

Santelmo enfeitiçado

Santelmo Enfeitiçado
roteiro e leiaute Fabiano Azevedo composição de página e esboços Erick Azevedo desenhos Piero Bagnariol consultoria e paratexto Miriam Aprigio Pereira desenhista auxiliar Francesco Kotsubo arte das páginas 26 a 28; 57 (embaixo) e 58 Fabiano Azevedo arte das páginas 43 (embaixo) e 44 Erick Azevedo arte da capa Piero Bagnariol

© 2022 Fabiano Azevedo, Erick Azevedo e Piero Bagnariol

Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte
Projeto 1654/2021


REALIZAÇÃO:





















Para a minha avó Aracy, pelas histórias que ela nem chegou a me contar.
Entremos na estrada real, nós que achamos que é preciso abandonar as coisas da terra, nessa estrada real da qual nenhum homem é senhor, somente aquele que é verdadeiramente rei... fílon de alexandria





































































































































































































































































































































Santelmo: uma saga histórica
Miriam Aprigio Pereira1Protagonizando uma narrativa que tem como cenário o norte do estado mineiro, Santelmo parte do Baú (2), localizado na Comarca do Serro Frio (1), e se desloca até Ouro Preto - região central do estado, em busca de solução para desfazer uma mandiga que objetiva levá-lo à morte. No desenrolar de sua viagem, é possível analisar



aspectos relevantes da história, geografia e cultura mineiras, vigentes na transição do século XIX para o século XX.
A história tem início na Comarca do Serro, região que em décadas anteriores passou por grandes conflitos, pois, na busca por liberdade e direito ao trabalho, escravizados2 e faiscadores implementaram uma série de rebeliões, em oposição
aos dominadores brancos, que empreendiam ações que objetivavam privilegiar os detentores do poder capital pertencentes às classes mais abastadas, em detrimento dos direitos e interesses das classes trabalhadoras. Somava-se aos rebelados, homens forros e os ocupantes dos territórios quilombolas, que, além de auxiliar na busca e apreensão de armas, colaboravam de forma intensiva com a circulação da informação, assegurando o controle e o rigor do acesso à comunicação de teor revoltoso. Por ter sido uma região de grande efervescência em termos de atividade mineradora, Santelmo convive com os remanescentes afrodiaspóricos, sujeitos mantenedores de saberes ancestrais que, em si, trazem elementares de cura e libertação. Mesmo sendo alertado a este respeito, para além dos conhecimentos legados de sua mística progenitora, ele insiste em seguir pelo caminho considerado por ele, como sendo sua única opção segura de que a feitiçaria seria desfeita .
1 Quilombola, historiadora e Mestre em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT/ UnB)
2 Kabenguelê Munanga chama atenção para o fato de que ninguém nasce escravo, pessoas são impostas a esta condição por parte de quem exerce dominação sobre elas, logo, pessoas são escravizadas.
Voltando as atenções sobre o cenário, é possível observar alguns aspectos. O destaque se dá sobre a geografia da região, que é constituída por uma espécie de bioma que reúne Mata Atlântica e Cerrado (3), e, de forma mais específica no Serro, ocorre a predominância da Floresta Semidecidual (MOTA, 2006), caracterizada como uma fisionomia florestal deste tipo de bioma. Nesta região, proliferavam a formação de territórios quilombolas, cuja convulsão social intensificada pelas ocorrências advindas do contexto internacional, pelas pressões do mercado externo - através da privatização da exploração mineradora e pelos movimentos abolicionistas - promoveram acirramento e tensão de forças e interesses econômicos, deflagrando disputas de classes.
Pode-se concluir que as intenções norteadoras das insurreições e movimentos de guerrilha que se alastraram por todo o país no século XIX lograram êxito, pois, somando-se às pressões econômicas externas e inspirados por movimentações internacionais que demarcavam a pauta de luta por liberdade, a última nação mantenedora do sistema de escravidão no mundo se viu forçada a declinar de seu retrógado sistema de controle social, levando à promulgação da Lei Áurea, em 1888. Logo, as vivências do ermitão Santelmo se davam em harmonia com os herdeiros de África que ali habitavam, de forma salutar, demonstrando que a luta por liberdade sagrou-se vencedo -
ra (4). Já a luta pelo direito de se ter Direitos de-
manda construção de um outro capítulo desta longa história3.



Alcançando brevemente a cidade do Serro, nosso viajante se depara com a festa do Rosário (5), celebração religiosa muito comum no estado mineiro, formulada a partir do sincretismo - nos dizeres dos próprios reinadeiros, pois reúne em si elementos da religião católica e da religiosidade africana e indígena. Além de abrangente e diversificado, o festejo em homenagem a Nossa Senhora do Rosário representa uma das tradições mais consistentes a compor o legado afrodiaspórico. Em uma publicação da Irmandade Ciriacos, cujas origens remetem ao ano de 1954, foi registrado que “Portanto, o Reinado é uma das manifestações mais antigas de Minas Gerais de devoção a Nossa Senhora do Rosário, protetora dos negros. Ele é composto por um Trono Coroado e suas guardas ou ternos. Na sua organização, apresenta uma rígida hierarquia, contando sempre com uma autoridade central da guarda exercida por um capitão.” (Júnior; Dellamore, 2015, p.30)
Na sequência surge também uma espécie de enviado, um mensageiro que, através da articulação de falas que abordam a distinção entre percorrer a estrada e bem escolher o caminho, tenta alertar o peregrino. Em sua fala ressoa o saber an-
3 Dica de leitura: AZEVEDO, Célia Maria. Onda Negra. Medo Branco. O negro no imaginário das elites. Séc. XIX. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
cestral, o que caracteriza a forte influência africana - de origem banto especificamente, que, de forma acentuada, demarca as relações sociais e seus sujeitos, realçada por uma expressiva conexão com o sagrado. No livro África Dialogando com o Brasil das Minas Gerais, encontramos a seguinte afirmação, que bem ilustra esta passagem:
O homem não viaja sozinho, independentemente do status do viajante: se livre ou não. Com ele viaja hábitos, costumes, experiências e conhecimentos.
O viajante leva consigo o seu mundo. Embora os africanos tivessem vindo ao Brasil de maneira forçada e submetido à escravidão, trouxeram conhecimentos que foram empregados em diversos campos de saberes, ainda que não fossem minimamente reconhecidos e valorizados. (Matos & Iasbik, 2018 p.57)
Persiste até a atualidade a forte conexão dos herdeiros de África e a sólida base de matriz africana. Em relação à cultura indígena, que são os povos origináriosPovos Pindorâmicos4, de acordo com Nego Bispo (2015), aos quais pertenciam toda a extensão do território brasileiro - território Pindorâmico, antes da chegada do colonizador, isso não seria diferente nesta região de mineração. Apesar da precariedade ou da inexistência de fontes mais seguras que prestem contas acerca da presença das populações indígenas na região do Serro antes da colonização, Auguste Prouvençal de Saint-Hilaire (1779-1853), naturalista francês, afirmou que quando os primeiros colonizadores deram início à exploração do ouro, os Malalis dispersaram, vindo a se somar a outras nações. Uma epidemia
ocorrida no início do século XlX levou à extinção de quase todo o contingente dos nativos. Contudo, dada a possibilidade de que tenha ocorrido contato dos escravizados que para aquela região haviam fugido, a cultura indígena foi absorvida, e se manifesta na cultura da região. A este respeito, Saint-hilaire afirmou que:
Na época em que os primeiros portugueses chegaram à região ela era habitada por uma tribo indígena denominada Malalis, muito mais mansa que os Botocudos. Parece que já negros fugitivos tinham vindo estabelecer-se entre esses povos, e vi em mapas manuscritos Passanha indicada como uma região recentemente descoberta onde os índios eram governados por uma negra (Saint-Hilaire, 1975, p.176)
Tal afirmação diz da confluência histórica entre indígenas e pretos na formação do Brasil. Em relação a menção feita aos quilombos da região, na HQ é mencionado o que leva o nome de Ausente (7)5. Comunidades quilombolas são territórios ocupados ancestralmente pelos remanescentes de escravizados, que, de acordo com o que versa a Legislação:
7
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralida-

4 O pensador e articulador quilombola Antônio Bispo dos Santos justifica o uso de uma denominação genérica para fazer menção aos nativos desta nação, classificando-os de Povos Pindorâmicos, em oposição a tendência colonizadora de classificá-los de índios. O mesmo se dá em relação ao nome dado ao território, que na perspectiva contra-colonizadora é chamado de Território Pindorâmico.
5 Para saber mais, acesse: https://www.cedefes.org.br/ausente/
de negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (D4887 (planalto.gov.br))
De acordo com o Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, este originou-se do Quilombo do Baú, e a fundação de ambos remete ao século XVIII. Os ocupantes destes quilombos prestaram ampla colaboração aos movimentos libertários. São, também, locais de preservação ambiental desde aqueles tempos até o presente. Ainda assim, a intensa atuação das mineradoras na região do Serro coloca em risco estes importantes redutos históricos, que nutrem forte relação com a formação e com o referencial identitário do povo brasileiro.


A certa altura da trajetória percorrida por Santelmo, o ancião se vê em dúvida em relação ao caminho a ser percorrido - o caminho que o levaria ao município de Ouro Preto. Apesar do fato de que sua peregrinação se destinava a outra finalidade, a rota não representava mistério naquele cenário, pois o município foi a capital do estado desde 1720, quando era conhecido pelo nome de Vila Rica, até o ano de 1897, sendo um local de apogeu da mineração. Ali, por isso mesmo, foram introduzidos africanos oriundos da Costa da Mina na África, por dominarem habilidades necessárias a este tipo de atividade. Remete também a este período a atuação das mineradoras (8), bem como das ferrovias (9) - meados do século XIX neste

caso, que percorriam os três principais estados da região sudeste do país. Em relação a esta conjuntura manifestada desde o período coloniaI, Sampaio e Souza afirmam que:
Entrementes, fundamental é destacar a relevância histórica do ouro, mormente no curso do século XVIII, durante boa extensão da fase colonial, em face do poder econômico que o minério sempre exerceu nas relações exploratórias da Metrópole frente à Colônia, maiormente quando incontáveis jazidas de ouro de aluvião foram encontradas nos rios, ribeirões e córregos que banhavam as cidades da conhecida e atual região do Quadrilátero Ferrífero que, naquela época, provocou uma grande “corrida pelo ouro”, [...], teve seu início com a chegada dos portugueses e, por sua vez, alcançou seu auge no final do século XVII, bem como na primeira metade do século XVIII que se desenvolveu em conjunto com as extrações do diamante.” (Sampaio e Souza, 2018, p.70-71).
Outra abordagem relevante desempenhada pelo protagonista da HQ consiste na manipulação de ervas para tratamento de saúde, sendo este mais um dos atributos a compor o repertório de saberes presentes no contexto dos Povos e Comunidades Tradicionais (10). É possível afirmar que, neste segmento que compõe o mosaico formador da diversidade da qual se constitui a sociedade brasileira, estão contidos os referenciais que conferem um sentido de nação ao povo brasileiro. Sobre a legislação que regulamenta esta questão, tem-se o decreto 6.040 de 2007, que institui que:
“Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” (Decreto nº 6040 (planalto.gov.br))
Nesta perspectiva, ressalta-se a importância de se contemplar os saberes dos mais velhos, tema este a ser projetado para o debate social de forma mais ampla, dadas as formas de tratamento dispensadas aos idosos na contemporaneidade. Para além de seus conhecimentos, os mais velhos precisam ser cuidados por seus familiares, abraçados pela comunidade e valorizados pelos seus feitos, não podendo ocorrer o que vem vigorando - a saber, o desprezo em relação aos idosos e o consequente descaso com os saberes advindos da tradição e das experiências de vida. Em “Poemas da Recordação e outros Movimentos” de Conceição Evaristo, um de seus poemas propõe uma reflexão sobre este tema:
Do velho ao jovem
Na face do velho as rugas são letras, palavras escritas na carne, abecedário do viver.
Na face do jovem o frescor da pele e o brilho dos olhos são dúvidas.
Nas mãos entrelaçadas de ambos, o velho tempo funde-se ao novo e as falas silenciadas explodem.
O que os livros escondem, as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha um ponto final na história.
Infinitas são as personagens…
Vovó Kalinda, Tia Mambene, primo Sendó, Ya Tapuli, [...]
E também de Santana e de Belô e mais e mais, outras e outros…
Nos olhos do jovem também o brilho de muitas histórias e não há quem ponha um ponto final no rap.
É preciso eternizar as palavras da liberdade ainda e agora… (Evaristo, 2017, p.88-89)

Após experienciar fortuitos encontros, além de passar por muitos percalços e adversidades, Santelmo alcança a região central do estado, e a história passa a ocorrer em contexto urbano. Neste sentido, além de ser evidenciada a distinção social e a hierarquização de classes, é apresentado também o lugar ao qual historicamente as mulheres pretas6 são renegadas, revelando as facetas do patriarcado, expondo também as mazelas impostas pelo racismo (11). Em artigo intitulado “Dentre as furnas, lavras, cavas e garimpos: o brilho do ouro que não ofuscou a matrifocalidade das ‘minas’ escravas e forras dos séculos XVIII e XIX”, que aborda a realidade das mulheres escravizadas e forras que se encontram em vigor desde o século XVIII, os autores descrevem que:
“Não obstante, o que os registros históricos não evidenciam é a bravura e têmpera das negras escravas que, por sua
6 Utiliza-se preta/o em detrimento de negra/negro, posto ser esta a forma utilizada pelo colonizador para coisificar/massificar as diversas identidades étnicas africanas.
vez, durante as atividades de mineração na capitania de Minas Gerais [...], trabalhavam nas catas do ouro e ainda, de resto, cuidavam de seus filhos e de outros afazeres.” (Sampaio & Souza, 2018, p. 69)
apagamento histórico, muitas histórias de aguerridas mulheres estão sendo abordadas (12), tais como: Aqualtune, Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares, Maria Firmina dos Reis, dentre tantas outras. E diversas outras têm despontado na modernidade, ressignificando a história do tempo presente, quer seja na política, como Marielle Franco e Nilma Lino Gomes; na literatura, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo; através da intelectualidade de Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, ou no universo das artes, como Ruth de Souza, Clementina de Jesus e Elza Soares, só para citar algumas.
Mais adiante, os autores discorrem sobre o que prevaleceu por ocasião da correlação de forças que, ao longo da história republicana do Brasil, predominou através dos mecanismos de manipulação e controle sociais:


“O que ficou grafado como um estigma da mulher escrava foram os aspectos da sua posição como subservientes, frágeis, submetidas às atividades domésticas e sujeitas à tirania de seus senhores que delas abusavam sexualmente em suas mais torpes lascívias. Existia, de fato, toda uma exploração e abuso em relação à mulher negra trazida como escrava para o Brasil colônia.”
(Sampaio & Souza, 2018, p.72)
Os autores avançam com o debate, dissertando sobre o assunto, descrevendo sobre o tema no prelúdio do século XXI, na medida em que atestam que:
“É cediço que a mulher brasileira tem lutado e se esmerado em esforços ao longo de toda nossa história, para conseguir seu espaço, mesmo vivendo numa sociedade machista, preconceituosa e discriminatória que, por sua vez, teima em cercear-lhe os espaços políticos e sociais.” (Sampaio & Souza, 2018, p.73)
E fato é que, apesar da tentativa de
Ainda no mesmo artigo, Sampaio e Souza (2018) abordam o seguinte, no concernente ao homem escravizado: “A historiografia brasileira[...] sempre evidenciou a presença do homem escravo. Viril, destemido, sofredor e resiliente; sempre esperançoso de um dia poder se livrar dos grilhões que o retinham.(p.69)” Ainda que tal fragmento se refira ao período de vigência da escravidão, traços marcantes desta fase persistem e insistem em favor da manutenção dos interesses dos privilegiados da nação. Porém, a carta endereçada a Santelmo demonstra como pode padecer de melhor sorte aquele a quem as mazelas e imposições não podem alcançar. Como diz o dito popular, “ajuda se não atrapalhar”: tirem da frente o racismo, que os pretos passam com sua cor.
Este trecho também lança luz sobre o papel a ser desempenhado pela Educa-
ção, na medida em que urge a necessidade de implementar a desconstrução do modelo historicamente aplicado, de reproduzir um modo que prima pelo eurocentrismo, deformando a mentalidade e a impressão que o povo brasileiro deve fazer acerca de si mesmo, em detrimento da validação da verdadeira e digna história que, de fato, estrutura a formação da nação brasileira.
em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
É essencial que se dê a efetivação da lei, para que se estabeleça verdadeiramente o estado democrático de direito, tornando possível a alteração de rumos de uma sociedade na qual prevalecem as desigualdades desde a colonização (14), e que seguem agravadas pelo capitalismo.
É na transformação pela Educação que estão presentes as bases para a reformulação coletiva, que visa a elevação maciça de status dos sujeitos, com vistas à promoção da equidade social.
Evoca-se mais uma vez a Carta Magna para que seja confirmado que de acordo com a Lei nº 10.639, de 2003, alterada pela Lei nº 11.645 de 2008, determina em seu artigo 26 que:
“Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.”
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,

E eis que Santelmo chega à nova capital, a Cidade de Minas (15), projeto fruto da idealização dos anseios republicanos, que, desde sua gênese, prima pela exclusão, higienismo e gentrificação. Do antigo Curral del Rei foram expulsos seus antigos
moradores, pretos em sua maioria, propriedades foram expropriadas, histórias e memórias apagadas. O perímetro urbano foi destinado aos ricos influentes e personalidades ligadas ao poder estatal, além dos imigrantes europeus, introduzidos no país para receber por serviços prestados em substituição ao pagamento da mão de obra preta. Na nova capital, as classes mais abastadas passaram a ocupar as limitações

delineadas pela Avenida do Contorno7, destinando aos demais as ocupações demarcadas em seu perímetro suburbano, agrícolas e periféricos (16), que foram - e seguem sendo - lançados à “segregação socioespacial, econômica e racial operada nas sociedades capitalistas” (PEREIRA, 2014).
Aos olhos de Santelmo, a nova capital - ainda em construção - mais se as-
dado da saúde do corpo e do espírito, que lhe prestam socorro. Duas situações apontadas no HQ atualizam o tema no presente. Primeiro, a patrimonialização do Largo do Rosário dos Homens Pretos, local demolido na fase de construção da capital ao fim do século XIX. Os corpos lá enterrados não foram transladados para o cemitério, o que despertava a indignação dos remanescentes diaspóricos metropolitanos. Contudo, após intensa movimentação dos citadinos, em maio de 2022 o Largo foi registrado na categoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, promovendo justa reparação - ainda que tardia - à memória ancestral dos pretos dali.8
A outra atualização é o debate em torno da exploração da Serra do Curral (17), local no qual Santelmo viria a encontrar a famigerada erva que, supostamente,
semelha a uma cidade fantasma. Novamente, é a sagacidade afrodiaspórica que se faz presente, na medida em que, diante do infortúnio do viajante que ali desponta, e com o agravamento de sua situação, são os saberes ancestrais voltados para o cui-

7 Nomeada como Avenida 17 de Dezembro à época.
iria reverter a maldição lançada sobre ele. Ora, o monumento natural que embasou a escolha do local de construção da nova capital - somado a outros atributos naturais - se encontra em risco de desaparecimento. Nem mesmo a pressão popular e o
8 Para saber mais: www.bing.com/search?q=patrimonio+largo+do+rosário&cvid=5a45c0b886ea4b3396fa7384e4fef1e8&aqs=edge..69i57.15364j0j1&pglt=43&FORM=ANNTA1&PC=NMTS&ntref=1

apoio de instituições internacionais como a UNESCO9, estão conseguindo conter a sanha e cobiça da mineradora e do governo, em minerar no local.
No lugar existe o Campo Rupestre, formado por amplo mosaico de comunidades, controlado pelo relevo local, um tipo específico de substrato, além de ser beneficiado por um microclima. Trata-se de um ecossistema extremamente complexo e diverso, cujos estudos, por isso mesmo, encontram-se ainda em fase inicial. Contudo, sabe-se que é um ecossistema extre-
mamente frágil e pouco resiliente - o que, certamente, reforça a afirmação de Teófilo, o irmão de Santelmo, de que a planta contra-feitiço só seria encontrada neste lugar. De fato, várias espécies existentes ali não existem em nenhum outro lugar.
A saga histórica que esta HQ possibilita ao leitor é muito rica, e revela nuances presentes na Cultura e na História da sociedade mineira. Trata-se de uma rica contribuição no fomento ao debate no âmbito da Educação, da Cultura e do vasto universo dos segmentos sociais.
9 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Referências Bibliográficas
EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro, Malê, 2017;
MATOS, Pedro Andrade; IASBIK, Thais Aldred. Contribuições técnicas e saberes africanos no desenvolvimento da mineração nas Minas Gerais. In: África Dialogando com o Brasil das Minas Gerais, org. BIZAWU, Kiwonghi [et al]. Belo Horizonte, 3i Editora, 2018
MOTA, Isadora Moura. “A Galinha Estava Morta e Pronta e Só Faltava Assar-se”: a revolta escrava do serro (Minas Gerais). Campinas, São Paulo, 2006;
PEREIRA, Josemeire Alves. Quilombos Urbanos. In: Cidinha da Silva. (Org.). Africanidades e Relações Raciais: Insumos para Políticas Públicas na Área do Livro, [da] Leitura, Literatura e [das] Bibliotecas no Brasil. 1ed.Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2014, v. I, p. 48-50.
PEREIRA, Miriam Aprigio. Luízes, um quilombo em contexto urbano: história, memória, travessia e re-existência dos Pretos das Piteiras, 2018. 180 f. Dissertação (Mestrado em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais) Universidade de Brasília, Brasília/DF.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
SAMPAIO, José Adércio Leite; SOUZA, Cláudia Luiz Gonçalves de. Dentre as furnas, lavras, cavas e garimpos: o brilho do ouro que não ofuscou a matrifocalidade das “minas” escravas e forras do séculos XVIII e XIX. In: África Dialogando com o Brasil das Minas Gerais, org. BIZAWU, Kiwonghi [et al]. Belo Horizonte, 3i Editora, 2018
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos - modos e significações. Brasília, 2015
SERRO. Prefeitura Municipal. Comunidades quilombolas em Serro. Disponível em: http://www.serro.mg.gov.br/comunidades-em-serro/comunidade-quilombola.html. Acesso em 13/06/2022.
SILVEIRA, Victor. Minas Geraes em 1925. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1926 SIMÕES, Everton Machado. África Banta na Região Diamantina: Uma Proposta de Análise Etimológica Dissertação apresentada ao Mestrado em Lingüística. Universidade de São Paulo, USP, Brasil, 2014.
Realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte
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