horizonte, que se tratava de uma manifestaçãopartida de futebol em que todos poderiam (finalmente) participar; depois da “pelada” o protesto cresceu e se dirigiu a uma das praças onde havia a exibição de um dos jogos da Copa das Confederações. Os ingredientes para a indignação popular com os megaeventos e as exigências feitas pela FIFA estavam dados, ainda que não fosse previsível a maneira pela qual se esta se expressaria. Não por acaso as mobilizações pediam educação “padrão FIFA”, saúde “padrão FIFA”. Se era possível construir estádios com o grau de qualidade “padrão FIFA”, o impedia aos governos de construir a tão

esperada cidadania “padrão FIFA”? Se a Copa tinha tantos recursos e sofisticação, porque para a população, os governos haveriam de perpetuar a tendência à precarização da vida? No país do futebol, estas perguntas demonstravam que estranhas inversões estavam ocorrendo. Aboliram-se as unanimidades. Ídolos do futebol nacional como Pelé e Ronaldo, que chegou a dizer “não se faz uma Copa com hospitais”, se manifestaram em defesa incondicional dos megaeventos, recebendo a surpreendente hostilidade das ruas. A Copa das Confederações foi boicotada pela população e teve baixíssimos índices de audiência na TV, mesmo em jogos do Brasil(!), com as manifestações ocorrendo durante todo o seu período. Passeatas de centenas de milhares

de pessoas se dirigiam aos estádios, aos gritos de “não vai ter Copa”, durante a realização dos jogos. Os manifestantes foram brutalmente reprimidos pelo envio de tropas da Força Nacional, da Polícia Militar e de suas equipes especiais, que protegiam o espaço definido pela FIFA no entorno dos estádios. Travaram-se verdadeiras batalhas campais. Houve momentos em que as cidades pareciam em estado de sítio, ocupadas por um enorme contingente militar em busca de manifestantes escondidos. A repressão adicionou ingredientes à revolta, que passava a se dirigir também contra os abusos policiais e as manifestações cresceram. A Rede Globo de TV, obviamente entusiasta de primeira hora dos megaeventos esportivos no país, procurou no princípio criminalizar o movimento, mas também se tornou alvo de protestos. Houve conflitos em

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frente a suas sedes, jornalistas foram agredidos. Jornais com frequência procuravam manipular as informações, escondendo na medida do possível os abusos policiais, até que estes também foram vitimados pela violência policial e foi irresistível dar mais espaço às críticas à repressão. A mídia em geral passou a ser tratada com desconfiança. O quebraquebra de algumas das reações mais violentas da população contra a repressão e contra a Copa eram significativos: bancos, lojas, objetos de consumo de status, como carros e motos, além de símbolos da Copa – uma concessionária da Hyundai, patrocinadora da Copa, localizada próximo ao Mineirão, foi completamente destruída pelos manifestantes. Desde 2011 e 2012 o ritmo das manifestações contra os aumentos de passagem foi se acelerando. No final de 2012, uma ocupação da Câmara Municipal da cidade de Natal, no norte do Brasil, conseguiu conquistar a revogação do aumento da tarifa. Revoltas contra aumentos de passagens estão presentes na história do Brasil desde o fim do século XIX, mas num contexto mais atual vale dizer que pelo menos desde 2003, com a grande “Revolta do Busu” de Salvador havia diversas revoltas contra os reajustes tarifários e pelo passe livre estudantil ou meio-passe, mas as conquistas ainda eram raras. A ocupação da Câmara de Natal prenunciava uma tática que seria bastante utilizada em seguida: a das ocupações dos centros do poder público para pressionar governos e empresas a rever suas políticas de reajustes anuais.

Em 2013, uma série de manifestações acabou em ocupações de Câmaras municipais, numa lógica que se assemelhava àquela dos Ocupa e que permanece ainda bastante viva. Algumas ocupações duraram semanas e conquistaram audiências com prefeitos e até mesmo governadores. As Câmaras ocupadas se tornaram espaços de encontro e de liberdade da juventude, na mesma lógica da bandeira da ocupação dos espaços urbanos. O gesto foi imitado na ocupação dos prédios públicos de Brasília, como a Câmara dos Deputados Federais e estava carregado de significado à medida que representava uma recuperação da “casa do povo”, sequestrada pelos profissionais da política com ‘p’ minúsculo. Como coletivo organizado, despontou sobretudo a atuação do Movimento Passe Livre, o MPL. De inspirações autonomistas mescladas com origens em militantes de esquerda com passagens em organizações tradicionais (alguns de seus fundadores vinham da juventude de uma tendência interna do PT), que haviam aprendido a criticar seus vícios de organização, e formas consideradas antiquadas de atuação, o MPL aparentemente conseguia o sonho da esquerda: colocar milhões nas ruas numa revolta com características de rejeição (ainda que bastante genérica) ao sistema. Os MPL’s se baseiam em princípios de autonomia, horizontalidade, independência e apartidarismo (sem antipartidarismo, aceitando portanto militantes

de partidos em suas fileiras, preservando-se no entanto de aparelhamentos partidários ou institucionais): http://bit.ly/1inpQrp . O movimento foi fundado em 2005, se define como anticapitalista e na sua trajetória passou da defesa da pauta setorial de passe livre estudantil para a defesa da chamada “tarifa zero” no transporte público, desde 2006. A tarifa zero é uma política pública de financiamento do transporte coletivo com recursos públicos, da mesma forma que os serviços de saúde e educação pública, concebendo a mobilidade urbana como um direito social, vital, pois permite o acesso aos demais direitos realizados na vida urbana. O objetivo é o de combater o ciclo pelo qual a tarifa aumenta todos os anos, repassando o custo do transporte somente para quem o utiliza. Com o financiamento indireto, por meio do orçamento público, o custo do serviço seria repartido com a sociedade, pois toda a sociedade se beneficia do mesmo. A política permite priorizar o transporte público, tornando-o preferencial em relação ao privado, que ocupa um espaço excessivo na cidade e estimula uma lógica insustentável de ocupação do espaço urbano. O debate é bastante extenso e não pretendo esgotá-lo. O nome “tarifa zero” originou-se de uma experiência da primeira prefeitura petista de São Paulo no fim dos anos 80 e princípio dos 90, quando chegou a se fazer uma linha experimental de tarifa zero num bairro periférico. O secretário de transportes de então, Lúcio Gregori, batizou a política de “tarifa zero” e em

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2013 já era um dos principais interlocutores do MPL. Desde sua fundação o MPL vinha organizando pequenas manifestações contra os aumentos de tarifas, pela tarifa zero e fazendo trabalho de base em escolas e bairros. Com muito acúmulo no debate de direito à cidade, a federação dos MPL’s, mas especialmente o coletivo de São Paulo surge como principal ator organizado em junho de 2013, que conseguiu por certo tempo colocar a tarifa e a precarização da vida urbana no centro da agenda e do debate público. Sua atuação deixou como legado o surgimento de diversos novos coletivos de luta pela mobilidade, com perfil semelhante, pautados por práticas de construção de horizontalidade e independência. As catracas dos ônibus brasileiros, que existem somente para garantir o pagamento da tarifa, passaram a simbolizar todos os cercamentos privados de bens e espaços de uso público e mais ainda todas as catracas da vida. Assim, “Por uma vida sem catracas”, o mote do MPL, representa o ideal libertário de vida, perseguido por esta juventude, que se expande para as reivindicações de livre ocupação do espaço urbano e da liberdade dos corpos. Enquanto a questão da tarifa e os abusos da FIFA e da Copa ocuparam o centro do debate, foi possível disputar um endereçamento de viés progressista à mobilização. O melhor momento sem dúvida foi a conquista da

revogação do aumento da tarifa em mais de 100 cidades do país. Algo inédito estava ocorrendo. Dilma Rousseff chegou a receber o MPL em Brasília, ainda no fim do mês de junho de 2013. Como resultado, Dilma anunciava “cinco pactos” para solucionar a crise: responsabilidade fiscal (estabilidade econômica e controle de inflação); Reforma Política para ampliar a participação e permeabilidade das instituições, por meio de uma constituinte específica do sistema político; fortalecer a saúde pública com a contratação de médicos estrangeiros e abertura de novas vagas para graduação e residência em Medicina; desoneração de tributos sobre o óleo diesel para diminuir o custo do transporte público e R$50 bilhões a mais para investimentos em metrôs; pacto pela educação para valorizar os profissionais, educação integral. Destas medidas, curiosamente a primeira era uma sinalização para o mercado de que o governo não iria ceder demais aos anseios populares. A segunda foi um fiasco total e somente os movimentos e partidos de esquerda se mobilizaram pela reforma política popular, enquanto o governo permaneceu imobilizado e o Congresso nacional analisou somente propostas regressivas. A terceira traduziu-se no programa “Mais Médicos”, que com sucesso contratou médicos cubanos para prestar um excelente serviço onde os médicos brasileiros não querem ir, ainda que recebendo uma remuneração inferior à dos médicos brasileiros. A quarta foi aplicada de imediato, mas

a desoneração não foi repassada aos usuários do transporte. Diga-se de passagem, desonerações do setor do transporte já vinham ocorrendo, mas o setor fortemente oligopolizado pouco se importou, a despeito dos próprios contratos. Os investimentos em metrôs começaram a andar ainda que bem vagarosamente. Quanto à educação tampouco houve grandes melhoras desde então. A repressão continuou galopante e os atos se arrastaram ainda até o final do ano. O que haveria de ocorrer diante de respostas tão insuficientes? Novos grandes atos, uma radicalização ímpar do cenário? Um refluxo total? Como lembrava entusiasmado o sociólogo Manuel Castells, ainda em julho de 2013, o movimento de milhões ganhou, em duas semanas, apoio de 75% da população (http://bit.ly/1Rg14fd). Mas isso não significava 75% de concordância com o viés progressista posto nas ruas pelo MPL e outros grupos da esquerda libertária. Não faltou quem se iludiu com o movimento e traçou grandes perspectivas. Houve quem acreditou estar liderando tudo! Delírios a parte, errou quem se apressou nas análises. E não faltou quem o fizesse no afã de enfim ver algo novo que reembaralhasse as cartas do jogo, desestabilizasse o que parecia imóvel ou mesmo fizesse a revolução socialista após tantos anos de rua esvaziada e de desanimadora hegemonia de conformismo lulista.

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Onde ninguém interdita ninguém, todos podem reivindicar o movimento – como se veria nas campanhas eleitorais do ano seguinte: desde o PSOL até o PMDB, quase todos os partidos utilizaram-se das imagens das manifestações em suas propagandas políticas. Num primeiro momento o PT, a esquerda governista, o PSDB e praticamente todos os governantes agiram com desconfiança, desabonando os movimentos. Logo depois foram forçados ao diálogo e Dilma reconheceu isso, ainda que não tivesse interrompido a repressão brutal. Marina Silva, dissidente do PT, ex-candidata a presidência pelo PV em 2010 e hoje na Rede, procurou à época dialogar com o sentimento. A esquerda em quase todo lugar está acostumada a se sentir uma “herdeira” ou “porta-voz” natural dos movimentos de contestação de massas, ainda que o tenha feito muitas vezes de maneira “imperialista” em relação aos próprios movimentos, como quem está sempre pronto a surfar na primeira onda de insatisfação que apareça – vale lembrar que polêmicas desse tipo envolveram a relação de partidos com o 15-M/Indignados da Espanha. Mas foi surpreendente ver como era possível que figuras da grande burguesia do país, como Paulo Skaf da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), alojadas nos partidos mais pró-ordem, como o PMDB, pudessem reivindicar o movimento de 2013, sem constrangimento algum. De fato, não tardou muito e os jovens foram

se descobrindo de esquerda ou de direita. No seio das próprias manifestações, foi-se criando divisões e hostilidades mútuas. A rejeição geral aos partidos, seus símbolos e suas bandeiras foi sendo substituída numa franja do movimento por uma rejeição aos símbolos tradicionais da esquerda. Militantes de partidos que insistiram em levar seus símbolos tradicionais foram agredidos. Outros, mais abertos a uma renovação simbólica e sem “dirigismo”, conseguiram dialogar mais com os sentimentos gerais. Ainda assim, uma parcela destes sentimentos foi se traduzindo em ódio generalizado contra a esquerda, sobretudo contra uma esquerda da ordem, o PT – naturalmente, a bola da vez por ser o partido do governo e ainda utilizar-se de símbolos e de uma identificação de esquerda. Isto ajudou a criar um clima de hostilidade em relação à esquerda no geral. Enquanto os movimentos pela mobilidade urbana ocupavam câmaras municipais, conseguiam abrir diálogos com prefeitos, vereadores, governadores e até mesmo com a presidente da República, grupos de direita foram aprendendo a se organizar e passaram a disputar a pauta central do momento, procurando como possível deslocála para a corrupção, para o que contavam com a usual abordagem da mídia sobre os problemas do país, geralmente resumidos às falhas escandalosas na conduta de políticos mal intencionados. O que dialoga bastante com o senso comum autoritário, seduzido por demagógicas soluções punitivas.

A cobertura dos protestos foi mudando e a mídia corporativa procurou identificar aqueles elementos que lhe interessavam para dar ênfase, como o caráter anti-corrupção, que se atribuía facilmente ao conjunto dos “políticos” e criava uma oposição confortável entre estes e a sociedade. A Globo percebeu que havia setores que não se identificavam com pautas de esquerda e passou a dar ênfase à sua presença nas ruas, procurando separá-los dos “vândalos” ou “Black blocks” – rótulos utilizados para criminalizar os movimentos. A Mídia Ninja, coletivo ligado ao Fora do Eixo, desempenhou o papel contrário, disputando as narrativas sobre o que estava ocorrendo e ajudando a divulgar os registros dos atos, sobretudo nas redes, mas enviando também à mídia a cobertura dos protestos e da repressão brutal, com os melhores enquadramentos visuais. Tão importante e de alcance talvez maior que o das próprias manifestações era a narrativa que se contava sobre ela em cada casa, através de cada monitor ou cada tela de computador. Quando a Copa das Confederações já tinha passado, as conquistas imediatas das suspensões dos aumentos tarifários foram revogadas e a repressão já havia se tornado forte o suficiente para diminuir consideravelmente o número de pessoas nos atos, a esquerda ia voltando para casa e a direita ia permanecendo na rua, ainda que num primeiro momento em menor número. Filhos dos setores médios altos iam às ruas protestar contra a corrupção, que queriam

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transformar em crime hediondo, alguns pela pena de morte para crimes hediondos, pelo endurecimento penal geral, outros até mesmo pela volta do regime militar, pela instalação de um estado mínimo, pelo fim dos impostos e outras respostas autoritárias ou somente conservadoras a seus anseios. As redes sociais tiveram papel fundamental nestas novas formas de mobilizar. Desde junho de 2013 já aparecia uma página no facebook, do MBL, o Movimento Brasil Livre, cuja sigla lembrava, não sei se por acaso, justamente o MPL. Na descrição do MBL estava contida a rejeição aos partidos políticos e os anseios mais genéricos da população, utilizando-se das cores verde-eamarelo, explorando também o sentimento nacional(ista), que logo apareceu difuso nas ruas, quando na falta de outras bandeiras mais claras, restavam sobretudo as bandeiras nacionais. De resto, algo bastante comum para um povo acostumado a orgulhar-se do futebol nacional e bastante embebido da cultura ufanista-futebolística da Rede Globo de Televisão. A segunda e última frase de estreia do MBL no facebook dizia “Por um Brasil livre de injustiças, opressão estatal e corrupção!”. A ideia genérica de opressão estatal foi mais tarde claramente identificada com uma concepção “libertarianista” ou anarcocapitalista, inspirada em teóricos

como Von Mises ou Hayek da escola austríaca de economia, que conquistaram parte da juventude da “nova direita” brasileira. Ainda em junho de 2013, o MBL já levava faixas de “chega de impostos” às ruas e fazia campanha contra o passe livre(!) na internet. A corrupção foi identificada com o PT e com os símbolos da esquerda. Tudo favorecido pelas constantes denúncias da mídia dos casos de corrupção e pelo fato de boa parte desta juventude sequer conseguir se lembrar da era anterior à dos governos petistas. Quem tinha 18 anos em 2013, nasceu em 95, ano de estreia da nova moeda, o Real, e quando o PT chegou ao poder em 2003, completava somente 8 anos de idade. No muito, quem tinha um pouco mais de idade, nunca teve a oportunidade de conhecer a UNE, CUT, UJS ou o próprio PT de luta, frequentando as ruas com frequência. Para estas pessoas, isto tudo já era poder e não alternativa de combate a ele. O jovem que é atraído pelo neo-PT (dos anos 2000 e 2010) certamente tinha perfil diferente do jovem atraído pelo PT (o dos anos 80 ou o dos anos 90).

capacidade de crescer e quando em 2013, muitos partidos tiveram diversas desfiliações, o PSOL foi um dos que mais cresceu proporcionalmente.

Além do mais, nos anos 2000, a esquerda de oposição ao governo custou a se reorganizar e teve seu ritmo de crescimento freado pelo sucesso das políticas do lulismo e pela sua própria crise. A margem para crescer permaneceu confinada no espaço deixado entre os sucessos do lulismo de um lado e o refluxo do movimento. Lentamente nos anos 2010, partidos como o PSOL foram recuperando sua

Já os movimentos “revoltados” da internet, surfaram na onda da corrupção, identificada como a grande inimiga, principal sugadora de recursos públicos, e ganharam espaço neste momento. À medida que o MPL e as pautas progressistas saíram de cena ou diminuíram sua exposição, a rua foi sendo ocupada

A calmaria e o jejum de grandes atos, entretanto, foram rompidos em 2013. Mais pessoas falavam de política e crescia a rejeição aos governantes de todas as colorações partidárias. O ano de 2014 começou com sucessivos atos conta os aumentos de tarifas (em muitas cidades ocorrem no fim de dezembro, época em que é mais difícil mobilizar a população, por causa das férias de verão). Os tarifaços, não só do transporte, mas também da luz e outros serviços públicos são ingredientes de mais instatisfação, numa conjuntura de fim de ciclo, que também é econômico. No entanto, a rápida reversão das conquistas de 2013, somada ao aumento da repressão estatal, culminando na Copa do Mundo de 2014, impôs um sentimento de derrota ao movimento, que o fez quase sair de cena desde então. Fatores internos, crise organizativa também contribuíram (http://bit.ly/1Qvq7JP).

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pelas mobilizações puxadas pela direita, levando todo tipo de pauta reacionária para a rua e disseminando um discurso de ódio contra os governantes, sobretudo petistas. O recrudescimento da luta social no ano de 2014 veio também acompanhado de diversas greves. Um ciclo grevista, ligado à precarização das condições de trabalho, já estava em curso desde 2008, segundo Ruy Braga, estudioso do assunto. O aumento do nível de emprego no período lulista se deu acompanhado de uma qualidade precária dos mesmos, do aumento das terceirizações e da superexploração (http://bit.ly/1Qw8Hwy). Se por um lado esta onda se choca com o sindicalismo governista, por outro ela não conseguiu superar a pulverização do movimento sindical dos últimos anos e a afirmação de um “sindicalismo de resultados” ainda pior que o sindicalismo governista. As categorias que mais têm lutado são as dos professores, dos metroviários, dos rodoviários, mas também os garis e trabalhadores urbanos precários, como os do telemarketing. De fato, houve um aumento do número de greves nos últimos anos e muitas se aproximaram dos novos movimentos urbanos, contra a Copa do Mundo, por exemplo. Esta junção ainda embrionária de movimentos distintos não foi capaz de alterar a correlação de forças geral na sociedade, nem de se somar significativamente a um movimento de renovação do sindicalismo.

Enquanto isso, as mobilizações contra a Copa em 2014, no afã de repetir a mobilização contra a Copa das Confederações de 2013, acabaram sendo flagrantemente derrotadas. As forças de coerção do Estado se sofisticaram muito no ano de 2013, evoluíram em táticas de infiltração nos movimentos, espionagem, identificação, perseguição e incriminação de lideranças, táticas bélicas para cercar e desbaratar manifestantes, equipamento de defesa e de ataque, treinamento, além de serem amparados de legislação inspirada na evolução internacional da expansão do estado policial, justificada pela “guerra ao terror”. De fato, a repressão tem sido mais efetiva e os movimentos não evoluíram em igual modo a sua cultura de segurança e torna-se cada vez mais difícil resistir ao arsenal bélico desproporcional empregado contra as manifestações. As expectativas frustradas em relação às mobilizações de 2014 certamente contribuíram para agravar o quadro da onda conservadora, que se seguiu.

As eleições de 2014 e o avanço conservador Os novos monstros, sintomas mórbidos de que Gramsci falou em momentos de interregno, têm sua expressão maior na nossa política, na figura de Eduardo Cunha. Saído diretamente do baixo clero da Câmara

para a presidência da casa. O que possibilitou isso foi o resultado das eleições de 2014. O primeiro turno destas eleições, ocorridas em outubro, demonstrou grande acirramento. Pela primeira vez em 20 anos, a candidata da “terceira via” (nem PSDB, nem PT), consegue ameaçar os dois partidos. Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, abrigada dentro do PSB por dificuldades de obter o registro para seu partido, por muito pouco não conseguiu ir ao segundo turno. Suas posições oscilantes acenavam para incertezas quanto ao que poderia ser um futuro governo, a depender das forças que a apoiassem. A campanha do PT explorou as incoerências da candidata, atacou-a de forma agressiva nos temas econômicos, enquanto a campanha petista ganhava tons de esquerda. O centro da crítica aos demais candidatos com chances no pleito era um vídeo que mostrava uma família comendo à mesa e dizendo que os outros ameaçariam essa conquista, pois iriam conferir autonomia ao Banco Central, que passaria a atuar segundo os desígnios do mercado e não da sociedade. O medo da perda das conquistas do lulismo mobilizou a militância e os apoiadores. A campanha de Aécio Neves incorporou temas conservadores, flertando com toda a agenda reacionária, excetuando-se pela defesa da manutenção dos benefícios sociais, como o Bolsa Família. O PSOL apresentou uma campanha em tons radicais, cujo centro era composto pelas pautas libertárias de direitos civis, LGBTT, de mulheres e

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dialogava muito com o imaginário da irrupção de 2013. No segundo turno, boa parte do eleitorado que votou em Luciana Genro (PSOL) e sobretudo o eleitorado psolista do Rio de Janeiro, onde o partido possui sua bancada mais expressiva, aderiu à campanha de Dilma Rousseff, em clima de polarização contra a aglutinação de pautas reacionárias do lado de Aécio Neves (PSDB), que por sua vez também incorporava pautas do candidato evangélico ultraliberal em economia e conservador em costumes, o Pastor Everaldo (PSC). Marina, mais identificada com as pautas econômicas liberalizantes e ressentida dos ataques sofridos do PT, apoiou Aécio. Eduardo Jorge do PV acabou apoiando Aécio, apesar de ter dialogado com um eleitorado progressista. As campanhas tomaram as ruas.

O resultado das eleições legislativas teve taxa de renovação de mais de 40% na Câmara, como resultado da crise de representatividade, mas elegeu o Congresso mais conservador desde o começo da ditadura militar, em 1964. A renovação, apesar dos anseios por ampliação de direitos sociais estarem presentes com força nas manifestações de 2013, foi pela direita, pautada pelos anseios reacionários em pautas de direitos humanos fundamentais (http:// bit.ly/1MxTjjR). Aécio Neves absorveu pautas deste tipo, que teriam facilidade de passar no Congresso, como a privatização de presídios e a redução da maioridade penal, além de flertar duvidosamente com a privatização da Petrobrás e com uma “independência” do Banco Central, que fazia questão de diferenciar de “autonomia”, palavra mais

forte utilizada por Marina. Lideranças expressivas e populares do PSOL, como os deputados federais Jean Wyllis (primeiro homossexual assumido da Câmara), Chico Alencar, Ivan Valente, Edmilson Rodrigues e o deputado estadual do RJ, Marcelo Freixo (um destacado militante de direitos humanos) optaram por declarar voto crítico à Dilma Rousseff e engajarse, quem mais, quem menos, em sua campanha sobretudo Wyllis, preocupado com o retrocesso na pauta LGBTT, que se preanunciava e Freixo preocupado com a questão do encarceramento e extermínio da juventude. Luciana seguiu a posição oficial do partido, liberando os eleitores para votar nulo ou crítico em Dilma, ou seja, veto a Aécio Neves. A campanha do PT foi decisivamente mais popular, obtendo os votos de baixa renda e conquistando

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votos entre os movimentos periféricos, de negros, LGBT e mulheres: http://bit.ly/1QgtHsz. Na pauta econômica, Dilma conseguiu segurar as expectativas mais populares prometendo continuidade, ou seja, que não aderiria a uma política recessiva, de desemprego e arrocho, fato que não era assumido claramente por Aécio, por se tratar de medidas impopulares. Ainda assim, economistas de orientações ideológicas distintas e jornalistas já anunciavam que o ano seguinte seria ano de ajuste fiscal, pois um ciclo havia chegado ao fim. Nenhum candidato assumiu essa possibilidade frente aos eleitores.

O estelionato eleitoral A vitória de Dilma Rousseff se deu por meio de campanha emocionante nas ruas, em que seus apoiadores colocaram claramente as pautas da diversidade e do amor contra os discursos de intolerância e ódio que cresciam e se aglutinavam (não de maneira homogênea) do outro lado. Vídeos mostravam ao outro lado as diferenças gritantes de visões de mundo, que se fortaleciam em cada ato de apoio aos dois candidatos: http://bit.ly/1RFJ4ue. A distância de meros 3 pontos percentuais em relação a Aécio Neves só permitiu respirar após a divulgação do resultado final. O potencial mobilizador, reascendido pela campanha petista, logo foi percebido como oportunidade por alguns setores da esquerda (como o deputado Jean Wyllis)

para puxar uma frente de sustentação ao governo pelas ruas, já que no parlamento a relação de forças era extremamente desfavorável para a agenda que havia dado a vitória a Dilma no segundo turno. Com uma primeira dúvida a respeito dos nomes a indicar para as pastas-chaves da economia, Dilma terminou cedendo aos conselhos de Lula e indicou nomes para fazer as pazes com o mercado após a campanha, dentre os quais Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, anunciado já ao fim de novembro de 2014 e que havia coordenado o programa econômico do adversário derrotado, Aécio Neves. As esperanças que Dilma cumprisse sua tentativa de continuidade em relação à política econômica anterior, preocupandose com a manutenção do emprego e dos salários, bem como dos direitos sociais, durou poucos dias. Levy é um economista neoclássico, filho da Universidade de Chicago, alma mater do neoliberalismo, um autêntico Chicago boy. Dilma se reelegeu e iniciou de imediato a aplicação do coração do programa econômico do adversário. O sentimento de estelionato eleitoral foi se fortalecendo entre os setores que depositaram suas expectativas em Dilma, já no princípio de 2015, quando o governo iniciou o envio das medidas regressivas, de cortes de direitos, à Câmara. O esperado era que se cortasse aonde havia gordura, não aonde ela não havia.

Resultados desta política que já vinha se arrastando desde o ano passado já aparecem: o PIB este ano já caiu 3,2%, mais ou menos o mesmo valor do consumo das famílias; a agricultura (2,1%) e a exportação (4%) continuam em alta, enquanto a indústria amarga uma queda de 5,6% e os serviços de 2,1% (http://bit.ly/1QatkjH). Dados que demonstram cruelmente as opções econômicas do governo no contexto de uma crise que se tentou segurar nos últimos anos, mas que o mercado deu um basta. Mais de um milhão e meio de pessoas perderam o emprego desde o período das eleições do ano passado até agosto deste ano. A taxa de desemprego já chega a 8,6% (http://glo. bo/1ILzp3i) e pode chegar a 10% em 2016 (http:// abr.ai/1NV5jGo), enquanto não há previsões de crescimento sequer para 2017. A implementação de uma política recessiva, de cortes sociais, de arrocho, num cenário de crise só vai levar ao aprofundamento deste cenário, que se torna ainda mais estreito quando o governo não dá margens nas políticas públicas para mitigar os efeitos sociais da crise. Setores, capitaneados pelo MTST, lançaram a Frente pelas Reformas Populares já em janeiro de 2015, com o objetivo de fazer frente às investidas conservadoras contra os direitos dos trabalhadores e aposentados, contra os direitos sociais, contra a repressão às lutas sociais e à juventude negra das periferias. A Frente se colocava como independente dos governos e pretendia enfrentar imediatamente

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as medidas provisórias enviadas por Dilma ao Congresso que atacava o seguro-desemprego e as pensões. Desde o primeiro momento, participaram da articulação movimentos ligados ao campo da esquerda governista, como o MST, e da oposição de esquerda ao governo, sinalizando uma capacidade histórica de unidade. A maioria da direção do PSOL optou por impulsionar a frente desde o princípio. A CUT, central sindical ligada ao PT, e a Intersindical, central construída por setores do PSOL, também assinavam o manifesto. Acumular força para superar o momento impunha articular-se com os setores organizados, com capacidade de mobilização. Fez-se necessário dialogar com as energias que ocuparam as ruas em massa contra Aécio Neves, no segundo turno eleitoral, e com o sentimento de “estelionato eleitoral” em relação à Dilma. Para os setores da esquerda governista era imperioso assumir uma clara defesa do governo nas ruas, enquanto para os setores da oposição de esquerda, esta posição não era tão simples, visto que o ajuste contra os trabalhadores era aplicado pelo próprio governo Dilma. Setores da esquerda se recusaram a compor a frente, com desconfiança, e preferiram investir na construção de outro campo, entorno da CSP-Conlutas, central ligada ao PSTU, em que participam também setores do PSOL.

Cunha e a agenda conservadora no Congresso Eduardo Cunha é um deputado federal do PMDB do Rio de Janeiro, fiel da Igreja Sara Nossa Terra. Já esteve envolvido em escândalos de corrupção no passado, quando presidia a estatal Telerj. Em 2014 sua campanha teve como centro a defesa da família heteronormativa, campanha contra a descriminalização do aborto e contra o casamento civil igualitário para população LGBT. Sua arrecadação para campanha foi de R$6,8 milhões e seus principais doadores são os bancos Bradesco, Santander, BTG Pactual, a rede de shoppings Iguatemi e a Líder Táxi Aéreo (http://bit.ly/1EXU8gT). Também figuram entre seus doadores, planos de saúde privados. Cunha compõe a bancada da “bíblia” e tem grande proximidade com os deputados e políticos do fundamentalismo religioso, como o candidato a presidente derrotado, Pastor Everaldo (PSC). Aproveitando-se da fragilidade do governo conseguiu fazer-se presidente da Câmara dos Deputados Federais, derrotando Arlindo Chinaglia (PT), para quem o governo deu somente tímido apoio, para não prejudicar a relação com o PMDB. Cunha conseguiu assim poder suficiente para encampar toda a agenda conservadora, a começar pelo ajuste imposto pelo governo e seu novo ministro do mercado, Joaquim Levy, mas foi muito além, estendendo-se também às pautas de

costumes e retiradas de direitos humanos, com as quais já tinha afinidade (http://bit.ly/1MxTjjR). Após anos de isenções fiscais aos grandes grupos econômicos, a Câmara, sob a liderança de Cunha, aprovou este ano cortes de cerca de R$ 20 bilhões em direitos trabalhistas a pedido do governo: avançou na terceirização do trabalho, que precariza as condições de trabalho e aumenta a exploração; retirou direitos dos pescadores, o chamado segurodefeso (para as épocas em que não se pode pescar por questões ambientais); restrição do acesso benefício da pensão por morte; restrição de acesso ao seguro-desemprego; redução no valor do auxíliodoença. O governo acordou junto ao PMDB o envio, sob o nome de “Agenda Brasil”, de boa parte destas medidas regressivas que possuem como objetivo “melhorar o ambiente de negócios” no país: preveem a privatização de áreas da marinha; agilização de licenças ambientais por meio do novo Código da Mineração (já criminosamente “ágeis”, vide a tragédia da Samarco/Vale em Mariana, maior da história do país) e do novo Código Florestal; ainda maior facilidade de acesso às terras indígenas, mediante projeto que quer retirar do executivo (mais sensível às pressões dos indígenas) a prerrogativa de demarcar terras indígenas e passá-la ao Congresso (onde a bancada ruralista é a mais forte), o que ataca culturas e etnias já vítimas de um genocídio histórico. Já foi aprovada na Câmara também, mas ainda não no Senado, medida que permite a

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redução de 30% nos salários dos trabalhadores, por dois anos, com redução proporcional de jornada de trabalho, viabilizando uma das formas mais simples de se realizar lucros em períodos de recessão, a diminuição dos custos do trabalho.

terror policial contra manifestações populares, que já têm dado duras provas de sua persistência: contra as recentes manifestações dos professores, contra os movimentos de luta pela mobilidade urbana, contra os movimentos das ocupações urbanas.

Cunha foi além e desde o princípio do ano encampou ainda outras pautas. Contra a vontade de 3/4 dos brasileiros encampou projeto que torna constitucional a doação empresarial de campanha eleitoral. Também encampou projeto de autonomia do Banco Central, aprovou a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, que penaliza sobretudo a juventude pobre e negra do país e reforça a cultura da solução punitiva para os problemas sociais. Cunha ainda encampou o projeto do Estatuto da Família, que reconhece somente famílias heteronormativas. Trata-se na realidade de estatuto contra as famílias, no plural, na sua diversidade. Mais recentemente ainda atacou os direitos das mulheres, procurando restringir o acesso à pílula do dia seguinte, em casos de estupro(!), o que gerou reação bastante indignada nas ruas. Cunha quer ainda revogar o estatuto do desarmamento, afrouxando as regras para a posse de armas. De grande gravidade ainda foi a aprovação do projeto de lei do “antiterrorismo”, cuja origem era o executivo e dá brechas para a criminalização dos movimentos sociais no vago tipo penal “terrorismo”. Trata-se de verdadeira lei próterror policial e contra o Estado Democrático de Direito, à medida que aumenta o campo legal do

No campo da (Contra)Reforma Política, o retrocesso se fez sentir nas tentativas de aprovar reformas do sistema eleitoral, por sorte fracassadas, que impunham o sistema distrital, resultando na restrição drástica a duas ou três opções partidárias viáveis eleitoralmente. A aprovação de uma cláusula de barreira ainda tímida não foi capaz de eliminar partidos ideológicos promissores eleitoralmente, como o PSOL, mas já conseguiu restringir-lhes o acesso ao tempo de televisão e prejudicar principalmente os partidos que não estão presentes no parlamento nacional, com restrição também de acesso ao fundo partidário, como PCB e PSTU. A Lei que desobriga as redes de TV a convidar para os debates das eleições majoritárias (candidatos ao executivo), partidos ou coalizões que tenham no mínimo 10 deputados tem sido chamada pelo PSOL (que conta apenas com 5 deputados federais) de “Lei da Mordaça”, pois este é o espaço em que PSOL, com igualdade de condições de disputa, costuma tirar um pouco da desvantagem imposta pela grande desigualdade no tempo de propaganda eleitoral e pelas restrições relativas ao financiamento de campanha. Sabendo disso, os partidos da ordem se livram de um incômodo estabelecendo este mínimo de 10 deputados.

A Rede de Marina Silva que finalmente conseguiu seu registro junto ao TSE conseguiu também atrair 5 deputados federais que até o momento têm tido excelentes atuações. Apesar do seu caráter mais “gelatinoso” e de certo modo ainda por definir-se, a Rede também acrescentaria um pouco de saudável convicção política nos debates entre partidos já dominados pelo derretimento ideológico e programático reinante. Mas a disputa sobre a validade desta norma garantidora do fisiologismo geral, para as eleições municipais do ano que vem, ainda não se concluiu. Importante lembrar que apesar de integrar a chamada bancada da “bíblia”, Cunha recebeu a oposição explícita de um manifesto, assinado por 117 bispos, pastores e figuras de diversas igrejas evangélicas, que pedem a sua saída e manifestam incômodo com sua identificação com o mundo evangélico (http://bit.ly/1Y2xbhD).

As vozes das ruas Muitas lutas de resistência estão sendo travadas este ano e não conseguiremos contemplar a todas. Não poderíamos deixar de lembrar, entretanto, do belo movimento de secundaristas do estado de São Paulo, que ocupam diversas escolas em reação à “reorganização” que o governo estadual do PSDB quer impor à sua rede de ensino, tendo anunciado em outubro o fechamento de 93 escolas da rede básica, que seriam reaproveitadas para outros

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usos, como escolas técnicas. A mudança afetaria 35 municípios e milhares de alunos e professores que teriam de mudar de escola (http://glo.bo/1MXkhvB). Os estudantes não confiaram na “reorganização” do PSDB, partido que quando governa é especialmente violento com os professores e desrespeitoso de seus compromissos constitucionais com a área. Em abril deste ano, na greve dos professores do Paraná, uma manifestação acabou com centenas de professores feridos, numa das cenas mais violentas do ano: http://bit.ly/1THtMn1. Em Minas Gerais, governada por muitos anos pelo PSDB, os professores estaduais possuem das piores condições de trabalho e ganham abaixo do piso constitucional. Em São Paulo, reduto do PSDB, o governo também possui um histórico de intransigência e autoritarismo com a área. Os estudantes tinham motivo de sobra para não confiar nestas reorganizações em tempos de crise e cortes nas áreas sociais. A pressão permaneceu heroica e crescente com apoio de mais de 50% da população até que, no dia 4 de dezembro, com 196 escolas ocupadas, o governador recuou e suspendeu a reorganização (http://glo.bo/1lDlGS5).

desinformação em boa parte dos que vão à rua protestar. Vale lembrar que a mídia corporativa, fortemente oligopolizada num país que permite a propriedade cruzada dos meios de comunicação, dá cobertura diária à corrupção que assola o país, em detrimento dos problemas sociais e políticos mais profundos, que afetam a população. Muitos vão às ruas genericamente contra a corrupção, num repúdio generalizado à política e aos representantes eleitos, endereçam sua frustração contra o Governo como era de se esperar, mas flertam em alguns casos com o retorno do autoritarismo ou pelo menos com soluções autoritárias para a crise. Torna-se evidente o caldo cultural autoritário, presente no senso comum, com o qual tem dialogado a direita. Os atos pró-impeachment e contra o governo Dilma misturam este repúdio à corrupção, cuja responsabilidade se atribui sobretudo à presidente e seu partido, ao repúdio genérico às políticas sociais dos últimos anos. O repúdio se costuma estender também à esquerda que não se encontra no governo.

As ruas clamam por mudanças, porém em sentidos distintos. Num país em que a população foi historicamente afastada da política por diversas ditaduras e governos autoritários, que se redemocratizou há somente 30 anos e elege livremente seus presidentes há 26 anos, não é de se estranhar alguma inconsistência política e muita

O MBL convocou pelo facebook, três grandes manifestações no ano de 2015. A primeira em 15 de março, ocorrida em 252 cidades, teria reunido 3 milhões de manifestantes, segundo o movimento. A segunda manifestação foi em abril e teria reunido 1,5 milhão em 224 cidades e a última grande manifestação no dia 16 de agosto, em 205 cidades

e com cerca de 2 milhões de pessoas, segundo o movimento. O contraste com as manifestações da esquerda é claro. As cores do MBL são o verde-eamarelo nacional, a atitude da polícia é de simpatia com os manifestantes, com os quais chegam a tirar selfies. A cobertura da mídia, em sinal positivo também é extremamente desigual. Na última, o senador Aécio Neves (PSDB), candidato derrotado à presidência, apareceu pela primeira vez para discursar, cacifandose como o candidato das oposições conservadoras. Os motes das manifestações são simples: Fora PT, Fora Dilma, Fora Lula. Agora o MBL e seu jovem líder, Kim Kataguiri, convocaram uma manifestação próimpeachment para o dia 13 deste mês, na expectativa de pressionar o STF e a Câmara dos deputados a dar prosseguimento ao pedido de impedimento de Dilma, acolhido por Eduardo Cunha, nos últimos dias. É comum a participação de movimentos saudosistas da ditadura militar, que pedem a chamada “intervenção constitucional” para salvaguardar a ordem social e política, a mesma “intervenção constitucional” que serviu de pretexto para o golpe civil-militar de 64. Atos em defesa do governo também foram convocados durante o ano, mas significativamente mais esvaziados. A Frente pelas Reformas Populares e contra a direita, capitaneada por MTST, MST, CUT, Intersindical e maioria do PSOL mobilizou-se desde o princípio do ano em resposta às movimentações conservadoras. Em abril as pautas principais eram: contra a redução da maioridade penal, contra a lei do

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antiterrorismo, da terceirização, contra a autonomia do Banco Central e contra a legalização das doações empresarias de campanha, além do combate ao ódio e à intolerância. A manifestação do dia 20 de agosto já contou com a pauta mais clara da defesa da democracia, além da resistência à agenda conservadora. Com a entrada em cena da possibilidade do impeachment, a esquerda governista optou por construir a Frente Brasil Popular, FBP, sem excluir a participação nas atividades da outra Frente. Capitaneada pelo MST, pela UNE, CUT, PT, PCdoB e Consulta Popular, a FBP foi fundada em 5 de setembro, em conferência, que mobilizou milhares de delegados de 21 estados e do Distrito Federal. Segundo seu Manifesto ao Povo Brasileiro, seus eixos são 4: lutar contra a retirada de direitos dos trabalhadores, por uma política de desenvolvimento com distribuição de renda, por taxação de grandes fortunas e auditoria da dívida para fazer os ricos pagarem pela crise; ampliar a democracia com participação popular, contra o golpe, a criminalização dos movimentos sociais, a corrupção, a redução da maioridade penal, machismo, homofobia, racismo e a violência contra indígenas e quilombolas; reformas estruturais como desmilitarização das polícias, democratização da comunicação, reforma urbana e agrária e pelo Sistema Único de Saúde, o SUS; defesa da soberania nacional, a luta pelo Pré-Sal, pela Petrobrás, industrialização nacional e pela integração latino-americana. A FBP realizou mobilizações em

outubro e volta às ruas contra o impeachment. A Frente pelas Reformas Populares originou a Frente Povo Sem Medo, lançada oficialmente no dia 8 de outubro em São Paulo sem a participação do MST, que prioriza a FBP. A Frente estabeleceu três eixos políticos. O primeiro é o de enfrentar urgentemente a ofensiva conservadora, cujo conteúdo programático já abordamos. O segundo eixo é o enfrentamento das políticas de austeridade do Governo Dilma, que é a aplicação do receituário de Aécio que ela prometeu combater. O terceiro eixo e mais ambicioso é construir uma saída popular para a crise, de baixo e pela esquerda, da forma mais unitária possível, lançando mão de uma tática de mobilização social. A Povo Sem Medo, cujo mote é “Aqui está o povo sem medo, sem medo de lutar!” também aposta em construirse como espaço de importância de médio para longo prazo, abrindo um novo ciclo de massas no país. Como principal partido a impulsionar a Frente, a posição oficial do PSOL deixa claro que aposta na Povo Sem Medo como “espaço prioritário de toda a militância do PSOL para organização das lutas”, para “reorganização da esquerda brasileira”, portanto espaço que se deve investir para ganhar caráter estratégico: Como saída a esse cenário que penaliza a classe trabalhadora e a população mais pobre deste país, o partido defende a articulação

de uma ampla agenda de esquerda e a participação na frente “Povo Sem Medo”, articulada por diversas organizações sociais e entidades sindicais. “No plano da mobilização popular, inúmeras greves têm sido deflagradas contra as medidas do ajuste fiscal de Dilma e as tentativas das elites de socializar as perdas oriundas da crise econômica. Há, portanto, melhores condições para o desenvolvimento de uma agenda à esquerda para o enfrentamento às medidas conservadoras de Dilma e dos governos estaduais, especialmente mediante as lutas que serão travadas no segundo semestre por diversas categorias com o apoio do PSOL, como ocorreu na primeira parte deste ano. Nesse contexto, cumpre um papel central a criação da frente ‘Povo sem Medo’, que conta com as mais representativas entidades e movimentos sociais brasileiros. Fortalecer esse espaço é decisivo para o processo de reorganização da esquerda brasileira” (http://bit.ly/1QwMqyF). O conteúdo programático das Reformas populares reivindicadas é grosso modo o mesmo do proclamado pela FBP. Na realidade, ambas partem das pautas construídas pelos movimentos sociais brasileiros nas últimas décadas de luta. Importante dizer que não há nenhuma ruptura declarada entre uma Frente e outra. O que as diferencia é o lugar do qual elas partem. Após a chegada do PT ao poder em 2002, estabeleceu-se uma clivagem na esquerda brasileira dada pelo apoio ou não ao governo. À época, o PT fez uma opção por governar

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com apoio do PMDB, assegurar o controle do parlamento e o apoio do mercado. O programa que se tornou possível não consolidou direitos, tampouco cidadania plena, consolidou sobretudo uma cidadania pautada pelo consumo. Esta pauta de enfrentamentos interrompida para a construção do pacto social lulista foi adiada por mais e mais tempo. O debate das reformas populares interrompidas permaneceu na sociedade, colocado pelos movimentos e partidos de oposição de esquerda e em estado de latência no seio dos movimentos de apoio ao governo. Sem força para avançar nestas pautas, os setores da oposição de esquerda não conseguiram destravar a pauta. Paralisados pelas necessidades da governabilidade conservadora, os movimentos da esquerda governista conseguiram alguns avanços dentro dos limites da lógica do lulismo. As pautas de combate se transformaram em pautas de gestão dos técnicos do governo – a disputa por cargos passou a ser funcional para garantir avanços pontuais e evitar retrocessos em um governo tensionado por políticas neoliberais e pelo abrigo crescente de setores conservadores no condomínio governista. Os movimentos saíram das ruas ou diminuíram seu potencial de enfrentamento para evitar fragilizar o governo. Talvez a principal diferença entre as Frentes consista na firmeza com que a Povo Sem Medo afirma a tática de mobilização popular com independência dos governos e defesa da democracia, enquanto a

Brasil Popular não pode prescindir de repensar um projeto de governo, que tem os partidos da esquerda governista necessariamente no centro do debate. Seja como for, é uma vitória da esquerda conseguir superar desconfianças e particularismos, em nome do reconhecimento destes objetivos comuns. A polêmica que resta no campo da esquerda é em relação ao Espaço Unidade de Ação, fomentado pela CSP-Conlutas e aqueles que pretendem construir um terceiro campo que não guarde relação com setores governistas – correntes sindicais ligadas ao PCB, por exemplo, ou algumas ligadas aos PSOL permanecem sem compor a Povo Sem Medo, optando por dialogar com o Espaço Unidade de Ação. Este espaço por hora aglutina, sobretudo, os movimentos populares e sindicais ligados ao PSTU. Parte dos setores do PSOL ou organizações próximas que constroem a Povo Sem Medo estão atualmente na CSP-Conlutas, frequentando ambos os espaços. Nessa perspectiva, estas organizações parecem tolerar a convivência com grupos governistas somente pelo curto tempo que durar a ofensiva conservadora. Outros ainda sequer toleram esta possibilidade. Em 18 de agosto e 18 de setembro, a CSP chamou atos neste sentido. A consolidação da Povo Sem Medo, que agora já reúne cerca de 30 organizações acabou esvaziando o espaço da CSP. Além disso, os setores do “Fora Todos” também devem estar com dificuldades de dialogar com o povo, pois é necessário

construir uma alternativa mais alcançável e propositiva, não apenas negativa. O povo pobre que obteve os benefícios sociais da era Lula-Dilma, especialmente os que viveram os governos FHC para poder comparar, sabem que não é possível ainda dizer que PT e PSDB são exatamente a mesma coisa e não bastará ouvir nas ruas que ambos são gestores dos interesses do capital. Tampouco nos servirá um esforço que resulte em baixa capacidade de mobilização. É hora de superar os particularismos e agir com a urgência do hoje e a espera do amanhã, contra cada ponto do retrocesso, e de maneira propositiva. Em especial a Povo Sem Medo, mas também as demais frentes têm convocado diversos atos pedindo o “Fora Cunha” (http://bit.ly/1IVOjPf), que tem conseguido recuperar ao menos em São Paulo, um maior potencial de mobilização pela esquerda.

A conjuntura do impeachment acelerada Os acontecimentos recentes da política brasileira têm evoluído numa velocidade crescente. Salta aos olhos a intensidade da instabilidade institucional em que estamos imersos. Os últimos destes acontecimentos foram: o acolhimento do pedido de apreciação do processo de impeachment da presidente Dilma Roussef (PT), no dia 2

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dezembro, por parte do presidente da Câmara dos Deputados Federais, Eduardo Cunha (PMDB); o estranho “vazamento” de uma carta, de caráter pessoal, do vice-presidente, Michel Temer (PMDB), endereçada dia 7 à Dilma, fato que já repercutiu no dia 8, com intensidade nas mídias – no conteúdo desta carta, o vice deixou claro sua insatisfação com o governo e especialmente com a presidente, quase a embasar uma ruptura eminente, mas ainda não enunciada; justo agora enquanto escrevemos o processo de impeachment foi suspenso pelo STF até a quarta-feira, dia 16, para evitar que processo se desse de maneira inconstitucional – o pedido foi feito pelo PCdoB, aliado do governo, que encontrou incompatibilidades (qual papel da Câmara e do Senado no processo, quais os trâmites para se formar a Comissão Especial do Impeachment na Câmara) na Lei do Impeachment de 1950 com a Constituição de 1988 e terá de examinar a ação para decidir quais dispositivos possuem compatibilidade e quais não são mais válidos (http://bit.ly/1Nj99Ka). Por sua vez, Cunha, que acumula diversas denúncias de corrupção e lavagem de dinheiro, enfrenta processo de cassação de seu mandato, cujo pedido foi entregue em outubro pelo PSOL e pela Rede ao Conselho de Ética da Câmara, além de processo no Supremo Tribunal Federal e até mesmo no Ministério Público Suíço, que comprovou a existência de uma conta de Cunha naquele país destinada à lavagem de dinheiro, oriundo de corrupção. Cunha jogou

suas cartadas da pequena política para substituir hoje o relator do processo contra seu mandato no Conselho de Ética da Câmara, mas outra substituição no mesmo dia garantiu a permanência de um relator que prometeu dar seguimento ao processo. É a sexta vez que Cunha consegue manobrar para adiar o início de seu processo no Conselho. O PSOL e a Rede já acionaram a Procuradoria Geral da União pelo menos duas vezes, a última hoje, dia 9 de dezembro, solicitando o afastamento de Cunha da presidência da Câmara dos Deputados. Neste ritmo galopante, qualquer previsão corre o risco de ficar datada nas horas seguintes. Mas nos parece mais útil buscar compreender melhor o sentido das acusações que gravam sobre Dilma e o que elas revelam sobre o estado da política brasileira.

O impedimento, as “pedaladas” fiscais e sociais e o déficit cidadão Para o leitor europeu é importante esclarecer que no Brasil os governantes executivos são eleitos de quatro em quatro anos por meio de eleições majoritárias, enquanto os membros do legislativo são eleitos separadamente. No presidencialismo brasileiro não há a possibilidade de “queda do governo” por perda da confiança da maioria legislativa, como ocorre em tantos sistemas parlamentaristas europeus. Neste sentido, o mandato de presidente, governador ou

prefeito eleito deve ser concluído até o fim dos quatro anos, exceto por morte, renúncia ou pelo processo do impeachment, previsto na Constituição e que só pode ocorrer tendo sido verificado crime de responsabilidade individual do governante, no exercício do cargo. Contra Dilma pesam acusações das chamadas “pedaladas fiscais”. Estas são práticas utilizadas para cumprir as “metas fiscais”, que são metas de economia no orçamento anual, impostas para garantir o “superávit primário”. Este superávit é o resultado do esforço de economia durante todo o ano para cumprir o pagamento dos juros da dívida pública. Trata-se, portanto, de compromisso com o capital financeiro, que deve ser cumprido para manter o país com o “grau de investimento” desejado pelos economistas neoclássicos, para garantir que o país continue sendo porto atrativo para investimentos externos e tenha seu crescimento econômico sustentado dessa maneira – tivemos esta nota “rebaixada” recentemente pela Standard & Poor’s no ranking de países “seguros” para investimentos externos e os jornalistas econômicos tem comunicado bastante temor de um rebaixamento próximo para o nível do investimento “especulativo” também na agência Moody’s (http://glo.bo/1Ll22iQ). Com dificuldades orçamentárias para bancar suas despesas e cumprir as metas fiscais em anos de diminuição do crescimento econômico, o Governo Dilma atrasou repasses para instituições

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financeiras, que assumiram com seus próprios recursos, os pagamentos de benefícios sociais, como Bolsa Família, ou o seguro-desemprego. Este alívio provocou um endividamento com os bancos. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o montante que os bancos assumiram chega a R$40 bilhões, entre 2012 e 2014 (http://glo.bo/1HTwk0X). Este tipo de operação é praticada de forma generalizada pelos governos estaduais e também pelos governos anteriores aos de Dilma, apesar de irem contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Esta norma foi aprovada no ano 2000, no último mandato do Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e tem como propósito, justamente, obrigar os governantes a cumprir as “metas fiscais”, não importando o sacrifício social envolvido. Em razão da crise econômica e da contração fiscal, o governo já aprovou também no último dia 2, a revisão da meta fiscal, admitindo um déficit para este ano de mais de R$100 bilhões, mesmo após realizar diversos cortes orçamentários.

no mínimo preocupante num país que possui grandes e históricos “déficits” com sua população em relação à saúde, educação, mobilidade urbana, em que há déficit de 5,43 milhões de famílias sem moradia adequada, segundo o IBGE (http://bit.ly/1lN50H4) e a média nacional de tratamento de esgoto chega a somente 38,7% da população (http://bit.ly/1RvG8xK). Assim, é possível compreender como o aperto imposto ao país, coloca governantes de todos os partidos e identificações ideológicas em dificuldade para cumprir com aquelas que deveríamos chamar de “metas sociais” fundamentais para qualquer mandato cumprir. O não cumprimento das políticas públicas que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos são verdadeiras “pedaladas sociais”, bem conhecidas no dia-a-dia da população, sobretudo de baixa renda. Aliás, destas pedaladas não Segundo dados do movimento Auditoria Cidadã escapam nenhum dos principais da Dívida, em 2014, o governo federal gastou R$978 partidos da ordem, PT, PSDB ou PMDB. bilhões com juros e amortizações da dívida ou 45,11% Uma auditoria da dívida pública, do orçamento executado no ano. Em 2012 e em nos moldes da ocorrida no Equador, que 2013, foram gastos com a dívida 43,98% e 40,3%, foi capaz de separar a parcela legal da respectivamente (http://bit.ly/1kRsJ2e). Este ano, até parcela ilegal da dívida, reduzindo-a a dia 1º de dezembro, o montante já chegou a 46% 1/3 de seu valor, juntamente à diminuição (http://bit.ly/1jSHBfa). Uma rápida olhada no gráfico dos juros reais pagos pelo país aos seus credores; a abaixo demonstra que as áreas que mais perdem com regulamentação do Imposto sobre grandes fortunas estas transações são as de investimento social, o que é (presente na Constituição Cidadã de 1988 e nunca

implementado), acompanhada de uma reestruturação tributária progressiva na renda, que alivie o peso sobre quem trabalha, taxe o rentismo, o grande capital e os grandes patrimônios; realizar a cobrança da dívida ativa da União de R$1 trilhão; e reorientar as prioridades orçamentárias, poderia ser um caminho para restabelecer-nos dentro das metas sociais de nossa sofrida cidadania deficitária. Resta saber se estas pedaladas sociais, cujos gravíssimos efeitos os brasileiros conhecem bem, seriam suficientes para motivar o pedido de impeachment de algum governante

Gráfico que representa a proporção destinada a cada área do orçamento nacional executado no ano de 2014.

Não há ainda nenhum indício de corrupção envolvida nas chamadas “pedaladas fiscais” segundo a comuna 31


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o próprio TCU (http://glo.bo/1HTwk0X) e não há nada que possa responsabilizar criminalmente a presidente Dilma Rousseff (http://bit.ly/1NEU7lw). A apreciação do pedido de impeachment foi acolhida por Eduardo Cunha no último dia 2, logo após a declaração da bancada do PT de aceitar a pressão da sociedade (e de sua militância) e declarar voto favorável à admissibilidade do processo que pede a cassação do mandato de Eduardo Cunha (http://bit.ly/1ISMkei) na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados. Isto demonstra o caráter de retaliação do acolhimento do pedido de impeachment por parte do presidente da Câmara dos Deputados Federais, que rompeu com o governo em julho deste ano e vem pressionando seu partido a seguir este caminho. O PMDB além de ocupar a vice-presidência, pelo que assumiria a presidência da República em caso de impedimento, é também o partido que pode desequilibrar a balança no parlamento entre a bancada governista e a oposição de direita, capitaneada pelo PSDB e DEM. Agora as fases do impeachment que seguem são: aguardar para definição do STF sobre a composição da comissão especial da Câmara para analisar o pedido, a apresentação da defesa de Dilma, a elaboração do parecer da comissão para submetê-lo ou não à apreciação do plenário da Câmara. Em tese seriam necessários 2/3 dos votos da Câmara (342 de 512) para afastar a presidente e em seguida o mesmo no Senado (54 de 80) para impedi-la definitivamente. O processo pode ser concluído em

pouco tempo, caso não haja recesso parlamentar para cuidar da matéria, como é do interesse de Dilma. Em caso de condenação, a presidente perde o mandato e fica inelegível por oito anos. Na linha sucessória, assumiriam o vice Michel Temer, o presidente da Câmara dos Deputados Federais Eduardo Cunha ou o presidente do Senado Renan Calheiros, todos do PMDB (http://bit.ly/1QuorQN). Antes da decisão do STF de acatar a ação do PCdoB, Cunha tentou eleger a Comissão especial da Câmara por meio de voto secreto, permitindo aos deputados de traírem o governo sem sofrer represálias. O resultado de 272 a 199 tinha dado certo e a chapa eleita era a composta por deputados favoráveis ao impeachment. Durante o processo houve divergências na Casa a respeito da legitimidade do voto secreto e os ânimos se exaltaram e alguns deputados passaram para às vias de fato, quebrando urnas e cortando microfones (http://bit.ly/1Nj99Ka). O impedimento de governante eleita, sem materialidade que fundamente sua responsabilidade criminal, é de alta gravidade, pois abre um precedente perigoso para a democracia brasileira: quando houver uma crise política instalada, governantes eleitos pelo voto poderão ser derrubados por conspirações palacianas de seus adversários políticos, utilizando-se de pretextos levianos. O governo Dilma não enfrenta os grandes

interesses econômicos, midiáticos ou oligárquicos, cumpre com o receituário neoliberal da ortodoxia econômica: colocou Joaquim Levy, um “Chicago boy” no controle do Ministério da Fazenda, nomeou Kátia Abreu (PMDB) uma liderança do agronegócio exportador para o Ministério da Agricultura, nomeou Gilberto Kassab (PSD) um grande empresário do mercado imobiliário para o Ministério das Cidades, para o Ministério da Indústria e Comércio nomeou Armando Monteiro (PTB), um grande industrial, e ultimamente trocou até mesmo o Ministro da Saúde (pasta um pouco mais compromissada com seus propósitos) por um médico conservador, deputado ligado a Eduardo Cunha, para aplacar suas investidas. Ainda assim, os compromissos sociais que ainda restam no governo Dilma e as origens populares e de esquerda de seu partido (hoje, bastante combalidas) são suficientes para atrair a ira conservadora e as tentações golpistas, num momento de crise. Isto dá uma ideia do quanto estaria ameaçado um governo claramente de esquerda e o quanto ainda temos de amadurecer a consciência democrática em nossa sociedade, que, afinal de contas, acabou de eleger o Congresso mais conservador de sua história desde o golpe civil-militar de 1964.

PMDB: Pontes para qual futuro? No cenário político brasileiro, o PMDB é o partido da ordem por excelência desde os tempos da redemocratização dos anos 80.

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Oriundo do antigo MDB, único partido de oposição permitido pela ditadura militar (1964-1985), assim que acabou o regime bipartidário (1980), durante a lenta “distensão gradual e progressiva” do regime, acolheu diversos políticos da antiga ARENA (partido de sustentação da ditadura), elegeu o presidente da República em 85 (à época ainda de maneira indireta) e obteve uma grande vitória em 86, elegendo 22 dos 23 governadores estaduais e 3/4 do Congresso. Em plena euforia democrática, o PMDB passou a abrigar políticos de toda natureza e, mesmo diminuindo sua influência depois, consolidou-se como partido preferido pelas oligarquias políticas locais. O próprio José Sarney, oligarca do Maranhão, presidente da República pelo PMDB em 85 era oriundo da ARENA. Desde então o PMDB nunca saiu do poder e foi fundamental para a governabilidade (exceto talvez no breve governo Collor entre 90 e 92). Excetuando-se o período dos Governos Sarney (85-89) e Itamar Franco (92-94), o PMDB não exerceu a presidência diretamente. Pelo contrário, especializou-se em construir as pontes entre os interesses de seus caciques e (qualquer) governo que se instalasse. Certa terminologia o caracteriza como partido “catch-all”, o pega-tudo da política nacional. Naturalmente, o partido não possui um programa político claro. Desde as eleições de 1994 a maior rivalidade eleitoral no país é entre PT e PSDB. Independente de quem ganha está lá o PMDB do poder. Nos oito anos de Governo do PSDB, dominados

por uma agenda privatizante e neoliberal com parcas políticas assistenciais, e nos 13 anos de Governo do PT, marcados pela conciliação da inclusão social através do consumo com a manutenção de políticas econômicas neoliberais, foi com o PMDB, que estes partidos tiveram de negociar o crescente loteamento dos cargos de nomeação, do alto escalão, para garantir os interesses das oligarquias historicamente parasitárias do Estado brasileiro e que controlam uma grande bancada de parlamentares. A cada crise o preço pela sustentação ao governo sobe. A opção do PT pela chamada “governabilidade conservadora”, além de fortalecer o PMDB nos principais postos de governo, atraiu para a base do governo uma série de pequenos e médios partidos conservadores, sempre prontos a negociar seu apoio por mais cargos ou pela inclusão no governo de suas pautas. Esta miríade de novos partidos de aluguel que não para de se multiplicar são todos filhos deste peemedebismo; praticam por chantagem ou negociação menos sofisticada a mesma estratégia de ocupação parasitária do estado por caciques tradicionais ou emergentes. Explica-se assim, a que ponto chegou o poder de barganha do PMDB hoje, tendo se tornado o maior inquilino do condomínio governista e ao mesmo tempo configurando-se como principal beneficiário

do impedimento de Dilma. No auge da crise, Temer e o PMDB apresentaram ao país, pela primeira vez, algo que seria um programa partidário para o país, Uma Ponte para o Futuro: compreendendo a mensagem do mercado ao governo, o partido sinalizou em seu congresso, realizado no mês passado, seu compromisso com a agenda econômica neoliberal, um ajuste fiscal “de caráter permanente”, a revogação do reajuste anual do salário mínimo e dos benefícios previdenciários, aumento da idade mínima para se aposentar, dentre outros (http://glo.bo/1IDHl6p). O outro lado da governabilidade conservadora é obviamente o estabelecimento de pontes entre o mercado e o parlamento, fortalecendo a atual tendência a diluir a representação em bancadas de interesses corporativos: a bancada das empreiteiras, do agronegócio (a ruralista), das mineradoras, dos bancos, dos clubes de futebol, do fundamentalismo religioso, da indústria armamentista etc. (http://bit.ly/1NMlBBA); em detrimento do que deveriam ser as bancadas ideológicas, programáticas (hoje em extinção): socialistas, liberais, socialdemocratas, comunistas, trabalhistas etc.. E o PMDB especializou-se em gerir estas pontes, cuidando sempre de não quebrar aquelas que servem às oligarquias locais, um verdadeiro centrão fisiológico. Dispensado dizer que os resultados deste tipo de hegemonia da pequena política tende

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a aprofundar o fosso entre os representantes e os representados. Multiplicam-se com estas práticas os votos nulos e os chamados votos “úteis”, aqueles que são inutilizados optando pelo candidato que lidera as pesquisas, buscando paradoxalmente “vencer para não desperdiçar”. A corrupção, tão explorada pela mídia corporativa, tornou-se a engrenagem fundamental desta forma de governo, por meio de bancadas eleitas com volumosos financiamentos corporativos, que depois exigem o seu quinhão de volta por meio das atuações parlamentares e dos governos, saqueando a soberania do voto. Os escândalos desta vez conseguiram demonstrar parte desta engrenagem ao povo, na chamada Operação LavaJato, maior investigação de corrupção da história do país, que indiciou mais de 50 deputados, senadores e governadores, dentre os quais o dep. Eduardo Cunha, pertencentes a sete partidos tanto do governo quanto da oposição de direita (PT, PSDB, PMDB, PP, PSB, PTB, SD), mas também e pela primeira vez provocou a prisão de 9 executivos de gigantes empreiteiras nacionais, dentre as quais a Odebrecht e a Andrade e Gutierrez, no mês passado. São quase 500 pessoas e empresas investigadas, quase 100 prisões em caráter preventivo ou temporário, diversas ações penais e até mesmo algumas ações civis para devolução de recursos desviados. É importante lembrar o quão significativo

foi este caso para o modelo econômico brasileiro, pois estas empreiteiras se tornaram as principais parceiras do modelo de crescimento que apostava em destinar grandes somas de gasto público em obras feitas por elas. Com a paralisação destas empreiteiras, a crise econômica se aprofunda e já abre espaço para discursos de que seria necessário convocar empreiteiras estrangeiras, em tese mais sérias, para desempenhar as mesmas tarefas. O esquema envolvia a Petrobrás, empresa símbolo nacional, que remetia aos tempos da campanha nacionalista dos anos 50, “o petróleo é nosso”. Na maior empresa do país, diretores e funcionários cobravam propinas a empreiteiras para facilitar seus negócios, superfaturando contratos que as beneficiavam. Lobistas e doleiros desviavam o dinheiro para políticos, funcionários públicos e partidos responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobrás (http://bit.ly/1Uzfg5B). A empresa chegou a avaliar os prejuízos em mais de R$ 6 bilhões. O escândalo demonstrou à população que a corrupção é sistêmica e em pesquisa realizada em junho, já 74% dos brasileiros responderam ser contra o financiamento empresarial de campanhas. Apesar disso, o caso também fez a empresa cair em descrédito e tornou-se mais fácil levantar a bandeira de sua privatização. Não é por acaso que pela primeira vez, a corrupção aparece nesta mesma pesquisa como o maior problema do país, com 34% das respostas, superando a saúde com 16% das

respostas. Em dezembro de 2014, antes da crise deste ano atribulado, os valores eram de 43% para a saúde e 9% para a corrupção, que ainda ficava atrás da violência e junto com a educação. A partir de 2015 houve uma inversão radical da percepção da população sobre os problemas do país (http://bit.ly/1NgJ8dA). Se por um lado, isto despertou o sentimento contra a corrupção sistêmica, estes sentimentos ainda estão confusos e caem facilmente na busca de soluções autoritárias para o país, o que também deve nos manter alerta. O descrédito do Congresso nacional é o pior em décadas e 53% dos eleitores avaliam como péssimo o desempenho dos parlamentares, segundo pesquisa recém-divulgada (http://bit.ly/1TeS2g3). Em tempos de crise de hegemonia, em que se enfraquecem os laços de confiança entre os partidos da ordem e o povo que querem representar, em que o consenso social não parece conformar uma maioria estável para nenhum dos lados em disputa, abre-se espaço para a ascensão de figuras fisiológicas, como Eduardo Cunha. Ele não poderia estar melhor localizado que no PMDB para o papel que cumpre.

Palavras finais Tempos sombrios nos fazem refletir seriamente sem perder o otimismo da vontade: paradigmaticamente, o MBL e setores próimpedimento convocaram uma manifestação para o

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próximo dia 13 de dezembro pelo Fora Dilma. O dia 13 de dezembro é o aniversário do Ato Institucional nº5, emitido pelo regime militar em 1968. O AI-5 é a mais grave medida dos primeiros anos da Ditadura, pois a instalava de fato: fechava o Congresso Nacional e dava poderes para fechar outros legislativos, suspendia liberdade de manifestação, suspendia o habeas corpus para crimes políticos, suspensão da liberdade sindical, restringia as liberdades individuais, dava poderes ao Presidente da República para suspender os direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos e para cassar mandatos eleitos pelo povo, além de diversas medidas draconianas. Esta famigerada e tenebrosa data presente em todos os livros de História de nossas escolas não foi escolhida por acaso. Outro fato importante para reavivar em nossa memória coletiva é que muitos setores da sociedade que apoiaram o movimento golpista de 1964 se opuseram ao AI-5 quando perceberam (tarde demais) até onde iriam as intenções de quem haviam colocado no poder. Estes setores acreditavam que o golpe seria provisório e logo o país retornaria à normalidade institucional, assim que o perigo de uma “república sindicalista” ou o comunismo estivessem afastados. Triste engano, erros sem volta. A história das duas décadas seguintes o demonstra. Ainda que muitos estejam sendo arrastados pela justa frustração com o governo, tristemente, não resta dúvidas sobre o caráter anti-democrático que os líderes do movimento pró-impedimento estão

dando a suas manifestações. Carece de ter cuidado. No dia 16, pelo contrário, haverá uma manifestação contra o impeachment, convocada pela Frente Brasil Popular, que agora conta com mais de 60 organizações. O ato deverá contar com a adesão da maioria dos setores democráticos, ainda que por hora não tenha saído uma posição oficial das outras frentes. Entre muita divisão confusa e tanta união fisiológica na política nacional, há algumas poucas coisas que deixam a esperança de pé. Segundo pesquisa recente, publicada no dia 29 de novembro, 81% das pessoas acham que Eduardo Cunha deveria ter seu mandato cassado (http:// bit.ly/1TeS2g3). Resta esperar que, com a deposição do déspota da Câmara, o novo ciclo de mobilizações populares consiga colocar no centro do debate os grandes temas da política, aqueles que podem nos permitir finalmente construir projetos populares (aqueles cujo povo realmente teve acesso à formulação e não foi apenas chamado a referendar) para a impedirmos sim a hegemonia da pequena política e consigamos estabelecer as metas para a superação dos nossos históricos déficits de cidadania. Luca Palmesi Professor de história, italobrasileiro, filho de mãe brasileira e pai italiano, nascido em Roma, radicado em Belo Horizonte e cidadão do mundo.

Ver André Singer e também Ruy Braga sobre as transformações na base social e no programa do PT. Francisco de Oliveira para a tese do transformismo lulopetista (ver em especial o ensaio Ornitorrinco).

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A foto tirada pela Mídia Ninja [e que inspirou a ilustração da capa desta revista]tornou-se um dos símbolos das manifestações de junho de 2013. Nela carrego junto com outros companheiros, o bandeirão vermelho, com o escrito “ônibus sem catracas” (a pauta da tarifa zero): ideia que tivemos após uma primeira manifestação mais conflitual, para poder levar nossos símbolos (o vermelho) da esquerda, porém de forma renovada, evitando aquilo que pudesse ser associado a partidos políticos específicos. A estratégia deu certo e era um compromisso pelo qual não se abria mão do vermelho, mas se substituíam os símbolos mais desgastados. Também fizemos bandeiras vermelhas com escritos iguais ou de “Tarifa Zero”. Pessoas aleatórias passavam para pegar as bandeiras emprestadas ou pediam para ajudar a carregar o bandeirão ou ainda se divertiam embaixo do mesmo. A foto rodou bastante e chegou a ser utilizada pelo site do PSOL nacional. As manifestações de 2013, em Belo Horizonte, tiveram a particularidade de terem se inclinado mais à esquerda se comparada a outras capitais, em que elementos claramente de direita foram mais perceptíveis.

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Luta Social e Crise Política no Brasil Aspectos da conjuntura da crise brasileira - Posfácio

Posfácio Encerrei o texto acima no dia 9 de dezembro deste ano que finda. Hoje, passados vinte dias, tornou-se necessário enviar este pequeno posfácio à redação de A Comuna, posto que os tempos nos trópicos andam mais acelerados que de costume. Muita coisa ocorreu para atualizar o leitor português e europeu. A manifestação nacional pelo impeachment, no dia 13 de dezembro, foi menor que a expectativa dos organizadores de movimentos como MBL e #Vemprarua em cerca de 90 cidades e todos os estados do país. Segundo os organizadores mais de 400 mil pessoas teriam ido às ruas e segundo a Polícia Militar (PM), que sempre traz números deflacionados, teriam sido 83 mil manifestantes. Na Avenida Paulista, em São Paulo, o instituto de pesquisa Datafolha calculou cerca de 40 mil manifestantes (http://glo.bo/1NNtmdv). Os números diminuíram muito em relação aos atos de março, abril ou agosto, que foram bem maiores. Mas o caráter continuou semelhante: o verde-eamarelo nacional, os bonecos de Dilma e de Lula como presidiário, além do hino nacional deram as cores e o tom do protesto, as palavras de ordem eram sobretudo “Fora Dilma”, “Fora PT” e outras contra Lula, mas também, em menor grau, contra Eduardo Cunha. Os pedidos de intervenção militar e símbolos anti-comunistas continuaram presentes. Em Brasília chegou-se a queimar um caixão da presidenta, realizando um enterro simbólico. O

ativismo cibernético também continua de vento em popa e o movimento pelo impeachment já conseguiu 1,4 milhão de assinaturas na internet, apontando as “pedaladas” como principal motivo para o impedimento (http://bit.ly/1ig0TSY). Não duvidamos das prováveis boas intenções de muitos dos assinantes, mas curiosamente, os organizadores não acrescentaram um abaixo-assinado contra Cunha. Seria recomendável, no mínimo, desconfiar.

pelo governo federal. Onde estes setores não tinham peso, como em Belo Horizonte, onde estive presente, o tom contra os cortes nas políticas sociais e a retirada de direitos foi menor, predominando o “Fora Cunha”, a defesa do “Estado Democrático de Direito” e em graus variados o “Fica Dilma”. Nestes casos, no entanto, diversas pessoas insatisfeitas com o governo participaram do ato sem pudor, mesmo sem representação plena nos carros de som.

Já o ato do dia 16, contra o impeachment e contra Cunha, ocorreu em mais de 40 cidades e quase todos os estados do país. Os organizadores estimaram o número de participantes em 292 mil, enquanto a PM os estimou em 98 mil. O mesmo Instituto de pesquisa calculou os presentes na Av. Paulista em 55 mil, portanto maior que a quantidade presente no ato pró-impedimento da presidenta Dilma Rousseff (http://glo.bo/1NNthGB). O ato foi chamado pela Frente Brasil Popular e não teve a adesão integral da Frente Povo Sem Medo. O MTST e a Intersindical, setores fundamentais da Povo Sem Medo, participaram da organização dos atos do dia 16, nas cidades onde têm presença, a despeito dos temores de se confundir com o PT, vindos de outros setores da Povo Sem Medo. Em São Paulo, onde a presença do MTST, principalmente, e também da Intersindical, é mais forte, estes setores conseguiram marcar o foco dos atos no eixo contra o impedimento, contra Eduardo Cunha e contra os cortes no orçamento das políticas sociais e nos direitos trabalhistas impostos

Apesar das previsíveis polêmicas no campo da combalida, porém multifacetada, oposição de esquerda, o país continuou andando. Sem embargo dos aspectos jurídicos que envolvem o tema do impedimento da presidenta e a cassação do mandato de Cunha, sabe-se que o peso das manifestações de rua serão determinantes no desfecho destes processos. O caso de Dilma possui pouca consistência jurídica e já abordamos bem no texto acima. Nos dias seguintes às manifestações, o Supremo Tribunal Federal, STF, deu parecer que anulou a eleição secreta da Comissão Especial da Câmara dos Deputados Federais para analisar o pedido de impedimento e impõe o voto aberto. Esta Comissão “secreta” havia sido eleita após rebelião de deputados da ala próimpeachemnt do PMDB, controlada por Cunha e Michel Temer (vice-presidente da República) – a rebelião chegou a conquistar a certa altura a troca do líder do PMDB na Câmara dos Deputados Federais, Dep. Leonardo Picciani, que acabou retornando pouco tempo depois, em processo que o governo Dilma se a comuna 36


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empenhou ativamente, provocando reclamações por parte da outra ala de interferência externa no partido. O parecer do STF ainda garantiu que o Senado poderá realizar recurso contra possível decisão da Câmara dos Deputados Federais de abrir o processo de impedimento. O presidente do Senado, Sen. Renan Calheiros, também do PMDB, articula-se na ala que não rompeu com o governo e garante uma base governista mais forte na Casa alta do legislativo federal (http://bbc.in/1J7OqMW). Quanto a Cunha, o Conselho de Ética, após muitos percalços, aprovou o pedido do PSOL e da Rede de abertura do processo que pode chegar à cassação de seu mandato. As acusações e provas contra Cunha são muito consistentes, ao ponto de, até mesmo as manifestações que antes lhe mostravam alguma simpatia, agora pedirem por sua cassação. Além das provas que o Ministério Público da Suíça já demonstrou contra Cunha, de possuir conta secreta naquele país, com milhões de dólares não declarados, o presidente da Câmara dos Deputados Federais ainda é acusado de ter participado do esquema de corrupção da Petrobrás e de ter mentido na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) feita para apurar este esquema, quando afirmou não ter contas bancárias no exterior (http://glo.bo/1YLl8uH) – as CPI’s podem ser montadas por um terço de deputados ou um terço senadores ou por ambos juntos (as comissões mistas, CPMI) para investigar fatos específicos, por tempo determinado, mesmo em recesso parlamentar

(http://bit.ly/1chSmuF). Mentir numa CPI por si só configura quebra de decoro parlamentar e já seria suficiente para uma condenação do deputado. Cunha ainda utiliza-se indiscutivelmente do poder do cargo para se defender das acusações, o que é ilegal e lhe valeria no mínimo o afastamento da presidência da Câmara dos Deputados Federais. Enquanto isso, a Operação Lava-Jato, da Polícia Federal, que investiga os escândalos de corrupção do esquema que envolveu as maiores empreiteiras do país, os principais partidos políticos e a Petrobrás, já prendeu o ex-líder do governo no Senado, Sen. Delcídio Amaral, do PT, mas atinge principalmente o PMDB, prejudicando a base de Michel Temer. Mesmo Aécio Neves (PSDB), que possui várias razões para “temer” (com o perdão do trocadilho, dezenas de acusação de corrupção), sinalizou com um distanciamento do PMDB, responsabilizando-o como cúmplice do governo (http://bbc.in/1J7OqMW). Esta fragilização enfraqueceu ao menos provisoriamente, a possibilidade do partido erguer a tão desejada “ponte” para a saída da crise política, melhor dizendo um atalho para a presidência da República e para a aplicação estrita do programa desejado pelo mercado financeiro para o país voltar a ser atrativo e rentável neste momento. Ainda assim, o potencial “bomba” da Lava-Jato é enorme e novas explosões poderão ainda alterar o cenário agudamente nas próximas semanas. A disputa das ruas, após um ano de intensa

escalada pró-impeachment, revelou ligeira melhora para Dilma, que teve sua reprovação recorde cair de 71% para 67% (http://bit.ly/1JdwTTy). Outro resultado foi a troca de Joaquim Levy por Nelson Barbosa no comando do Ministério da Fazenda. Barbosa estava na chefia do Planejamento e entrou em choque com a política de cortes radicais de Levy em algumas ocasiões. Levy saiu sem grande barulho. Sua proposta era de aprovar um superávit de 0,7% do PIB para o próximo ano, enquanto a do governo era de aprovar um superávit 0,00%. Acertou-se o valor em 0,5% e Levy se retirou. Não foi uma saída conflitual porque de fato, boa parte de seu trabalho estava cumprido. Difícil medir se a entrada de Barbosa, um “desenvolvimentista” mais alinhado às concepções pessoais no campo econômico de Dilma, será uma “conquista” dos movimentos anti-austeridade ou apenas troca rotineira de um ministro desgastado, já que Barbosa anunciou seu compromisso com a meta de 0,5% de superávit. Os mercados sinalizaram que querem mais: justamente no dia 16, enquanto milhares pediam a reversão da política econômica recessiva que prioriza cortes sociais, a agência de rating Fitch anunciou o segundo rebaixamento da nota do Brasil em pouco tempo, caindo para o grau de investimento especulativo, o que significa que para investir no país os capitais financeiros irão pedir juros ainda maiores, aprofundando a tendência à recessão (http://glo.bo/1YgT7er). Enquanto isso, a esquerda perde-se em debater a comuna 37


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se é realmente desejável fazer uma frente ampla nas ruas para atravessar o momento e tentar conter a retirada de direitos, apontando o óbvio para a sociedade: que deve-se cortar aonde há gordura e não aonde esta falta. Posições de parte do PSOL, defendidas recentemente por Luciana Genro e pelo filósofo Vladimir Safatle, clamam por eleições gerais imediatas, chegando ao ponto de crer que se estas ocorressem agora os resultados seriam de uma renovação progressista e virariam o cenário ao favor da esquerda. Para esta formulação a “onda conservadora” seria apenas ilusória, pois o povo brasileiro sempre teria sido conservador e há distorções no sistema eleitoral: http://bit.ly/1Ufewy4. A tese foi rebatida por setores que vão do PSOL (http://bit.ly/1NOAlmo) à esquerda do PT (http:// bit.ly/1ZzNwwV). O desgaste do lulismo, a histórica dificuldade da esquerda em fazer autocrítica e buscar a unidade de ação nas ruas num terreno suprapartidário, que dê menos espaço às vaidades eleitorais e mais espaço a uma tática de ocupação das ruas, capaz de acumular força política, nos parecem motivos importantes para começar a entender como a esquerda insatisfeita com o governo não consegue se cacifar como alternativa para o conjunto da sociedade. Há também uma incompreensão de um elemento central desta crise: os setores médios e altos da sociedade já compreenderam que é necessário uma guinada à direita na política econômica para retomar seu poder

de compra, atraindo mais capitais estrangeiros e valorizando a moeda nacional. De fato, o perfil socioeconômico dos manifestantes “Fora Dilma” é elitizado, como apontou o Datafolha: 15% possuíam renda acima de 10 salários mínimos, 25% com renda de 5 a 10 salários mínimos, consistindo em 40% de privilegiados na renda (http://bit.ly/1kqvqNS). É um fato que não ocorria há muito tempo: a criação de uma base social de massas para movimentos de caráter conservador, protagonizado por setores das elites claramente dispostos a disputar o espaço das ruas. As pesquisas também apontam que trocar Dilma por Michel Temer não convenceu ainda nem mesmo estes setores de que o governo seria muito melhor e 83% já querem cassar o mandato de Eduardo Cunha (http://bit.ly/1Vo3YOt), sinais do desgaste que vem atingindo a partir das ruas, também o PMDB. A despeito das polêmicas, independente de quem estiver certo, não sairá vitorioso deste processo quem não compreender a importância de ocupar as ruas com força neste momento. Luca Palmesi 29 de dezembro de 2015

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Brasil: #OcupaEscola #NãoFechemMinhaEscola Bruno Góis

O movimento estudantil do secundário do Estado de São Paulo ocupou mais de 200 escolas contra o fecho de 94 escolas e a degradação do ensino. Essa luta aguerrida foi alvo de repressão pela Polícia Militar a mando do governo estadual, mas terminou com a demissão do secretário de Educação Herman Voorwald e a suspensão da reforma por um ano letivo.

será o fechamento de escolas”1. Entretanto foi a luta estudantil que serviu de barreira real ao avanço deste desmantelamento do ensino público paulista. A repressão por parte do governo do PSDB em São Paulo chegou a levar à detenção de ativistas e dirigentes estudantis, e até por vezes mesmo de transeuntes que apenas se cruzam com as manifestações, num objetivo claro de intimidar e criminalizar o direito à manifestação. A 18 de novembro, a presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) Camila Lanes e a presidenta da União Paulista de Estudantes (Upes) Angela Meyer foram detidas por parte da Polícia Militar. Acabando mais tarde por ser soltas2. Este tipo de episódios com ativistas estudantis e com professores, em particular sindicalistas, foi frequente.

Sob a capa de “reorganização escolar”, o governador do Estado Geraldo Alckmin (eleito pela direita PSDB) e o seu secretário de Educação pretendiam (e pretendem) dar um duro golpe no ensino público paulista, envolvendo a deslocação de mais de 310 mil estudantes sem qualquer diálogo com a comunidade escolar ou perspetivas reais de melhoria. A lei não foi discutida e o nível de repressão sobre o movimento estudantil por parte do governo Os métodos da Polícia Militar foram altamente condenados por ativistas dos estadual atingiu níveis absurdos, uma autêntica “guerra aos estudantes”. direitos humanos e por dirigentes políticos de esquerda, enquanto a comunicação Logo após a assinatura da lei, o grupo de educação do Ministério Público Estadual social dominante atacou o movimento secundarista. Aconteceram igualmente contestou esta medida e pediu a sua suspensão numa região do interior de São alguns atos de vandalismo e furtos por parte de indivíduos desconhecidos do Paulo. De acordo com o promotor Luiz Antonio Miguel Ferreira: “Ao que tudo indica, movimento acontecido, ações essas que foram divulgadas e ampliadas de forma o governo estadual não está realizando uma reorganização visando à melhoria da a descredibilizar as ações pacíficas mas firmes do movimento secundarista. educação oferecida pela rede estadual, mas sim uma reforma administrativa que Entretanto, circulou na internet um áudio de uma reunião em que os dirigentes visa reduzir gastos com a educação. Com isso, o impacto imediato da reestruturação

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Luta Social e Crise Política no Brasil Brasil: #OcupaEscola #NãoFechemMinhaEscola

“ocuparam mais de 200 escolas contra o fecho de 94 escolas e a degradação do ensino”

do governo Alckmin alegadamente declaram “estar em guerra” contra os estudantes (aceder ao audio aqui https://www.facebook.com/naofechemminhaescola/ videos/1496515057310123/). Essa notícia e toda e a violência policial visível motivou um pedido de averiguações ao Ministério Público feito por parte do deputado federal Ivan Valente (PSoL). O deputado federal afirma: “esperamos que o Ministério Público aja de acordo com a lei e impeça que o desmando autoritário do Governo continue”; “enquanto isso, apoiamos a luta dos estudantes, pais e professores em defesa da educação pública”3. Outro exemplo da ação repressiva da Polícia Militar é a denúncia do advogado Flávio Bezerra, que tem prestado apoio aos estudantes. Bezerra relata que chegou a ser chamado pelos estudantes quando a Polícia Militar atacou com bombas o lado de fora de uma unidade de ensino: “Por volta das 18 horas recebi o pedido de ajuda dos estudantes que estavam amedrontados, quando eles saíram da unidade. Consegui entrar com mais duas

advogadas às 20 horas, quando eles realizavam uma assembleia que decidiu pela retomada da ocupação, porém às 21 horas, sofreram um novo ataque”4. “Ocupar e resistir” é uma das fortes palavras de ordem do movimento secundarista. Essa resistência é também uma ocupação do espaço público em duplo sentido. As e os secundaristas de São Paulo não querem apenas impedir o fecho das 94 escolas, querem discutir uma nova escola, uma escola mais livre e democrática, com mais cultura e mais aberta. Esse foi também o mote dado numa assembleia de representantes de escolas ocupadas realizado no passado dia 29 de novembro, e que reuniu na Escola Caetano de Campos (da cidade de São Paulo) estudantes de diversos pontos do Estado de São Paulo5. Na sequência dessa assembleia, a luta secundarista continuou com as ocupações e nela foi também lançado o manifesto onde se lêem os princípios do movimento: “1) revogação imediata do projeto de reorganização do ensino em São Paulo; 2) nenhuma escola será fechada; 3) nenhuma escola

será dividida; 4) nenhum professor será demitido; 5) não se admite nenhuma sala superlotada; 6) nenhum aluno, pai, professor ou cidadão que participe de alguma forma das ocupações será perseguido”6. No dia 4 de dezembro, após 25 dias de luta secundarista, o governador Geraldo Alckmin suspendeu a “reforma” durante o letivo de 2016 e o Secretário de Estado da Educação pediu demissão. Apesar dessas vitórias, o movimento secundarista do Estado de São Paulo sabe que é uma vitória temporária, feita para desmobilizar o movimento. Alckmin voltará à carga em 2017.

“Ocupamania” de São Paulo a Goiás Os e as estudantes de São Paulo estão alerta e estão solidários com movimentos congéneres noutros pontos do Brasil. No dia 17 de dezembro o movimento Não fechem minha escola emitiu este comunicado (https://www.facebook.com/ naofechemminhaescola/?fref=nf) em apoio ao movimento do Estado de Goiás: “Os estudantes de

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“querem discutir uma nova escola, uma escola mais livre e democrática, com mais cultura e mais aberta” São Paulo derrotaram o governo Alckmin que queria fechar 94 escolas e centenas de turmas. Essa não foi à batalha final contra um governador inimigo da educação, mas o começo de uma grande luta em defesa da educação pública. Agora, em Goiás, os estudantes enfrentam outro grande inimigo da educação pública: o governador tucano Marconi Perillo. Toda força aos estudantes de Goiás na luta contra a privatização e militarização da escola pública!”. A luta estudantil paulista revelou-se, portanto, não só aguerrida mas também inspiradora. Inspiradora das lutas e das artes. Exemplo disso é um grupo de jovens da zona leste de São Paulo, estudantes da MOCAM (escola Moacyr Campos), ocupada a partir de 17 de novembro, que gravaram um videoclipe onde adaptaram “Monomania”, de Clarice Falcão, para uma nova versão chamada “Ocupamania” (https://www.youtube.com/watch?v=JVKuOptVXRQ&f eature=youtu.be). Pela voz da estudante Giovanna Gasperini inspiram ocupantes/manifestantes7:

“Já fiz muita ocupação São quatro, ou cinco, ou seis, ou mais Eu sei que o Alckmin

Tá demais Eu chego com a minha barraca E eu só to querendo paz E o diretor Já vem correndo com a PM atrás Hoje eu falei, pras tias Jurei, até Que essa não seria ocupada e agora é Se juntar cada professor e estudante Dá pra ver Que a nossa força fica maior A PM não tem mandado E eu tenho que obedecer Porque se eu não obedecer Eu vou parar no xilindró Hoje eu falei, pras tias Jurei, até Que essa não seria ocupada Hoje eu falei, pras tias Jurei, até Que essa não seria ocupada E agora é…”

Referências Ministério Público pede suspensão de “reorganização escolar” do governo de São Paulo, http://ubes.org.br/2015/ ministerio-publico-pede-suspensao-de-reorganizacaoescolar-do-governo-de-sao-paulo/

1

Contra fechamento de escolas, líderes secundaristas são detidas em SP, http://www.vermelho.org.br/ noticia/272953-10

2

http://www.psol50.org.br/2015/12/ivan-valente-entra-comrepresentacao-no-mp-contra-o-secretario-de-educacao-dealckmin/

3

Terrorismo nas escolas de Osasco, http://ubes.org. br/2015/terrorismo-nas-escolas-de-osasco/#sthash. YK5wkGn2.dpuf

4

Em assembleia, estudantes decidem intensificar ocupações e lançam manifesto, http://www.redebrasilatual.com.br/ educacao/2015/11/em-assembleia-estudantes-decidemintensificar-ocupacoes-e-lancam-manifesto-3932.html

5

6

idem, ibidem.

“Ocupamania”: Estudante de escola ocupada grava paródia de Clarice Falcão, http://ubes.org.br/2015/ocupamaniaestudante-de-escola-ocupada-grava-parodia-de-claricefalcao/

7

“Ocupamania” - a música da ocupações das escolas em SP Bruno Góis

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