Revista Argumento #1

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Revista Argumento // Edição n.º 1

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É com grande alegria que lançamos a primeira edição da Revista Argumento! Um importante passo no fortalecimento da Cena Hum Academia de Artes Cênicas como uma referência no ensino e pesquisa das Artes Cênicas. O trabalho de pesquisa e escrita sobre a arte é fundamental para a formalização e avanço do fazer artístico e um meio de presentificá-la no mundo como uma manifestação humana essencial à construção de uma sociedade reflexiva, crítica e ativa. Agradecemos a todos que participam desse projeto e aos autores que enviaram seus trabalhos apostando, junto com a Cena Hum, nessa nova empreitada. Boa leitura a todos! Márcio Vegas

Sobre a Revista A ideia de criar uma revista acadêmica para discutir temas referentes às Artes Cênicas não é nova dentro da Cena Hum Academia de Artes Cênicas. Entretanto, foi somente no final de 2015 que a ideia se tornou um projeto dentro da instituição e, aos poucos, ganhou corpo e se materializou nesta publicação virtual. Temos dois objetivos centrais: promover o pensamento crítico sobre as artes cênicas em todos os seus segmentos e divulgar esse material para toda a comunidade. Entendemos que mais tempo deve ser empenhado em pesquisa e produção de trabalhos acadêmicos que tenham como tema a análise dramatúrgica, musical ou coreográfica; divulgação de diferentes processos criação; comparação entre metodologias de formação e pedagogia nas artes; aplicação de conceitos teóricos na prática artística; investigações históricas nas áreas do circo, dança, ópera, teatro, performance, música, canto, etc.; propostas de atualização ou expansão de pensamentos para o contexto contemporâneo; influências de linguagens estéticas e poéticas em outros campos do conhecimento; implicações e desdobramentos filosóficos da arte na sociedade; inquietações, provocações e manifestos artístico-culturais; e qualquer outra discussão que esclareça, estenda, aprofunde ou complemente nosso entendimento sobre arte. Pretendemos com isso atingir estudantes, pesquisadores, professores, curiosos e qualquer pessoa interessada em se aprofundar um pouco mais em artes cênicas.

É através dessa perspectiva que a Revista Argumento se apresenta. Ao se debruçar no conteúdo da revista, quem lê percebe que não nadamos em águas rasas, mas sim verticalizamos temáticas fundamentais para qualquer pessoa que pretenda refletir seriamente sobre artes cênicas. Por fim, desejamos que esta publicação semestral se torne referência no campo acadêmico e se configure enquanto polo agregador de diversos discursos, contribuindo para a construção de uma cultura de produção e divulgação de pesquisa acadêmica. Maia Piva e Rafael Wolff

Expediente George Sada e Márcio Vegas Direção do Grupo Cena Hum Francielle Domanski Coordenação Acadêmica Maia Piva Rafael Wolff Coordenação editorial e curadoria Ana Luiza Fernandes Projeto gráfico Sugestões, críticas e anúncios: imprensa@cenahum.com.br www.cenahum.com.br /cenahum @cenahum @cenahum


Sobre esta edicao

Esta primeira edição propõe-se livre. Ou seja, não delimitamos temáticas específicas para as inscrições, desde que contemplassem o universo das artes, e fomos presenteados com textos das mais variadas áreas e formatos, enriquecendo enormemente o conteúdo da Revista. Cumprimos, entretanto, com um alto padrão de qualidade na curadoria dos textos, de modo a trazer debates, discussões e análises pertinentes à realidade da produção e pensamento contemporâneo no que se refere às Artes Cênicas. Dito isso, apresentamos a seguir um breve resumo dos trabalhos aqui contidos, organizados em ordem sequencial de sua aparição.

O primeiro texto, de Guilherme Zanin e orientado pelo Prof. Me. Álvaro Bittencourt, se trata de uma importante pesquisa que aborda o ensino do teatro para crianças, assunto que não costuma contar com o devido respaldo acadêmico. Zanin explora a utilização da corda enquanto elemento que favorece o jogo dramático e, consequentemente, a aprendizagem teatral dentro da sala de aula. Ele, através de sua prática enquanto arte-educador, tendo como fundamentação teórica a psicologia ponderada por Vygotsky e os estudos de Piaget, e dialogando com pesquisadores da pedagogia teatral como Japiassu, Koudela, Slade e Spolin, discorre sobre possíveis metodologias de trabalho com a corda e propõe uma análise contundente a respeito da eficácia dessa abordagem em uma turma de iniciação teatral para crianças de 04 a 06 anos de idade na Cena Hum Academia de Artes Cênicas.

O próximo trabalho é uma poesia-monólogo de Joilene Lima. Ela nos traz, através de linguagem e vocabulário muito bem articulados – que elevam o prazer da leitura – um relato irônico, cômico, sensível e nostálgico de um velho que fala sobre as “mudernagens” do nosso mundo contemporâneo.

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Em seguida, encontramos o artigo escrito por Marrara Mara e orientado pela Prof.ª Dra. Marila Annibeli Velloso e pela Prof.ª Hany Lissa. Esta pesquisa se configura enquanto interessante relato crítico do processo de pesquisa, criação e ensaio do espetáculo de dança La Bayadere, releitura do balé clássico homônimo. Mara não explora somente os aspectos narrativos e as diversas adaptações realizadas ao longo do processo, mas aborda com detalhes os aspectos técnicos constitutivos da assimilação da personagem pelo corpo dos(as) artistas. Para tal, ela apresenta e discorre sobre o método de pesquisa do corpo emocional, que vem sendo desenvolvido pela pesquisadora e professora de dança Hany Lissa desde 1996. Também dialoga com o teatro, ao ressaltar a relevância de técnicas que vão da dramaturgia à criação da personagem – com enfoque para Stanislavski e Barba – aplicadas em um espetáculo dançado.

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Contamos também com a transcrição de um bate-papo com o público, realizado após a apresentação do espetáculo AREIA, da Cia. Chordata, grupo formado por atores egressos do curso de Formação de Atores da Cena Hum Academia de Artes Cênicas. Os membros da companhia, José Lucas Ribeiro, Juliane Rosa e Renato Cordeiro abordam assuntos bastante relevantes para se pensar em processos de criação artística e na realidade da produção autoral independente em Curitiba.

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Após isso, trazemos um artigo que é parte da densa pesquisa de Wagner de Miranda sobre os processos comunicativos de atrizes e atores e dos paradigmas contemporâneos em sua relação com o público. Nesse artigo, ele introduz reflexões de como se dão algumas dinâmicas comunicacionais do ator contemporâneo e seus mecanismos de criação, a partir de uma investigação sobre a relação entre esses elementos, corpo, memória e cultura.

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Por fim, temos a contribuição de Luiza Barreto, que realiza com bastante cuidado uma resenha crítica da obra O Teatro e seu Duplo, de Antonin Artaud. Disserta com propriedade sobre o texto base e nos apresenta novas possibilidades e olhares sobre a obra de Artaud, questionando e esclarecendo pontos fundamentais da visão do pensador francês.

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//ARTIGO

BRINCADEIRAS COM O ELEMENTO CORDA PARA EXPRESSAO TEATRAL NA PEQUENA INFANCIA Guilherme Augustus Zanin Navarro Autor Álvaro Bittencourt Orientador

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Grande parte da abordagem teórica para fundamentar a prática teatral tem se concentrado na experimentação para adultos. Quero destacar, no presente estudo, a importância de uma pedagogia voltada para a pequena infância. É na pequena infância que os sentidos e movimentos estão se formando, sendo necessário o uso de ferramentas do teatro para crescimento cognitivo, como também para iniciação na área artística, tendo como base que o ambiente infantil é fundamentado na prática teatral e suas criações permeiam o universo do teatro. Diante das minhas indagações como docente de teatro na Cena Hum Academia de Artes Cênicas, com crianças de 04 a 06 anos, e diante de tantas possibilidades de trabalho, quais seriam as opções mais estimulantes para aplicar com o grupo? Qual o melhor método de trabalhar o teatro com crianças que ainda estão descobrindo o mundo, seu corpo e as correlações deste novo universo? Como construir através de brincadeiras, um viés potente para criação de cenas de uma dramaturgia que culmine em espetáculo?

O jogo teatral Para autores como Peter Slade, Viola Spolin e Ricardo Japiassu, a idade de iniciação teatral está fundada na experiência e desenvolvimento motor e cognitivo da criança. Slade (1978, p.17) propõe, para os primeiros anos de vida, a substituição do termo “teatro” pela terminologia de “jogo dramático infantil”. “O Jogo Dramático Infantil é uma forma de arte por direito próprio; não é uma atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres humanos”. Peter Slade afirma ainda que, até os cinco anos de idade, o jogo é uma extensão da imaginação. A criança projeta uma realidade imaginada, interagindo com brinquedos, pois, Slade defende que, até os cinco anos a criança ainda não está pronta para usar o seu corpo totalmente, recorrendo ao que ele denomina de jogo projetado:

Jogo projetado é o drama no qual é usado a mente toda, mas o corpo não é usado tão totalmente. [...] No jogo projetado típico não vemos o corpo inteiro sendo usado. A criança para quieta, senta, deita de costas ou se acocora, e usa principalmente as mãos. A ação principal tem lugar fora do corpo e o todo se caracteriza por uma extrema absorção mental. Uma forte projeção mental está tendo lugar. (SLADE, 1978, p. 19) Viola Spolin (2004) diferencia a abordagem teatral para as distintas idades. Ela particulariza o dramatic play ( jogo dramático) como aquele que segue sem regras definidas, diz respeito à brincadeira infantil, realizada de forma espontânea, dissemelhante ao game ( jogo de regras), que é aplicado de forma didática sobre como conduzir os exercícios.

Ainda pensando no jogo, Ricardo Japiassu propõe uma metodologia para a atividade teatral na escola, que inicia com um círculo de discussão seguido da proposição e delimitação da área de jogo. Ele divide o grupo em equipes, quando necessário, para então iniciar a apresentação de propostas para a atividade teatral, as quais são estruturadas pelo sistema de Spolin. Por fim, segue com as apresentações de cada equipe, encerrando com um círculo de discussão de todo o trabalho.

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Entretanto, Vygotsky afirma que já a partir dos 4 anos, a criança estabelece sua comunicação e expressividade, as quais estão pautadas na brincadeira, e suas descobertas do mundo se dão através da experimentação, do sensível e da imaginação:

Já na primeira infância, identificamos nas crianças processos de criação que se expressam melhor em suas brincadeiras. A criança que monta um cabo de vassoura e imagina-se cavalgando um cavalo; a menina que brinca com a boneca e imagina-se a mãe […] todas estas crianças brincantes representam exemplos da mais autêntica e verdadeira criação. (VYGOTSKY, 2009, p.16) Dando continuidade aos estudos sobre o desenvolvimento da criança, Piaget (1978) esquematiza seu estudo sobre o jogo, tendo como base, as fases de desenvolvimento da criança, dividindo sua pesquisa em três fases complementares, que para ele vão sendo aplicadas conforme a idade da criança. A primeira trata-se do período denominado sensório-motor, que se caracteriza pela ausência de entendimento dos significados. As descobertas se dão através do contato, e a absorção das informações se dão de forma sensorial, a exploração do mundo ocorre através de objetos. A partir dos dois anos de idade, a criança passa a desenvolver o estágio pré-operatório, caracterizado pela transferência do objeto para a representação, sem abandonar a fase sensorial. Ela a refina e desenvolve outras características. É quando Piaget afirma o aparecimento da função simbólica, manifestando a linguagem. A criança demonstra-se egocêntrica, centra-

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da em si mesma, não conseguindo se colocar no lugar do outro, além de buscar explicações a respeito dos fatos, negando a noção de ocasionalidade, buscando abstrações lógicas, diferenciando e criando raciocínios a partir de questões concretas. Esta fase se inicia aos dois anos de idade, tendo seu entendimento e assimilação maior aos sete anos de idade. O último período descrito por Piaget, denominado operatório concreto, trata da capacidade que a criança adquire de resolução de problemas, construindo uma opinião a respeito do mundo que a cerca, separando o real do imaginário. Sendo essa a fase em que a criança consegue distinguir o mundo fantasioso das interpretações do mundo real em que ela se insere. Entendo que para os autores aqui citados, a ideia de jogo e brincadeira está diretamente ligada ao desenvolvimento da criança, sendo indispensável a análise, que quanto mais nova a criança for, menor será a absorção e entendimento

de regras aplicadas em jogos, se fazendo necessário o uso de brincadeiras que se ajustem às suas possibilidades motoras. A criança, com o passar dos anos, passa a ter controle sobre o corpo, firmeza nos pés e nas mãos, podendo utilizar da linguagem para questionar e entender o mundo que a cerca, sendo importante a aplicação de exercícios que tenham como finalidade, a resolução de problemas. O professor propõe situações problemas, buscando dar autonomia para a criança, observando as soluções que elas promovem. Assim a criança estimulará o raciocínio, com intuito de resolver o que foi proposto. Sendo assim, o jogo perfaz o fazer artístico, desenvolvendo características que são usadas, tanto para desenvolvimento cognitivo da criança como também para formação cênica. O jogador entende o que é proposto, conhece o lugar que se pretende alcançar, e joga.


A brincadeira teatral A palavra brincadeira permeia as abordagens teóricas em estudos para essa fase infantil. Vygotsky (1998) defende que é através dela - da brincadeira - que a criança se apropria do mundo e reproduz as ações dos adultos, pois é na brincadeira que ela pode realizar ações e resolver contradições sobre suas necessidades de agir, possibilitando executar operações exigidas pela ação. É no brincar que os pequenos conseguem atingir o fim teatral. Compartilho dessa ideia por acreditar que a criança nessa faixa etária não está consciente da estrutura do jogo teatral. Sem racionalizar os objetivos das propostas apresentadas, ela brinca, porque é proposto brincar, não está com seu olhar focado para estruturas cognitivas atribuídas ao que foi solicitado.

É através do brincar que ela satisfaz suas necessidades, expressando seus anseios, portanto realiza contato com o mundo em descoberta. Analisando a obra de Ingrid Koudela (2015, p. 25), o Léxico de Pedagogia do Teatro, que reúne um conjunto de verbetes, a autora vem explorar a ideia de um agente brincante. “Etimologicamente, brincante é aquele que brinca. Por isso, mais do que apresentar ou representar, o brincante literalmente brinca, no sentido de divertir-se livremente, ele e seu público, ambos fazendo parte da brincadeira”. Sendo que para autora, no jogo teatral, existe um propósito, declarado ou não, mas que permeia todo o universo do mesmo (2013, p.48).

A existência de regras em todos os jogos é uma característica marcante. Há regras explícitas, como no xadrez ou amarelinha, regras implícitas como na brincadeira de faz-de-conta em que a menina se faz passar pela mãe que cuida da filha. São regras internas, ocultas que ordenam e conduzem a brincadeira. (KISHIMOTO, 1994, p.9) Agora pensando no papel do facilitador/docente no ambiente escolar teatral, Vygotsky (1991, p. 8) defende que sua participação é fundamental, não somente para condução das aulas e exercícios, mas também como facilitador no

processo, ajudando a desenvolver os processos mentais ainda em formação dos pequenos, completando os processos, tanto já formados quanto os que virão a se formar. Quando somos levados às lembranças de nossa infância, é fácil recordar das brincadeiras. Foi o momento em que criávamos o universo dando nossa visão e apresentando nossas descobertas. Subir em árvores, brincar na rua, pisar na terra, pular corda, são alguns exemplos de brincadeiras que conectam a criança com o novo e dão suporte para criações e para sua socialização. Nos dias de hoje, esse contato tem sido interrompido: o risco iminente de estar na rua, o medo e receio dos pais de expor seus filhos aos perigos mundanos, produz barreiras a essa experimentação essencial para o desenvolvimento das crianças dessa faixa etária. Criam-se quintais dentro de casa, onde brincadeiras acabam sendo substituídas por brinquedos. Defendendo meu ponto de vista, jogo e brincadeira estão ligados e muitas vezes confundidos como um só. A diferença maior entre um e outro está no agente propositor e no sujeito da ação. Se uma criança está no quarto sozinha e pega uma boneca, ela brinca. Se o professor resolve colocar os alunos para correrem, no esconde-esconde, para os alunos é uma brincadeira, para o professor, um jogo. As regras muitas vezes se encontram implícitas no jogo ou na brincadeira. A tomada de consciência delas é o que caracteriza a transferência de uma brincadeira para um jogo

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ExperiEncia com crianCas da Cena Hum Academia de Artes CEnicas A Cena Hum Academia de Artes Cênicas atualmente desenvolve atividades de produção e ensino nas quatro áreas das artes cênicas: Teatro, Dança, Ópera e Circo. Ofertando na área teatral, cursos livres de teatro, técnico em teatro e workshops. A inicialização teatral na instituição se dá a partir dos quatro anos de idade e tem como objetivo sensibilizar artisticamente e vivenciar a atividade teatral através do incentivo à criatividade e à imaginação; despertar o interesse pela leitura, ainda que em fase de alfabetização, memorizando textos breves; aprender a expressar-se teatralmente por meio de atividades lúdicas e interativas. Foi com duas turmas dessa faixa etária (04 a 06 anos) que iniciei minha experiência profissional na Cena Hum. As aulas eram dadas e preparadas em conjunto com outra professora regente, Breda Miura. Os alunos em aula, mostravam espontaneamente exercícios e improvisações que nós filtrávamos e víamos potencial dentro das propostas apresentadas. Conduzíamos as aulas por uma estrutura que continha alongamento, aquecimento vocal, aquecimento corporal (muitas vezes com a corda), jogos e brincadeiras. Após isso, o ensaio da peça que previamente tínhamos escolhido. Realizávamos contações de histórias, utilizando histórias que faziam parte do universo das crianças, com o intuito de analisar as soluções que os pequenos davam para cada situação. Jogos que induziam a criança a movimentar o corpo, a correr pelo espaço, foram fundamentais durante as aulas, porque percebíamos indisposição por parte delas, que se diziam cansadas, não querendo

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se exercitar, pois para alguns a aula era aos sábados às 09h, sendo que, durante a semana, as crianças não estavam acostumadas a acordar cedo, e para o teatro tinham que estar despertas, visto também que grande parte morava em bairros distantes da escola, o que as faziam acordar com antecedência. Muitos dos alunos estavam iniciando o fazer teatral. Tivemos de trabalhar exercícios introdutórios à noção teatral, posicionamento em cena, concentração, projeção vocal. Criação de personagens, realizando aquecimento de voz, noções de posicionamento e comportamento em cena. Jogos que têm por objetivo a desinibição, para que os pequenos, quando fossem para o palco, não estranhassem o espaço. Tínhamos alguns exercícios “coringas”, para quando a turma estivesse desanimada, indisposta para as aulas. Nestes jogos sabíamos que as crianças interessavam-se e demonstrariam disposição para participar. Abaixo descrevo os exercícios utilizados. Rio Vermelho - Nesse jogo, as pessoas ficam de um lado da sala. Apenas um, o pegador, fica no meio. O objetivo do time é passar para o outro lado sem que a pessoa do meio o pegue, porém existem algumas formas de você ficar imune e poder passar sem se preocupar em ser pego. O grupo diz: “Podemos atravessar o rio vermelho?”. E o pegador: “Só se tiverem a minha cor”. O grupo então pergunta: “Que cor?”. O pegador escolhe uma, e aqueles que a tiverem em algum detalhe da roupa ou do sapato podem atravessar. O restante deve tentar passar para o outro lado também, mas precisarão correr para escapar do pegador. Se for pego, o jogador se junta no meio


e recomeça o jogo de perguntas. A brincadeira acaba quando todos forem pegos ou tiverem atravessado para o outro lado. O primeiro a ser pego é o próximo pegador. Pega-Pega Bicho – É o pega-pega, porém com variações. Durante o pegar, o condutor/professor estimula as crianças, pedindo para imitarem um animal. Todos os jogadores, pegador ou fugitivo, imitam o animal solicitado, podendo imitar os barulhos dos bichos também. Podendo imitar os barulhos dos bichos também. Esse era o momento em que as crianças poderiam explorar o movimento do corpo e a criatividade, recriando animais diferentes, e muitas vezes falávamos animais os quais não eram conhecidos por eles. Ainda assim, eles teriam que imaginar como seriam esses animais. Nos surpreendíamos muito com as criações.

Siga o mestre - Neste jogo, um voluntário é retirado de sala para que o restante do grupo decida quem será o mestre, que terá que criar movimentos corporais. Chama-se o voluntário, que deverá identificar quem é a pessoa que todos estão seguindo. Massinha corporal – Em círculos, um externo e um interno, os integrantes do círculo de dentro ficarão com os olhos fechados para poderem ser “modelados”. As crianças que ficam no círculo externo modificam o corpo dos colegas, fazendo poses. Finalizado, devem procurar um espaço e farão com o seu corpo a mesma pose que fizeram no corpo do colega. Ao sinal do professor, abrirão os olhos, tendo que descobrir quem os “modelou”. Descoberto todos, trocam-se os círculos.

Brincadeiras com Corda – Essa brincadeira utiliza-se do elemento corda para ser realizada. Em uma das variações, duas pessoas seguram, uma em cada extremidade da corda, girando-a, para que um terceiro indivíduo consiga pular, esquivando da corda, quando a mesma tocar o solo, fazendo com que a corda passe sob os pés do brincante. Outras variações podem ser aplicadas: • Entrar na corda, com a mesma já em movimento; • Introduz cantigas, que sugerem ações durante o pular No segmento a seguir, será exemplificado e melhor detalhado o processo da brincadeira com corda, aplicado durante as aulas com crianças de quatro a seis anos de idade na Cena Hum Academia de Artes Cênicas.

Processo evolutivo da brincadeira com corda com crianCas de quatro a seis anos de idade Encontramos na corda uma potente ferramenta que pode auxiliar-nos na preparação cênica da criança, trabalhando, a partir dela, elementos fundamentais da arte teatral. No início do semestre optei por levar uma corda para testar como as crianças encarariam esse desafio. Para nossa surpresa, grande parte não sabia pular corda. Uma atividade que fez parte da infância de muitas pessoas nas escolas, na rua ou em casa, era desconhecida para os meus alunos.

Iniciamos um processo de ensiná-los o tempo exato para terem sucesso em pular a corda e também a forma de pular, para não gastar muita energia em cada pulo. O exercício se inicia com a criança já no local onde a corda entraria em movimento, fazendo com que elas apenas pulassem no momento exato que a corda passasse abaixo dos seus pés. No começo as crianças tinham dificuldade, uns não conseguiam saltar no tempo exato, outros tinham dificuldade de pular com as duas pernas, deixando uma no chão.

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Aos poucos, vimos que os pequenos estavam mais concentrados, buscando uma conexão entre o corpo e o ritmo da corda, pois já haviam percebido que só assim conseguiriam ter êxito no pular. Tivemos que procurar uma forma de facilitar o jogo. Passamos a avisar o momento exato que teriam que pular com um “Já”, nesse momento eles teriam que saltar. Gradativamente, íamos vendo a evolução de cada um. Repetíamos a atividade todos os dias como forma de aquecimento para outras atividades. Ao perceber que as crianças poderiam alcançar outras habilidades com a corda, passamos a aumentar a dificuldade. Propusemos que as crianças entrassem com a corda já em movimento, elas teriam que se afastar da corda, e então, nós professores, dávamos início ao movimento da corda e as crianças teriam que encontrar o momento exato de entrar na corda, sem que ela as tocasse para então poder pular.

Com relação às habilidades solicitadas neste exercício, o salto é mais solicitado que a velocidade de deslocamento e a regularidade rítmica é um componente importante, havendo, portanto, uma exigência elevada de coordenação temporal. As repetições de saltos desenvolvem a resistência e a força da criança em relação a esse movimento (FREIRE, 1991, p.90).

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Ainda analisando o desdobramento do pular corda, achamos que talvez não teríamos êxito na proposta. Porém, com nossa indicação, da mesma forma que orientávamos com um “já” no início do processo para consegui pular, insistimos nessa direção para algumas crianças que não encontravam o momento certo de entrar na corda em movimento. Algumas sabiam entrar, mas não conseguiam pular ao chegar, mas com o decorrer das aulas, sempre com orientações importantes para as crianças, não deixando que os mesmos desanimassem, observamos que - cada um no seu tempo - conseguiam ter êxito com o que foi proposto.


Com esse desdobramento do entrar com a corda em movimento, estávamos exercitando neles a tomada de atitude e o enfrentamento, pois existia neles o medo de entrar com a corda já em movimento, que foi sendo quebrado com o tempo. Assim, traçávamos um paralelo com o momento que o ator entra em cena. Foi notório, no decorrer das aulas, que, conforme a criança ia se aprimorando na atividade com a corda, sua disponibilidade e consciência corporal iam sendo exploradas. Alguns pulavam pouco, outros mostraram bastante interesse e habilidade, nos surpreendendo com a capacidade de ficar muito tempo pulando a corda. Pensando ainda nas funções trabalhadas com corda, observamos que explorávamos neles a noção de ritmo, ritmo esse ditado pelo entrar na corda e o pular. No princípio precisávamos ensinar as crianças, cada qual com seu jeito, a pular a corda. Após isso, introduzimos canções que preen-

chiam o exercício, músicas que nós professores lembrávamos da época que vivenciamos essa brincadeira. Algumas canções eram: “O homem bateu em minha porta e eu abri, senhoras e senhores põem a mão no chão. Senhoras e senhores pule de um pé só. Senhoras e senhores dê uma rodadinha e vá pro olho da rua”. “Com quantos anos, você pretende se casar? 1,2,3,4…”. “Com quem você pretende se casar? Loiro, moreno, careca, cabeludo, rei, ladrão, soldado ou capitão, mocinho bonito do meu coração”. As canções davam mais dinâmica ao exercício, e muitas vezes ditavam o ritmo que a corda era batida e que as crianças pulavam, além de incentivar as crianças, que, enquanto aguardavam sua vez, tinham que cantar junto com as demais. A própria letra as incentivava à continuarem pulando, por exemplo: “Quantos anos você tem?” As crianças queriam pular até o máximo que podiam, para, segundo a canção, poderem ter muitos anos de vida.

Propor uma variação de atividade, propiciando uma situação nova, significa provocar um desequilíbrio no conhecimento da criança, que terá que aprender, criando outros recursos, para novamente voltar a um estado de equilíbrio. A criança terá, assim, oportunidades de resolver o problema existente naquela situação, adquirindo novos conhecimentos e assimilar o conteúdo proposto (FREIRE, 1991, p.88).

Em paralelo ao pular, o objeto corda era usado por nós como ferramenta para outras brincadeiras. Com ela esticada no alto, solicitávamos às crianças que passassem por baixo da mesma, sem poder tocá-la, as crianças iam passando, e íamos abaixando a corda, aumentando a dificuldade, fazendo com que as crianças utilizassem outros meios para terem êxito ao passar.

O exercício pedia uma organização das crianças, que teriam que passar uma de cada vez, caso contrário, um poderia prejudicar o outro ao passar pela corda. Optamos por não organizar as crianças em fila, possibilitando que as crianças descobrissem essa necessidade através de tentativas, buscando dar autonomia às criações dos pequenos.

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João Batisa Freire defende que, nessa faixa etária, a condução dos exercícios se dê através de pistas para que as próprias crianças encontrem as soluções para os jogos.

Conclusao

Na brincadeira aqui proposta, o professor paciente logo verificará que as crianças não conseguirão brincar se tentarem passar todas ao mesmo tempo pela corda. Algumas procurarão passar mais vezes que as outras. Entre essas últimas haverá as que reclamarão, até que a atividade, dessa forma desordenada, torne-se inviável. As crianças ficam com duas opções: Ou criam certa organização ou não conseguem brincar (1991, p.87). Outro prolongamento do exercício era quando a corda iniciava estendida no chão e as crianças teriam que passar por cima, e assim que passavam, a corda seria colocada mais para cima, fazendo com que os alunos saltassem para poderem alcançar o outro lado da corda. Conforme a brincadeira era repetida, as crianças buscavam estratégias de aprimoramento, investigando a posição que teriam êxito. Entendiam que o deslocamento do corpo, no espaço limitado, teria

que ser contido, impedindo movimentos expansivos. A respiração também teria que ser repensada, pois quando inflavam o peito de ar, expandiam a área torácica, dificultando a passagem por baixo da corda, recorrendo a outras formas de respiração. Conforme a brincadeira era repetida, as crianças buscavam se aprimorar, aprendiam com os próprios acertos e erros, buscando a posição que poderiam ter êxito, atendendo a necessidade da altura da corda.

(…) quando acontece a tomada de consciência no sujeito, este realiza o reconhecimento e a compreensão de sua ação, em que, a constatação (conscientização) de um êxito ou fracasso o fará conhecedor de sua ação, mesmo que esta ação já esteja automatizada (PIAGET, 1978, p. 197). Em cada aula que a brincadeira com corda era aplicada, as crianças apresentavam novas descobertas corporais. Como resposta, os pais nos relatavam que, em casa, havia o interesse das crianças por dar continuidade à brincadeira com corda.

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Em minha experiência como docente da Cena Hum Academia de Artes cênicas, bem como a de pesquisador, pude constatar a eficácia do trabalho com corda, para crianças de 04 a 06 anos. Entendo que esta brincadeira desenvolve nos pequenos potencialidades buscadas pelo fazer teatral. Dando instrumentos para a construção e a conscientização de elementos do teatro, além de criar um repertório de sensações e reflexões nas crianças. Entendo que, primeiramente, deva-se pensar na brincadeira como uma ferramenta que deixará o brincante livre para se mostrar, revelar suas produções e ideias, bem como suas potencialidades. Assim, o professor/proponente conseguirá ter uma análise inicial das características do seu aluno/ brincante, proporcionando a criação de um plano de trabalho que melhor atenda a todos, observando as particularidades de cada um. A brincadeira não deve ser vista como algo não sério, relaxado ou abandonado. Ao contrário, deve-se ter atenção ao que se produz durante esse período, pois é aqui que a criança demonstrará maior espontaneidade. Entretanto ela possui caráter não sério, e é nesse momento que a criança se libertará para criação, pois está livre de mandos e regras que possivelmente um jogo pode possuir. No brincar a criança está em sua espontaneidade plena, cria e recria porque aquilo lhe soa prazeroso e divertido. Ela mesma propõe, ela mesma executa, simplifica problemas, resolvendo-os da maneira mais sutil e pura.


O jogo, análogo às regras, proporciona um aprofundamento em estruturas teatrais, ou seja, um jogo pode ser direcionado a desenvolver nos alunos noções de ritmo, por exemplo. Assim, o conteúdo do jogo está diretamente ligado a uma condução que leve ao fim proposto. Como se fosse um meio de alcançar algo, que pode ser modificado conforme a necessidade do condutor, desenvolvendo e adaptando o jogo, caso haja a necessidade de desdobramento. Pondero que o elemento corda é uma excelente ferramenta para o professor de teatro, tanto como aquecimento corporal quan-

to como método que potencializa o desenvolvimento cognitivo da criança, podendo inclusive, impulsionar a criação de uma dramaturgia inspirada nos resultados apresentados pelas brincadeiras. O professor tem diversas possibilidades de criação e desdobramento do exercício, adaptando livremente a brincadeira de corda da melhor forma que convier ao seu plano de ensino. Quebrar essa fase, onde a brincadeira acaba sendo o momento mais autêntico da criança, é podar nelas, a chance de mostrarem sua essência.

Referencias DAVIS, Claudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia da educação. São Paulo, SP: Cortez, 1991. FREIRE, João. Educação de corpo inteiro. 2. ed. São Paulo: Scipione, 1991. JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do ensino do teatro. Campinas: Papirus, 2001. KOUDELA, I.; JUNIOR, J. Léxico de pedagogia do teatro. 1. ed. São Paulo: Perspectiva. 2015 ______. Jogos teatrais.7.ed. São Paulo: Debates. 2009 KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogo, brinquedo, brincadeiras e a educação. Revista Perspectiva , Santa Catarina, 1994, n. 22 Disponível em: <https://periodicos. ufsc.br/index.php/perspectiva/ar ticle/ view/10745/10260>. Acesso em: 20/10/2015. PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978. SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo, SP: Summus, 1978. SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. 2. ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 2004. ____. Jogos teatrais na sala de aula: um manual para o professor. Tradução de Ingrid Dormien Koudela. São Paulo, SP: Perspectiva, 2007. VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

Guilherme Zanin é graduando de Licenciatura em Teatro na Faculdade de Artes do Paraná. Atua como Professor de artes e teatro, ator e coreógrafo. Álvaro Bittencourt é Mestre em Performance Teatral pela Monash University (Austrália) e Bacharel em Artes Cênicas - Fundação Teatro Guaira/PUC-PR. Foi professor do Curso de Bacharelado em Teatro da PUC/PR. É professor efetivo do Curso de Licenciatura em Teatro da Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR e conta com mais de 30 anos de atuação profissional em teatro, nas funções de ator, diretor, cenógrafo, etc.

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//POESIA

POR CAUSA DA MUDERNAGE Joilene Lima Autora

Quem conhece bem essa cidade Não pode nem imaginar Que a trinta anos atrás Nesse mundão inteiro, não tinha rua, nem o terreiro, E parecia mesmo que aqui era outro lugar. Hoje tá tudo mudado Que já nem vivo a contento... já nem acho felicidade. Onde agora você ver meio fio Já teve um fiote de rio Que o progresso interrô. Eu confesso pro sinhô, que chego até a ter saudade. Hoje eu tô aqui pra falar da diferença Que cresceu em nós igual crença Invertendo o nosso valor. Naquele tempo era diferente A coisa num era assim não No mato só tinha sossego, e não existia essa invenção... Pra começar eu quero aqui falar da tal de eletricidade Essa teia que imita a aranha Cobrindo toda a cidade. A gente aperta uma berruga Ali grudada na parede E acende uma peteca, lá nas têia, arriba da nossa rede. E antes não era assim não, antes era com candeeiro, com lampião Com cera, com pavio, com algodão. O querosene embebia, punha catinga nas mão E só com meia dúzia de alquimia É que riscava a faísca e tinia a luz que mostrava o chão. Tem também essa outra moda, que os jovens chamam de serf. Essa é a tar de invenção que eu num entendi pra quê que serve. Hoje se o sujeito vai ao mato Pra qualquer coisa inventá Antes, ele ergue o braço e faz uma serf pra mostrar.

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Ergue arriba da cara, com tanto contentamento Imita um bico de boto, aponta o zóio pra lá Aperta o pino medonho, e envia um negócio estranho que vai pro telefone do ôtro. É pro causa dessa mudernáge Que o povo num quer se sacrificar Na minha época, retrato era trêis vêis. No nascimento, no velório, e no altar. E num era feito a revelia, o pai juntava a famía Engomado, que nem pestanejava, esperando a máquina piscá. Vocês nem pode imaginar o tamanho do atrasamento Hoje tem um tanto de carro veloz Corre pra riba, corre pra baixo, feito um cavalo feroz. Antes o que se podia escutar nessa beirada de mundão Era um troc! troc! apressado, trazido pelos braços vento, Um barulho arritmado do galope do jumento ... Aipode, aifone, lepitopi nada disso ai existia Menino brincava era subindo em árvore, de se esconder, de soltar pião Corria solto de tudo, naquela situação. Mas quando ai pra cidade, aquela festa de então Ia por água abaixo, eu mesmo me encabulava Os bichim dependurava na janela de qualquer casa pro causa da televisão. Lá no mato quando menino nascia Reunia toda famía pra mode apresentar, Aquela coisa miúda, enrugada, bem curtinha, do tamanho duma pulguinha Que acabava de chegar. Era trinta dia pra abrir o ôio, e se o bichim nascia zarôio Nós num podia mais consertar. Hoje tá tudo cheio das diferença, criança já nasce de dedo erguido E num é de atrevimento. Quando o médico pega nos pé E espera que esperneia, que nem cabrito que chora fazendo ‘mééé!’ Os dedim começam a procurar Perdidos assim no ar buscando o aifonamento. E as mães que tinha o truque pra qualquer criança entreter Com os anos foi demudando. E sem ver foi arrumando outro método pro abecê. Enquanto transforma o mundo, cheia de coisas pra resolver Uma galinha azul truquêis, que canta e engana ocêis virou a iaiá da TV. Tem também os molecote, esses tal de adolescente. Naquela época vestia era gongó, era calça segurada com embirão Hoje o fío do pobre, que não tenho um só tostão. Quer ter vida de rei levando a moda nas mão.

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E o cabelo é esticadim, é mesmo de amedrontá Criado no ôco do mundo vive imitando um Neimá. Ah como tá demudado, seu doutô Se eu disser pro sinhô, o que fez a tar de tecnologia. Lá no mato, minha casa a anté minha pobre famía Tá de vida arrivirada, não tem uma só alma que essa danada num transformô. Eu juro por vossa crença que anté dizer o que pensa minha muié abandonô. E meus filhos que foi criado para me dar bença Já sai da cama com essa doença nas mão adipindurado. Eu não sou de odiar, mais meu coração se reverteu Agora num tem um fío que senta à mesa mais eu. Outro ódio que nasceu é desse tar de feicibuque, Eu não sei onde ele mora mais confesso que tem hora Que me dá uma raiva do cão que se eu pudesse por minhas mão No pescoço desse caboco eu lhe arrancava a cabeça fora. Há trinta anos atrás nesse pedaço de chão Não tinha cidade, tecnologia, eletricidade Mais a gente se via, seu doutô. A gente se via de verdade. Mas ai esses tecnologista, esse tal de aifonamento fez o acaba o amô Seja com quem for, com a muié, cum os fío, e anté cuns nossos cumpade. Quem vê essa cidade não dá nem pra imaginá. Cada um foi pro seu nim, que chego até a sentir saudade.

Joilene Lima é escritora, poeta, cordelista. Na literatura, desenvolve poemas, além de prosa e dramaturgia. Em 2014 escreveu o livro Do Azul e Eu, a ser publicado pela EDUFT. Escreveu ainda o cordel de prólogo da peça Fechado para Balanço, de Ronaldo Araújo, adaptada e dirigida por Daniela Rosante, com o título A Morte do Paraíso. Com o texto Por Causa da Mudernáge recebeu o terceiro lugar na categoria poema no Festival de Poesia Falada e o primeiro lugar como melhor esquete no Festival Jiquitaia do SESC-TO.

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//ARTIGO 18

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LA BAYADERE SOMBRE DANSE THEATRE: O ESCURO TEATRO DA DANCA Marrara Mara Zadurski Autora Marila Annibelli Velloso e Hany Lissa Orientadoras

Este trabalho partiu do desejo de compor uma dança a partir da sua articulação com a linguagem do teatro, na qual eu pudesse contar uma história, e nesse caso, recontar “La Bayadere”. Proponho agora uma experiência mais sombria composta a partir das estruturas psicológicas dos personagens na trágica história de Nikia, uma dançarina da noite que se apaixona pelo bem sucedido Solor, já comprometido com Gamzatti. O triângulo amoroso leva Solor à crise da indecisão, e na sua escolha por Gamzatti, Nikia perde a si, acabando sozinha e morta. A opção pela releitura de uma narrativa clássica do ballet de repertório se dá não somente pela dramaturgia do enredo e complexidade dos personagens, mas também pelo fato da escolha partir

de uma admiração pessoal pelos sentidos psicológicos instáveis que movem os personagens, ainda que na construção do espetáculo salte aos olhos componentes e desdobramentos de uma outra linguagem como o teatro e de elementos de cena que fazem parte da dramaturgia (cenário, adereço, sonoplastia, figurino). Durante meu percurso de aprendizado na dança, anterior à graduação, ative-me a características relacionadas à expressividade, emoção e interpretação em cena como um único modo de operar. Porém, nos quatro anos de bacharelado e licenciatura em dança compreendi que as possibilidades de expressão do corpo são infinitas quando este é visto sob uma ótica contemporânea, reconhecendo-o como um sistema de alta complexidade1.

Definição de complexidade por Jorge Albuquerque Vieira (2016): “Uma primeira visão dos parâmetros sistêmicos, carreadores da complexidade, talvez possa nos dar uma pista na definição buscada: na composição, vemos que a diversidade é um forte índice de complexidade. Se admitirmos que os parâmetros são interpenetrantes e ontologicamente partilhando iso e homomorfias, podemos ver que a noção de diversidade está presente em todos eles. Assim, na composição, diversidade na quantidade e nos tipos dos elementos constituintes do sistema aumenta a complexidade; já a conectividade é a fonte de conexões ou relações: sabemos que podemos ter complexidade no número de relações mas também na diversidade das mesmas, inclusive em seus graus de importância, algo que adiante aparecerá de maneira decisiva no conceito de integralidade. Desta grandeza, surgem a estrutura e a coesão, sendo que esta última apresenta diversidade exatamente na importância das conexões que mantêm o sistema coeso.” 1

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Nessa trajetória a curiosidade e inquietação com as características interpretativas da dança despertaramme o interesse pelo teatro, e meu fazer artístico se estabeleceu nessas duas linguagens artísticas, no intuito de pesquisar as singularidades da emoção enquanto possibilidade de criar da dança e do teatro. Sendo assim, propus ao grupo de estudos em dança contemporânea da Cena Hum Academia de Artes Cênicas, com o qual eu participava juntamente com outros bailarinos e atores profissionais, compormos juntos essa narrativa a partir da metodologia do Corpo Emocional, linha de pesquisa que vem sendo desenvolvida desde 1996 por Hany Lissa, que também é coorientadora desse trabalho de conclusão de curso.

OS MEIOS E PROCEDIMENTOS DO PROCESSO DE CRIACAO A escolha pelo método advém como consequência do meu interesse nas suas estruturas, as quais incluem elementos da dança como improvisação e contato-improviso e também do teatro, nas instâncias de construção de personagem propostas por Constantin Sergueevith Stanislavski2 (2014) importante encenador do século XX, no que diz respeito ao método das ações físicas, onde o gesto é construído e preenchido de emoção a partir da memória muscular, não para vestir o personagem de intenções, mas para que esse possua uma lógica de movimentação própria. Esta abordagem contempla desde a postura como modo de se distribuir o peso nos pés, por exemplo, até suas estruturas psicológicas. Conjuntamente a essa estrutura básica relaciona-se a análise da lógica interna do personagem a

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partir da perspectiva da psicologia Junguiana, onde estudamos os complexos, os arquétipos e os mecanismos de defesa de cada personalidade. Dessa forma, toda a dramaturgia da narrativa é construída com movimentos coreografados a partir dessas estruturas relacionadas ao método e que se desenvolvem a partir dos improvisos dos bailarinos, que são direcionados pela intenção de seus personagens. Ainda, a metodologia do Corpo Emocional é um diálogo entre a emoção e o movimento que gera problemáticas que cabe à dança investigar: potencialidades de criação em dança a partir do reconhecimento de uma questão pessoal e

da canalização e reverberação da emoção do corpo no espaço. Dessa forma o processo inicia-se com um estudo aprofundado de como operam as emoções em cada indivíduo componente do grupo e com que qualidades de movimento elas se relacionam. Com esse conhecimento o bailarino/ator compreende um novo leque de gatilhos emocionais que podem ser utilizados na construção do personagem. Conforme o entendimento de Hany Lissa, os gatilhos nada mais são do que as reações de movimento que o corpo apresenta que não são comandadas pelo padrão de movimento do bailarino/ ator e sim pelo seu inconsciente3.

Constantin Sergueevith Stanislavski (1863-1938). Segundo Jung, o inconsciente pessoal é composto de memórias esquecidas, experiências reprimidas e percepções subliminares. Jung formulou também o conceito de inconsciente coletivo, também conhecido como impessoal ou transpessoal. Seus conteúdos são universais e não-estabelecidos em nossa experiência pessoal. 2 3


Através de estratégias e técnicas, a reação é materializada no corpo e foge do padrão conhecido criando as condições necessárias para iniciar a investigação da emoção e compreender no corpo o “caminho” da emoção da sua origem até à expressão. Um processo que leva tempo, necessita de muitos testes e da observação dos novos conteúdos sem que haja resistência por parte de seu criador. Uma das estratégias para esse conhecimento chama-se “Rosa dos Ventos” – técnica de investigação psicológica do método utilizado que auxilia no reconhecimento da lógica da persona conforme estabelecido por Jung (2015). Essa estratégia inicia-se a partir de um aquecimento do corpo que passa por respirações profundas afim de voltar a atenção para si como nos exercícios de bioenergética propostos por Alexander Lowen4 (1984), autor que forma uma das bases dessa metodologia.

“A respiração é a pulsação básica (expansão e contração) de todo o corpo; portanto é a base da experiência de prazer e dor” (LOWEN, 1984, p.37).

Partindo dessa experiencia com a respiração documentamos em forma de desenho livre e por meio da escrita, uma representação de nosso próprio corpo, e em seguida traçamos sobre o desenho linhas que cruzam esse corpo formando uma rosa dos ventos.Traçada a rosa dos ventos, aleatoriamente escrevemos nas linhas palavras definidas a priori pela criadora do método: dor, prazer, inércia, movimento, conhecimento, solidão e relacionamento. Na sequência, escrevemos qualidades, texturas5 de movimento que dialogam com as palavras da rosa dos ventos, atribuindo à elas uma significação pessoal. Aqui se estabelece a primeira relação dessa metodologia com a análise de discursos imagéticos: a partir da

Alexander Lowen; criador da bioenergética (1910-2008). 5 Conforme as discussões com a criadora do método Hany Lissa durante esse processo de criação entendeu-se que as texturas de movimento são classificações qualitativas como: peso, tamanho, velocidade, forma, direção e outros. As características estudadas, segundo ela, não vieram de divagações teóricas, e sim da observação apurada dos corpos de alunos e bailarinos que participaram do processo nos quinze anos de estruturação de seu método. Os corpos criando movimentos, motivados por emoções e outras sugestões, deram aos observadores qualidades infinitas. Nesse percurso foram Hany e sua colaboradora Sharon Morgenstern criaram uma tabela e a cada característica denominaram como textura pesquisando os opostos: grande e pequeno, suave e denso, contido e expansivo entre outros. Cada bailarino acaba reconhecendo as características que são familiares para seu corpo, e são estimulados a dominá-las. Porém, o trabalho realmente interessante ocorre em estimular a apreciação das texturas que são estranhas ao corpo do bailarino. O resultado que ela e Sharon Morgenstern mais apreciaram durante esta pesquisa é a contínua criação de repertório. Um repertório criado pela experiência do corpo, com o desenvolvimento de uma consciência desperta que observa o processo da criação, melhorando a memorização e a recuperação da mesma pelo intérprete-criador. 4

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investigação e análise do desenho e da escrita, o grupo propõe para cada integrante uma combinação de emoção com alguma textura que será testada em improviso; e para engatilhar a emoção, formulamos alguma questão observada no desenho da pessoa. Nessa experimentação evidenciam-se aspectos corporais como padrões de movimento do bailarino ou ator e padrões psíquicos que emergem do inconsciente quando o mesmo entra no processo de sublimação6 da emoção no corpo, e, provocados pela inclusão da textura de movimento na improvisação, acabam por descobrir novos padrões, inaugurando ou transformando possibilidades de movimento. Em um outro momento mais desenvolvido do processo, começamos a pensar no improviso enquanto cena, complexificando as lógicas utilizadas para que, a partir destas, criem-se dramaturgias. O pensamento de dramaturgia que sustenta tanto o método quanto a linha de criação da releitura de La Bayadere está atrelada a encenadores e dramaturgos do teatro, com destaque para Stanislavski e Eugenio Barba. Segundo Barba (2010), é necessário que o ator/bailarino crie, na construção de um trabalho cênico, três dramaturgias: a orgânica, a evocativa e a narrativa. A dramaturgia orgânica está relacionada com a cinestesia, com a experiência sensorial e às primeiras organizações do discurso imagético que o corpo apresenta no improviso. A dramaturgia narrativa contextualiza os acontecimentos da improvisação e a partir dela já pode-se começar a criar figurinos e elementos que compõem a cena, propondo perguntas para o próprio tema levantado na dramaturgia orgânica. E a dramaturgia evocativa caracteriza-se por cumprir a função de experiência entre quem vê a cena e quem a faz. Ela permite que se viva mudanças de estado corporal e está diretamente ligada ao criador.

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Para nós, durante o processo, foi de extrema importância a permanência em cada uma delas, pois o processo de criação a partir do corpo emocional possui uma abordagem somática no que diz respeito à uma compreensão da unidade psico-corporal de um indivíduo, e necessita de tempo para desenvolvê-la, pois exige uma percepção e noção mais refinada de espacialidade do corpo e de seus padrões de movimento.

PROCESSO CRIATIVO, RELEITURA E CONSTRUCAO COLETIVA Começamos à estudar o enredo do La Bayadere e suas inúmeras montagens gravadas ao longo dos seus 138 anos de vida, percebendo o que se alterava de uma obra para a outra ainda que a narrativa e personagens permanecessem os mesmos. Através dos mecanimos metodológicos do corpo emocional pudemos testar em improviso a ideia que tinhamos em relação aos personagens. Esse primeiro contato se dá de forma mais superficial e tem a ver somente com uma idéia primária da personagem. Todos os integrantes do grupo testaram-se

nos personagens da obra: Solor, Gamzatti, Brâmane, bailarinas do templo, Rajah e Nikia. Em uma distribuição de personagens é natural que os artistas se identifiquem mais com um personagem ou outro, porém, optamos por fazer da escolha um desafio para o grupo, designando personagens com caracteristicas de estruturas pscológicas diferentes do bailarino/ator. Levando também em consideração as habilidades em dança mais desenvolvidas; confiando os personagens protagonistas para os bailarinos mais experientes e maduros.

Na psicologia e psicanálise, sublimação foi um termo introduzido por Sigmund Freud (GARCIA -ROZA, 1985) que designa um mecanismo de defesa do “eu”, em que determinados impulsos inconscientes são integrados na personalidade e culminam em atitudes com valor social positivo. Com efeito, as realizações artísticas, segundo Freud, não são uma simples projeção do artista, mas configuram-se em um esboço de solução dos conflitos psíquicos. Desta forma, as obras de arte ajudam a compreensão do conceito psicanalítico da sublimação: a capacidade de liberar energias que estavam investidas em figuras arcaicas para serem investidas em novas figuras. Mediante a sublimação, portanto, o desejo é transformado em ideal sublime. 6


Assim se deu a escolha do bailarino profissional Ricardo Padovani para fazer Solor, personagem que ao nosso olhar é o gerador de conflitos do enredo devido à sua crise pessoal, manifestada por sua indecisão entre quem ele é com Nikia e quem é com Gamzatti. Foi na percepção dos desejos de Solor que baseamos a releitura. Encontramos a junção com a obra original no que movia esse personagem, nos encontros que teria e, a partir disso, decisões que teria de tomar. Como na obra original, o relacionamento de Solor com Gamzatti, interpretada pela bailarina profissional Sharon Morgenstern, é baseado em uma satisfação de poder social, de status, e no relacionamento com Nikia uma intensidade emocional elevada, livre da sustentação das aparências de perfeição e felicidade. Foi nessas junções escorregadias com as estruturas psicológicas dos personagens sob uma visão crítica do entorno aqui e agora que relemos essa história. Os conceitos discutidos por Katia Canton (2009) sobre narrativas enviesadas nos deu estofo para selecionar e compor uma história no aqui e agora pensando em outros modos de reconfigurar os personagens e visando inverter a lógica da versão original. Buscamos um entendimento sombrio da obra, referindo-nos ao arquétipo7 que é nosso ego8 mais sombrio, a parte animalesca da personalidade humana. É na sombra que estão todas as atividades e desejos considerados imorais e violentos e que coexistem com as emoções profundas, a espontaneidade.

Desde então compreendemos que seria essa nossa face escurecida de La Bayadere, uma dança que se alimenta do teatro e nos remete a sociedade, pois que ela, como arte, também possa se tornar política, discutindo de que maneira as questões internas reverberam no desejo de poder e consequentemente reafirmam suas estruturas cristalizadas.

Parece-me que está justamente nas junções escorregadias e instáveis o que chamo de narrativas enviesadas, em que os artistas escapam dessa tendência fascista do texto e da obra. Sabotam, subvertem, quebram as possibilidades de um sentido narrativo único. Desestabilizam nossas compreensões da vida e injetam sutilezas, incertezas, sons que se recombinam e formam camadas, ainda que se estranhem mutuamente. (CANTON, 2009, p.90) A definição da narrativa aconteceu quando fomos subvertendo a história original para o tempo presente, de maneira não linear. No lugar do começo/meio/fim tradicionais, compusemos a partir de tempos fragmentados, sobreposições, repetições, deslocamentos, porém, não necessariamente resolvendo a própria trama. A começar pela inversão do protagonismo de Nikia por Solor por entender que é a partir dele que o conflito é gerado na trama, porém não afim de julga-lo, como acontece no ballet, e sim de humanizar seu conflito entre os dois relacionamentos. Ainda assim, a escolha de Solor por Gamzatti culmina na morte de Nikia, morte essa no sentido de que Nikia, por enlouquecer, perde sua conexão com as relações que tinha,

sendo rejeitada por seu amor e trabalho, ficando à margem social. A face sombria e misteriosa do La Bayadere no ballet romântico foi expressada com o cumprimento da profecia da bailarina do templo e com seu retorno para buscar Solor após sua morte. Porém, nessa montagem, subvertemos essa sombra para os estados psicológicos que perturbam e conduzem os personagens em suas ações focando nos complexos mecanismos de defesa da psique. “Como posso ser substancial sem dispor de uma sombra? Eu também preciso ter um lado escuro, se quiser ser inteiro; e, tornando-me consciente de minha sombra, lembro-me, novamente, que sou um ser humano como qualquer outro.” (JUNG, 2015).

O ego é a instância psíquica identificada por Sigmund Freud, em 1923, correspondente ao princípio da realidade. Além desta camada, a mente conta também com o id, relacionado ao princípio do prazer, e com um censor implacável, o superego. Este centro da consciência ainda inferior, contraposto ao núcleo da consciência superior, o Eu, tem como principal função manter o equilíbrio mental. 8 Na psicologia analítica, criada por Carl Gustav Jung, este conceito se refere às imagens primitivas inseridas no inconsciente coletivo desde os primórdios do ser humano. São moldes inerentes ao ser desde o princípio da existência, os quais têm a função de atuar como fonte primordial para o amadurecimento da mente. 7

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Na contramão do romantismo do ballet, contextualizamos Nikia no tempo presente, dançando e prostituíndo-se em uma boate, juntamente com outras duas mulheres, interpretadas pela bailarina Fernanda Milani e pela atriz/bailarina Luisa Buselin. Todas essas personagens são submissas ao Brâmane (interpretado pelo ator profissional Pedro Latro) subvertido de sacerdote do templo para cafetão, ele exerce um poder comercial sobre as prostitutas e utiliza-se dele para satisfazer seus desejos pessoais. Assim surgiram indagações políticas em torno da personagem Nikia (interpretada por mim), que na versão original é uma bailarina do templo hindú, onde a dança é representada como um ofício para servir a sociedade e que possui uma certa magia. Em nossas pesquisas da organização hieráquica dessa sociedade descobrimos que as bailarinas do templo, na verdade, são prostituídas, mulheres que servem sexualmente os homens dessa casta religiosa em troca de uma espécie de proteção, uma moradia nesse templo. Obviamente que no ballet essa realidade foi romantizada e toda a sociedade hindú é colocada como fonte de inspiração e exotismo, típicas desse período artístico da dança/arte no qual existia uma intenção de alienar-se das tragédias constantes da guerra. Nesse momento tínhamos todos os personagens definidos e retiramos do enredo o personagem do rei Rajah, pai de Gamzatti, pois este já está sub-entendido nas camadas da relação entre Gamzatti e Solor. A partir da construção dessas circunstâncias enviesadas nós começamos o processo de construção da personagem, compreendendo seus arcos emocionais nas relações e dialogando os gatilhos da emoção dos bailarinos e atores com as necessidades da cena.

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Começamos a resgatar texturas já anteriormente relacionadas com as sensações que geraram o reconhecimento do caminho da emoção no corpo e as colocamos em teste dentro da situação das personagens. Dessa forma, pudemos reconhecer novos padrões de movimento nos bailarinos/atores que surgiam da criação da estrutura pscológica de quem estávamos interpretanto, como por exemplo, a movimentação em nível alto, desenhada com ângulos e fragmen-

tações que a bailarina Sharon desenvolveu durante o processo para a personagem Gamzatti, e que é oposta ao seu padrão de movimento anterior que se utilizava muito mais do fluxo e do chão para compor dança. Isso se deu de diferentes formas com cada pessoa do elenco e a observação e diálogo do grupo foi essencial para que pudessemos reafirmar essas descobertas enquanto caminho de composição. É importante ressaltar que primeiramente trabalhamos com a


trilha sonora original do ballet, e somente depois de definir o fio condutor da nossa trama é que dialogamos com um sonoplasta pesquisador das músicas. A composição dos outros elementos de cena que farão parte do trabalho, como a iluminação e o figurino, começarão junto com a próxima etapa que é desenvolver os personagens em relação, dando sentido à narrativa. Com isso, temos a intenção de que eles corroborem com a cena, de modo a dar relevo

ao movimento e ao espaço nessa construção de personagem em que estreitaram-se as fronteiras entre atuação e dança no entendimento do movimento também como gesto, gerando possiblidades potencializadas de fruição (por parte do público) do estado interior do personagem e o subliminar das relações. Quando começamos os improvisos dos personagens em relação (duetos e trios) iniciamos com as informações que o ballet já nos

dava, como por exemplo: o encontro de enfrentamento de Nikia com Gamzatti, a promessa de Solor com Nikia, as dançarinas do templo... E fomos testando a nova sonoplastia prosposta por Guto Teixeira, colaborador musical do grupo. A medida que fomos aprofundando os acontecimentos da trama nesses testes, os bailarinos/atores propõem movimentações que partem da sua construção própria do personagem, tornando suas intenções mais claras. Isso se dá devido à troca do improviso. Nessa dinâmica, quem não está dançando está assistindo, e logo em seguida todos discutimos o que seria relevante manter/descartar/investir na futura cena. Todo o projeto baseiase nessa criação colaborativa, que também contou com a colaboração do professor de interpretação George Sada nos ensaios das cenas que são somente atuadas. Acredito que esse tipo de processo de criação seja o mais válido para a pesquisa, pois ele rompe fronteiras quando quebra os espaços privativos de criação na construção do espetáculo. As razões para essa escolha são práticas e não tem a ver com discursos igualitários; trabalhamos com a construção de uma persona a partir do material único e humano de cada integrante do grupo que improvisa e o joga com seu parceiro de cena todo o tempo. O jogo permite que as cenas se construam nesses momentos, modificando-se a cada vez dançada, a cada discussão em suas micro e macro estruturas. Dessa forma, pudemos organizar o material criado que, nessa narrativa enviesada, é o tempo todo atravessado com as questões que nos impelem sobre o tema do poder de decisão, relacionamento, e do oficio da dança relacionado com a prostituição, suas reverberações na sociedade atualmente.

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Consideracoes finais Criar uma releitura de um ballet de repertório em um grupo de estudos de dança contemporânea enquanto proposta para testar meus aprendizados de composição em dança, que vivenciei durante minha graduação, foi um desafio que se deu desde o momento da constituição do elenco. Ao propor uma narrativa enviesada de um clássico de repertório, que vem sendo reproduzido por mais de 100 anos, valoriza-se uma herança histórica ao mesmo tempo em que atualizam-se parâmetros de composição. Articulando mecanismos e lógicas da dança e do teatro por meio do método Corpo Emocional, foi possível abranger os aspectos mencionados neste memorial quanto a isso e que permitem o reconhecimento de similaridades e diferenças entre estas linguagens artísticas. Parece-me que, quando emprestamos elementos do teatro para construir um personagem da dança salta aos olhos a diferença que existe do uso da emoção para a interpretação nas duas linguagens: no teatro a emoção é utilizada para expressar um novo ser que parte do criador, e, suponho, baseado nessa experiência que na dança essa composição emocional em cena assemelha-se mais com uma expressão de si mesmo enquanto artista, não havendo um distanciamento entre personagem e bailarino. Nesse sentido, a pesquisa tentou apropriar-se dessa diferença para refletir o fazer da dança contemporânea que investiga as problemáticas da relação entre linguagens, entre obras cristalizadas no passado e suas reverberações no aqui e agora.

Dessa forma temos a oportunidade de produzir conhecimento saudando nossa história e levantando questões dramatúrgicas, contextuais e psicológicas do enredo e dos personagens afim de leva-lo para a cena, revelando esse trânsito continuo da relação entre dança e teatro presente em seus interpretes que descobrem os desdobramentos de suas linguagens artísticas enquanto potência. Com relação a isto, está sendo relevante o estudo e a aproximação com obras já existentes de coreógrafos como de Pina Bausch e de Mats Ek com destaque para suas releituras de “Giselle”, “Swan Lake” e “Carmen”. O estudo dos parâmetros compositivos que esses artistas desenvolveram durante suas vidas despertam em mim o desejo de refinamento do trabalho daqui em diante. Mats Ek é uma inspiração também por adaptar algumas de suas obras para o audiovisual, explorando as possibilidades de mais um desdobramento da arte da interpretação. Trabalhar com o vídeo dentro dessa mesma pesquisa e espetáculo será a continuidade dessa releitura de La Bayadere, visto o interesse que tenho em manter o projeto ativo, aprofundando-o. Ainda distante de uma conclusão para esse recorte de estudo aproveito para citar Eugênio Barba, autor de grande importância para essa pesquisa até o momento presente e com certeza nos caminhos futuros:

A arte pode ser um lugar onde vale a pena viver por muito tempo porque nos permite continuar na ponta dos pés. É a tensão para nos debruçarmos além dos limites: o limite entre o presente da representação e o passado da história representada, entre intenção e a ação, entre o autor e o espectador, entre nós e nossa sombra. (BARBA, 2010, p.23). Existem sombras que nos cegam. E existem sombras que nos trazem conhecimento. As sombras de La Bayadere me levam, ainda não sei onde.

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Marrara Mara é graduanda do curso de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR/Campus II. marrara.mara@gmail.com

Referencias ABREU, Luis Alberto. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação. 2004. Disponível em: <http:// www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia/ FreeComponent9545content77392.shtml>. Acesso em: 14 fev. 2016. BARBA, Eugênio. A canoa de papel. São Paulo: Hucitec,1994. _____. Teatro, solidão, ofício e revolta. Brasília: Teatro Caledoscópio, 2010. BERTHERAT, Thérèse. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São Paulo: WMF; Martins Fontes, 2010. CANTON, Katia. Narrativas enviesadas. São Paulo: Martins Fontes, 2009. FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: repetição e transformação. São Paulo: Hucitec, 2000. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. GREBLER, Maria Albertina Silva. Coreografias de Pina Baush e Maguy Marin: a teatralidade como fundamento de uma dança contemporânea. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cenicas, UFBA, Salvador, 2006. GREINER, Cristine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. JUNG, Carl Gustav. O livro vermelho. Petrópolis,RJ: Vozes, 2015.

LARA, Luciana. Arqueologia de um processo criativo: um livro coreográfico – Brasília: Anti Status Quo Companhia de Dança, 2010. LOWEN, Alexander. Prazer: uma abordagem criativa da vida. São Paulo: Summus, 1984. NUNES, Sandra Meyer. As metáforas do corpo em cena. São Paulo: Annablume/ UDESC, 2009. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. 31.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Complexidade e conhecimento científico. Disponivel em: http://www.unicamp.br/fea/ortega/ NEO/JorgeVieira-Complexidade-Conhecimento.pdf. Acesso em: 10, fev. 2016. XAVIER, Jussara. Dança contemporânea: uma experiência da teatralidade. Curitiba: FAP, 2010. YOUTUBE. Minkus La Bayadere Aurelie Dupont 2012. Vídeo (2hrs). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cAtqniaizjY>. Acesso em: 10 maio 2015. YOUTUBE. Complete - La Bayadere - Kirov (Mariinsky) Ballet. Vídeo (2hrs). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=QxUiUVt6QNg>. Acesso em: 15 maio 2015. YOUTUBE. La Bayadere (1992) Rudolf Nureyev - Opera National De París. Vídeo (2hrs). Disponivel em: <https://www.youtube.com/watch?v=O1f9Bvks-OE>. Acesso em: 20 maio 2015.

Marila Velloso é doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2011); Professora, Practitioner e Somatic Movement Educator of Body-Mind Centering® (EUA e Germany); Mestre em Comunicação e Semiótica/PUC-SP (2005); Especia- lista em Consciência Corporal/Dança/ Faculdade de Artes do Paraná; Licenciada e Bacharel em Dança/PUC-PR; Formada pela Escola de Danças Clássicas do Teatro Guaíra/1983. Fez inúmeros cursos de dança e criação no Brasil, EUA e Europa. Hany Lissa é psicóloga clínica, arte terapeuta, professora de dança contemporânea, ballet clássico, sapateado americano e dança musical, pesquisadora, coreógrafa e dramatúrgica do corpo. Professora de corpo e dança na Academia de Artes Cênicas Cena Hum. Produtora Cultural, Coreógrafa, Professora de Dança e Bailarina Profissional. Experiência na elaboração de cursos de formação para profissionais da dança e do desenvolvimento corporal, com extensa prática pedagógica e experiência na orientação de professores de dança e arte terapeutas em diferentes atuações.

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// BATE-PAPO

DIALOGOS COM A CIA CHORDATA Transcrição de bate-papo após apresentação do espetáculo AREIA da Cia Chordata, que estreou no primeiro semestre de 2016 no Teatro Cena Hum. A Chordata é composta por José Lucas Ribeiro, Juliane Rosa e Renato Cordeiro. AREIA nos transporta para um vasto deserto cheio de mistérios e surpresas. No decorrer da jornada, a curiosidade, o medo, a busca, os ensinamentos e o aprendizado são ferramentas preparatórias para a vida dessas criaturas do deserto, que aprenderam a viver e sobreviver com o objetivo de ensinar às próximas gerações. Esse legado da sobrevivência cabe agora ao aprendizado do mais novo do grupo, que deve aprender o que os mais velhos já sabem. Os mais velhos estão colocando-o em treino e aos poucos ele descobrirá que o deserto tem mais a mostrar do que se pode imaginar. AREIA, um espetáculo criativo, sensível e poético, que não utiliza da palavra literalmente, mas traz em seu gestual toda a essência do que é a vida.

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Como se formou a companhia e por que o nome Chordata? Nós (José, Juliane e Renato) nos conhecemos na Cena Hum Academia de Artes Cênicas, enquanto alunos. Com o tempo surgiram afinidades, tanto pessoais quanto profissionais entre nós e também com relação ao Célio Savi, que foi nosso primeiro professor na instituição e se manteve presente desde então. Houve uma primeira tentativa de formar uma companhia, juntamente com outras pessoas, porém a diferença de objetivos e linguagens fez com que a tentativa falhasse. Depois de um tempo, o Célio nos propôs um projeto, nós aceitamos e assim surgiu a ideia de criar a companhia Chordata apenas entre nós três. O nome Chordata vem do Latim, significa corda. O que torna uma corda forte é a união de suas fibras. Nós nos consideramos um grupo unido e que trabalha muito para que tudo dê certo em nossos projetos, e acreditamos que se um de nós não se dedicar, não faremos um bom trabalho. Dependemos um do outro e confiamos um no outro. O que motivou vocês a fazer o espetáculo AREIA e qual o resultado pretendido? O Célio nos trouxe a proposta de um projeto baseado no clown russo e disse que gostaria que o espetáculo se passasse no deserto. Pensamos em criar um espetáculo que tocasse as pessoas, que não tivesse apenas uma finalidade comercial. Que refletisse a beleza e a poesia do trabalho do clown russo, através do nosso olhar, de uma forma simples e honesta. Como funcionou o processo de criação deste espetáculo e porque escolheram o teatro gestual? Começamos a fazer pesquisas sobre animais e povos do deserto e estudamos principalmente sobre o palhaço russo Slava Polunin, a companhia francesa Philippe Genty e a companhia franco-brasileira Dos à Deux, dentre várias outras. Trouxemos para nossos ensaios conhecimentos adquiridos por cada um

em workshops dos quais participamos, bem como durante o tempo em que estudamos na Cena Hum, ensinando uns aos outros; e fizemos vários exercícios de improviso para criar um repertório de ideias. Cada um trazia cenas ou imagens pensadas e propunha aos outros, e, com a orientação do diretor, desenvolvemos as cenas aos poucos. A escolha do teatro gestual, para este espetáculo especificamente, foi porque gostaríamos de atingir um público maior, não tendo a barreira da língua, pois podemos apresentar o AREIA em outro país ou para a comunidade surda, por exemplo. Além de ter sido um desafio, pois nunca havíamos realizado um trabalho como este.

objeto. Em relação ao cenário, a ideia era transformar o palco em um deserto, pesquisamos materiais que pudessem trazer essa ideia. Em relação ao figurino, trouxemos algumas túnicas para os ensaios e fomos adaptando conforme as necessidades de movimentação e composição das personagens. Confeccionamos túnicas próprias para ensaiar e depois da escolha da paleta de cores do espetáculo e de testar vários tecidos na luz do teatro, confeccionamos os figurinos usados em cena. Com relação às máscaras, fizemos moldes de nossos rostos e a partir da construção de cada personagem fomos moldando as expressões e testando em cena, na luz e na composição com o figurino.

Como a foi a concepção e execução de cenário, adereços e figurinos? Os adereços, figurinos e cenário do espetáculo foram confeccionados por nós mesmos, e naquilo que não tínhamos domínio de como fazer, buscamos a instrução de amigos profissionais nas áreas, ex-professores e muitas vezes, tentávamos juntos descobrir formas de solucionar essas questões. Buscamos materiais que estivessem dentro do nosso orçamento, mas que fossem de boa qualidade e trouxessem o resultado que queríamos. Com relação aos adereços, foi a partir das necessidades que surgiram durante as improvisações em sala de ensaio, onde distribuíamos vários objetos pela sala e experimentávamos diferentes utilidades para um mesmo

Vocês seguem alguma linha de trabalho específica dentro do teatro? Por sermos uma companhia ainda muito jovem, preferimos não definir uma linguagem ainda. Porém, uma das questões que nos levou a nos unir e formar a Chordata, foi o interesse que nós três temos em fazer espetáculos de uma forma poética, procurando provocar sensações, pensamentos e ideias de forma singular em cada pessoa que nos assista, não apenas com uma preocupação estética, mas tentando cuidar dos detalhes e tudo que possa levar emoção, independente da linha.

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Quais foram os desafios de fazer um projeto independente? Conciliar custo e qualidade foi o principal desafio. Nós não contratamos costureira nem cenotécnico, tudo foi feito por nós, mas ainda assim havia o custo dos materiais necessários para a produção. Inicialmente investimos do nosso dinheiro no espetáculo e conforme o andamento do projeto, buscamos patrocínios, ouvimos muitos nãos e alguns sins, que foram essenciais para a realização do AREIA. Vocês têm outros projetos em vista? Ainda não temos nada definido. Estamos em processo de pesquisa, mas já decidimos que nosso próximo espetáculo terá o uso da palavra. Ao mesmo tempo em que estamos pesquisando

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um novo espetáculo, queremos dar continuidade ao projeto AREIA, participando de festivais e mostras de teatro nacionais e internacionais. Qual a expectativa de vocês enquanto companhia, tendo em vista a situação da arte em nosso país hoje? Fazer teatro em nosso país sempre foi difícil. Diante do quadro político em que estamos vivendo atualmente, acreditamos que a arte – em todas as suas ramificações – continuará sendo colocada em segundo plano como há muito vem sendo feito. O teatro, assim como qualquer forma de arte, só será potencializado quando a cultura for vista com importância pelos nossos governantes e pela sociedade em geral. E cabe a nós, continuar lutando


para que isso seja possível. Fazer arte por conta própria, com ou sem ajuda das poucas leis de incentivo existentes e, mesmo assim, com qualidade. Como foi a experiência de vocês enquanto artistas nesse processo? Diante de um processo intenso, construir uma peça sem o uso da palavra foi instigante. Tivemos que expandir nossas referências artísticas e técnicas, e mesmo assim buscar uma originalidade nesse fazer teatral. Esse processo nos fez compreender um novo meio de conduzir a plateia de modo lúdico e poético, nesse universo que propomos com o espetáculo. AREIA nos trouxe de forma provocativa, uma percepção do corpo e da sensibilidade dos movimentos, necessitando extremamente da presença do ator.

José Lucas Ribeiro é ator, cenógrafo, aderecista e operador de som, formouse na Cena Hum Academia de Artes Cênicas, no Curso de Formação de Atores 2013-2015. Juliane Rosa é atriz, diretora de produção, operadora de luz, cenotécnica, contrarregra, figurinista e aderecista. Formou-se na Cena Hum Academia de Artes Cênicas, no Curso de Formação de Atores 2013- 2015. Renato Cordeiro é ator e diretor de produção. Formou-se na Cena Hum Academia de Artes Cênicas, no Curso Técnico de Atores 2013- 2015.

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//ARTIGO

DO ATOR, DOS CORPOS: UMA INTRODUCAO A PROCESSOS COMUNICATIVOS E CRIATIVOS Wagner Miranda Dias Autor

Fui, em verdade, um grande ator, mas também um hipócrita. Meus deuses, meus mercadores e meus pobres não eram mais que pedaços de minha alma endurecida. Téspis de Ática

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Aristósteles nos conta que, em torno de 530 A.C., numa competição que elegia a melhor tragédia, na cidade de Atenas, um homem chamado Téspis de Ática, propôs uma inovação ao gênero, destacando-se do coro, tornando-se seu “respondedor”, assumindo um personagem fictício (hypócrites), saindo-se vencedor. O filósofo, ao narrar esse fato para a posteridade, documenta o surgimento do primeiro ator conhecido no mundo ocidental. Antes disso, não há registro de protagonismo e, consequentemente, diálogo, conflitos e outras dinâmicas que caracterizaram durante os dois mil e quinhentos anos subsequentes, o fenômeno teatral (BRANDÃO, 1992). O surgimento do primeiro ator põe em evidência características de sua origem que, especialmente, nos interessam nessa reflexão. O teatro em suas origens, até a peripécia de Téspis, era estruturado em voz única, coletiva e inseparável. Não havia personagem como os conhecemos hoje. Antes, na tragédia primitiva, o corpo era elaboração coletiva que evidenciava sua origem nos rituais religiosos dionisíacos. A dicotomia imposta inicialmente à cena, ao se destacar um interlocutor do coro, imediatamente transformou-se em politomia, se multiplicou em várias vozes, corpos, propondo variedade de formas, inaugurando uma arte que, em essência e modos de criação, desde então, caminha em busca do (des)equilíbrio entre corpo/ memória coletiva e individual. A interdisciplinaridade, que caracteriza a pesquisa acerca do corpo no contemporâneo, convoca uma abordagem de mundo onde a instabilidade, mudanças e transformações solicitam novos modos de compreensão dos fenômenos sociais, psíquicos, políticos, artísticos, comunicacionais, etc. Na proposição de um olhar sobre o ator de hoje - em que corpo em performance se manifesta como memória/instrumento de ligação e transformação entre o escrito e/ou ideia e o oral - o estudo da obra de Paul Zumthor é de extrema relevância:

Pelo menos, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a remanejar (ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance, encontraremos sempre aí um elemento irredutível, a ideia de presença de um corpo. Recorrer a noção de performance implica a necessidade de reintroduzir a consideração do corpo no estudo da obra. Ora, o corpo (que existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico) é da ordem do indivisivelmente pessoal. A noção de performance (quando os elementos se cristalizam em torno da lembrança de uma presença) perde toda pertinência desde que a façamos abarcar outra coisa que não o comprometimento empírico, agora e neste momento, da integridade de um ser particular numa situação dada. (ZUMTHOR, 2000, p. 45-46). O objeto produtor de imagens do ator é o seu corpo a priori. Não existe teatro que prescinda do ator criando imagens ao vivo. Assim como não existe teatro sem o espectador. O ator, pela natureza intrinsecamente visual de seu ofício, une na autoria de sua arte a criação de um universo imagético gerado por e em seu corpo, buscando estabelecer vínculos com o coletivo de criação e com o público. Nesse processo, a memória age como amálgama entre experiências individuais e coletivas, formando uma intrincada e delicada rede que baseará a forma espetacular.

Para que um aspecto desta percepção fique na memória é necessário que o estímulo tenha uma certa intensidade. É disso que falávamos, quando ressaltamos a coleta sensível que o artista faz ao longo do processo, recolhendo aquilo que, sob algum aspecto, o atrai. São seus modos de se apropriar do mundo. Essa sensação é intensa, mas fugaz; e, mais que isso, é, muitas vezes, responsável pela construção de imagens geradoras de descobertas, que não se limitam ao campo da visualidade (SALLES, 2006, p. 68). Essa qualidade próxima à vida, paradoxalmente, permite que o ator, por vezes, se expresse fisicamente com imagens que não replicam o real, mas o reinventam, o recriam, gerando possibilidades infinitas de interação e de interpretação pelo público, indo além da transmissão unilateral de uma mensagem, ideia ou comunicação, mas gerando trocas, onde ator e público se influenciam mutuamente na elaboração de significados/memória da obra.

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O teatro deve propor uma experiência de vivência comunicativa, uma experiência de comunicação dinâmica – memória, corpo e voz presentificados em performance. Jerusa Pires Ferreira, em seu ensaio sobre Iúri Lotman, Cultura e Memória, nos dá uma pista acerca do possível alcance dessas relações.

Parece que, procurando romper o esquema diático em que muitas vezes se deixa aprisionar, consegue ver no processo de criação, dentro de uma cultura, uma reserva de dinamismos. Afirma que o texto de cultura [...] tem a capacidade de acumulação e reserva de memória, conseguindo exemplificar de modo primoroso: hoje Hamlet, diz ele, não é apenas uma peça de Shakespeare mas é a memória de todas as suas interpretações e, ainda mais, a memória de todos os eventos históricos que ocorreram fora do texto mas cujas associações à peça de Shakespeare pode evocar (FERREIRA, 2003, p. 82-83). Os modos de criação do ator contemporâneo propõem uso de memória (física e emocional - individual e coletiva) na elaboração de um corpo em performance que lança luz em complexos processos de comunicação, importantes para estudos da cultura. Os trajetos de elaboração do espetáculo lançam mão da memória como um elemento protagonista em sua estruturação, e eles são definidores das formas (imagens, texto) que o corpo apresentará. Inexoravelmente a memória será elemento motriz da criação no teatro, podendo ser manifestar em várias intensidades, lugares e modos. Stanislavski, por exemplo, preconizava a memória como parte essencial na construção do personagem.

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Mais ainda, certas pessoas, principalmente os artistas, são capazes de recordar e reproduzir não só coisas que viram e ouviram na vida real como, também, nas suas imaginações, coisas não vistas nem ouvidas. Os atores do tipo que têm memória visual gostam de ver o que se quer deles e então as suas emoções reagem com facilidade. Outros acham muito preferível ouvir o som da voz, ou a entonação da pessoa que devem interpretar. Com eles, o primeiro impulso para o sentimento vem de suas memórias auditivas (STANISLAVSKI, 2014, p. 209). Mas entendemos que a memória certamente pode ir além de seu uso como lembrança ou observação na construção da cena, pois aliada naturalmente à percepção proporá a partir de um acionamento dos sentidos, a possibilidade de uma interação intersemiótica ativa e criativa. A memória pode se materializar concretamente enquanto existência física e fisicalidade do e no corpo, criando imagens.

Abordando outro aspecto da relação percepção e memória do processo criativo, Jean-Yves e Marc Tadié (1999) falam da diversidade de linguagens que envolvem as transformações, operadas tanto pela percepção como pela memória. Os autores associam memória com imagens e ressaltam que a lembrança raramente é somente visual ou olfativa ou auditiva: “Quando evoco a lembrança do mar eu o vejo, o sinto e até o escuto.” (SALLES, 2006, p. 82).


O fato é que a memória, utilizada no teatro em suas várias possibilidades, e o corpo em performance tem a possibilidade de criar imagens e significados poderosos. No entanto, a complexidade das imagens criadas está em possuírem poder de comunicação direto, mas, ainda assim, aberto. Essa abertura coloca-se na possibilidade, sempre presente no teatro, do corpo/memória do espectador se tornar parte integrante da obra, influenciando-a e, também, “atuando” sobre o corpo/memória do ator e, ainda, da forma espetacular.

O texto cênico, e, portanto, o próprio processo de criação artística, não está circunscrito no ato do autor, mas se faz e refaz processualmente, alcançando todas as etapas de proposição e de leitura: a relação do artista com o mundo, os atos de seleção e combinação empreendidos, os processos de formação de sentido que acontecem na elaboração do espectador, e mesmo a experiência estética que se origina de seu caráter de acontecimento (DESGRANGES, 2012, p. 30). O ator, corpo dinâmico produtor de imagens, pode vir a gerar exponencialmente significados, experiências e conhecimento em confronto com a forma espetacular e com o espectador. Sua relação corpo/memória pode alterar-se pela presença de um texto/ideia tornado fala, som, ação, movimento e pelo embate com o público, em constante possibilidade criativa de originar imagens, significados e trocas e, consequentemente, mais memórias. O teatro contemporâneo apresenta um ator que não nega a vida, incorpora acasos, é movimento, “respira”, gera tensões, estados e significados e propõe estruturas importantes ao estudo da cultura visual e da comunicação.

O ator que não refaz duas vezes o mesmo gesto, mas que faz gestos, se mexe, sem dúvida brutaliza as formas, mas por trás dessas formas, e através de sua destruição, ele alcança aquilo que sobrevive às formas e produz a continuação delas. O teatro que não existe em nada mas que se serve de todas as linguagens, gestos, sons, palavras, fogo, gritos, encontra-se exatamente no ponto onde o espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações (ARTAUD, 1987, p. 21).

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Sendo da natureza das artes corporais o embate com as idealizações, a criação no teatro, essa construção de comunicação, grosso modo, é feita nos ensaios e apresentações, e se dá a partir da presença do ator como principal gerador dessa crise. O ator busca a falta de lapso entre pensamento e ação. Nos ensaios acontece a recuperação da palavra/ideia/memória em comunicação corpórea, a presença é testada e construída nas escolhas entre suas inúmeras possibilidades imagéticas e o ator decide como dará “vida” e significado a esse material. No exercício de sua arte, o ator se relaciona com questões de ordens individuais, coletivas, subjetivas, objetivas, espaciais e temporais - criação a partir de mecanismos da memória, cognitivos e perceptivos para a construção de autoria.

Além disso, nos processos criativos do ator, há a perspectiva de propor e experimentar processos dinâmicos de construção de arte/ comunicação, com ideias e proposições inseridas na complexidade das redes criativas e culturais, ou seja, corpo inserido na cultura e cultura encarnada no corpo. Mas, numa arte caracteristicamente ancorada na criação coletiva, as perguntas sempre presentes, em relação à autoria, são: como um corpo comunica ao outro o conceito do projeto criativo? Como se partilha subjetividade?

Se somos corpos, somos finitude. E porque somos finitude desejamos o infinito, a permanência. É isso que buscamos no outro, nos outros corpos, a união de durações finitas que construam histórias infinitas, que nos projetem para além de nossos limites e fronteiras. Comunicar-se é criar ambientes de vínculos. Nos ambientes de vínculos já não somos indivíduos, somos um nó apoiado por outros nós e entrecruzamentos, em uma operação denominada “nodação” (Eickhoff). Construir um ambiente e situar-se nele reduz a fragilidade de estar só. E, para os entrelaçamentos, somente corpos podem ser pontos de germinação dos ambientes. Corpos narrativizam os pressupostos para a continuidade, para a sustentabilidade, para a sobrevida do corpo nos outros corpos e nos corpos-outros, na materialidade dos meios que facilitam a nodação entre os corpos (BAITELLO, 2008, p. 100). Essa complexidade das trocas está no trânsito para a edificação da tessitura da forma espetacular e aponta para um corpo em constante aprendizado, um ator apurado tecnicamente, capaz de oferecer ao espectador a parte que lhe cabe, ou deveria caber, na criação do ato teatral. Um corpo capaz de identificar, decodificar, recodificar seus processos criativos, propondo interações vivas, vias de múltiplos acessos, ou seja, experiências efetivas junto com o espectador na construção de comunicação, de significados e linguagem na elaboração da escrita e da leitura cênica.

O aprendizado surge da potência de um signo, de um objeto ou situação que se interpõe ao fluxo perceptivo usual, promovendo um encontro tão imprevisto quanto inevitável, que solicita a produção do pensamento, forçando a realização de algo inédito. A aprendizagem se afasta, pois, do mero reconhecimento ou da compreensão objetiva de algo que nos foi transmitido, e se aproxima da invenção, de um processo de produção de sentidos. E que não apenas é individual, já que se produz de maneira sempre pessoal e intransferível, mas que se propõe a individuação, o estímulo à invenção de um jeito singular de estabelecer sentidos a partir da relação com os acontecimentos da vida e da arte (DESGRANGES, 2012, p. 138-139).

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Essa arte, diferentemente da maioria das artes, exige que o artista (corpo) esteja absolutamente presente em todas as etapas. Projeto criativo e criador estão explicita e fisicamente unidos no ator, numa fremência associativa em busca de percursos onde formas e conteúdos se encontrem e tornemse uma só coisa que aponte algo além da reprodução de imagens. O ator é o único elemento, além do espectador, imprescindível para que o teatro aconteça.

Nem a miseenscène assim entendida, nem as artes plásticas, nem enfim a palavra constituem - para nós - aquilo que é especificamente teatral, aquilo que diferencia o teatro de um quadro ou de uma escultura em movimento, ou de um livro cujo conteúdo venha ilustrado com uma série de imagens colocadas em movimento. O que permanece depois de ter rejeitado a filologia e as artes plásticas? O ator e o espectador. É essa a célula embrionária do teatro. Aqui nasce o elemento primário da atuação (FLASZEN, 2007, p. 87). A forma espetacular contemporânea oferece possibilidades criativas capazes de ampliar e ressignificar as interações comunicativas possíveis entre ator e público. Novas tecnologias – vídeo, sonorização, holografias - postas a serviço da criação do todo, do espetáculo, podem exigir do ator mais do que um corpo: podem exigir um corpo em performance que além de altamente especializado terá que saber lidar com sua amplificação e multiplicação.

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Wagner Miranda Dias é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PPGCOS/PUC-SP. É diretor de teatro e artista visual. Bolsista CNPq.

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// CRÍTICA

ARTAUD E SEU DUPLO Luiza Barreto Autora

Antonin Artaud nasceu e morreu na França, e durante sua vida dedicou-se principalmente ao teatro, tendo trabalhado como ator, diretor e dramaturgo. Ele, que foi considerado louco e internado diversas vezes em hospitais psiquiátricos, talvez seja uma das pessoas que mais contribuiu para a arte teatral do séc. XX. Infelizmente, poucos gênios são reconhecidos em vida e, em 1948, ele foi encontrado morto no seu quarto num hospício parisiense ainda sem ter recebido o destaque que merecia. Uma década antes, em 1938, Artaud publicou O Teatro e seu Duplo, que hoje é considerado por muitos estudiosos e teóricos o principal livro escrito no séc. XX sobre a arte dramática.

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Na década de 1930, Artaud pensava no espetáculo e na renovação da cena teatral de uma maneira que ainda hoje se faz muito necessária. Na época, Artaud recebeu uma série de críticas por causa de suas ideias revolucionárias que colocavam a encenação num status mais elevado, tornando-a um elemento de importância fundamental no contexto geral do espetáculo teatral. Foi ele um dos precursores do modelo de encenação que vemos hoje e, apesar de ter sido rechaçado na época, suas ideias e ideais são bastante pertinentes ainda no contexto atual. Também foi ele um dos primeiros a repensar o papel do ator no espetáculo e na arte teatral, colocando-o numa posição muito mais ativa em relação à obra, apesar de Artaud ainda considerá-lo um executor de ideias que está sempre a serviço do encenador. N’O Teatro e seu Duplo, Artaud expõe suas ideias sobre o teatro e, principalmente, das modificações que precisam ser feitas para que o teatro assuma um papel mais relevante na sociedade e deixe de ser apenas uma forma de entretenimento. Já influenciado pelo cinema, ele afirma que o teatro precisa ocupar uma posição em que possa proporcionar algo além do que o público pode ver nas telas, com distanciamento. Portanto, ele propõe que o teatro torne o público mais ativo durante o espetáculo e não apenas receptor. Ao longo da obra há alguns trechos bastante complexos, em que não fica muito clara a ideia que o ator deseja passar, e essa é uma grande crítica aos escritos de Artaud, de forma geral. Porém, ele é muito consciente e faz um excelente uso da linguagem ao expor os conceitos que parecem mais solidificados, que são mais palpáveis em termos práticos e não apenas no campo teórico.

A grande questão que se aponta atualmente é que Artaud não conseguiu colocar sua teoria em prática de forma eficiente. É preciso refletir que, diante de uma proposta e um pensamento tão revolucionários para a década de 1940, realmente é difícil uma única pessoa, na contramão da corrente hegemônica, aplicar todos os conceitos propostos. Porém, ainda hoje muitos encenadores usam seus escritos como base para seus trabalhos. Além disso, talvez a sociedade da época (incluindo os artistas) não estivesse preparada para tudo que ele propunha, portanto ele precisaria de muito mais tempo para amadurecer e aplicar suas ideias.

O Teatro da Crueldade Logo no início ele afirma muito claramente que o teatro perdeu sua ideia central, transformando-se em mero entretenimento e afastando tanto as classes altas quanto as baixas do espetáculo teatral. Para resgatar o público, ele afirma que “precisamos, antes de mais nada, de um teatro que nos desperte: nervos e coração”. Segundo ele, isso se faz necessário porque o cinema gerou um entorpecimento e o teatro psicológico fez com que os espectadores perdessem a sensibilidade. Segundo Artaud, é preciso alcançar primeiramente a sensibilidade das pessoas ao invés do entendimento, como era feito anteriormente, captando todas as emoções existentes e devolvendo -as pelo teatro. Para essa renovação do teatro, é preciso radicalizar a ideia de que tudo que atua é uma crueldade.

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Um paralelo interessante traçado nessa introdução ao Teatro da Crueldade é de que a representação de um crime pode ser mais terrível do que o crime cometido no plano real, se for realizada uma apresentação adequada que reúna todos os sentimentos envolvidos em torno do ato.

Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os sentidos essa espécie de picada concreta que comporta toda ação verdadeira. Assim como nossos sonhos atuam sobre nós e a realidade atua sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia como um sonho, que será eficaz na maedida em que será propulsionado com a violência necessária. (ARTAUD. 1938, p.110.)

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Um dos pontos principais que Artaud explora está no campo das sensações: ele defende que a arte teatral deve causar diferentes impactos no espectador para que ele se sinta parte daquilo e receba não apenas um produto cultural para simples diversão. Reafirmando essa ideia, ele já inicia o primeiro manifesto do Teatro da Crueldade afirmando que “não é possível continuar a prostituir a ideia de teatro, que só é válido se tiver uma ligação mágica, atroz, com a realidade e o perigo” (ARTAUD, 1938). Artaud defende que é preciso reencontrar a linguagem teatral para o teatro voltar a ter o poder que outrora tinha. Entretanto, para que isso aconteça é preciso que a nova encenação que ele propõe rompa com a subordinação do teatro ao texto, para que essa nova linguagem se desenvolva num campo que englobe também o gesto e o pensamento. É necessário repensar a palavra de forma a potencializá-la, buscando suas possibilidades além do significado em si, mas também no todo que a palavra representa. É necessário explorar o que Artaud chama de expressão dinâmica da palavra, ou seja, a expansão que foge da palavra em si e se reflete também na ação e vibração da palavra, sendo capaz de ativar a sensibilidade nervosa. É preciso entender a palavra dissociada do seu significado em primeiro plano, entendê-la enquanto som, ruído. Isso somado aos movimentos, gestos e atitudes em cena forma um signo. E esse signo vai além da própria palavra, eleva-a a outra infinidade de significados e interpretações muito mais ricas do que o sentido inicial proporciona.

ARTAU SEU DU Utilizando técnicas para que a palavra ganhe materialidade e espacialidade, ela é capaz de atingir o ponto sensível do espectador transformando a experiência teatral em uma nova forma de percepção do mundo. Desta forma, o teatro passa a acontecer não mais com o artifício da ilusão do público, mas dentro de cada indivíduo que está assistindo ao ato teatral de forma metafísica, pois ele absorverá o que está em cena à sua própria maneira e poderá considerar o que está assistindo de acordo com a sua própria experiência. Após a introdução ao Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto), Artaud disserta sobre alguns conceitos e como eles precisam estar orquestrados no espetáculo para que sua potencialidade se cumpra. A princípio ele afirma que todo espetáculo precisa ter um elemento capaz de comunicar sensivelmente a todos os espectadores e coloca a encenação como o ponto inicial de qualquer obra teatral, pois é ela que define a linguagem desenvolvida, a qual precisa ir além da própria palavra para conquistar a sensibilidade necessária ao fazer teatral. O principal neste trecho é a atenção dada ao espaço da encenação, que quebra as regras do palco italiano e abandona o espaço teatral,

colocando o público muito mais perto da ação, entre os atores, e com certa mobilidade para que possam se virar para onde acontece a cena em cada momento. Ele dá liberdade para o público assistir à peça de diferentes ângulos, de forma que possa ser atravessado pela encenação. Desta forma, Artaud quebra a ilusão do teatro e faz com que o espectador faça parte do espetáculo. Para que isso funcione da maneira como ele imagina, ele afirma que não há necessidade de cenário. Ao rejeitar obras teatrais prontas, Artaud propõe que se represente acerca de fatos - ou temas - que realmente façam parte do interior do sujeito. Ao ator ele reserva o papel principal, mas também a passividade e neutralidade, pois, segundo ele, o ator precisa interpretar com exatidão, sem iniciativas ou criações pessoais. Sobre o público: “Primeiro, é preciso que este teatro exista”. No que se segue, Artaud apresenta suas cartas respondendo alguns que leram o manifesto antes de ser publicado e fizeram suas considerações. Ao longo do tempo, Ar taud amadureceu alguns conceitos expostos no primeiro manifesto do Teatro da Crueldade e para expor isso ele escreve, então, um segundo manifesto.

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No Teatro da Crueldade (Segundo Manifesto) há a ideia de busca constante por um estado transcendente que só será encontrado se houver um enorme rigor. Abordando temas universais e inspirando-se em textos antigos que dizem respeito ao homem total, ou seja, o homem imbuído de sonhos e imaginação, esse teatro buscará refletir seu próprio tempo, evitando que essas questões fiquem apenas para o cinema. A partir de um retorno aos mitos, Artaud acredita ser possível revisitar conflitos antigos de forma a torná-los interessantes através de uma atualização da encenação teatral, sem interferências na linguagem. Desta forma ultrapassa o teatro textocêntrico e volta a dialogar com o espírito para compor um espetáculo que renova a ideia de tempo e espaço. Todos os planos e ângulos se tornam possíveis no espaço de encenação, que na ausência de distanciamento, é capaz de envolver o público de forma muito mais potente. E o tempo se associa à ideia de movimentos contínuos repletos de significados para que a recriação e sobreposição de imagens criadas em cena se tornem signos ainda mais fortes que a palavra, que abandonará seu sentido lógico para exercer poder encantatório. O teatro precisa fazer uso de todas as ferramentas mágicas conquistadas para recuperar a sensibilidade. É preciso utilizar toda a potencialidade dos recursos de som, luz, ritmo, movimento, palavra, vibração... E organizá-los para criar dissonâncias que ocupem todos os sentidos do espectador. Assim, não haverá espaço vazio, nem intervalo na sensibilidade do público, ou seja, “entre vida e teatro não haverá mais uma separação nítida”.

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Reverberacoes O Teatro da Crueldade não aconteceu exatamente da forma com Artaud pregou na década de 1930, porém, grande parte dos conceitos difundidos por ele ainda são extremamente atuais. Artaud teve uma visão bastante à frente de seu tempo, pois a ideia de potencializar a palavra permanece até hoje e é uma busca constante. Infelizmente, Artaud não pôde ver seu teatro tomar forma, mas seus escritos permanecem atuais e suas palavras parecem dialogar diretamente com o teatro que é realizado aqui no Brasil. É preciso que o teatro se desprenda da função de entretenimento para assumir sua verdadeira vocação: sensibilizar o público. A crueldade deve ser buscada no sentido de encontrar a radicalidade das possibilidades de expressão. Hoje o ator não é tão passivo quanto Artaud gostaria que fosse, se tornando mero executor das ideias do encenador. Mas a principal busca do ator reitera o conceito de Artaud: é preciso encontrar a máxima expressão da palavra para que ela ganhe potencialidade, fazendo com que ela componha com todos os outros elementos para que todo o espetáculo signifique. É necessário ler O Teatro e seu Duplo para compreender que caminhos estavam reservados para o teatro no passado e para que não sejam cometidos os mesmos erros de antes, afim de que se possa seguir em frente com algo ainda mais inovador do que Artaud propunha, pois ainda hoje muitas encenações não compreendem o que ele alcançou há anos atrás.

Referencia ARTAUD, Antonin. O teatro da crueldade, O teatro da crueldade (Primeiro Manifesto) e O teatro da crueldade (Segundo Manifesto). In: ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda. 1981. P. 108-130, 154-161.

Luiza Barreto é Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e acadêmica do curso técnico em Artes Dramáticas na Cena Hum. Integra a Setra Companhia de Teatro desde 2014, quando trabalhou como produtora e atriz na peça Satan Circus, apresentada na Mostra de Dramaturgia SESI. Participa como atriz do espetáculo gestual da Setra junto ao Núcleo de Encenação SESI - Teatro Guaíra (orientado por Márcio Abreu, Georgette Fadel e Grace Passô) intitulado Ave Miss Lonelyhearts, que estreou na Mostra de Dramaturgia SESI 2015.


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