Brasil, Terra de Quilombo

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Olá, me chamo Nelson, sou agricultor e morador da comunidade negra de Morro Alto, que teve seu reconhecimento como remanescente de quilombo respaldada no seu modo de vida, na sua religiosidade, na sua memória e nos laços de sociabilidade profundamente enraizados numa ancestralidade viva, presente nas lembranças, no cotidiano, e no parentesco que sela seus vínculos e regula a percepção e as práticas relativas a seu direito a terra. Atualmente, vive nas terras herdadas de seus antepassados um grupo economicamente independente, sendo sua economia baseada na agricultura de subsistência, pesca, produção de artesanato de junco, plantio de bananeiras e prestação de serviços em atividades agrícolas e não agrícolas em localidades da região.

Em 2004, o Quilombo Morro Alto através da Associação Comunitária Rosa Osório Marques (ACROM), abriu processo administrativo no INCRA para regularização fundiária de seu território. No mesmo ano, a Fundação Cultural Palmares emitiu a certidão de reconhecimento da auto atribuição da identidade quilombola.

* BARCELLOS, Daisy Macedo de; CHAGAS, Miriam de Fátima;FERNANDES, Mariana Helen; FUJIMOTO, Nina Fernandes; MOREIRA, Paulo Staudt; MULLER, Cíntia Beatriz; VIANNA, Marcelo;WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Comunidade Negra De Morro Alto. Historicidade, Identidade e Territorialidade. UFRGS: Porto Alegre, 2004.

Meu nome é Dandara, sou Quilombola e professora, gostaria de lembrar a Frase de Luís Gama, Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil: “Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor, é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.”

E eu sou o Chico, sou Quilombola e também moro aqui na comunidade negra de Morro Alto, nós nos reconhecemos como herdeiros do território em que residimos, evocamos a descendência compartilhada entre nossos membros, como descendentes e constituídos herdeiros pelo testamento

A história brasileira foi construída com o sangue do povo negro escravizado, muitos foram trazidos para trabalhar na indústria açurareira, nas plantações e engenhos de açúcar na região nordeste do país. Foi lá, que em meados de 1600 um grupo de escravizados, sob a liderança de Aqualtune (a avó de Zumbi), pertencente ao grupo linguístico bantu, formaram o primeiro mocambo, chamado de Cerca Real do Macacos, na Serra da Barriga (AL), sendo a capital política e administrativa do Quilombo. Mocambos eram locais organizados socialmente pelos escravizados como espaço de liberdade e que se opunham ao modelo de exploração da sociedade colonial. Vários mocambos formavam o Quilombo dos Palmares (ARAÚJO, 2020)*. O Quilombo, foi o resultado do maior movimento rebelde da história, liderado por africanos escravizados, como Aqualtune, Ganga Zumba e seus descendentes, como Zumbi e Dandara e que durou quase um século. Ainda hoje o Quilombo Zumbi dos Palmares é conhecido como a “Terra da Liberdade”.

Sob coordenação do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, e da Fundação Zumbi dos Palmares, em 2007 foi constituído o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, fruto da reinvidicação de mais de 25 anos do movimento negro brasileiro, para rememorar essa história, reviver aquele grito de esperança e luta.

* ARAÚJO, Zezito de. Quilombo dos Palmares: negociações e conflitos. Arapiraca: CESMAC, UNEAL, 2020.

Ao longo dos anos, várias foram e continuam sendo as estratégias que as famílias da Comunidade Quilombola acionam para garantir sua permanência no território. Sejam as mobilizações políticas realizadas apenas pelos moradores ou por meio da articulação com agentes externos, como lideranças de outras comunidades quilombolas do Estado, com militantes do movimento negro urbano, representantes dos executivos municipais (Osório e Maquiné), estadual e da união e dos legislativos municipal.

A partir da organização de grupos de atividades afins, os quilombolas se mobilizam na participação em feiras, seminários, dias de campo, cursos realizados dentro e fora da comunidade. Essas atividades têm servido de estratégias que garantem maior visibilidade reforçando a presença e a importância da descendência dos herdeiros de escravizados na

Mesmo frente a essas mobilizações coletivas, após o pedido de regularização do território, a comunidade se viu sem espaços para realizar suas atividades como sempre fazia, em salões alugados. As portas foram se fechando aos poucos para impedir que os quilombolas se reunissem. Para a comunidade, a construção da nossa sede da Associação representa mais uma luta vencida contra os que rejeitam seu reconhecimento e dificultavam o acesso aos espaços para realizarem as atividades do nosso

No estágio atual, as famílias de Morro Alto representadas pela ACROM encontram-se no aguardo das decisões judiciais, políticas e administrativas no que diz respeito ao seu futuro.

Defender a vida é o que todas as sociedades fazem ao criar os meios para alimentar-se, vestir-se, abrigar-se. De todos eles, gerar o próprio alimento é uma das tarefas que exige grande habilidade. Conhecer o solo, os ciclos climáticos, as fases e a incidência do cosmo, as interações ecossistêmicas, as sementes e as épocas de semeadura, dentre tantos outros, requer um conhecimento aguçado. Desde as primeiras formações, as comunidades quilombolas afrontaram as privações e as violências com a sabedoria de quem sempre precisou defender a vida com habilidade.

O cultivo camponês quilombola compõe com as redes de significados cuidadosamente criadas ao longo de sua territorialização nos diferentes lugares que originaram os quilombos pelo Brasil afora. Além de manter o sustento das famílias, a agricultura também serviu para alimentar os vínculos de socialidade que permitiram aos quilombolas permanecer em zonas muitas vezes habitadas por outros agrupamentos sociais e cujas terras eram requeridas por grileiros, latifundiários, granjeiros e outros grupos que constituem o quadro das elites brasileiras.

Ainda pouco conhecemos sobre o sistema agrícola quilombola. O que sabemos, no entanto, é que durante os longos séculos nos quais os povos negros habitaram as mais variadas regiões do território brasileiro desenvolveram formas de fazer agricultura que exigem um conjunto complexo de conhecimentos. As comunidades quilombolas criaram um sistema agrícola que engloba aquilo que a agricultura convencional trata de separar com a finalidade de controlar. Em termos gerais, podemos dizer que na modalidade do fazer agrícola quilombola o humano, a natureza, a cultura, o espírito encontram-se alinhados em um mesmo plano. Esta qualidade da agricultura quilombola é um dos elementos do que a ciência hoje convencionou chamar de “saberes tradicionais”. O conceito reúne uma multiplicidade de manifestações da cultura e do espírito com a finalidade de reconhecer e validar conhecimentos que circulam fora das universidades e centros de pesquisa. Reconhecer os “saberes tradicionais” (de povos cuja ancestralidade nos remete às culturas controladas e subjugadas no colonialismo), contudo, não é o mesmo que conhecer. Para que as comunidades quilombolas possam continuar praticando o seu sistema agrícola precisamos entendê-lo em sua totalidade. Para isso, precisamos deixar de lado as nossas suposições anteriores (ou seja, nossos pré-conceitos) e adentrar a cosmologia quilombola em toda sua potência. No geral, as comunidades quilombolas não plantam para uma rede capitalista de comércio (ao menos, não exclusivamente).

O sistema agrícola quilombola também pode alimentar o plano do invisível, isto é, o conjunto de interações com o divino dos quais fomos acostumados a nos separar. A complexidade da agricultura quilombola está no plano da imanência do que ainda precisamos conhecer para que a falência do modelo hegemônico que já nos toca a nós não leve à exaustão a nossa grande casa, o planeta.

Demanda histórica do Movimento Negro, a Educação ocupa lugar de destaque nas reivindicações que orientam as ações por dignidade e justiça para a população afrodescendente. Com o advento da Lei 10639/03 o Brasil constituiu um regramento jurídico para tratar da História e da Cultura Africana e Afro Brasileira. Diante disso, em milhares de escolas públicas do Brasil, professores negros e outros educadores ligados as discussões questões etnicorraciais estabeleceram discussões necessárias sobre a importância da valorização das contribuições do povo negro brasileiro na constituição do País.

No universo quilombola a valorização da educação, enquanto ferramenta de emancipação social, também avançou. As comunidades quilombolas começam a perceber a importância do acesso ao ensino formal e a escolarização entre os membros das comunidades. As comunidades se colocam como partes constituintes, de fato, da história do país e que suas trajetórias de lutas e de resistências são modelos que merecem e necessitam ser tratados de forma didática e pedagógica nos ambientes escolares de modo a valorizar e promover a real diversidade da sociedade brasileira de maneira mais equânime.

Assim sendo, quilombolas, movimentos sociais e intelectuais

negros dialogam e articulam uma reflexão para além da Lei 10639/03, buscando atuar sobre a especificidade das demandas das comunidades remanescentes de quilombos. Como resultado dessas articulações políticas entre quilombolas, movimentos e a intelectualidade negra e militante temos, no ano de 2011, o inicio da constituição do parecer do Conselho Nacional de Educação, através da Câmara de Educação Básica (CEB), com vistas a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ). Tais diretrizes, publicadas no ano de 2012, tem por objetivo “orientar os sistemas de ensino para que eles pudessem colocar em prática, a Educação Escolar Quilombola, mantendo diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e do movimento quilombola” (BRASIL, 2011, p. 5).

A sociedade brasileira foi solidamente constituída em bases que se estruturaram a partir do racismo e as instituições públicas do país, em sua maioria se sustentam dessa condição estrutural. Ou seja, o racismo estrutural e institucional que serve de base para sustentar privilégios, se amparando nas diversas “travas” que impedem o acesso pleno da população negra aos direitos sociais básicos, como é o caso o acesso a educação. Embora o Brasil tenha regulado a legislação em torno das Leis 10639/03 e 11645/08 e também do Parecer do CNER sobre a Educação Escolar Quilombola, há uma forte resistência institucional em fazer valer a força da legislação para a garantia do direito legítimo da população negra.

Ao fazermos uma breve análise sobre a implementação de políticas de ERER e de educação escolar quilombola, percebemos a falta de vontade política dos gestores de boa parte das instituições públicas brasileiras, no sentido de oportunizar a operacionalização das possibilidades de aplicação dos dispositivos legais que garantam a efetiva aplicação de uma legislação promotora de uma educação antirracista.

A elaboração das Diretrizes estabeleceu que a Educação Quilombola deve se desenvolver nas unidades escolares que estão nos territórios quilombolas e deve ter por alicerce a cultura ancestral, promovendo uma pedagogia própria. Consoante as especificidades quilombolas, tais diretrizes dão consistência a certeza que as populações quilombolas, por possuírem um arcabouço gigantesco de contribuições a constituição do Brasil enquanto nação, educação que contemple os seus distintos contextos sócio-histórico e culturais, tornados invisíveis nos modos tradicionais de ensino da educação nacional.

Não são poucos os empecilhos que buscam limitar as ações nas escolas que tratam da Educação das Relações Étnico Raciais, desde a proposital falta de investimento em processos de formação continuada dos educadores, a falta de materiais didáticos e o descaso no trato da temática por parte de muito gestores. Em contrapartida, as comunidades quilombolas ousam cada vez mais. Sabem da força transformadora da educação e buscam sob diversas formas a consolidação de politicas afirmativas para garantir os seus direitos fazendo valer a máxima que Luis Gama cita na abertura que você falou antes.

A comunidade de Morro Alto vem enfrentando ameaças ao reconhecimento e titulação de seu território, por conta da tramitação de um processo de revisão do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) junto ao INCRA, que busca anular os atos que reconhecem os direitos dessa comunidade quilombola ao seu território. Diante de tais ameaças, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública e a Justiça Federal determinou que seja interrompido o processo de contratação de serviços de elaboração de novo relatório antropológico para identificação e delimitação do território da comunidade, mantendo-se, assim, o relatório que reconhece o território de Morro Alto como quilombola.

O INCRA recorreu desta decisão e a Associação Rosa Osório Marques, assistida pela RENAP, pediu sua habilitação no processo, para que possa aprimorar a defesa de seu território ancestral junto ao poder judiciário.

Os Quilombolas da comunidade de remanescentes de quilombos do Morro Alto descendem, por de laços de consanguinidade, dos herdeiros das terras recebidas por meio de doação por um conjunto de 24 ex-escravos, registrada no inventário de Rosa Osório Marquês, em 1888. Consagra a memória e a ancestralidade africana atlântica de origem Banto (Congo e Angola) e do Capão da Negrada, RS. O quilombo de Morro Alto que compreende as áreas de Morro Alto, Prainha, Aguapés, Ribeirão e adjacências foi reconhecido e certificado pela Fundação Cultural Palmares, nos territórios identificados em Máquine e Osório, Litoral Norte, RS.

O Maçambique de Osório é uma congada secular gaúcha, considerada um patrimônio cultural imaterial do quilombo de Morro Alto, responsável pela Festa da Nossa Senhora do Rosário ( Festa dos Negros) e celebra também a São Benedito, considerados santos protetores (oragos). Realiza rituais afro-católicos e performáticos de matriz africana, herdados de africanos bantos e seus descendentes. Celebra a história e a memória da rainha africana Nzinga Mband (século XVII) e das antigas Rainhas Gingas do Maçambique. A congada realiza diversos pagamentos de promessas e apresentações culturais.

- Ministério Público do Trabalho (MPT), atua na tutela do meio ambiente de trabalho seguro, sadio e equilibrado, atento a nocividade à saúde, à vida e as condições das trabalhadoras e trabalhadores. Se verificar qualquer dessas questões, não deixe de contatar o MPT. (http://portal.mpt.mp.br)

- Universidades, Institutos Federais, Cursos Técnicos e Associações Científicas, colaboram com estudos e subsídios às comunidades quilombolas, por exemplo a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) e o Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) tem atuado em favor de diversos comunidades quilombolas no RS, se puder faça boas parcerias com as universidades e cursos técnicos.

- A Rede Nacional de Advogadas/os Populares (RENAP), criada há quase 30 anos, tem representações em todas as regiões do país, atuando junto a movimentos sociais nas mais diversas áreas. Em 2022, a RENAP/RS assistiu a Associação Rosa Osório Marques no seu pedido de habilitação como litisconsorte no processo que envolve a garantia do seu território, bem como a acompanhou nas demandas administrativas junto ao INCRA. No caso de violação grave dos seus direitos como comunidade tradicional, procure integrantes da RENAP no seu estado e peça ajuda.

Coletivo de criação:

- Elizabete Alves e Ieda Cristina Alves Ramos, pela Associação Comunitária Rosa Osório Marques e Quilombo de Morro Alto.

- Paulo Sérgio da Silva, Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, Ubirajara Toledo e equipe do IACOREQ.

- Alice Hertzog Resadori, Emiliano Maldonado, Thales Zendron Miola, Júlio Alt, equipe da RENAP e da Acesso Cidadania e Direitos Humanos.

- Milena Silvester Quadros, Camila Dellagnese Prates, revisão científica e colaboração externa.

- Fotos do acervo do Iacoreq e do Quilombo de Morro Alto.

Projeto Gráfico: Fábio Alt Ilustrações: Xablo Lutz Outras Ilustrações: freepik.com

Todas informações e dados apresentados na cartilha estão publicamente disponíveis em sítios da Fundação Cultural Palmares, Parque Memorial Quilombo dos Palmares, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Portal Literafro, publicações acadêmicas e legislação nacional.

Esta cartilha é fruto do projeto "Justiça no Quilombo Morro Alto - Assessoria Jurídica Popular e lutas sociais em defesa dos direitos das comunidades tradicionais", executado pelo IACOREQ e financiado pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD), por meio do Programa de Pequenos Projetos de 2022.

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Morro Alto Comunidade Quilombola LITORAL NORTE
RS cidadania e direitos humanos

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