Revista argumento 3ª edição

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SOBRE A REVISTA A 3ª Edição da Revista Argumento é lançada com 5 trabalhos – três artigos, uma entrevista e um monólogo – poético – para teatro. O material que será visto aqui busca aprofundar ainda mais a relação que temos com as artes cênicas, seja no campo da prática performática e cênica, ao fazer perguntas do nível: "como é possível pensar em metodologias para o treinamento de performers?" ou "como se enxergam profissionais das artes do corpo atuantes no mercado de trabalho?". Acreditamos que é nossa obrigação enquanto artistas-pesquisadoras(es), nos revisitar criticamente – e academicamente – diante de nossas próprias criações, tendo sido esse, um tema de peso dentro desta Edição. Devemos observar o material posto em cena e avaliá-lo impiedosamente, de modo a tirar dele o que nem cogitávamos existir. Avaliar também os processos e metodologias que utilizamos para educar outras pessoas ávidas por adentrar no teatro. E por fim, é necessário se deparar com os cantos mais profundos do nosso ser, como diria Burnier e várias outras mestras e mestres dessa arte. É aí que mora a sutileza e a beleza da criação, seja ela poética ou acadêmica. Rafael Wolff

EXPEDIENTE George Sada Direção do Grupo Cena Hum Bruno Chiumento de Melo Gerente Geral Francielle Domanski Coordenação Acadêmica Rafael Wolff Edição Ana Luiza Fernandes Projeto gráfico Sugestões, críticas e anúncios: imprensa@cenahum.com.br www.cenahum.com.br /cenahum @cenahum @cenahum


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Vozes no Ballet Clássico em Perspectiva Verbo-visual

Imóvel na Chuva

Caio Brandão, ator, jornalista, fotógrafo

Utilização de Técnicas de Programação Neurolinguistica na Capacitação do Aluno de Ensino Médio

Giovanni Consenza, estudante de

e escritor, apresenta seu texto em que

ballet e pesquisador em artes

o jogo de palavras acompanha o fluxo

cênicas, traz um importante relato

de pensamentos da narração, tornando

da experiência de bailarinas e

o monólogo um instigante texto para

Marcio Tadeu da Costa, professor

bailarinos dentro da profissão, aliando

se pensar – e encenar – dramaturgia.

e pesquisador, propõe uma análise

às entrevistas, uma consistente

da aplicação da Programação

fundamentação teórica em Bakhtin..

Neurolinguística em exercícios de construção da fé cênica, tendo o método Stanislavski como fundamento para tal trabalho com alunos do ensino médio profissional.

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ÁRIO 32 Thymos - Organicidade como Princípio

Lino Rocca, membro da CETA (Centro Experimental de Teatro e Artes), conversa com a Argumento sobre toda a sua experiência em treinamento para atrizes e atores, tendo como foco o

40 Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos]: análise do processo da concepção cênica dialogando com Grotowski, Barba e Lehmann

processo denominado Thymos, cuja

Juliana Vieira, atriz, escreve sobre

criação e desenvolvimento são obra de

sua Concepção Cênica, na qual parte

anos de pesquisa do entrevistado e da

de técnicas de treinamento pré-

performer Vânia Santos.

expressivas e conceitos advindos do teatro pós-dramático para explorar o tema do feminino na mitologia grega.

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© Adam Littman Davis | Unsplash.com 4


VOZES NO BALLET CLÁSSICO EM PERSPECTIVA VERBO-VISUAL Artigo Giovanni Amaral Cosenza Ator e produtor cultural cearense, atuando profissionalmente como Giovanni Cosenza. Atualmente é discente dos cursos de Direito pela PUCPR e Produção Cênica pela UFPR. Após investigações e pesquisas nas áreas: dança e linguagem, realizou seu projeto de iniciação científica (PIBIC) neste campo, tendo como resultado de suas inquietações o presente artigo.

1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa traz como objetivo a compreensão dos profissionais da dança na esfera profissional e possíveis desdobramentos. Por meio de diálogos com bailarinos e bailarinas, questões serão abordadas com o intuito de entender a relação do ballet na vida desses profissionais. Em contrapartida, a pesquisa também pretende buscar enunciados entre as relações dos bailarinos/bailarinas já

inseridos no mercado de trabalho, das diferenças entre o que é cobrado dos profissionais e dos alunos. Esta pesquisa aflora dos questionamentos e compromisso do autor que estuda ballet clássico na Escola de Dança Teatro Guaíra (EDTG) desde 2014. Também coreografou para um piloto de uma série, além das criações coletivas dos discentes da EDTG e trabalhos para as matérias: Laboratório de Improvisação

(TPC003), Linguagens do Corpo e Voz (TPC004), Elementos Estéticos da Dança (TPC007), Corpo e Cidade (TPC201), Laboratório Experimental de Pedagogias da Cena (Dança) (TPC216), Dramaturgias do Corpo (TPC208) e Laboratório de Encenação (TPC031), do Curso Superior em Tecnologia de Produção Cênica (TPC) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde estuda.

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O interesse por dança clássica vem da infância e adolescência do autor, pois os musicais da Era de Ouro da Broadway (por exemplo, o musical “Oklahoma!” coreografado por Agnes De Mille) traziam grandes números do ballet, além dos filmes da MetroGoldwyn-Mayer (MGM) (por exemplo, o filme “A Roda da Fortuna” coreografado por Michael Kidd), cujas estruturas de dança são mantidas. A oportunidade de transformar a paixão por dança clássica em pesquisa veio com o ingresso na

UFPR e ao programa de iniciação científica. Este estudo dispõe de um embasamento na axiologia bakhtiniana. As experiências que serão relatadas têm a intenção de situar o leitor quanto à realidade da pesquisa e mostrar quais trincheiras precisam ser tapadas, para que a relação dos profissionais da dança com o ballet seja desmistificada e, assim, compreendida de uma forma mais ampla. Este projeto começou em janeiro de 2017 e conta com o apoio financeiro

do PIBIC CNPq. O autor conta com o vínculo do Laboratório de estudos em Educação, Linguagem e Teatralidades (ELiTe/UFPR/CNPq) que está inserido e com a teoria escolhida para compor o quadro teórico-metodológico. Este relatório contém uma breve revisão de literatura e a descrição dos materiais e métodos que serão utilizados na coleta de dados. Não há apresentação de resultados, pois a coleta de dados está prevista para acontecer em maio de 2017 e sua análise nos meses recorrentes.

2 DESENVOLVIMENTO O livro Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, de Carlos Alberto Faraco, traz uma, ou melhor, duas definições de mundo: Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, parte da asserção de que existe um dualismo entre o mundo da teoria (isto é, o mundo do juízo teórico, chamado, neste texto, de “mundo da cultura”, o mundo em que os atos concretos de nossa atividade são objetificados na elaboração teórica de caráter filosófico, científico, ético e estético) e o mundo da vida (isto é, o mundo da historicidade viva, o todo real da existência de seres históricos únicos que realizam atos únicos e irrepetíveis, o mundo da unicidade irrepetível da vida realmente vivida e experimental). (FARACO, 2009, p.18). Entretanto, Bakhtin coloca uma condição para ambos os mundos: Esses dois mundos, diz Bakhtin (p.2), não se comunicam porque o mundo da vida, na sua eventicidade e unicidade, é inapreensível pelo mundo da teoria como ela se apresenta hoje, na medida em que nele não há lugar para o ser e o evento únicos. O pensamento teórico se constitui exatamente pelo gesto de se afastar do singular, de fazer abstrações da vida. (FARACO, 2009, P.18). O autor russo escreve, também, que há uma forma de superar; e essa superação será alcançada quando se subsumir a razão teórica na razão prática, logo, é possível colocar o ballet e o bailarino(a) em cena, pois a dança clássica possui tanto a razão teórica, quanto a prática, e o bailarino decodifica essas informações e as tornam naturais para si próprios. “O corpo é conhecimento, emoção, comunicação, expressão. Ou seja, o corpo somos nós e nós somos o nosso corpo. Portanto, o corpo é a nossa Dança e a Dança é o nosso corpo” (BRASIL, 1998, p.72). O Ballet Clássico, por sua vez, será tratado como sua linguagem artística. Inclusive, a busca pelo entrelace dialógico entre a Educação e o Ballet Clássico será feito por meio dessa perspectiva. (CASTILHO, 2016). Para construir esse diálogo via Bakhtin (2003), faz-se importante compreender que, para o filósofo, é na relação sócio histórica e na relação dialógica entre sujeito que está o cerne do processo que constitui o discurso. O autor defende a natureza social e não individual da linguagem, no qual o processo de construção das falas de alguém se dá pela interação entre esse enunciador e a sociedade.

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Os profissionais da dança entram nessa parte, criando um link ou links entre o ballet, vida pessoal, relação da dança na vida de cada profissional e os desdobramentos oriundos desses links. (...) é importante que situemos o leitor, mesmo que não por uma explanação didática, quanto aos pilares de construção do que vem sendo chamado, atualmente, de pensamento bakhtiniano. Mikhail Bakhtin (1895-1975) conviveu, nas primeiras décadas do século XX, com intelectuais russos advindos de diferentes campos de conhecimento, como filosofia, teoria literária, linguística, artes, biologia e etc. A linguagem era o ponto de referência das discussões de um grupo, hoje denominado de Bakhtin e o Círculo, que produziam trabalhos bastantes significativos do ponto de vista dos estudos de linguagem, filosofia, arte e literatura. Estes vêm sendo pensados e discutidos em centros acadêmicos de pesquisa de diversos lugares do mundo, causando frissons, debates e embates que só fazem crescer o interesse de estudiosos das mais diversas áreas de investigação pela perspectiva dialógica. (GONÇALVES, 2016, p. 220).


3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Esta pesquisa é do tipo qualitativa, ou seja, multimetodológica quanto ao seu foco, envolvendo abordagens interpretativas e naturalísticas dos assuntos. Isto significa que o pesquisador qualitativo estuda coisas em seu ambiente natural, tentando dar sentido ou interpretar os fenômenos segundo o significado que as pessoas lhe atribuem. (DENZIN & LINCOLN, 1994, p.2). A versatilidade e valor da entrevista qualitativa são evidenciados no seu emprego abrangente em muitas disciplinas sociais cientificas e na pesquisa social comercial, nas áreas de pesquisa de audiência da mídia, relações públicas, marketing e publicidade. (GASKELL, 2002, p.66). Uma outra característica desta pesquisa foi a escolha pelo diário de campo. (...) constam todas as informações que não sejam o registro das entrevistas formais. Ou seja, observações sobre conversas informais, comportamentos, cerimoniais, festas, instituições, gestos, expressões que digam respeito ao tema da pesquisa. Falas, comportamentos, hábitos, usos, costumes, celebrações e instituições compõem o quadro das representações sociais. (MINAYO, 1993, p.100) A pesquisa utilizou como metodologia o diário de campo. Tendo como matéria prima 4 (quatro) profissionais da dança, dentre eles: 2 (dois) bailarinos e 2 (duas) bailarinas, que atuam em Curitiba/PR. A identidade dos entrevistados foi ocultada, sendo evocados nomes de grandes bailarinos internacionais e/ou com relevância histórica, são eles: Maya Plisetskaya, George Balanchine, Natalia Osipova e Danil Simkin

Após a colheita dos resultados dessa primeira etapa do estudo, o autor/ pesquisador organizou os resultados e, assim, buscou sanar dúvidas recorrentes à relação do ballet e aos profissionais da dança, bem como desmistificar esse universo dos bailarinos e bailarinas profissionais. Outra característica desta iniciação científica é a análise dialógica do discurso (ADD). A ADD é uma teoria filosófica global da linguagem (que para ela incorpora a língua), podendo ser usada para o trabalho com todo e qualquer enunciado. Há, inclusive, extensões de seu uso a linguagens não faladas, escritas e sinalizadas, como as que estão presentes em enunciados verbo-visuais e visuais, por exemplo. (SOBRAL, 2017, p.14)

© Olenka Kotyk | Unsplash.com

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Algumas perguntas foram formuladas pelo autor da pesquisa com o auxílio do orientador dessa iniciação científica. Essas perguntas têm a intenção de chegar ao âmago desse estudo: entender a relação do profissional da dança com o ballet clássico. As perguntas são: o que é ballet clássico para você? Para um artista que se utiliza da dança clássica, qual é a importância desse trabalho técnico na profissão desse profissional? Como se deu a transformação da esfera de

estudante para o campo profissional na dança? Você acha que o ballet te ajudou para a compreensão de outros estilos/ gêneros de dança? Além da entrevista, os bailarinos e as bailarinas trouxeram fotografias, amparando o autor/pesquisador por meio da perspectiva verbo-visual. Transmitindo na visão de cada participante dessa pesquisa, o que traduz, de maneira visual, a relação dos profissionais da dança com a dança clássica.

4 DISCUSSÃO As discussões criaram diálogos que geraram reverberações, e desta forma é possível colocar sobre os holofotes os resultados das trocas entre o autor/ pesquisador e os profissionais da dança. O corpus da pesquisa é composto por 16 (dezesseis) respostas, bem como, de 3 (três) fotografias fornecidas pelos colaboradores, a fim de ilustrá-las. A relação entre as falas e as imagens possibilitou a divisão em três esferas:

técnica e desempenho, técnica e estética, técnica e formação. A expressão “técnica” se faz presente em todas as esferas, pois apareceu em todos os momentos dialógicos. O autor/pesquisador evocou trechos desses resultados, relacionando-os às imagens, para dar voz aos bailarinos e bailarinas. Assim, haverá uma bivocalização (entre autor/pesquisador e profissionais da dança) nesta parte da pesquisa.

4.1 TÉCNICA E DESEMPENHO PELA VOZ DE MAYA PLISETSKAYA

Figua 1: Acervo do Ballet Teatro Guaíra.

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“Uma técnica difícil de adquirir, mas belíssima. Uma técnica que desafia as leis naturais, porque o bailarino deve demonstrar leveza e aparente facilidade em movimentos corporais de grande dificuldade de execução. Pessoalmente eu gosto muito da técnica clássica, eu sempre gostei dos desafios que me colocava. A graça do ballet era conseguir fazer coisas difíceis. Mas eu não gosto muito de assistir espetáculos de ballet”. A partir da relação entre a fala e a imagem, percebe-se o quanto o ballet clássico é uma arte que precisa de muitos anos de treino, estudo, persistência, tempo e grande dedicação. Seu bom desempenho está relacionado com o domínio do corpo, a precisão, a busca pela perfeição dos movimentos. Ou seja, a qualidade da performance dos bailarinos e bailarinas está vinculada ao nível de execução de sua técnica. Conforme a bailarina entrevistada pontuou, o ballet parece desafiar as leis naturais, os artistas necessitam realizar movimentos cada vez mais difíceis, e ainda dançar de modo que pareça algo fácil, gracioso, igual vemos na foto, cuja imagem é do falecido e respeitado bailarino Jair Moraes (30 de setembro de 1946 – 25 de dezembro de 2016) está realizando um salto denominado Grand Jeté. Seus braços estão metricamente alinhados, a coluna bem ereta, com o pescoço alongado e os braços metricamente alinhados, dando a sensação de leveza e elegância. Seus membros inferiores estão realizando a rotação externa da coxa, o famoso en dehors (KOTAKA, 2016, p. 31), e os pés estão bem esticados. Sua perna traseira está numa forma chamada de Attittude (KOTAKA, 2016, p.68), com os joelhos levemente dobrados, o que dificulta ainda mais a execução desse movimento tradicional.

Bailarinos e bailarinas olham para a foto de ídolos, tal como essa de Jair Morais, e almejam alcançar seu alto nível de performance. A partir disso, via perspectiva bakhtiniana, também é possível refletir que o bom desempenho dos artistas, a performance perfeita, é um objetivo, senão um sonho, situado no mundo da teoria. Pois, a figura do bailarino ideal, que realiza passos precisos e belas expressões, está presente no imaginário desses alunos, no mundo da cultura - o mundo que cada um cria, reflete e teoriza. No denominado mundo vivido de Bakhtin (2010), por sua vez, nota-se o grande enfrentamento desses artistas. Como diz a resposta de Maya Plisetskaya, o Ballet é “uma técnica difícil de adquirir”, “o bailarino deve demonstrar leveza e aparente facilidade em movimentos corporais de grande dificuldade de execução”. Ou seja, a figura do bailarino ideal, presente no mundo da teoria, que realiza um desempenho formidável, belo, como se sua dança fosse algo leve e fácil, está em conflito com o mundo vivido, o mundo da materialidade, onde as leis naturais impedem que os passos do ballet sejam aprendidos com tal facilidade, onde sua boa performance exige uma preparação de atleta, com muito suor, horas de prática, estudo e dedicação. Todavia, essa dualidade entre o pensamento e a experiência vivida, especificamente, entre o mundo da cultura e o mundo da vida, de acordo com a perspectiva bakhtiniana, pode ser superada por meio do Ato, sendo esse um ato responsável, um evento singular e único. Bakhtin (2010) critica a vida instrumentalizada, mecanizada, e chama a

atenção para que o sujeito reflita sobre seus atos, sua relação com o outro, e que tenha um posicionamento íntegro e consciente da pluralidade de vozes que o constitui enquanto ser. Pois, quando se assume responsável por suas ações, e se percebe constituído pelo(s) outro(s), enxerga-se como um sujeito de criação, que coloca no mundo atos cotidianos, artísticos, que contém valores. Trabalhar a partir dessa visão implica no entendimento de "Arte como elemento da vida", produzido por sujeitos e para sujeitos, e por isso mesmo que é ato. Um ato responsável, que participa de uma cultura e um espaço-tempo. Nesse caso, o bailarino clássico precisa reconhecer que está sempre em relação com outros sujeitos, que é constituído por vozes, e por isso cada ato seu, cada dança que realiza, é de sua inteira responsabilidade, pois sensibiliza o púbico e provoca reverberações de alcances inimagináveis no mundo. Por meio do pensamento bakhtiniano, entende-se que o corpo que dança não tem álibi para não dançar, para não ocupar o seu lugar único – a eventicidade do ser na dança. E mesmo numa Arte tradicional, como é o caso do ballet clássico, o bailarino ocupará um lugar único na cadeia discursiva quando realizar sua arte de modo responsável (CASTILHO, 2016). Em outras palavras, o bailarino clássico precisa agir, precisa dançar e persistir nessa busca pelo bom desempenho, porém, sem viver de modo mecanizado, passivo e instrumentalizado. É preciso tomar consciência de que sua dança é um evento único e singular, compreender-se responsável por ela, afinal, sua arte se trata do diálogo entre o mundo da cultura e o mundo da vida.

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4.2 TÉCNICA E ESTÉTICA PELAS VOZES DE DANIL SIMKIN E NATALIA OSIPOVA, RESPECTIVAMENTE:

“É a exploração das linhas corporais, através de uma técnica já estabelecida”. “O trabalho técnico vem de encontro na melhoria muscular, esquelética, fisiológica, postural”.

Figura 2: Acervo do bailarino.

Ambas as respostas trazem visões estéticas peculiares, porém demasiadamente próximas, tratando-se de ballet. A voz de Simkin traz a questão das linhas corporais de um profissional da dança (verticalidade), enquanto que Osipova lança um olhar mais intrínseco (fisiológico, muscular e esquelético). Um ponto está ligado ao outro, gerando uma conexão: o profissional da dança que está habituado a estética do ballet clássico. Nessa dança tradicional, cada detalhe importa, cada posição de membros inferiores, colocação de braços, a altura do salto, equilíbrio nos giros e até mesmo a sensação que os passos provocam no público contam durante a performance dos bailarinos clássicos. Conforme é possível identificar na imagem, o corpo cria linhas no espaço, se move apresentando sua musculatura, encanta o público com as formas

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que desenha no ar através dos passos. Quando um bailarino entra em cena, já é possível identificar a ausência ou a presença do trabalho com a técnica clássica em sua carne. Vale lembrar que o ballet clássico carrega os princípios da Europa renascentista, norteou-se pela busca de leveza, alongamentos e o amplo equilíbrio, na qual o bailarino treina para conquistar o domínio do corpo, de modo a poder utilizá-lo de forma consciente. O Ballet se estabeleceu de acordo com os ditames das regras de etiqueta da corte francesa do século XVII, a fim de distinguir nobres e plebeus, surgindo a estética de um corpo magro e longilíneo: esbelto, com padrões gregos, coluna ereta, cabeça erguida, gestos elegantes, suaves e requintados. Ademais, com o desenvolvimento dos passos e a criação das sapatilhas de pontas femininas, pro-

moveu-se a busca por uma verticalidade imperiosa (GONÇALVES, 2008, p.1). Em suas aulas, geralmente, os professores recorrem ao método da reprodução, no qual eles apresentam as sequências de movimentos, construídas por poses, passos e gestos pré-estabelecidos, em seguida, os discentes as reproduzem, repetindo-as até alcançar a excelência. A técnica clássica é complexa, com códigos de passos específicos, o qual exige de seus artistas um desempenho de atleta (CASTILHO, 2016). Atualmente, muitas manifestações em dança se distanciam desse padrão estético, dessa verticalidade imperiosa, a fim de explorar outras maneiras de se mover. No entanto, o bailarino clássico carrega consigo essa herança, esse modo de se posicionar em cena, as citadas linhas corporais, os músculos definidos e a forma de realizar os passos com leveza e elegância.


4.3: TÉCNICA E FORMAÇÃO PELAS VOZES DE GEORGE BALANCHINE E DANIL SIMKIN, RESPECTIVAMENTE:

Figura 3: Acervo da bailarina.

“Primeiramente, o programa de estágio da universidade, pois mesmo inserido num contexto amador (estagiário), estar no meio profissional não seria possível adentrar à lugares profissionais”. “Sim (a partir do momento que pude me perceber e estar dançando) e não (pois no meu caso me limitou, a forma como me foi apresentada, não foi culpa da técnica)”. As respostas de George Balanchine e Danil Simkin evidenciam a necessidade da boa formação do profissional da dança, seja ele um bailarino performer ou um professor. Balanchine fala a respeito da universidade em relação ao campo profissional, aprofundando o conhecimento do ballet clássico, por meio de cursos superiores. Pois, ele fala do estágio que é uma ferramenta das instituições de ensino para colocar os discentes em experiência prática dos seus conhecimentos e competências. Já o outro bailarino entrevistado fala sobre o modo como essa dança foi ensinada a ele. Em meio ao diálogo, pude compreender que ele aprecia e

estima o ballet clássico, porém, critica a metodologia tradicional e retrógrada de seus professores. Conforme vemos na imagem, a bailarina ela está ensaiando, criando, explorando a si mesma. Ela não está realizando um movimento particular do ballet, e sua dança se assemelha aos movimentos da dança contemporânea. Porém, é possível identificar linhas da técnica clássica em seu corpo, auxiliando-a a fazer sua pose. Percebe-se, diante das falas e da foto, que, no mundo contemporâneo, não basta o dançarino saber reproduzir a técnica do ballet, apenas realizar um passo tradicional que seu professor pedir, com perfeição.

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Mas, é necessário fazer com que essa técnica impregne na carne de modo natural, por opção própria, sem ser de modo mecanizado, imposto pelo professor. Dessa forma, ao invés de enrijecer o artista, o Ballet pode auxiliá-lo até mesmo em outros estilos de dança, em outras performances. Segundo Sampaio (2000), pelo Ballet ser fruto de uma formação tradicionalista, muitos professores atualmente continuam a repetir tais formas de ensinar essa Arte, da mesma maneira como aprenderam, reproduzindo com fidelidade seus moldes antigos, sem se preocupar com possíveis implicações físicas e psicológicas aos bailarinos. Como se o bailarino apenas pudesse executar sequências, calado, sem se queixar de dor, cansaço, ou fazer qualquer questionamento. Muitas vezes, o professor alimenta comparações físicas entre os alunos, inveja, tornando a sala um campo de guerra e concentração, onde todos competem contra todos, tornando as aulas superficiais e hipnóticas (FERREIRA, 2006, p.42). Ou seja, para que o bailarino não adquira traumas e más impressões durante esse longo processo, essa incansável busca pela perfeição dos movimentos, ou tenha um aprendizado superficial, é necessário que esse professor seja altamente capacitado e dê liberdade para que o discente incorpore o Ballet a sua maneira, no seu tempo, com a sua voz. Para se tornar um profissional em ballet clássico, exige-se tempo e dedicação, mesmo antes do discente entrar para a universidade e, assim, desenvolver conhecimentos necessários para lecionar essa dança. Existem inúmeras escolas de formação e cursos Técnicos Profissionalizantes no Brasil. No total, verifica-se um tempo médio em torno de 6 (seis) a 8 (oito) anos de intensos estudos para o discente conseguir se tornar um bailarino, e assim realizar essa dança com o mínimo de domínio e entendimento. Por exemplo, em Curitiba, a Escola de Dança Teatro Guaíra oferece o Curso Técnico em Dança, com a duração de 810 horas, destinado para quem já tem domínio básico em ballet clássico, a qual é considerada uma dança base, necessária para sua realização.

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A grade curricular desse curso profissionalizante é preenchida por disciplinas como: Dança Clássica I e II; Dança Contemporânea; Anatomia e Cinesiologia Aplicada à Dança; História da Dança; Música; Estudos Experimentais Criativos I e II; Maquiagem, Figurino e Adereços; Cenário; Iluminação e Sonoplastia; Direção de Palco e Contra regra; Interpretação Cênica I e II; Análise do Movimento; Prática de Montagem I e II; Produção de Espetáculo; Processo de Criação do Movimento; Dança e Diversidade (Fonte: http://www.escoladedancateatroguaira.pr.gov.br, acesso em 20/08/2017). Ademais, quando esse bailarino decide aprofundar seu conhecimento em dança, pensar a dança como Arte, a fim de desenvolver elementos que o possibilitem lecionar com mais propriedade, ele também pode optar pelo curso superior de dança. O curso da Faculdade de Artes do Paraná (UNESPAR – Campus Curitiba II) conta com a carga horária para o Bacharelado em Dança de 2.886 horas, que podem ser somadas à Licenciatura num total de 3.558 horas, além da necessidade de 748 horas de disciplinas optativas e 200 horas de atividades complementares. Seu currículo abrange disciplinas sobre abordagens e entendimentos gerais sobre a dança, não somente a clássica. Através de discussões teóricas, projetos de pesquisa e estágios, estima ampliar a visão do discente sobre sua metodologia de ensino, a fim de melhor desenvolver a dança com seus futuros alunos. Desse modo, percebe-se que o ballet clássico é uma dança antiga, tradicional, que passou por inúmeras transformações ao longo das décadas, as quais precisam ser estudas e compreendidas pelo profissional dessa área, especialmente, por aquele que decide lecioná-lo. O professor necessita dar abertura para o discente enunciar o ballet através de seu corpo, e não impor essa dança a ele, de modo frio e enrijecido. É preciso instigar esse estudante a problematizar, articular, criticar e ressignificar essa arte em sua carne, em seus músculos, em sua mente, a fim de libertá-lo para explorar-se e explorar o mundo por meio dela (CASTILHO, 2016).


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a descrição das vozes evocadas dos bailarinos e bailarinas, e uma análise do autor/pesquisador é possível observar pilares do ballet clássico, enraizados nos próprios profissionais da dança, pois as três esferas – técnica e desempenho, técnica e estética, técnica e formação – foram florescimentos das vozes deles. Então, pode-se perceber uma singularidade de cada indivíduo bailarino/bailarina, entretanto, as marcas de uma técnica são bem expressivas. Contudo, houve uma quebra na relação ballet clássico e fotografias dos bailarinos e bailarinas, pois algumas das imagens trazem outros gêneros/estilos de danças. Desta forma é possível apontar que novos mundos criam pontes com a dança clássica. Propiciando novas abordagens para esta esfera.

O autor/pesquisador acredita que a realização e participação no programa de iniciação científica PIBIC CNPq contribuiu consideravelmente à constituição de um indivíduo pesquisador. A oportunidade para novos pesquisadores e esferas de pesquisa gerar reverberações positivas aos discentes da graduação. Cosenza encera está trajetória com assaz vontade de galgar novos espaços, através da realidade acadêmica. Buscando reafirmasse como indivíduo pesquisador.

6 REFERÊNCIAS A RODA DA FORTUNA. Direção: Vincente Minnelli. Hollywood, CA: Metro-Goldwyn-Mayer, 1953. 1 DVD (112 mim), color. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paul: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, M. Para uma Filosofia do Ato Responsável. Tradução aos cuidados de Waldemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Ed. Pedro e João Editores, 2010. BAUER, M. W; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. BRASIL. Ministério da educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Brasília, DF, 1998. CASTILHO, Thaís. Vozes da dança na escola: o ballet clássico em perspectiva verbo-visual. Tese (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016. DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of qualitative research. London, Sage Publication, 1994. 643p. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. FERREIRA, Rousejanny da Silva. Formação do Professor de ballet em Goiânia: considerações sócio-histórico-artísticas da Dança. Monografia apresentada para a conclusão do curso de Licenciatura Plena em Educação Física - ESEFFEGO, Goiânia, 2006. GONÇALVES, R. S. Marcas híbridas em corpos que dançam a cena brasileira. Belo Horizonte: ABRACE, 2008. GONÇALVES, J. C.; Das relações [amorosas e sedutoras] entre educação, linguagem e teatro: reflexões bakhtinianas. In: HAGEMEYER, R. C. de C; SÁ, R. A; GABARDO, C. V. (Ed.) Diálogos epistemológicos e culturais: coleção pesquisa em cultura e escola – Vol.1. Curitiba: W e A Editores, 2016. p. 220. HAGEMEYER, R. C. de C; SÁ, R. A; GABARDO, C. V. (Ed.) Diálogos epistemológicos e culturais: coleção pesquisa em cultura e escola – Vol.1. Curitiba: W e A Editores, 2016. KOTAKA, Regina. Balés ilustrados: uma enciclopédia para dança clássica – Vol.1. Curitiba: Editora Regina Coeli Kotaka, 2016. MINAYO, Maria Cecília de S. O Desafio do Conhecimento. Pesquisa qualitativa em saúde. 2ª ed. SP: HUCITEC/ RJ: ABRASCO, 1993. NUREYEV: FROM RUSSIA WITH LOVE. BBC Documentary, 2007 (90 mim), color. OKLAHOMA!. Direção: Fred Zinnemann. Hollywood, CA: 20th Century Fox, 1955. 2 DVD (139 mim), color. SOBRAL, Adail. Dialogia, linguística aplicada e tradução: uma entrevista com Adail Sobral, comentada por Jean Gonçalves. Vitória: Revista PERcursos Linguísticos, 2017.

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IMÓVEL NA CHUVA Monólogo Caio Brandão Nascido em Rio Verde-GO, formado em Jornalismo pela PUCPR, cursou o curso livre Formação de Atores na Cena Hum Academia de Artes Cênicas em Curitiba-PR. Recebeu os prêmios URBS e Brasília Photo Show de fotografia, e foi agraciado com a publicação do poema “Mundo” no Concurso Nacional Novos Poetas pela Editora Vivara em 2017. Atualmente mora em São Paulo e trabalha no Áudio Visual do Studio Fátima Toledo.

Imóvel na chuva por um determinado tempo, na chuva imóvel, eu estive amparado apenas por um tirito fino, que, descolou da telha antes de surgir até mim, e de mim quiçá se foi cair pelo desfiladeiro abaixo, não antes de passar por entre os gorgulhentos, de bêbados, os doze nós da parcela sola do meu sapato, que, comprei noutro dia em alguma esquina suja rendido pela persistência núbil do comerciante insistente, estava eu ali, ouvindo a buzina

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abrupta do automóvel indiferente, que, voava desvairado e perigoso voava, eu enquanto o frígido inibido repousava júbilo e jocoso ante o fim, enfim, escorrido no meu rosto, um relutante rosto, eu, ali, via que depois de passar pelos numerosos dividendos, que, outrora edificados todos os que ali por assim se dizer, e, me disseram deles, que, constavam exibidos em ordem e progresso em letras garrafais ame ou deixe-o, mas todos eles na desastrosa linha difusa,


aprazivelmente acomodados, todos, eles todos embutidos pelo afogamento urbanístico deplorável, indevidamente licenciados e corrompidos é bem provável, eles todos um bando grosso de miúdos vizinhos perversos, marginalizando a toda maioria no postiço paroleiro do vigário, um conto distúrbio de exatas premeditadas rasas promessas à mesma velha baixela inteira entupindo o dorso das narinas pelas vias e avenidas de descrenças estações de rádios ensurdecendo a sina já há algum tempo, mesmo eu, detento da selva do desalento em cima da minha cabeça, de pedra em pedra eu via que naquele preciso momento, ali, eles arrancavam de mim uma a uma todas as fotos do meu álbum insignificante. Ali, eu ouvia o zumbido do ponteiro do relógio de pulso atrasado semanas no abraço desfeito, um relógio excluso que marcava tempestuoso os minutos e muito parecido com os do outro relógio que não o da cozinha redondo vermelho, mas, que inclusive cessou assim como finaram todos os outros que são ou não de pulsos, o da cozinha tampouco o vermelho, e todos os outros acartuchados derradeiros, os bolsões pontudos de ponteiros abalizados em difrações nefastas para mim, justamente ali, desde aquela imposta hora traída, ora valida de toneladas de barro aveludado, ora obstruída pela tácita dualidade do dia nublado, que, refletido neste geométrico plano cinza enquadrado, ali bem ali, para mais uma tarde sem graça, fria, com pinos chuviscos afiados na baixa descida, ali, íngremes os taciturnos bumbos vazando juntos lá pro fundo dos meus olhos, estremecendo a planície incolor em desmedida calcificada cuja sinfonia me lembrava muito a gloriosa retomada do velho barril de rum que ninguém tomava, lambendo rasgado minha encapa máscara de fel amordaçada, que, ali, inexoravelmente na minha frente se desintegrava faceira

e pomposa, mas não encobria a cobria tristeza, que, tardia por apenas uma valia que equivalia digna, apenas uma, digo uma só apenas uma só ruptura, uma apenas, ou só um, um apenas, apenas um dedinho de prosa que podia talvez poderia iluminar. Era preciso, eu sabia, sabia que mesmo eu ali estalado também era um eu que corria do que era preciso, mas, eu sabia que era preciso. Mesmo ali, naquela fina chuva fosca que caía, ao lado, era preciso, assim o peito torso, a tua recusa injusta, o deslace inacabado, e as horas que não passavam, mesmo assim era preciso, enquanto o meu alado coração batia, media, fugia e então sumia ofegante, tentava neste impasse instante, despedaçado, mais uma vez nas minhas mãos sangrando não dormir. Mesmo ali, assim, eu tinha que, na chuva fina que caía, me despedir. Ali dizer adeus a todas as paisagens remotas que fincaram ancoradas na minha memória torta, que, falhava incisiva e falhava vívida e vivia falhando mesmo na dita hora que eu tinha pra sumir dali, ali, eu suplicava pela sobra da fagulha de tinta que não fosse cristalizada pelo sopro gelado que sempre a mim, vindo de ti, regularmente revisitava apertado, eu, suplicava completamente em pedaços, desesperado, mesmo sem saber direito como esmaecer dessa vez, de vez em mim, o calor que sumia sem que eu pudesse ao menos interceder. Ali, pelo menos eu ouvia, sim eu ouvia pleno, ao entardecer topo e lento, um doce piano adjacente tocando baixo, que jazia já há algum tempo em mim, mas, eu não queria não e eu não podia, eu não beberia um só gole do porvir de espasmos da tua injúria obcecada ou as utópicas instâncias da tua certeza inexplicável, mesmo ali, induzido pelas moças notas do caminho contrário, avisando-me sobre o desatino da batalha impossível que estaria eu prestes a travar, mesmo ali, eu simplesmente hipocrisia não escutar.

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Poderia, eu poderia até não estar ali. Pudera se estivesse eu sentado na elevação áspera da lúdica anônima calçada, recebendo o carinho gratuito das raras compostas regidas pelas nobres folhagens das boas almas da praça, era uma bonita praça, eram bonitas as almas, e, eu crédulo pensei que podia apenas ter passado por elas e ter voltado pra casa, mas, adepto estava eu herético, ali, naquela chuva fina que caía mirando imóvel o teu imóvel gesto fantasma no desfoque incerto do desfecho pálido da cálida janela desgraçada que não se abria nunca. Ali, daquela antiga janela caíam gotículas gordas imbuídas de trevas correntes d`agua, que, se reuniam todas ali, ali, todas aquelas lavas gotas acesas que se encontravam cada vez mais gordas no enfático baile, desfilando de salto preto alto sapateando acesas propositalmente no perplexo frasco reluzente esfumaçado com todos os amáveis presentes que eu te dei, aqueles que eu nunca abri, e mesmo aqueles que você abriu e não mostrou pra mim, noutro longínquo e remoto passado que ninguém mais toca, que ninguém comenta mais, o vidro embaraçado pela ilustre estreia da pérfida névoa fresca que caía em mim, enquanto eu, ali, defasado e envergonhado, elas continuavam, olhavam a escrete feição evidenciada no palanque manco sem nenhuma nuca calva, eu ali como um plástico retorcido milênios espalhando ruídos pela antessala vazia do vento em escória testemunha sóbria de mim mesmo. Eu sabia, sabia que ali elas estavam todas reunidas e gordas sorrindo da minha flácida e tola faceta carrancuda de

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orgulho destroçado, ali, eu ali naquela minúscula chuva com o branco estupidamente amargo dilacerando corvo o majestoso mastro roseado da minha garganta, eram minhas todas as entranhas amortecidas, todas ungidas em casamento trivial a minha mão trêmula descomunal me assustando e o céu inteiro aspirando toda e qualquer esperança de mim. É, eu estive ali. Ali, eu lembro de cada exímio milímetro do fio de estopo daquela rua conhecida, esperando a vez, a minha vez, enquanto, eu esperando por uma só vez, de novo, desconhecida, você, que não, eu ali outra vez, eu lembro, e de novo, outra vez, eu, ali, desconhecido, entregando tolo todo o meu corpo para morrer na insensatez da tempestade silenciosa, eu lembro que eu, doloroso, esperando o pouco, nada, aos poucos a vez que não vinha, a clava vez não mais existida, incerta vez da outra falseada locução aguda da recortada película astuta que se embaralhou nos chuviscos mudos de uma doença viciosa numa auto piedade em preto e branco. Eu, flagelo, mesmo sonegando os minutos para permanecer ali, fiel, ali, eu esperando os indiscretos abusos da tua ausência, eu, ali, palhaço engodo, desde o primeiríssimo sintoma da estupefaria, provando o escrupuloso desgosto do sangue ácido desta desapercebida poesia, ali, desde que, sempre, abrasando o mínimo lampejo do cigarro desapagado para me aquecer, eu, ali, ao teu lado, só que mais embaixo, colhendo os últimos cacos daquela que caía eu, imóvel, ali, eu bem me lembro que não falei com você naquela tarde que chovia.


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UTILIZAÇÃO DE TÉCNICAS DE PROGRAMAÇÃO NEUROLINGUÍSTICA NA CAPACITAÇÃO DO ALUNO DE ENSINO MÉDIO PARA A INTERPRETAÇÃO TEATRAL DRAMÁTICA Artigo Marcio Tadeu da Costa Docente do Instituto Federal de Santa Catarina – Joinville, coordenador do projeto extensionista DCênico (Linguagem integradora teatral e DCine), tendo desenvolvido a proposta no Colégio Estadual do Paraná, onde lecionou nos cursos técnicos de Comunicação e Arte, Produção Audiovisual e Arte Dramática (Interpretação Teatral). Coordenou grupos e cursos de cinema no Colégio Opet e no Cinevídeo Vídeo 1, lecionou no curso preparatório para o vestibular de Cinema da FAP. Docente da Faculdade Opet nos cursos de Comunicação Social. Educador da Secretaria Municipal de Educação, desenvolvendo atividades de educação teatral. Desenvolveu ações educacionais e culturais no Museu da Imagem e do Som do Paraná e Cinemateca de Curitiba.

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INTRODUÇÃO Na preparação do ator cênico por muito tempo foi determinante a noção de tipo, que define o conjunto das características físicas e vocais que determinavam certo gênero de papeis e somente para este gênero. A partir do séc. XX as pesquisas neste ramo visaram a individualização do personagem, ou seja, sua historicidade, deixando inoperante a noção de tipo. O principal ideólogo desta composição é Constantin Stanislavski, criador do Teatro de Arte de Moscou, que observou os grandes atores, constatando que eles agiam de forma intuitiva e natural. Aliando sua experiência cênica à estas observações criou um sistema, o Método Stanislavski, que é baseado na atuação verossímil, numa série de técnicas e princípios utilizados intensamente até hoje. Um dos pilares do Método Stanislavski é a verdade interior, que consiste na representação do mundo interior ou subjetivo do personagem,

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ou seja, seus pensamentos e emoções. Uma das técnicas apresentadas no Método Stanislavski, é a construção da fé cênica, que representa a ligação do ator com este mundo criado, abstrato, mas crível para ele e seu personagem despertando uma atividade interior e real e o faz com recursos próprios. Esta técnica reporta-se as pressuposições defendidas pela Programação Neurolinguística (PNL), que é o estudo da estrutura da experiência subjetiva. Estas experiências são matéria prima para o indivíduo pré-supor como sendo verdadeiras e depois agirem como se o fossem, ou seja, ligam a consciência do ator com seu personagem. Os pressupostos teóricos apresentados contextualizam a ação desenvolvida no curso de formação de ator, do ensino médio, que é a base oferecida para os indivíduos que pretendem profissionalizar-se na interpretação cênica. Nasce desta constatação a necessidade do estudo do

processo ensino-aprendizagem, a fim de se estudar mais, debater com profundidade e conceituar com segurança o papel do processo da aprendizagem nesta modalidade de ensino. Este estudo oferece uma alternativa para que processo ensino-aprendizagem não seja uma mera cobrança de conteúdos aprendidos "de cor", de forma mecânica e sem muito significado para o aluno. Para tanto objetiva-se analisar se a preparação de atores cênicos foi percebida potencializada com a utilização de técnicas de Programação Neurolingüística, na capacitação da composição formal e na composição da verdade interior de personagens. Utilizou-se como parâmetro de análise, a percepção dos próprios alunos do ensino médio profissionalizante, de um colégio estadual de Curitiba, Paraná, matriculados em um curso de formação de ator cênico, na segunda série do referido curso.


O trabalho foi realizado na disciplina de Interpretação Teatral, que é comum às três primeiras séries do curso profissionalizante, durante os três trimestres do ano de 2011, onde a composição formal e a composição da verdade interior do personagem eram conhecimentos a serem trabalhados tanto na primeira série como na segunda série. Os alunos foram objeto da ação educacional no ano anterior à pesquisa, na disciplina que continha os mesmos conhecimentos e puderam desta forma perceber a utilização das técnicas de programação neurolinguísticas como agente potencializador da preparação do ator, tanto na composição formal como na composição da verdade interior do personagem, delimitando-se o estudo realizado. A participação efetiva do corpo discente na apuração dos resultados do estudo atende á uma perspectiva construtivista sócio-interacionista que propõe uma nova relação entre o professor, o aluno e o conhecimento. Nesta perspectiva o aluno não é unicamente receptor das informações oferecidas no processo ensinoaprendizagem, e sim elemento atuante que estabelece a relação entre suas concepções prévias e o objeto de conhecimento proposto pelo professor, que desempenha o papel de mediador do processo da aprendizagem. Agente do processo o aluno é quem estabelece a avaliação, a partir da sua percepção da apropriação das habilidades propostas, rompendo com a perspectiva tradicional de educação transmissora de conhecimentos prontos e acabados, conjunto de verdades a serem recebidas pelo aluno, gravadas e devolvidas na hora da prova. Esta perspectiva tradicional predomina o processo de ensino atualmente, impedindo o desenvolvimento da criatividade, que é característica essencial para a formação profissional dos alunos matriculados no curso de formação de ator.

A metodologia adotada foi de uma pesquisa aplicada, na modalidade de pesquisa de campo, com uma forma de abordagem qualitativa que se iniciou pela observação e autoavaliação das habilidades necessárias para interpretação, realizada pelos alunos que já haviam realizado capacitação para a interpretação teatral dramática, no ano anterior, quando alunos da primeira série do curso técnico de formação de ator e que no ano do estudo, estavam matriculados na segunda série do mesmo curso. Os alunos foram inquiridos, no início do primeiro trimestre, em sua percepção à respeito dos seus conhecimentos práticos de expressão corporal, expressão vocal, expressão gestual, expressão facial, percepção, observação, imaginação e relacionamento. Estes resultados foram lançados como notas de autoavaliação na média do primeiro semestre. Durante o ano foram realizados exercícios que desenvolveram estas habilidades a partir do treinamento dos alunos na interpretação cênica dramática utilizando o Método Stanislavski basicamente e com a adaptação de técnicas de Programação Neurolinguística aos exercícios de preparação do ator. No final do período letivo foi apresentado espetáculo teatral com o grupo de alunos selecionados para a pesquisa e realizada levantamento verbal e qualitativo da percepção dos alunos quanto à composição formal e a verdade interior do personagem após a utilização da combinação do Método Stanislavski e a Programação Neurolinguística. O material bibliográfico utilizado para a pesquisa é composto basicamente pela bibliografia sobre as Artes Cênicas de Constantin Stanislavski, Jean Jacques Roubine e Patrice Pavis, das artes cênicas aplicadas à educação de Viola Spolin e Olga Reverbel, a educação na perspectiva construtivista sócio-interacionista de Vasco Moretto e na literatura de neurolinguística, John Grinder e Milton Erickson.

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DESENVOLVIMENTO 1. CURSO PROFISSIONALIZANTE DE ENSINO MÉDIO A formação integral do indivíduo é uma preocupação constante dos educadores na atualidade, contemplando além da formação física, psicológica e social a preparação para o mundo do trabalho. As instituições públicas e privadas oferecem uma gama cada vez maior de opções que contemplem as necessidades dos jovens e daqueles que na maturidade buscam uma preparação profissional para ingressar no mundo do trabalho. O Catálogo Nacional de Cursos Técnicos do Ministério da Educação apresenta no seu eixo tecnológico, Produção Cultural e Design, o curso Técnico em Arte Dramática a possibilidade da formação de atores no nível médio. Em Curitiba, uma instituição de ensino público, oferece esta capacitação na modalidade concomitante (noturno) e integrada com turmas nos períodos matutino e vespertino, sendo esta turma o ambiente do desenvolvimento do estudo. Os cursos profissionalizantes de ensino médio são objeto de diversos estudos acadêmicos, que buscam descrever sua identidade, uma vez que há conflito entre a concepção pós-revolução industrial e as diversas concepções atuais, onde as necessidades se alteram, na mesma velocidade e intensidade que se alteram as concepções de homem e de sociedade. O curso de formação de ator cênico, não se exclui destes questionamentos, principalmente por que o entretenimento e a expressão artística, algumas das funções das artes cênicas, são reconhecidos como serviços à serem desenvolvidos por profissionais, e não mais como uma atividade exclusivamente lúdica e amadora, portanto necessitando de formação específica e de qualidade para que possa ser oferecida com o nível de qualidade exigido pela sociedade.

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O processo ensino-aprendizagem exige uma postura dos educadores que contemple a significação das ações propostas, distinta da postura tradicional que se caracterizava como uma mera cobrança de conteúdos aprendidos de forma mecânica, evidenciando-se na avaliação a capacidade de memória do aluno, sem representar a apropriação dos conhecimentos necessários para que este estivesse apto a desenvolver sua atividade laboral com qualidade. Moretto observa que uma perspectiva construtivista sócio-interacionista propõe uma nova relação entre os elementos do processo ensino-aprendizagem, determinando papeis integradores entre o professor e o aluno, onde o primeiro media a relação e o segundo estabelece a relação entre o objeto do processo (conhecimento) e suas concepções prévias, excluindo-se do papel de mero receptor-repetidor. No novo papel, proposto pela perspectiva construtivista sócio-interacionista, os alunos devem participar efetivamente da avaliação dos resultados do processo ensino-aprendizagem, não só oferecendo feedback do processo, mas também como instrumentos de auto avaliação formal, da apropriação do conhecimento. Portanto é necessário que o professor assuma o papel de mediador, também na avaliação do aluno, propondo-se inclusive a discutir um realinhamento das ações pedagógicas, utilização de ambientes e eleição dos recursos pedagógicos utilizados no processo. A nova postura docente estimula o desenvolvimento da responsabilidade do aluno como elemento de grupos sociais, portanto agente ativo destes grupos e desenvolve uma característica tão cerceada nas perspectivas tradicionais de ensino: a criatividade. A criatividade é característica essencial para a formação profissional dos

alunos matriculados no curso de formação de ator, o que evidencia a necessidade da proposição de ações docentes que visem à articulação das disciplinas (núcleo comum e profissionalizante) a fim de potencializarem a formação profissional do aluno. A perspectiva construtivista sócio-interacionista se apresenta como uma alternativa plausível para o desenvolvimento de ações pedagógicas que atendam as necessidades da formação integral do indivíduo, principalmente dos alunos da educação básica. Na educação profissional esta perspectiva se apresenta como um instrumento que permite sua adequação para formação de habilidades comuns ao mundo do trabalho, tais como responsabilidade, disciplina, criatividade, espírito de equipe, etc. O desenvolvimento destas habilidades, independente se eles exercerão as ações profissionais para qual foram capacitados, permite que o trabalho desenvolvido na conclusão da educação básica se revista de significação para o aluno, mesmo que ele redirecione sua carreira profissional, pois o conhecimento desenvolvido fará parte do seu acervo pessoal para o mundo do trabalho, caracterizado como ilimitado e geral, e não somente para o mercado de trabalho que é específico e limitado. Pelo exposto acima a utilização da perspectiva construtivista sócio-interacionista no curso de formação de ator, é um potencializador do processo ensino-aprendizagem, uma vez que a criatividade é elemento básico do repertório laboral do ator cênico, configurando-se um recurso importante na proposição pedagógica, e por isso eleita como instrumento da pesquisa proposta neste estudo.


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2. INTERPRETAÇÃO TEATRAL Ao admitirmos a representação do espetáculo como a consecução da autoria teatral, e não sua peça textual, desde o teatro clássico grego o ator é o instrumento realizador da narrativa fabular. O trabalho do ator basicamente é realizado na composição de uma fantasia crível, primeiro ao compor uma personagem, um ser identificável e distinto dentro de um grupo de outras personagens. Em seguida esta composição deve agir dentro de uma trama, novamente fantasiosa e igualmente crível. Esta sucessão de fatos fantasiosos e críveis enlaça-se em uma narrativa que atrai pessoas em busca da satisfação de diversas necessidades, desde a purgação das faltas e erros a simples risada. No século XVIII Diderot propunha uma interpretação onde o ator assemelhava-se a um fantoche que o diretor indicava a forma assumida. A submissão do ator ao realizador é ampliada na visão de Gordon Craig que propunha a supressão do ator para limpar a cena de qualquer indicio de realismo grosseiro, proporcionando o afloramento do espírito da arte cênica. A compreensão do ator na interpretação como elemento a dificultar a expressão da arte, também foi compartilhado com outros importantes estudiosos do teatro, como Alfred Jarry, Vsevolod Meierhold e Schlemmer. No inicio do século XX, o realizador teatral Constantin Stanislavski apresenta a conceituação de ator e de interpretação que passou a ser uma re-

ferência para professores, diretores e atores. Sua obra dividiu-se na construção da personagem, na preparação do ator e na criação do papel. Stanislavski apresentou a interpretação, não como uma representação a base da emoção, como muitos afirmam, mas que o ator deve fundamentar sua interpretação nas suas experiências, para encontrar a emoção da personagem, tendo domínio técnico para controlar as manifestações desta emoção, modulando e orientando sua utilização para fins interpretativos. Na preparação do ator Stanislavski evidenciou a ação, a imaginação, a concentração, as unidades e objetivos, a memória da emoção, a linha continua e a fé e sentimento de verdade. Outro importante teórico teatral, já na segunda metade do século XX, a comungar um papel secundário do ator na realização do espetáculo cênico foi Antonin Artaud que proclamou uma interpretação teatral onde o ator ficaria submetido a limitações, alcançando uma disciplina vocal e domínio corporal para que o controle do espetáculo fosse executado pelo diretor. Percebemos então que a conceituação da interpretação e do ator diversifica-se à medida que este é estudado e sua arte decomposta e compreendida por pensadores contemporâneos da arte teatral como Bertolt Brecht que propõe uma interpretação que incite o espectador a questionar-se, a partir do comportamento da personagem e das ações empreendidas.

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Para tal finalidade é necessário um ator que saiba evitar a hipnose do espectador levando-o a consciência de que o palco não imita a realidade, mas, por meio do distanciamento permite enxergar esta realidade. Jean Vilar desconsidera a teatralidade na interpretação e a existência de uma técnica, propondo uma abordagem mais empírica a partir da personalidade do ator e da existência de práticas e técnicas surgidas da experiência pessoal do ator. O encenador vanguardista Jerzy Grotowski afirma que tudo aquilo que observamos e ouvimos no palco é

supérfluo, bastando apenas o ator para que a encenação se execute. Este estudo propôs uma metodologia de preparação do aluno para a interpretação teatral que se evidencia pelo desenvolvimento da utilização da expressão dramática como recurso para a execução da representação cênica, sendo esta definida por Pavis como: A expressão dramática ou teatral [...] uma exteriorização, uma evidenciação do sentido profundo ou de elementos ocultos, logo como um movimento do interior para o exterior. É ao ator que cabe, em última instancia este papel de revelador. (PAVIS, 1996. p. 154)

Buscando na decomposição as condições necessárias para o aperfeiçoamento da preparação, não somente para melhor compreensão do aluno das habilidades a serem desenvolvidas, mas também para que no processo de avaliação o aluno e o professor possam identificar claramente os elementos a serem observados. Desta forma a capacidade de expressar-se dramaticamente é considerada uma competência a ser atingida, formada pela interação, das habilidades de expressão vocal, expressão corporal, expressão gestual e expressão facial. A expressão vocal como a utilização da voz, não somente na articulação de palavras, mas sim considerando qualquer som produzido pelo ator, como uma qualidade física do indivíduo. A expressão vocal é composta pelo controle da altura, da potência, do timbre e da colocação da voz, permitindo a identificação do personagem na sua totalidade, como observa Artaud (2006. p. 124) “a sonorização é constante; os sons, os ruídos, os gritos são procurados primeiro por sua qualidade vibratória, e em seguida pelo que representam”. A expressão corporal é composta pelo conjunto das manifestações motoras que possibilitam a projeção de seu esquema de interpretação, Pavis (1996, p. 155) observa que “ela toma emprestadas certas técnicas da mímica, do jogo dramático, da improvisação.” Consideramos a expressão corporal como o conjunto de ações que desencadeiam a movimentação do corpo no ambiente bem como a movimentação do corpo em um único lugar.

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A expressão gestual é compreendida como o conjunto de movimentos corporais controlados e voluntários produzidos na busca de uma significação dependente do texto dito, podendo também ser autônomo dele. Nos exercícios realizados neste estudo, procurou-se pormenorizar o gesto, buscando a compreensão do aluno de que o gesto é elemento formador da expressão corporal, mas que para a interpretação ele necessita ser treinado especificamente, pois como observa Pavis (1996, p. 184) “o gesto é então elemento intermediário entre a interioridade (consciência) e a exterioridade (ser físico)”. Como elemento da expressão dramática o gesto representa para o aluno uma unidade a ser trabalhada, observada e aperfeiçoada na composição da expressão corporal. A expressão facial é parte da expressão gestual, com relevante significação para a composição da expressão dramática. O adágio popular: os olhos são o espelho da alma, traduz a significação que a expressão facial possui como elemento realizador da ligação entre a consciência/inconsciência do indivíduo e o mundo exterior. Ressalta-se que não apenas o olhar, mas todos os pormenorizados movimentos da face executam tal função. A interpretação é um jogo antecipado pelo autor textual, pelo encenador e pelo ator buscando a transposição da obra dramatúrgica a partir dos recursos disponíveis. O amalgama destes recursos, que oferece credibilidade a interpretação, é reconhecida neste estudo como a fé cênica.


3. VERDADE INTERIOR DO ATOR Constantin Stanislavski, em sua obra dedicada ao ator, delimita o que se convencionou denominar de Método para a preparação do ator cênico. Dentre os diversos itens apresentados destaca-se para este estudo o capítulo que trata da fé e do sentimento de verdade. A partir de suas apreciações Stanislavski designou a expressão “fé cênica” que apresenta a capacidade do ator de tornar crível para si a ficção apresentada, constituindo uma verdade para o personagem, a tal ponto que o espectador também perceba credibilidade no que assiste. É importante a diferenciação desenvolvida por Stanislavski entre os dois tipos de verdade ou crença. Uma é a criada automaticamente no plano dos fatos reais, é o que comumente chamamos de verdade. Aquela que fundamenta a “fé cênica” é igualmente verdadeira, como a primeira, mas a sua origem reside no plano da ficção imaginativa e artística, ou seja, tem as mesmas características, diferenciando-se apenas a sua origem. Stanislavski destaca que a importância desta crença reside na realidade da vida interior de um espírito humano em um papel e a fé nessa realidade. A verdade em cena é tudo aquilo em que podemos crer com sinceridade, tanto em nós mesmos como em nossos colegas. Não se pode separara verdade da crença e, nem a crença da verdade. Uma não pode viver sem a outra, e sem ambas é impossível viver o papel ou criar alguma coisa. (STANISLAVSKI, 1999. p. 169) É importante salientar que a crença ou fé cênica é resultado de um processo de construção interpretativa, onde se deve avançar pouco a pouco, recorrendo no trajeto ao auxílio de pequenas verdades, que solidificarão a crença desejada. O ator deve concentrar-se nas ações mais simples na base física, pois estas são a essência da conquista por estas pequenas verdades. O primeiro a ser convencido é o próprio ator, que por meio dos pormenores realísticos, deve convencer-se da veracidade do que faz em cena, chegando a sentir-se integrado em seu papel e a depositar fé na realidade de um espetáculo. Para atingir a verdade essencial de cada pedacinho e poder acreditar nela, temos de usar o mesmo processo que utilizamos na escolha das nossas unidades e objetivos. Quando não se consegue crer na ação maior, há que reduzi-la as proporções cada vez menores até se poder crer. (STANISLAVSKI, 1999. p. 180) O processo que desenvolve a verdade interior é composto pela subdivisão em partes do ato interpretativo, devendo acrescer detalhes que proporcionem o convencimento da verdade até que alcancem a esfera de ação mais ampla capaz de convencê-lo. A partir do momento que as partes se encaixam, formam um ato continuo que pela repetição é reforçado, resultando na credibilidade do ato interpretativo.

Estabelecido a vida física, com sua crença baseada em sentimentos da sua própria natureza, o ator exclui abstração do seu processo criativo, utilizando uma técnica consciente para a construção do corpo físico da personagem, com condições para criar, sustentado pelo corpo físico, a vida subconsciente da alma da personagem. A personagem criada com fé cênica deve responder a algumas indagações a serem realizadas pelo ator, num primeiro momento e compartilhada com os demais participantes do processo criativo. São questões referentes à: a. Estrutura física da personagem: modo de andar, modo de respirar, modo de olhar, modo de sentar, posição de braços e mão, traços físicos destacáveis, deformidades físicas, peso percebido, cacoetes, idade, etc. b. Estrutura emocional da personagem: tipo de personalidade, conflitos, aspirações, adjetivos positivos, adjetivos nocivos, comportamento, etc. c. Estrutura social da personagem: ocupação profissional, grau de instrução, classe social, classe econômica, condição familiar, comportamento político, etc. Com a estrutura física, estrutura emocional e estrutura social definidas, o ator está apto a disponibilizar sua personagem, para que esta ingresse no espaço diegético cênico e possa interagir com as demais personagens para construírem o espetáculo cênico.

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4. PROGRAMAÇÃO NEUROLINGUÍSTICA A Programação Neurolinguística, conhecida como PNL, recebeu primeiramente a denominação de Modelagem da Excelência Humana realizada pelos seus fundadores John Grinder e Richard Bandler, que estudaram os padrões pessoais de comportamento e realizaram a construção de um modelo, fundamentado na gramática entre pensamento e ação, que objetiva a excelência comportamental na obtenção dos resultados esperados por meio da influenciação. Uma das suas principais definições é que trata do pensamento a respeito de determinado assunto, influenciando muito a maneira com as pessoas irão vivenciá-las. Esta descoberta aconteceu no tratamento de fobias. A PNL agregou alguns pesquisadores que aprofundaram os conhecimentos iniciais, dentre eles o Dr. Milton Erickson, fundador da Sociedade Americana de Hipnose Clínica, ao observar em seus estudos que seus pacientes, ao lembrarem de certos pensamentos ou sensações, entravam naturalmente em um breve estado de transe e que esses pensamentos e sensações poderiam ser usados para induzir a consciência como induziam a inconsciência. Bandler, Grinder e Erickson combinaram suas descobertas e técnicas criando uma forma de compreender e reproduzir a excelência do comportamento humano, por meio da reprogramação do cérebro humano, utilizando códigos verbas e não verbais.

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O termo neurolinguística refere-se aos caminhos mentais percorridos pelos sentidos (olfato, visão, audição, paladar e tato) e suas interconexões, estimulados pela capacidade humana de utilizar-se da linguagem para determinar nosso comportamento. A linguagem se refere também à utilização de atitudes, gestos e hábitos que revelam nossos pensamentos, crenças e outras variáveis intangíveis. Robert Dilts define a PNL como o princípio fundamental de que o comportamento humano é o resultado do processo neurológico, representado, ordenado e colocado sequencialmente em modelos, por meio das diversas formas de linguagem e de modelos de comunicação, que interagem com o indivíduo, especialmente as formas internas. Este processo de organização dos componentes do sistema pode ser programado, para se atingir os resultados esperado. Apesar da utilização literária que trata a programação neuroliguística como uma terapia, um dos seus criadores, Richard Bandler, apresenta uma abordagem educacional a este estudo, ao afirmar: A PNL, simboliza, entre outras coisas, uma maneira de se examinar o aprendizado humano. [...] acho mais apropriado descrevê-la como um processo educacional. Estamos, essencialmente, desenvolvendo formas de ensinar às pessoas a usarem o seu cérebro (BANDLER, 1987). É importante salientar que a consciência ou não da utilização da PNL como ferramenta educacional, não exclui sua atuação no processo ensino-aprendizagem, da mesma maneira que a maioria das pessoas não usa seu cérebro de maneira ativa e refletida, o que não significa que o mesmo paralise suas funções ou deixe de agir em conjunto com os processos linguísticos. A PNL é uma disciplina que trabalha uma coletânea de procedimentos mensurados pela sua utilização, que apresenta ferramentas específicas aplicadas efetivamente na interação humana. A PNL possui técnicas que organizam e reorganizam a experiência subjeti-

va do indivíduo, para definir seu comportamento ou para obter resultados comportamentais. A linguagem, principalmente a escrita e a falada, permite dar novo significado ao presente e ao passado, constituindo-se em itinerário para o futuro. A Programação Neurolinguística foi definida por Joseph O’ Connor (2011, p. 2) como o estudo da estrutura da experiência subjetiva. Estas experiências são matéria prima para o indivíduo pré-supor como sendo verdadeiras e depois agirem como se o fossem, ou seja, ligam a consciência do ator com a estrutura emocional, social e física da sua personagem.


5. APLICAÇÃO DA PNL NA CONSTRUÇÃO DA VERDADE INTERIOR A aplicação dos conhecimentos da programação neurolinguística no processo de construção da fé cênica aconteceu durante as aulas da disciplina de Interpretação Teatral, no estágio posterior à fase de nivelamento dos atributos básicos de comunicação. Os atributos básicos de comunicação podem ser entendidos como condições sensório-comportamentais: a. Observação: desenvolvimento dos órgãos sensoriais ao identificar detalhes em objetos, ambientes, pessoas e ações. É necessário que o ator possa descrever os detalhes do que foi observado aguçando a capacidade de detalhamento e memória. b. Percepção: função cerebral que atribui significado, a partir da organização e interpretação, aos estímulos sensoriais observados, considerando as experiências anteriores do indivíduo. c. Imaginação: é a representação de acordo com as características observadas e percebidas. d. Relacionamento: é a interação do indivíduo com seu ambiente, consigo e com as demais pessoas. Trabalhados estes elementos sensório-comportamentais, nivelando-se os alunos, independente de sua experiência anterior com atividades cênicas, realizou-se uma modalidade de exercício específico, repetindo-se sua estrutura com temáticas (sentimentos) diferentes, com objetivo de auxiliar a construção da verdade interior de personagens.

Descrição do exercício: Marcas PNL Inicialmente trabalhou-se à concentração do aluno. Entende-se por concentração um grau elevado de atenção para o processo cognitivo de focalização e seleção dos estímulos sensoriais. Fundamentado nas conclusões do Dr. Milton Erickson ao observar que a mente está disposta a ouvir sugestões, optou-se pela utilização de um estado elevado de concentração do aluno para execução dos exercícios. Ele salienta que os estados de concentração são cotidianos, representados pela imersão que dedicamos ao desenvolvimento de qualquer atividade física ou mental. Erickson denominou de técnica indireta quando é oferecido ao indivíduo a oportunidade de aceitar as sugestões que são confortáveis a ele e a escolha do ritmo e intensidade do exercício. a. Na primeira fase do exercício são criadas condições fisiológicas e motivacionais para que o estado de concentração se estabeleça. A primeira condição, fisiológica, dá-se pela preparação do ambiente, com a diminuição considerável da luminosidade, natural ou artificial, a supressão de estímulos sonoros incontroláveis (sons ambientais) adicionada à orientação para que o aluno eleja uma posição confortável, preferencialmente deitado, para execução da atividade. A condição motivacional é a explanação da importância do exercício para a consecução da construção da verdade interior, bem como a liberdade do aluno de escolher encerrar o exercício quando sentir-se desconfortável. Além destes acordos, toda a narrativa estabelecida se relaciona com a individualidade do aluno, sem qualquer tipo de direcionamento segregacionista. São utilizadas expressões genéricas, por exemplo: a pessoa que você ama. Neste exemplo não se direciona para familiares, companheiros ou amigos, o aluno elege a pessoa que ama.

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b. A segunda fase do exercício refere-se à respiração. Com os alunos em repouso físico e em silêncio, o ambiente climatizado, sonorizado por uma melodia calma, preferencialmente instrumental, inicia-se um os exercícios respiratórios, sob a condução do professor:

“Respirem fundo. Encham o diafragma de ar e soltem. Inspire. Expire. Inspire. Expire.”

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Importante salientar que a intervenção do professor nas ordens apresentadas deve oferecer o ritmo da respiração da turma. Ele deve diminuir o ritmo da inspiração e expiração, levando o grupo a uma respiração profunda e lenta. c. A terceira fase é um misto de respiração com preparação para concentração. O professor deve conduzir seus alunos para a percepção do seu corpo, provocando um aguçamento sensorial, produzindo um elevado estado de concentração. O aluno deve ater-se exclusivamente a sua fisiologia, não percebendo mais outros estímulos ambientais, a não ser a voz do professor e seu próprio corpo. O texto do professor deve iniciar um processo sinestésico: “Respirem fundo. Sem abrir os olhos, observe um dos seus dedos do pé esquerdo. Mexa-o levemente. Sinta-o mover-se, sem que eu possa enxergar seu dedo mexendo. Faça leves movimentos. Respire fundo. Inspire. Expire. Agora preste atenção no seu tornozelo. Sinta-o mexendo. Escute o barulho das juntas movimentando-se, de tal forma que eu não possa ver ele se mexendo. Devagar, muito devagar. Inspire. Expire. Agora observe seu joelho. Mexa-o lentamente, gire sua rotula, de tal maneira que você escute as articulações sem que eu possa ver seu joelho movimentar-se. Inspire. Expire. Preste atenção em seu ombro. Movimente-o. Inspire. Expire. Agora vá ate seu cotovelo. Movimente-o, sem que eu perceba você mexer. Inspire. Expire. Atente-se aos dedos de sua mão. Escolha um dedo e mexa-o. Escute as articulações se mexendo, sem que eu perceba seus dedos mexendo. Inspire. Expire.”

d. A quarta fase inicia o processo de vasculhamento emocional, onde o professor elege outra música para a realização do exercício, e inicia a narração de um texto que propicie ao aluno a rememoração significativa, relacionada a um determinado sentimento escolhido. Para exemplificar utilizaremos o texto utilizado para o sentimento de “perda”. Para este exemplo foi escolhida a música “Everybody hurts” interpretada pela banda irlandesa “The Corrs”. A narrativa é a seguinte: “Inspire. Expire. Agora observe seu coração. Sinta suas batidas. Observe seu pulsar. Olhe para ele, sem abrir os olhos. Veja como ele se movimenta. O coração onde guardamos nossas emoções, nossos sentimentos. Agora veja a sua sala de aula, como você vê todos os dias. Escute o sinal do término das aulas, como você escuta todos os dias. Dirija-se para o portão da escola, como você se dirige todos os dias. Vire-se e olhe sua escola. Observe o que ela tem de mais bonito. Veja o que ela tem de mais feio. Sinta o cheiro que você sente todos os dias, quando sai da escola. Pegue o ônibus, o carro, ou vá andando, como você faz todos os dias. Aprecie as imagens que você vê todos os dias quando vai para sua casa. Veja aquela que mais te impressiona. Observe aquela que você mais gosta e que você vê todos os dias quando vai para sua casa. Sinta o cheiro desta imagem. Veja a imagem que mais te desagrada no caminho de sua casa, que você faz todos os dias. Sinta esta imagem, como você sente todos os dias. Chegue à esquina de sua casa, e veja a primeira imagem de sua casa, do seu lar, como você vê todos os dias. Pare na frente do portão da sua casa, ou da porta do seu prédio.

Entre. Suba as escadas ou ande pelo quintal, como você anda todos os dias, em direção a porta do seu lar. Olhe para a porta da sua casa, veja a porta que separa seu lar do mundo exterior. Abra a porta como você faz todos os dias. Entre. Feche a porta e observe a primeira imagem que você vê quando chega em casa, exatamente como você vê todos os dias. Sinta o cheiro que você sente todos os dias quando chega em casa. Observe os objetos que estão no mesmo lugar onde eles estão todos os dias. Tudo está exatamente igual como todos os dias quando você chega em casa. Mas... Há uma diferença. Alguém está faltando. Alguém que você encontra todos os dias, quando chega em casa. A voz da pessoa que você encontra todos os dias, está em silêncio e você nunca mais vai ouvir esta voz. A imagem da pessoa que você encontra todos os dias, nunca mais será vista. O cheiro da pessoa que você encontra todos os dias, não mais será sentido por você. Cheiro doce, cheiro ocre, cheiro forte, cheiro suave. Nunca mais você sentirá este cheiro. Sinta. Perceba a perda que você tem em seu coração. Perceba como seus músculos reagem a perda que você constata neste momento. Esta perda mexe com seu corpo, registre esta perda. Registre o cheiro desta perda. Ouça o som desta perda. Sinta na pele esta perda e registre, não perca, não desperdice este sentimento.” e. A quinta fase do processo refere-se ao retorno. O professor alerta aos alunos que esta é uma viagem imaginária fantasiosa e que eles devem abrir lentamente os olhos. A luminosidade deve retornar paulatinamente e a música deve diminuir o volume. O professor orienta os alunos a bocejarem e espreguiçarem.

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Após a conclusão do exercício os alunos consequentemente marcarão em suas mentes o estimulo sensorial (música escolhida) com o sentimento proposto, o que denominamos: Marca PNL. O estímulo sensorial auditivo será o elemento a ser associado a este sentimento no futuro, facilitando a crença do ator no que será necessário ao personagem, até que o ator consiga pela repetição controlar as verdades físicas e emocionais que ofertarão a fé cênica. A segunda consequência é a exploração pelo aluno dos seus sentimentos, e o reconhecimento que estes sentimentos, oriundos de experiências vivenciadas, devem servir de base para a construção da verdade interior das personagens. A terceira consequência do exercício e a apropriação pelo aluno da técnica de realizar “Marcas PNL” de acordo com suas necessidades específicas, independente da direção do espetáculo. Exclusivamente na construção da sua personagem, proporcionando autonomia laborativa do ator em relação à direção geral do espetáculo. A complementação acontece dias depois da execução do exercício citado acima. O professor oferece um texto onde o sentimento principal a ser realizado é similar ao trabalhado no Marcas PNL. Os alunos lêem o texto, preparam a apresentação e executam. Depois o professor solicita uma nova leitura, só que com a música trabalhada no Marcas PNL.

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Repete-se a preparação e execução, sonorizados pela música trabalhada, sendo realizada com os alunos uma avaliação das diferenças na construção da verdade interior da personagem. Em um exercício de preparação de atores, as músicas não necessitam ter relação com um determinado texto. Quando da construção da verdade interior de uma determinada personagem ou de um determinado espetáculo, os estímulos sensoriais auditivos devem estar inserida na trilha sonora eleita para o espetáculo, para potencializar o processo. Não se exclui a utilização de estímulos olfativos, visuais, gustativos e táteis quando o espetáculo assim proporcionar. Constantin Stanislavski (1999. p. 209) apresenta a utilização ampla dos sentidos na formação da verdade interior, quando apresenta os “sentidos do olfato, paladar e tato sejam úteis [...] e tem por objetivo influenciar nossa memória das emoções”. As sessões foram repetidas com um intervalo considerável entre elas, cerca de trinta dias, pois não podemos ignorar o fato do público ser adolescente e necessitar processar estas emoções. Prepara-se o aluno não só para a interpretação como também para a catarse do espetáculo dramático. Desta forma este exercício repetiu-se, como treinamento e instrumento que possibilitasse ao aluno autonomia para a construção de sua competência laborativa.


CONSIDERAÇÕES FINAIS Os alunos foram inquiridos, após travarem conhecimento com os elementos necessários para a interpretação teatral e a construção da fé cênica, a saber: Expressão vocal, Expressão corporal, Expressão gestual, Expressão facial, Observação, Percepção, Imaginação e Relacionamento, na forma de autoavaliação, sem que estes elementos fossem desenvolvidos com exercícios, apenas para com o resultado mensurar a percepção dos alunos a respeito destas habilidades. Na segunda metade do período letivo iniciou-se a preparação para um determinado espetáculo. No final do período letivo de 2011 o espetáculo foi apresentado, e os alunos realizaram nova autoavaliação, desta vez expondo suas percepções.

Além da percepção externada pelos alunos que comprovou a utilização de técnicas de Programação Neurolinguística, como agente potencializador do Método Stanislavski para a preparação do ator, tanto na composição formal como na composição da verdade interior da personagem, a observação do professor ratifica tal afirmação. Diferente dos primeiros exercícios de interpretação, mesmo sendo o segundo ano que trabalhavam com interpretação e resguardado um número pequeno de alunos que tinham outras experiências cênicas, os alunos demonstravam muita insegurança, na realização destes primeiros exercícios de interpretação e poucas alternativas para construção de personagens. Diferentemente, na realização de três sessões em forma de

ensaio geral aberto, realizado na semana cultural do colégio objeto do estudo, com significativo número de adolescentes como público expectador, os alunos apresentaram segurança das suas ações no palco e externaram qualitativamente estas considerações. A formação da estrutura cognitiva ligada a imagem, dos adolescentes facilitou a imaginação e sua transposição para o palco, na forma da verdade interior e na composição formal do personagem. Os resultados do estudo proposto, principalmente o externado qualitativamente pelos alunos, indica as técnicas trabalhadas como potencializadoras do Método Stanislavski podendo ser utilizadas por grupos de teatro e principalmente na educação formal do ensino da arte cênica.

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THYMOS – ORGANICIDADE COMO PRINCÍPIO CETA – CENTRO EXPERIMENTAL DE TEATRO E ARTES Entrevista Conselheiro: Lino Rocca – Bacharel em Artes Cênicas e especialização em Direção Teatral Unirio/1994 e Pós graduado em Produção Cultural/2012 IFRJ. Idealizador e fundador da Rede Baixada em Cena Prêmio Shell 2017 categoria Inovação. Performer: Vânia Santos – Atriz e circense formada pela Escola Nacional de Circo// Funarte/Minc 2004. Atriz participante do APA - Atelier do Ator do Sesc//Paraty coordenado pelo ator Carlos Simioni do LUME/Campinas e pelo diretor Sthefane Brodt do Teatro Amok/RJ. Focalizadora de Danças Circulares. Premiada em diversos festivais como atriz: São Mateus/ES, Barbacena/ MG, Presidente Prudente/SP, Duque de Caxias/ RJ entre outros. Premio Nacional de “Boas Praticas” com Oficina Permanente de Teatro e Circo pela Funarte/Minc 2011.

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ARGUMENTO: Para podermos começar nossa conversa situando a leitora e o leitor, o que seria resumidamente o processo “Thymos”? LINO: O Thymos é um processo de pesquisa para o ator, de realização pessoal e de encontro com sua energia vital. Conceitualmente, “Thymos” consiste num conjunto de práticas psicofísicas envolvendo cânticos de trabalho e de festas afros, indígenas e europeus juntamente com danças circulares de caráter coletivo e tradicional. Neste processo buscamos a dilatação da percepção corporal e vocal extra-cotidiana do indivíduo como base para o encontro com sua energia vital e o trabalho "sobre si" como propuseram Stanislavski e Grotowski. O termo “Thymos” é uma palavra vinda do grego que significava energia vital. Os gregos acreditavam que existia uma glândula no plexo solar onde se encontrava a energia vital de cada pessoa, e que essa energia vital era o que fazia a ligação com o mundo superior. O processo do “Thymos” foi formatado há uns dois anos. ARGUMENTO: Em sua pesquisa, há um cuidado muito grande tanto com as metodologias do trabalho quanto com os nomes utilizados para os conceitos. Porque tamanho apreço? LINO: Para nós, a metodologia e terminologia são dois preceitos fundamentais. Existe uma relação muito concreta entre a prática e seus códigos como também é preciso pensar na estrutura e no processo. Como o “Thymos” é

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um processo muito intenso, a terminologia passa a ser muito importante. Precisamos ter muito cuidado com a maneira como nos comunicamos porque nosso trabalho é muito específico. Sobre a palavra “mentor”, por exemplo: começamos com a palavra em inglês “mastermind”. Mas após um tempo ela ficou fora de contexto. Depois encontrei a palavra mentor e agora estamos passando por uma nova transição onde o termo “Conselheiro” ou seu correlato em italiano “Consigliere” está surgindo. Quando estivermos em um processo de intercâmbio ou didático, esse termo pode ser mais funcional, mais lúcido. É dessa forma que construímos esse caminho. ARGUMENTO: Ainda falando sobre terminologia, na pesquisa de vocês, é usado o termo “assistência”. Nunca havia ouvido falar deste termo para se referir às pessoas que assistem e/ou participam da Performance. Gostaria que você comentasse um pouco mais sobre ele. LINO: A questão é que as palavras carregam o sentido que lhes foram atribuídas com o tempo. O nosso processo tem a ver com o fazer teatral, mas não tem a mesma função que um espetáculo como entendemos hoje. Nós sabíamos que não estávamos trabalhando na ordem do espetáculo. Portanto, surge uma pergunta: se eu descubro a morte do espetáculo, o que pode vir depois disso? O que seria fazer o que fazemos fora do sentido do espetáculo? Tivemos então que mudar algumas

relações e com isso, os nomes que damos a essas relações. Quando paramos de usar o termo “público” e passamos a usar o termo “assistência”, mudamos a sentido anterior para o ato de assistir, de ajudar, de participar. Além disso, é possível perceber que a ideia de assistência tem uma relação muito profunda com o conceito de testemunho, aquele que presencia e testemunha um ato. Neste caso o testemunho não seria a reprodução de algo ou de aquilo que se assiste, mas sim uma “vivência”. Aí se torna mais fácil de perceber o novo tipo de relação que queremos provocar. Portanto, a ideia de assistência vem da relação testemunhal, daquela pessoa que assiste não só de forma distanciada (quarta parede), mas de forma vivencial. A assistência está, literalmente, dentro da ação, é coparticipante da estrutura da ação. A ação acontece por causa da assistência que está presente no dia. Não é um público que está ali para que algo seja entregue para eles, mas um público que está para ser assistente - auxiliar quem executa uma ação - que é uma relação presencial e vivificada entre aqueles que estão ali naquele momento, naquele tempo compartilhado. Também tem a ver a com ideia de auxiliar, assim como em algumas cerimônias sagradas onde existe uma assistência que participa e auxilia na execução do Rito. No geral ela exerce determinadas funções e relações, e é sobre essas relações que o Rito acontece de forma total. O melhor termo seria participativo. É uma relação testemunhal e participativa.


ARGUMENTO: eu percebo pelo que você escreveu que existe uma relação tanto com essa energia superior quanto às camadas mais profundas do ser, que remete muito ao trabalho do LUME. Como se dá essa relação entre essas camadas mais profundas e essas forças superiores, externas? LINO: Acreditamos que a primeira estância do trabalho do ator reside no que chamamos de forças sensoriais, que está relacionada com os sentidos, com a racionalidade, com as emoções e com a própria noção de estética em sua forma mais abrangente. Esse processo sensorial é a primeira camada do trabalho do ator. Para atingir esse e outros níveis dentro do processo, é preciso passar por um período de treinamento psicofísico com o intuito de desenvolver essas forças. Logo percebemos que algo além vai surgindo no decorrer da vivência atoral. A partir daí, outro nível de energia que está por baixo ou por cima dessas forças sensoriais se torna literalmente visível. Resolvemos intitular esse outro nível de forças espirituais, ou melhor, forças anímicas. Nesse caso, não há relação com o sentido esotérico e místico, mas com sentido analítico, do espírito, da alma, animus e anima. Portanto, trata-se de uma força anímica. Nossa definição imagética está ligada a ideia das camadas que uma cebola tem. Conforme você trabalha, essas camadas vão aparecendo e produzindo outras novas camadas, ininterruptamente.

Essas descobertas aconteceram por causa de um monólogo que fizemos após 20 anos trabalhando. A Vânia Santos, que é a Performer dessa pesquisa possui formação na Escola Nacional de Circo. Então pelos seis primeiros anos, focamos nosso trabalho conjunto entre a formação em técnicas circenses e as técnicas teatrais que desenvolvíamos. Hoje percebemos como as técnicas circenses tem uma grande ligação com o que chamamos de forças sensoriais devido a sua alta complexidade no trabalho psicofísico exigido. Diferentemente do Teatro, a técnica para o Circo propõe a radicalidade do

risco o tempo todo. Não existe zona de conforto, o trabalho é sempre no limite, portanto, transcendente. Para finalizar este tópico é necessário enfatizar que nossa pesquisa nada tem a ver com o processo do Lume. Apesar da profunda admiração, amizade e aprendizado que tanto eu e Vânia desfrutamos com Carlos Simioni. Por isso é importante dizer que nosso trabalho se deriva de um longo caminhar feito por nós na busca de inquietações, inclusive, com diferenças de tempo, conceitos e formas, mas balizadas por uma confiança mútua inabalável.

Na realidade esse processo é de individuação, ou seja, a pessoa está no caminho do seu “self ”, no encontro de sua energia pura. Usamos também o termo persona, que possui relação com a máscara no teatro grego. Acredito que o ser humano é constituído de várias camadas de persona. Na medida em que essas camadas vão emergindo, vindo à tona ou sendo descobertas, o Performer consegue entender melhor quais são as suas energias motivadoras. Diferentemente do Ator, que constrói uma persona, o Performer revela essas personas. Então, esse processo é sobre saber controlar o jogo de Alteridade entre essas forças sensoriais, anímicas e as personas. O Performer percebe quais são as energias estabelecidas para que essas ou aquelas personas surjam.

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ARGUMENTO: Uma pergunta que vocês mesmos se fazem que é a seguinte: existe a possibilidade de estabelecer essas forças espirituais também na assistência? LINO: De uma maneira geral, acredito que o Teatro faça isso. Mas hoje essa questão é muito corrompida pelo fetiche mercadoria em que a nossa sociedade vive. ARGUMENTO: Em que sentido estaria corrompida?

COSTUMO CHAMAR GRANDES MESTRES COMO BARBA, GROTOWSKI E BROOK DE MESTRESSOMBRAS: NÃO ESTÃO TÃO LONGE QUE EU NÃO POSSA VER A SOMBRA E NÃO TÃO PERTO QUE EU PRECISE SEGUI-LOS O TEMPO TODO.”

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LINO: Há uma procura por espetáculos que está relacionada diretamente ao entretenimento e ao lazer mais do que propriamente com a possibilidade do encontro. Isso não é a totalidade, mas grande parte do que se entende como mercado teatral funciona nesse sentido. Às vezes encontramos algumas ações que estão em outro campo, experimental ou vanguarda, que são os termos geralmente utilizados para definir esse fazer alternativo. No teatro contemporâneo, devido à radicalidade do fetiche mercadoria, estamos com uma necessidade de novas possibilidades de sociabilidade, consequentemente, precisamos de um novo espaço de encontro. Existe a necessidade de encontros para que as pessoas possam

trabalhar sua energia pessoal e conseguir transcender esse mundo mercadoria que está posto. Não podemos ficar fora dele, pois ele está aí. Mas podemos propor novas possibilidades. O importante para nós, é que hoje trabalhamos na “Arte do Encontro”. O próprio termo “espetáculo”, por exemplo, vai trazer todo o vínculo que já existe: um lugar onde as pessoas vão ver alguma coisa e depois sair e comer uma pizza, dizer se o espetáculo foi A, B ou C, se o padrão funcionou etc... Existe um modus operandi pré-estabelecido nessa relação. Para nós, o processo do Thymos não era um espetáculo nesse sentido, então começamos a chamar de performance, que ganhou o nome de Roda, Rodar, Rodei... Essa performance é baseada no poema Tranças de Maria, de Cora Coralina. E como surgiu isso? O processo do Thymos é um processo de cantos sagrados afros, indígenas, mantras, etc. Pesquisamos muitos desses cantos e a Vânia foi se apropriando deles e experimentando como esses cantos a mobilizavam. Passamos 6 a 8 meses só nós dois trabalhando. Vale ressaltar que dentro desse processo não existia a função de diretor como conhecemos: aquele que constrói um projeto teatral de uma forma específica.


Depois nós expandimos e convidamos alguns alunos da escola de circo que temos há 18 anos – que trabalha com jovens em risco social – e então começamos a fazer o processo do Thymos com eles. Primeiro fomos nós, em seguida com um grupo próximo e por fim convidamos grupo de pessoas entre atores, atrizes e pessoas não relacionadas com a área como: cantores, psicólogos, psiquiatras, contadores de histórias, etc. Agora sobre a Performance Roda, Rodar, Rodei!: o seu germinar ocorreu num dia em que a Vânia, após assistir o filme Tranças de Maria, de Pedro Carlos Rovai, começou a narrar a história como a tinha visto e sentido, inclusive com referências de imagens e ao mesmo tempo ela começou a cantar cânticos que havia pesquisado no processo do “Thymos”. Essa narração junto com os cantos começou a criar uma mobilização e entendemos que dali algo a mais poderia acontecer. Então, ela começou a estruturar tudo. Chamamos essa estrutura cênica de Roda, Rodar, Rodei! O nome traz a ideia da roda, do rodar do giro sufi e de rodei, de quem foi para outra esfera. Também possui uma estrutura cênica fixa, mas como é uma Arte de Encontro, a assistência é atuante, ela testemunha e participa. Mesmo a estrutura não sendo móvel, ela produz uma energia própria. É daí que surge a ideia do Pontifex, aquele que faz pontes. Pois essa pessoa, o Performer, começa a trabalhar as energias vitais que estão ali naquele encontro e acontece a troca entre essas energias. É um processo de individuação em um contexto coletivo onde revelamos outras camadas de possibilidade de encontro. O Performer é justamente esse que vai percebendo e ajudando o Outro a trazer suas camadas para à tona. ARGUMENTO: E assim a tirar suas máscaras? LINO: Na medida em que a assistência vai revelando as suas personas (mascaras) com a ajuda do Performer, ela começa a adentrar cada vez mais no processo de individuação. E isso só pode acontecer nessa condição: através de uma estrutura rígida com protocenas pensadas e elaboradas pelo Performer e Conselheiro tendo em conta que algo “orgânico” vai nascer invariavelmente do conjunto reelaborando as camadas energéticas da vivência. E isso é muito potente. Eu acredito que o Performer é como se fosse um detonador. A energia já está lá. O Performer sabe onde detonar o processo energético. Mas deve ficar bem claro que o processo da Performance como o próprio trabalho do “Thymos” é a superação das camadas, não a sua destruição ou negação. Nós queremos que o indivíduo encontre suas máscaras, suas camadas energéticas, que ele saia do campo físico das lembranças corporais que remetem à memória e que ele busque uma energia do inconsciente coletivo, em direção aos arquétipos e a forças ancestrais. Pensando no nosso trabalho com o canto, a ideia é nos aprofundarmos até chegarmos na voz que cantou pela primeira vez. Realmente acreditamos que é possível chegar a energias ancestrais, mas para isso a pessoa deve estar muito preparada, pois são energias muito potentes. Como diria Vânia: selvagens! (uma piada interna) ARGUMENTO: E existe algum tipo de perigo ou cuidado a se tomar quando a pessoa vai adentrando essas camadas mais profundas? LINO: Sim e não. Se você tem um Mestre que não está preparado pode haver problemas. Agora, se você possui um Mestre bem preparado, dificilmente isso irá acontecer. Fica a pergunta como encontrar esse mestre? Primeiro é necessário encontrar as fontes que te mobilizam, segundo ter referências sobre estas fontes se possível in loco, terceiro praticar e quarta escutar o Outro, pois a melhor mediação na Arte do Encontro é o Outro. Ele te apontará a verdade da mentira, a cura da doença e a lucidez da loucura. Porque para nós é nítido que a energia ganha forma, então a partir do momento que ela ganha forma ela se extravasa. Daí podermos usar o termo Catarse para quando ela acontece e é expurgada para fora. Além disso, algumas pessoas podem achar que é terapêutico, que é sobre estética ou sobre conexão mesmo. Essas três ondulações vão estar presentes o tempo todo. As conexões com transcendência, com o ir além, a conexão de você com sua energia pessoal e a sua expressão estética vão estar ali, porque é sobre esse material que a gente trabalha.

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O Performer é alguém que se preparou por muito tempo – um caso raro na natureza – conhece os caminhos nesse processo de religare, de conexão para guiar esse processo é necessário um domínio muito específico. O Performer deve saber o momento em que a energia vai por outro caminho. Ao mesmo tempo é capaz de percebe quando a energia pode ser produzida e como ela pode ser diluída. Se o arquétipo vem e depois se dilui, ele não está mais no consciente, já cumpriu sua função, dificilmente haverá algum transtorno. Particularmente, hoje meu desejo na pesquisa é desenvolver uma metodologia de processo para o Performer. No que diz respeito ao processo do “Thymos”, é preciso não se esquecer de falar: nós não trabalhamos de forma ininterrupta porque é muito potente. Acreditamos em uma área de silêncio e repouso. É necessária a eclosão daquelas energias, porém depois é necessária uma área de silêncio. Seria o processo de silêncio interno do Ator. ARGUMENTO: Outro conceito dentro da sua pesquisa é “organicidade”, poderia comentar um pouco mais sobre ele? LINO: A organicidade tem a ver justamente com o organismo vivo, que interage com o ecossistema que está ao seu redor. Então não temos representação. Há apresentação. Você tem uma vivência, você está ali. Uma coisa que adotamos como princípio foi à busca por tentar entender o que chamamos de técnicas de organicidade, ou seja, técnicas que possibilitem o aparecimento do organismo vivo, onde possamos

perceber a produção da energia pessoal e sua expansão. Isto é muito concreto, pois todo nosso Ser fica “em atenção” ou “em tensão” porque essas forças nos mobilizam integralmente. As coisas no mundo mexem com nossos sentidos e é com essas energias e suas ondas, ou seja, nossas paixões no sentido platônico, que devemos trabalhar. Existem várias técnicas que produzem essa organicidade, técnicas vivas, assim como também encontraremos técnicas que não a produzem, técnicas mortas. E isso é um grande entrave da pesquisa teatral. Como perceber o que está o vivo ou morto? A gente percebeu que quando você trabalha na busca da energia vital, você trabalha na busca da organicidade. Então, o que você passa a fazer é observar. Assim o olhar externo do Conselheiro, como anteriormente falamos, é perceber a organicidade produzida pelo Performer. Temos que pensar em como não ficarmos presos naquela primeira camada de cebola, ou seja, preso nas nossas forças sensoriais. Tentar ir mais fundo. Para nós isso tem relação direta com a questão da leitura estética. Numa ação “bela” necessariamente não haverá organicidade, contudo, numa ação “feia” pode haver organicidade. ARGUMENTO: Parece-me, também, que a organicidade ou a energia vital pode estar em lugares que você menos espera, às vezes escondidos e muito sutis para serem facilmente percebidos. LINO: Existe uma história zen de um mestre que ensinava a arte do arco. O discípulo atirava, mas nunca conseguia acertar no centro do alvo. Fazia a exe-

cução sempre perfeita, mas nunca conseguia. E falava: “mestre, porque não consigo se faço tudo certo?”. O mestre mandou ele se posicionar e após apertar um ponto específico em seu corpo, o mandou atirar novamente. Dessa vez ele acerta o centro do alvo. O mestre fala: “é esse ponto que você precisa encontrar”. É uma imagem metafórica, contudo nossa pratica demonstra que ela é muito concreta. É esse ponto que o Performer começa a dominar. Depois de passar por esse processo de produção energética grandioso, após intenso treinamento psicofísico, chega um determinado momento em que o Performer começa a perceber a sutileza, qual o ponto específico que detona a energia vital em si e, posteriormente, no Outro, bem como, adquire a capacidade de realizar a manutenção da organicidade com suas ondulações. É um lugar onde não é mais necessário realizar o esforço das primeiras vezes. O “Thymos” é exatamente isso. Através do Ponto Exato a energia se desencadeia de forma plena e incrivelmente potente.

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ΕΝ ΑΡΧΉ ΗΝ ΤΟ ΧΆΟΣ [EN ARCHI IN TOH CHAOS]: ANÁLISE DO PROCESSO DA CONCEPÇÃO CÊNICA DIALOGANDO COM GROTOWSKI, BARBA E LEHMANN Artigo Juliana Vieira Atriz desde os 7 anos de idade. É formanda do curso Técnico em Teatro pela Academia Cena Hum e cursa Tecnologia em Produção Cênica pela UFPR.

Eu não monto uma peça com o intuito de ensinar

aos outros o que eu já sei. É depois de completar a montagem, e não antes, que me sinto mais sábio.” Jerzy Grotowski

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GROTOWSKI, 2013, p94.

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A Concepção Cênica é requisito obrigatório para completar a formação em Técnico em Teatro pela Academia de Artes Cênicas Cena Hum, a partir da definição e reconhecimento das diferentes linguagens artísticas e estéticas cênicas estudadas na respectiva disciplina. O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo da Concepção Cênica realizada pela estudante Juliana Vieira. Com o nome Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos] – em grego “no início havia o caos” – a Concepção foi apresentada no dia 6 de outubro de 2017, às 20h50min, no teatro Cena Hum, com a duração de aproximadamente 13 minutos.

O trabalho foi feito juntamente com o ator Romário Nascimento e a atriz Fernanda Moro, partindo da necessidade de conhecer e praticar técnicas teatrais não aprofundadas durante o curso. O processo da Concepção Cênica foi baseado nas técnicas de Grotowski e seu teatro pobre, e na estética do teatro pós dramático de Lehmman, ou seja, linguagens mais voltadas para o teatro contemporâneo. O processo foi analisado considerando como sendo a primeira experiência da estudante no campo da direção teatral, como estudo de caso para aperfeiçoamento da abordagem da direção dialogando com os teatrólogos estudados.

NO INÍCIO HAVIA O CAOS O processo iniciou-se partindo da relação com a natureza. Tendo Isadora Duncan como uma das primeiras inspirações, o foco dos primeiros ensaios foi se conectar com cada um dos elementos da natureza: fogo, água, ar e terra. O significado de cada um e sua relação com religiões pagãs foram pesquisados buscando-se uma relação entre o elemento da natureza, as qualidades de movimento que a atriz e o ator estavam praticando e suas funções e poderes. Por exemplo, com a água foi pedido para que eles imaginassem diferentes formas de água (cachoeira, lago, chuveiro, chuva, entre outros); imaginar cada característica (cor, sabor, temperatura,

textura, etc); e, com músicas instrumentais baseadas em estilos pagãos como estímulos, sincronizar o corpo com esse elemento e pensar para quê ele está sendo utilizado, a partir das funções dos elementos estudadas. No caso da água: limpeza, purificação, tranquilidade, fertilidade, proteção, etc. Desse modo o processo tomou um rumo excessivamente corporal, com muitos movimentos contínuos. Como o foco do processo em um primeiro momento esteve nessa sincronia com a subjetividade do ator e da atriz, houve uma negligência sobre outros elementos cênicos que poderiam ter sido aprofundados desde o início, como os gestos mais interpretativos típicos do teatro, baseados em partituras corporais e em ações físicas. Acredito que a influência da Isadora Duncan pode ter levado o processo a um caminho mais de dança moderna e/ou contemporânea do que do teatro. Assim foram os primeiros ensaios.

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ESTÍMULOS Em um dos ensaios foram feitos dois testes individuais com o elenco. Um dos testes consistia em descobrir qual seria sua deusa grega, de acordo com preferências pessoais em diferentes situações. O outro era para escolher entre as frases escritas no teste as que representavam seu comportamento, e descobrir os elementos da natureza predominantes em suas personalidades. O teste com as frases ajudou a orientar a pesquisa pessoal corporal de cada um; e o das deusas gregas abriu um caminho para afunilar a pesquisa sobre as religiões pagãs. A sonoplastia se mostrou de fundamental importância para estimular a atriz e o ator, tanto em relação à criatividade dos movimentos, quanto à atmosfera, tema, intenção, força, energia. O ator e a atriz se mostraram sensíveis às músicas, harmonia, ritmo, sincronia, timbres dos instrumentos, etc. Boa parte da

pesquisa da direção se voltou à música, começando com as religiões pagãs de culturas diferentes da Europa durante a Antiguidade e a Idade Média, principalmente céltica e gaélica. Como o processo passou por essa diversidade cultural, a Concepção Cênica apresentou estilos musicais diversos na sonoplastia, a qual se mostrou aberta e fragmentada, característico da eliminação da síntese, um dos signos teatrais pós-dramáticos, segundo Lehmann (2007). Outro estímulo proposto pela direção foi um exercício já realizado no ISTA2 e relatado por Vanessa Cury (2017): imaginar uma casa. Depois de imaginar a cor, a textura, os objetos, ou seja, a casa em sua totalidade, era pedido para que se fizessem movimentos de ações no interior dessa casa imaginada que estava “em volta” da pessoa: andar, abrir uma porta, subir uma escada, etc. Após isso, trazer

um texto decorado qualquer, de gosto pessoal. Finalmente, a pessoa deveria falar o texto junto com as ações que fazia dentro da casa. A princípio o texto não tinha relação com as ações dentro da casa, mas depois as ações eram “calibradas” pelo indivíduo. Se a ação não “combinava” com o texto, então a ação era reduzida, até restar apenas a energia utilizada para tal ação. Por exemplo, subir o braço direito até a altura da maçaneta e girá-la poderia ser transformado em subir levemente o pulso e girar a mão. Isso tornaria orgânica a ação original junto com o texto dito, com o qual, a princípio, não tinha relação. Imaginação é muito importante. A atriz e o ator eram estimulados a imaginarem tudo que eles estavam fazendo, como nesse exercício da casa, mas relacionado com a natureza e a mitologia trabalhadas.

O CORPO Grotowski afirma que o teatro não pode existir sem a relação do ator com o espectador, sendo os outros elementos cênicos (cenário, adereço, figurino, iluminação) supérfluos; por isso o denomina teatro pobre. Para o teatro existir é preciso de apenas um ator e, no mínimo, um espectador (GROTOWSKI, 2013). Para Grotowski, “a essência do teatro é o ator, as suas ações e o que ele pode realizar” (GROTOWSKI, 2013, p.131). “[...] não existem regras fixas, estereótipos. O essencial é que tudo deve vir do corpo e através dele. Primeiro, e acima de tudo, deve existir uma reação física a tudo que nos afeta. Antes de reagir com a voz, deve-se reagir com o corpo. Se se pensa, deve-se pensar com o corpo [...] inteiro, através de ações.” (p.174 - da edição de 87) Através de uma nova orientação do olhar, Lehmann busca caracterizar traços estilísticos do teatro pós-dramático, a fim de torná-lo mais reconhecível (2007). Um dos signos teatrais pós-dramáticos descritos por ele é a corporeidade. “O valor do corpo está apoiado no seu potencial físico e gestual, no qual a presença das tensões internas e externas criam uma corporeidade auto-suficiente” (NOY, 2015; LEHAMNN, 2007).

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International School of Theatre Anthropology (Escola Internacional de Antropologia Teatral), fundada por Eugênio Barba em 1979.

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Grotowski, em seu Teatro Laboratório, utilizava combinações de técnicas, de acordo com cada ator ou atriz, para se chegar a um resultado; não com o objetivo de acumulá-las, mas de ajudar o/a ator/atriz a desbloquear a resistência de seu organismo para que o impulso interior e a ação exterior aconteçam exatamente ao mesmo tempo. Por isso, era necessário que o ator e a atriz tivessem um bom preparo físico corporal e vocal e disponibilidade física, para explorarem tanto os movimentos do corpo quanto os sons feitos pelo aparato vocal, evidenciando a manifestação da materialidade de seus corpos. Para a realização da Concepção Cênica foi esperado que o ator e a atriz criassem e realizassem, durante o processo, movimentações, sempre justificando suas ações com produtos imagéticos individuais (é possível fazer um paralelo com o subtexto de Stanislavski), a partir do tema em questão: o mito.

ΕΝ ΑΡΧΉ ΗΝ ΤΟ ΧΆΟΣ [EN ARCHI IN TOH CHAOS] Segundo Grotowski, o mito é tão elementar para o indivíduo numa sociedade que é difícil analisá-lo racionalmente quando em cena. Os mitos não são apenas remodelados para identificação do espectador, mas busca-se a exaltação do mito fundamental (FERREIRA, 2009). “O público é testemunha de um processo de revelação simbólica do ator. Do ponto de vista da recepção teatral, não acontece meramente um processo de identificação com o mito, mas também um questionamento constante de valores exaltados.” (FERREIRA, 2009, p.10-11)

“Εν αρχή ην το Χάος” [En archi in toh chaos] é o primeiro verso da poesia de Hesíodo (séc. VIII a.C.) sobre a teogonia, o início do mundo e das divindades, e sua genealogia, segundo a mitologia grega. A cena foi baseada na história das três gerações do feminino, com seus respectivos consortes, que passeiam pela história da humanidade: Gaia e Urano, Rheas e Kronos, Deméter e Zeus. Pensando no feminino e na sua complementariedade, a atriz e o ator criaram movimentações com características diferentes para cada geração de divindades gregas. Para Gaia e Urano – a primeira geração – a busca foi direcionada a movimentos não humanizados para explorar o vazio, uma vez que havia o caos no início de tudo, e é necessário um esforço muito grande para dar início à existência propriamente dita. Nesse primeiro momento da Concepção Cênica, a partitura dos movimentos se

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baseou em alguns exemplos imagéticos de forças da natureza como ponto de partida, como por exemplo um vulcão que destroi a crosta terrestre, com o objetivo de extravasar essa força, fazendo com que ela ocupe todo o espaço cênico, até o choque entre esses dois seres. A dilatação do corpo necessária para alcançar a amplitude da ocupação do espaço cênico conversa com o jogo das densidades dos signos de Lehmann e a pré-expressividade de Barba. Segundo Lehmann (2007), o público percebe, em relação aos elementos cênicos, “uma superabundância ou uma notável diluição de signos” (Lehmann, 2007, p.147). Para a execução dessa cena, foi necessária a dilatação da energia cênica, juntamente com a integração e conectividade entre a atriz e o ator, que se apoiaram um no outro para dar suporte e sustentação à energia cênica total, e aumentar a densidade de seus corpos.


No segundo momento da Concepção, depois que Gaia e Urano se encontram e se conectam, o mundo se forma. Gaia se transforma em Rheas, e Urano, em Kronos. A mudança é percebida com novas características de movimento e som, transmitindo a ideia de passagem do tempo, durante o surgimento de todos os elementos naturais do nosso planeta. O exercício feito para a criação dessa cena foi a escolha de uma parte importante de um ciclo da natureza, por exemplo uma borboleta saindo do casulo, a formação de um rio. A exploração de movimentos e sons não humanizados continua, porém mais sutil em relação à primeira geração. Na última parte da concepção, após a formação da Terra, Rheas vira Deméter e Kronos é Zeus, deusa e deus semelhantes aos humanos, com características humanas. Rituais em homenagem às divindades, à fertilidade e à terra influenciaram a movimentação do ator e da atriz como “subtexto” corporal.

Há um ritual em que os atores interagem com o elemento terra, presente em cena. Nesse momento há a manifestação da materialidade, juntamente com irrupção do real – traços estilísticos do pós-dramático segundo Lehmann (2007) – quando a realidade é apresentada empiricamente à cena, com ausência de ilusões fictícias. No palco há apenas a atriz e o ator aproveitando a terra, mexendo-a, mergulhando nela. Como no exercício da casa, citado anteriormente, o ponto de início de cada geração em Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos] foi algum evento da natureza (de escolha do ator e da atriz individualmente), partindo para a exploração de forças e de outros elementos envolvidos, como esforço, textura, etc; tanto imageticamente quanto fisicamente. Uma forma mais clara e objetiva poderia ter sido explorada com esse tipo de exercício, para evitar a falta de partitura de ações físicas, o que acabou caracterizando a

Concepção mais como uma dança contemporânea do que como cena teatral. Como a direção foi baseada nas ideias de Grotowski, em práticas abstratas sobre o teatro, no mito trabalhado e numa percepção equivocada de que a ideia da cena estava sendo compreendida pelo elenco, o processo tomou um rumo dessincronizado entre a ideia da direção e a criação do ator e da atriz. Além disso, a exploração do aparato vocal foi negligenciada, com o corpo e o movimento recebendo toda a atenção e domínio do ator, da atriz e da diretora.

ALTERNATIVAS HIPOTÉTICAS Para melhor aproveitamento das qualidades e da disponibilidade do elenco, assim como do rendimento criativo de cada um, uma organização mais sistematizada dos ensaios poderia ter sido realizada. O ensaio poderia ser dividido em três partes: • 60 minutos: estudar em conjunto a teoria utilizada como base. Nesse caso, estudo mais aprofundado sobre os ensinamentos de Jerzy Grotowski e de Eugênio Barba, com foco no objetivo dos exercícios, das ações físicas, do processo em si, e dessa experimentação artística; e sobre o teatro pós-dramático sob a perspectiva de Lehmann, de forma a orientar mais conscientemente as escolhas estéticas plásticas e sonoras do processo criativo. Essa parte teórica também serve para discutir

sobre as ideias da montagem, além de detalhes técnicos sobre a produção executiva da apresentação. • 45 minutos: praticar exercícios técnicos. Estes servem de fundamento para o desenvolvimento da pré-expressividade dos atores. • 15 minutos: intervalo. • 45 minutos: praticar exercícios de criação. Têm o objetivo de estimular a criatividade, sair do óbvio, trazer coisas novas, criar. • 15 minutos finais: encerramento do ensaio e encaminhamento geral para o próximo ensaio. Com um cronograma de ensaios sistematizado, além do estudo teórico e prático realizado, a disciplina e a organização da diretora, da atriz e do ator seriam desenvolvidas, ambas fundamentais para o amadurecimento profissional e artístico.

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CONVERSAS COM BARBA, GROTOWSKI E LEHMANN Muitos dos grandes nomes do teatro a partir do final do século XIX, como Stanislavski, Meierhold, Decroux, Copeau, e os próprios Grotowski e Barba, entre outros, tiveram em comum a pesquisa sobre o treinamento do ator e da atriz, a disciplina, o constante trabalho de aperfeiçoamento do movimento e do som, a busca do domínio sobre si mesmo. O treinamento do ator deve ser contínuo, constante, diário. Eugênio Barba destaca a importância da pré-expressividade do ator, cujo objetivo é desenvolver a qualidade da “energia cênica” a qual atrai a atenção do espectador, e independe da linguagem ou da estética tratral (RETTAMOZO e ROSSETO, 2012). Os princípios que retornam, na teoria de Barba, são técnicas extra-cotidianas

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que servem para dilatar a energia cênica. São eles: o equilíbrio de luxo, a dança das oposições, a incoerência coerente, a virtude da omissão, o princípio da equivalência e o corpo decidido (BARBA, 1994; BONFITTO, 2012). Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos], durante a criação de movimentos não humanizados, principalmente para a primeira geração das divindades mitológicas gregas – Gaia e Urano –, o equilíbrio de luxo foi trabalhado, mesmo de forma inconsciente, quando a atriz e o ator fizeram formas que necessitavam de um esforço maior que o comum para sustentarem-nas. Na cena em que Gaia e Urano se encontram, eles realizam formas conjuntas, e o princípio da dança das oposições foi trabalhado. Foi pedido para que eles pensassem em empurrar algum obstáculo imaginário que fizesse resistência para o movimento realizado. A pesquisa de Barba sobre os princípios que retornam e a pré-expressividade ajudam a entender (na teoria e na prática) onde Grotowski quer chegar com seu teatro, tendo sido bastante úteis no processo da Concepção Cênica. Em Para o teatro pobre há um capítulo escrito por Barba chamado Treinamento para o ator (2013, p.96). Lá ele explica que os exercícios são da fase em que a técnica estudada por Grotowski em seu centro de pesquisa era a técnica positiva, a qual se caracteriza por agregar técnicas diferentes para possibilitar o “como fazer tal coisa”, um tipo de treinamento que possibilitasse uma habilidade criativa enraizada na imaginação e em associações pessoais de cada um (ibid). Mais tarde, eles desenvolvem no Teatro Laboratório um treinamento pela via negativa, a qual se dá pelo processo de eliminação, e se utiliza de uma combinação de técnicas emprestadas apenas para se chegar a um resultado, não tendo o objetivo de acumulá-las, e sim de ajudar o ator/atriz a desbloquear qualquer resistência existente em seu organismo. É importante para o ator “justificar todos os detalhes do treinamento com uma imagem precisa, seja ela real ou imaginária. O exercício estará sendo executado corretamente somente se o corpo não apresentar nenhuma resistência durante a realização da imagem em questão. O corpo deve, portanto, parecer tão leve e tão maleável quanto argila durante os impulsos, mas duro como uma barra de aço quando atua como suporte, sendo capaz até mesmo de dominar a lei da gravidade.” (GROTOWSKI, 2013, p.98)

Durante o processo de Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos], a direção da estudante foi voltada para o lado imagético de criação, a partir de estímulos externos diversos, principalmente a descrição falada de imagens (dos eventos da natureza, da descrição de formações naturais) e as músicas usadas nos ensaios. A atriz e o ator foram estimulados a explorarem movimentos não óbvios, a fim de desbloquearem seus obstáculos individuais e subjetivos na criação artística de cada um. Em relação à estética da Concepção, elementos pós-dramáticos foram considerados. Lehmann discorre sobre a desconstrução de elementos dramáticos ao longo do século XX, e, a partir de um redirecionamento do olhar, institui alguns elementos estilísticos presentes na cena teatral a partir da década de 1970. “Os elementos teatrais agora possuem uma tarefa hermenêutica” (ALEXANDRINI, 2015), em busca de novas significações e diferentes apreensões. Com outros campos das artes e do saber presentes na teatralidade, o processo teatral passa a ser concebido como “‘acontecimento’ – multidimensional, espaço-temporal, audio-visual” (LEHMANN, 2007, p.256). A ideia da Concepção Cênica Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos] era ser uma manifestação da materialidade, um acontecimento, que pudesse atingir o público de forma a sensibilizá-lo, com os diversos estímulos visuais e sonoros, uma vez que não há uma história e nenhum estímulo para sensibilização cognitiva do espectador.

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NO INÍCIO HAVIA O CAOS, E NO FIM TAMBÉM Uma das principais dificuldades encontradas durante o processo da Concepção Cênica foi a comunicação entre a diretora e o elenco. Além disso, havia pouco contato prévio com as técnicas propostas. O processo se mostrou um experimento artístico cuja realização permitiu a descoberta por parte da estudante de diversas questões na área da direção, e algumas a serem desenvolvidas: a orientação do processo (de forma eficiente), apontar um caminho, enfim, a direção propriamente dita. Isso se deve, provavelmente, à inexperiência da estudante na direção de cenas durante o curso; e ao fato de que essas técnicas são conteúdo novo tanto para a estudante quanto para o elenco dirigido. Também faltou uma sensibilidade pedagógica na hora de compartilhar o conhecimento com o a atriz e com o ator. A Concepção Cênica é uma oportunidade para os estudantes praticarem a direção cênica e a encenação, objetivando o amadurecimento artístico e prático de cada um. Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos] teve como finalidade o resgate à natureza e ao místico, através do feminino, da origem do mundo segundo a mitologia grega, e do ciclo da vida, dialogando com os ensinamentos de Grotowski, Barba e Lehmann. Εν αρχή ην το Χάος [En archi in toh chaos] foi um laboratório, onde foram adquiridas muitas experiências teatrais teóricas e práticas, e ainda de criação técnica e produção cênica. O que até então era desconhecido pela estudante foi alcançado, ampliando os limites do aprendizado e a vontade de praticar cada vez mais a direção e a encenação teatral.

REFERÊNCIAS ALEXANDRINI, Camila. Hilda Hilst: um salto do objeto literário à teatralidade das palavras. In: Espaço/Espaços. VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada – Artigos. Instituto de Letras UFRGS, Porto Alegre, 2015. p77-90. BARBA, Eugenio. A canoa de papel. São Paulo: Hucitec, 1994. BONFITTO, Matteo. O ator-compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2002.

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GROTOWSKI, Jerzy. Para um teatro pobre. Trad. Ivan Chagas. 3ª ed. Brasília: Teatro Caleidoscópio e Editora Dulcina, 2013. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pósdramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. NOY, Bia Isabel. A ação literária na construção do corpo identitário teatral. In: Espaço/Espaços. VI Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada – Artigos. Instituto de Letras UFRGS, Porto Alegre, 2015. p63-75.

CURY, Vanessa. Aula expositiva de Teorias da Cena Contemporânea. Setor de Educação Profissional, UFPR. Curitiba, 2017.

RETTAMOZO, Mateus Duarte; ROSSETO, Robson. O corpo extra-cotidiano na instituição de formatação do corpo cotidiano. O Mosaico: Revista de Pesquisa em Artes, n 7. Curitiba, jan./jun. 2012. p. 45-54.

FERREIRA, Melissa da Silva. Mitologia e Ascese: Jerzy Grotowski “Além do Teatro”. 120 f. Dissertação (Mestre em Teatro) – Centro de Artes, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em <http://tede.udesc.br/bitstream/handle/1328/1/DissertacaoMelissa. pdf>. Acessado em out/2017

SCHEFFLER, Ismael. Elos de uma mesma cadeia - diferentes períodos no transcurso de JerzyGrotowski. In: ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ. III Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Revista Espaço Acadêmico número 43. Curitiba, 2005. Disponível em <http://www.espacoacademico.com.br>. Acessado em out/2017.


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