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‘APROXIMA-TE UM POUCO DE NÓS, E VÊ.’ EÇA EM CENA 120 ANOS DEPOIS


Título: ‘Aproxima-te um pouco de nós, e vê.’: Eça em cena 120 anos depois Coordenação: Annabela Rita Ensaios de Annabela Rita, António Augusto Nery, Fernando Andrade Lemos, Maria Cristina Pais Simon, Miguel Gonçalves e Miguel Real Com Farsa em um acto de: Filomena Oliveira e Miguel Real Colecção ENSAIOS Com(n)Vida Direcção da colecção: Annabela Rita & Isabel Ponce de Leão NOTA: Esta colecção tem um Conselho Científico e as edições estão sujeitas ao seu parecer. Paginação: Luís da Cunha Pinheiro Edição: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa, Madrid, Paris, Roma, Curitiba, 2021 ISBN – 978-989-9012-54-7 Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projecto UIDB/00077/2020.


Annabela Rita (coordenação)

‘APROXIMA-TE UM POUCO DE NÓS, E VÊ.’ EÇA EM CENA 120 ANOS DEPOIS Ensaios de: Annabela Rita, António Augusto Nery, Fernando Andrade Lemos, Maria Cristina Pais Simon, Miguel Gonçalves e Miguel Real Com Farsa em um acto de: Filomena Oliveira e Miguel Real

Lisboa, Madrid, Paris, Roma, Curitiba 2021



Índice I Aproxima-te um pouco de nós, e vê. (EQ)

Historiografia de 100 anos de estudos queirosianos Miguel Real . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Da crónica (queirosiana & outra) Annabela Rita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. (EQ) 37 Farsa em um Acto Filomena Oliveira e Miguel Real . . . . . . . . . . . . . .

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III Os lustres estão acesos. (EQ)

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Imagens em movimento Annabela Rita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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IV Mas é necessário /. . . / que haja obras originais. (EQ) 63

O Primo Basílio (1878) Annabela Rita . . . . . . . . O Conde d’Abranhos (1879, p.p.) Annabela Rita . . . . . . . . “Civilização” (1892) Annabela Rita . . . . . . . . “‘José Matias” (1897) Annabela Rita . . . . . . . .

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V . . . é necessário que, quando se ergue o pano, se movam algumas figuras e se troquem alguns diálogos. . . (EQ) 121

Fête de la folie dans la sentine de tous les vices — A Capital! d’Eça de Queirós Maria Cristina Pais Simon . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 Ecos d’ As Farpas n’ Os Maias: laboratório de uma escrita niilista Miguel Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 A precisão matemática d’ Os Maias d’Eça de Queirós Fernando Andrade Lemos . . . . . . . . . . . . . . . . . 167

VI . . . Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco. . . (EQ) 215

Entre a Fantasia e a Realidade, a ambiguidade reveladora do narrador em O Mandarim António Augusto Nery . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219 Notas biográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241


As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (1990-91)



Parte I

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Historiografia de 100 anos de estudos queirosianos Miguel Real1

1. Três Períodos na Historiografia de 100 Anos de Estudos Queirosianos Desde a morte de Eça de Queirós (1900), cerca de meia centena de autores publicaram livros e/ou artigos sobre aspectos específicos da obra deste escritor ou mesmo sobre a totalidade da sua obra. Tendo em conta o estado da edição da obra de Eça de Queirós em cada década do século XX e tendo igualmente em conta o grau de exigência informativa dos comentadores face a livros ou artigos anteriores de outros comentadores, elaborámos um quadro cronológico da historiografia queirosiana cuja distribuição por anos obedece a uma tripla divisão por períodos: 1. Período Testemunhal (1900 – 1930); 2. Período de Balanço (1930 – 1950); 3. Período Científico (1950 – 2000). Evidenciaremos de seguida o Quadro Classificativo dos autores e dos livros da historiografia queirosiana, apresentando cronologicamente para cada período diversos exemplos ilustrativos. 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).


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Historiografia de 100 anos de estudos queirosianos

QUADRO CLASSIFICATIVO DE 100 ANOS DE HISTORIOGRAFIA QUEIROSIANA PERÍODO TESTEMUNHAL (alguns exemplos ilustrativos) 1901 — Teófilo Braga, Eça de Queiroz e a sua Obra 1903 — Batalha Reis, Introdução a Prosas Bárbaras 1904 — Ramalho Ortigão/Outros, A Eça de Queirós — Compilação de vários discursos proferidos na inauguração do seu monumento 1911 — Miguel Mello, Eça de Queirós. A Obra e o Homem Veiga Simões, A Nova Geração. Estudos Sobre as Tendências Actuais da Literatura Portuguesa 1913 — Alberto de Oliveira, Pombos Correios 1916 — António Cabral, Eça de Queirós — A Sua Vida e a Sua Obra 1918 — Alfredo de Carvalho, Eça de Queirós, Sua Primeira Fase Literária 1919 — Alberto de Oliveira, Eça de Queirós (Páginas de Memórias) 1920 — Alberto de Oliveira, Na Outra Banda de Portugal 1922 — Vários, Eça de Queirós — In Memoriam Agostinho de Campos, Eça de Queirós, Antologia Portuguesa 1923 — Fialho de Almeida, Figuras de Destaque 1924 — Ramalho Ortigão, Quatro Grandes Figuras Literárias — Camões, Garrett, Camilo e Eça A. Forjaz de Sampaio, Eça de Queirós Conceição d’Eça de Melo, Eça de Queirós Revelado por uma Ilustre Dama da sua Família Cláudio Basto, Foi Eça de Queirós um Plagiador? 1925 — José Maria d’Eça de Queiroz, “Os Últimos Inéditos de Eça de Queiroz” in 1a ed. A Capital 1930 — A. Salgado Júnior, História das Conferências do Casino O Período Testemunhal da historiografia queirosiana inicia-se no ano da morte de Eça de Queirós a partir de um conjunto diversifiwww.clepul.eu


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cado de artigos apologéticos nos jornais portugueses e com a publicação, em 1901, da conferência-homenagem de Teófilo Braga sobre Eça de Queirós, prosseguindo com a inauguração da estátua deste autor, em 1903, e termina, em 1930, com a publicação do estudo de António Salgado Júnior intitulado História das Conferências do Casino, como que refazendo, neste livro, o complexo de motivações históricas e ideológicas que estiveram na base inicial da intervenção pública de Eça de Queirós e dos seus amigos da passagem entre as décadas de 60 e 70 do século XIX e do “Cenáculo”. Este Período Testemunhal caracteriza-se por apresentar o maior acervo de artigos e livros que prestam testemunho directo da vida e obra de Eça de Queirós por individualidades que: a. colaboraram com Eça de Queirós (Alberto de Oliveira); b. foram seus amigos directos ou indirectos (Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga, Fialho de Almeida); c. atravessaram a passagem entre os séculos XIX e XX e foram testemunhas da obra de Eça editada em Portugal e no Brasil (António Cabral, Silva Gaio, Miguel Mello); d. foram seus familiares (Conceição d’Eça de Melo e José Maria de Eça de Queirós). PERÍODO DE BALANÇO (alguns exemplos ilustrativos) 1932 — Castelo Branco Chaves, Estudos Críticos 1933 — Castelo Branco Chaves, Sobre Eça de Queirós 1938 — Viana Moog, Eça de Queirós e o Século XIX 1939 — Álvaro Lins, História Literária de Eça de Queirós 1940 — Câmara Reis, As Questões Morais e Sociais na Literatura — II — Eça de Queirós 1941 — M. Paiva Boléo, “O Realismo de Eça de Queirós e a sua Expressão Artística”, in Os Vencidos da Vida 1942 — Clóvis Ramalhete, Eça de Queirós A. Ramos de Almeida, Eça

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1943 — J. Pereira Tavares, O Crime do Padre Amaro (Análise das suas Primeiras Redacções. . . ) Vergílio Ferreira, Sobre o Humorismo de Eça de Queirós 1944 — Fidelino de Figueiredo, Última Aventura 1945 — Allyrio de Melo, Eça de Queirós. O Exilado da Realidade Fidelino de Figueiredo, . . . Um Pobre Homem da Póvoa de Varzim F. Vieira de Almeida, À Janela de Tormes Feliciano Ramos, Eça de Queirós e os seus Últimos Valores João Gaspar Simões, Eça de Queirós. O Homem e o Artista João Mendes, Eça de Queirós. Tipos, Estilo Moralidade José Maria Bello, Retrato de Eça de Queirós Júlio d’Oliveira, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós Mário Sacramento, Eça de Queirós, Uma Estética da Ironia Vários, Livro do Centenário de Eça de Queirós 1946 — António José Saraiva, As Ideias de Eça de Queirós Costa Pimpão, As Ideias de Eça 1949 — Maria d’Eça de Q., Eça de Queirós entre os seus. Apresentado por sua Filha. Cartas Íntimas Jaime Cortesão, Eça de Queirós e a Questão Social Com excepção de alguma correspondência, de algumas crónicas jornalísticas e do esboço de romance Tragédia da Rua das Flores, o essencial da obra romanesca de Eça já estava publicado (ainda que não tratado cientificamente) e o grosso da informação testemunhal também já estava publicado quando se inicia o 2º período da historiografia queirosiana: o Período de Balanço. Designamo-lo assim por corresponder, de facto e de direito, a uma época de balanço bio-bibliográfico sobre Eça, por pressupor os estudos anteriores e as publicações semi-póstumas e póstumas de Eça de Queirós, por corresponder a um conjunto volumoso e valioso de obras lançadas aquando da comemoração do centenário do nascimento de Eça e por ter dado origem aos primeiros estudos sectoriais sobre aspectos importantes da sua obra. www.clepul.eu


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Cem anos depois do seu nascimento e cerca de 50 depois da sua morte, porventura motivado pelo simbolismo destas datas, um conjunto numeroso de comentadores, especialmente ao longo da década de 40, ressuscitou a obra de Eça de Queirós depois dos seus livros, segundo E. Guerra da Cal, terem atravessado um certo período de esquecimento. Permitimo-nos caracterizar este Período de Balanço em 11 pontos, o conjunto dos quais determina a unidade ideológica que, relativamente aos outros dois períodos, lhe presta suficiente consistência: 1. Entre livros portugueses e brasileiros, estabelecem-se as primeiras bibliografias queirosianas relativamente completas; 2. São publicadas as primeiras biografias de Eça relativamente completas, com destaque especial para a de João Gaspar Simões; 3. Nestas biografias, com a ajuda da sua correspondência, tende-se a estabelecer, com algum rigor, os nexos de relação entre a vida e a obra de Eça de Queirós; 4. Estabelecem-se, igualmente, os vectores ideológicos que enformam a relação entre a mentalidade histórica da Geração de 70 e a dos “Vencidos da Vida” e as diversas faces da vida e obra de Eça de Queirós; 5. Ao longo da década de 40, com a publicação de inúmeras biografias e as comemorações do centenário do nascimento, Eça de Queirós eleva-se definitivamente à dimensão de escritor nacional, aceite consensualmente como um dos maiores romancistas portugueses, denotado até na feroz crítica que então lhe faz o Pe. Allyrio de Melo; 6. Iniciam-se os estudos sectoriais sobre a obra de Eça de Queirós: António Sérgio, António José Saraiva, Jaime Cortesão, Paiva Boléo, Pereira Tavares, Castelo Branco Chaves; 7. Com a publicação quase completa da sua obra (da obra romanesca, resta por publicar apenas a Tragédia da Rua das Flores), criou-se o consenso entre os comentadores e biógrafos www.lusosofia.net


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da existência de três fases na obra de Eça de Queirós: 1ª fase — romantismo; 2ª fase — naturalismo-realismo; 3ª fase — fase mais lírica, em que privilegiaria a tradição rural portuguesa; 8. Publicam-se as primeiras sínteses que condensam o conjunto da obra de Eça de Queirós (colaboradores do Livro do Centenário; António José Saraiva, Mário Sacramento, Costa Pimpão, . . . ); 9. Alguns estudos permanecem ao nível do período anterior (testemunhal) ( Júlio d’Oliveira, Maria d’Eça de Queirós); 10. Sistematizam-se, a um nível subjectivo, as “intenções” e a “moralidade” de cada fase da obra de Eça de Queirós (criticar a sociedade, reformar as mentalidades, pôr a nu as fragilidades e os vícios portugueses, atacar a Igreja e o Estado. . . ), não deixando os comentadores de tomar partido pessoal (subjectivo) sobre as possíveis opções político-filosóficas de Eça ( João Gaspar Simões ataca furiosamente a última fase de Eça, Feliciano Ramos louva-a, A. José Saraiva fala em individualismo pequeno-burguês. . . ); 11. Na continuação do ponto anterior, os comentadores e biógrafos de Eça não conseguem evitar que um conjunto de impressões e preconceitos ideológicos próprios da década de 40 sejam projectados na obra de Eça de Queirós. Se quisermos sintetizar em dois parágrafos todo o profícuo trabalho dos comentadores queirosianos ao longo deste Período de Balanço, destacaríamos: a. Esmiuçou-se, calendarizou-se e refez-se passo a passo com algum pormenor a vida e a obra de Eça de Queirós; b. Com base em a., contextualizou-se histórica e socialmente, dando-lhe sentido literário, as diversas fases da obra de Eça de Queirós. Em suma, tratou-se de um período muito importante da historiografia queirosiana que, sem deixar de ter em conta as importanwww.clepul.eu


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tes contribuições do Período Testemunhal, revolucionou de facto os estudos queirosianos em Portugal. PERÍODO CIENTÍFICO (alguns exemplos ilustrativos) rós

1954 — Ernesto Guerra da Cal, Lengua y Estilo de Eça de Quei-

1955 — A. José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa 1961 — Helena Cidade Moura, Três Versões do Crime do Padre Amaro. Algumas Variantes 1963 — A. Machado da Rosa, Eça, Discípulo de Machado? 1965 — Heytor Lyra, O Brasil na Vida de Eça de Queirós 1967 — A. Coimbra Martins, Ensaios Queirosianos 1971 — Ernesto Guerra da Cal, A Relíquia. Romance Picaresco e Cervantesco Dominique Sire, “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert et “O Primo Basílio” de Eça de Queirós 1972 — João Medina, Eça e o Anarquismo 1974 — João Medina, Eça Político Helena Cidade Moura / Outros — Estética do Romantismo em Portugal 1975 — Ernesto Guerra da Cal, Lengua y Estilo de Eça de Queiros. Apêndice: Bibliograf ía Queirociana. Carlos Reis, Estatuto e Perspectiva do Narrador na Ficção de Eça de Queirós 1976 — Maria Luísa Nunes, As Técnicas e a Função do Desenho das Personagens nas Três Versões de O Crime do Padre Amaro 1978 — Carlos Reis, Introdução à Leitura d’ Os Maias 1979 — Carmela M. Nuzzi, Análise Comparativa de duas Versões de A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós 1980 — João Medina, Eça de Queirós e a Geração de 70 1981 — Aníbal Pinto de Castro, Eça de Queirós. Páginas de Jornalismo. “O Distrito de Évora” (1867)

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1982 — Carlos Reis, A Construção da Leitura. Ensaios de Metodologia e Crítica Literária (contém diversos artigos sobre Eça de Queirós) 1983 — Luís Vianna Filho, A Vida de Eça de Queirós Guilherme de Castilho, Eça de Queirós. Correspondência (2 Volumes) 1984 — M. Manuela G. Delille, “Heine e a Primeira Fase da Vida Literária de Eça de Queirós”, in Recepção Literária de Heine no Romantismo Português 1985 — Joel Serrão, O Primeiro Fradique Mendes 1987 — A. Campos Matos, Imagens do Portugal Queirosiano Maria João Simões, Correspondências: Eça e Fradique. Análise de Estratégias Epistolográficas Isabel Pires de Lima, As Máscaras do Desengano — Para uma Abordagem Sociológica de Os Maias de Eça de Queirós Luís M. Araújo, Eça de Queirós e o Egipto 1988 — Beatriz Berrini, Eça de Queirós. Palavra e Imagem A. Campos Matos, Dicionário de Eça de Queirós Vários (org. Isabel Pires de Lima), I Encontro Internacional de Queirosianos 1989 — Carlos Reis e M. do Rosário Milheiro, A Construção da Narrativa Queirosiana. O Espólio de Eça de Queirós 1990 — Vários, Eça e Os Maias. Cem Anos depois 1991 — Carlos Reis (dir.), Queirosiana (No 1). Revista da Associação dos Amigos de Eça de Queirós (Tormes-Baião) 1992 — Luís Fagundes Duarte, Edição Crítica de A Capital! 1993 — Luís Fagundes Duarte, A Fábrica dos Textos. Ensaios de Crítica Textual acerca de Eça de Queirós Beatriz Berrini, Edição Crítica de O Mandarim 1994 — Alan Freeland (org.), Eça de Queirós. Correspondência Consular Annabela Rita, Da “Chronica” do Distrito de Évora às “Farpas”: a Conformação da Crónica Queirosiana 1996 — Frank de Sousa, O Segredo de Eça. Ideologia e Ambiguidade em A Cidade e as Serras 1997 — M. do Rosário Cunha, Molduras: Articulações Externas do Romance Queirosiano www.clepul.eu


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Carlos Reis, Eça de Queirós Cônsul de Portugal a Paris 1999 — Carlos Reis, Estudos Queirosianos 2000 — Carlos Reis e M. do Rosário Cunha, Edição Crítica de O Crime do Padre Amaro (2a e 3a versões) João Medina, Reler Eça de Queiróz. Das Farpas aos Maias Isabel Pires de Lima/Raul Rego (int. e fix. texto), Eça de Queirós. A Emigração como Força Civilizadora A. Campos Matos, Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós Isabel Pires de Lima (dir.), Diversos livros de balanço bibliográfico e historiográfico inseridos na iniciativa “Entre Milénios: Pontos de Olhar” Carlos Reis, Texto do Catálogo da Exposição do I Centenário da Morte de Eça de Queirós: Eça de Queirós: A Escrita do Mundo Carlos Reis, O Essencial sobre Eça de Queirós Este Período Científico da historiografia queirosiana caracteriza-se por atribuir um valor menor à relação (sempre ambígua) entre a vida e a obra de Eça Queirós que o atribuído pelo período anterior e, como consequência, por tratar os textos que compõem a obra deste autor com maior objectividade ou rigor científico. Como afirmou Carlos Reis, sintetizando o espírito deste período, “o escritor está na sua obra”2 . Assim, neste período, libertando a obra de Eça do peso biográfico e das atribulações conjunturais e muito singulares da vida de Eça de Queirós, retrata-se a sua obra como um corpo coeso, um corpus literário, dotado de unidade estética, ainda que desdobrado em grupos de pregnâncias semânticas temporais (as fases), com uma carga adjectiva e adverbial própria e singularizadora. Neste período existe, portanto, uma menor pesquisa sobre as “intenções” subjectivas de Eça e uma maior investigação sobre os textos objectivos em que se condensa a totalidade da sua obra. Como foi referido por Carlos Reis na abertura do II Encontro Internacional de Queirosianos, em Julho de 1992, “. . . o desenvolvimento 2

Carlos Reis, “O escritor está na obra”, entrevista de Rodrigues da Silva, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, no 799, 9 de Agosto de 2000, p. 6. www.lusosofia.net


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que os estudos literários conheceram nas três últimas décadas veio abrir perspectivas de trabalho insuspeitadas, motivo de continuada renovação e enriquecimento das leituras suscitadas pela obra queirosiana. Se, por um lado, esse desenvolvimento se traduziu na busca intensa (nalguns casos quase obsessiva) de instrumentos conceptuais rigorosos, por outro lado, ele permitiu uma activa diversificação de hipóteses de trabalho, fundadas em específicas opções metodológicas. Da estilística à sociologia literária, do estruturalismo à crítica genética, da comparatística à estética da recepção e às correntes pós-estruturalístas, múltiplas, diversas e, necessário é dizer, nem sempre concordantes foram as orientações metodológicas que inspiraram a análise da obra queirosiana”3 . Permitimo-nos sintetizar em sete pontos as características mais importantes deste Período Científico, que, verdadeiramente, ainda estamos a viver, o conjunto das quais nos traça o quid distintivo deste período face aos dois períodos anteriores: 1. A obra de Eça de Queirós é analisada objectivamente, como um corpo textual, independente de intenções morais, sociais ou políticas do autor, aplicando-se a este corpus as diversas contribuições das ciências linguísticas e hermenêuticas; 2. Multiplicam-se os estudos parcelares, seja sobre temas de âmbito social (a mulher, a política, a gastronomia. . . ), seja comparando os diversos romances entre si, seja elaborando roteiros geográficos dos sítios queirosianos (Verdemilho, Lisboa, Évora, Leiria, Porto, Tormes. . . ), seja realçando os textos estéticos, os textos jornalísticos; seja fazendo inventários de traduções estrangeiras, de teses de mestrado e doutoramento, seja. . . ; 3. Publicam-se novas edições da obra de Eça, segundo critérios mais rigorosos (Helena Cidade Moura e a editora Livros do Brasil), e inicia-se a publicação da edição crítica na editora Imprensa Nacional — Casa da Moeda, seguindo-se uma edição popular (Editora Presença) com base na edição crítica; 3

Carlos Reis, “Discurso de Abertura” do II Encontro Internacional Queirosiano, in Queirosiana. Revista de Estudos sobre Eça de Queirós e a sua Geração, Tormes/Baião, 1992, no 2, pp. 102-103. www.clepul.eu


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4. Publicam-se a primeira fotobiografia de Eça (Beatriz Berrini) e o primeiro dicionário sobre Eça de Queirós (A. Campos Matos); 5. A obra de Eça de Queirós institucionaliza-se definitivamente nos programas curriculares de Língua e Literatura Portuguesas no ensino secundário; 6. Organiza-se e publica-se em dois volumes a correspondência de Eça de Queirós (Guilherme de Castilho); 7. Como consagração popular, organiza-se a primeira grande exposição sobre a vida e obra de Eça de Queirós (Biblioteca Nacional, dir. Carlos Reis), modelo a partir do qual se compõem outras pequenas exposições que percorreram as bibliotecas do país. Se, no Período de Balanço, o nome mais destacável da historiografia queirosiana portuguesa é o de João Gaspar Simões, embora não possamos deixar de destacar o alto nível de inteligência hermenêutica do ensaio de Mário Sacramento, Eça de Queirós, Uma Estética da Ironia (1945), neste Período Científico, que, verdadeiramente, ainda estamos a viver, e no que diz respeito exclusivamente aos queirosianos não brasileiros, são de destacar seis nomes, cujos livros e cujas actividades têm constituído um valiosíssimo conhecimento para a obra de Eça de Queirós — por ordem cronológica do aparecimento das suas obras, Ernesto Guerra da Cal, Helena Cidade Moura (falecidos, por isso os elogiamos de seguida), Carlos Reis, Annabela Rita, Isabel Pires de Lima e A. Campos Matos. Rompendo com inúmeros amadorismos literários, deveu-se a Ernesto Guerra da Cal a primeira grande análise científica da obra de Eça de Queirós, Lengua y Estilo de Eça de Queiros, em 1954, republicada em 1975 com Apéndice. Bibliograf ía Queirociana Sistemática y Anotada e Iconograf ía Artística del Hombre y la Obra, em vários volumes publicados até meados da década de 80, bem como o levantamento da hipótese, em 1971, do estatuto narrativo de A Relíquia como pertencendo ao género pícaro. Para constatarmos como a obra de Ernesto Guerra da Cal trouxe um novo sentido de rigor à historiografia queirosiana, basta comparar-se os antigos www.lusosofia.net


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diversos estudos sobre o estilo de Eça de Queirós, por exemplo, o capítulo “A conquista do estilo” do livro Um Pobre Homem da Póvoa de Varzim, de Fidelino Figueiredo, com o monumental trabalho de E. Guerra da Cal na sua tese de doutoramento. Como se refere no In Memoriam a este autor, publicado, sem nome de autor, em Queirosiana, nos . 5/6, sobre os volumes da Bibliograf ía Queirociana: “. . . trabalho impressionante de erudição e rigor, constituído por cerca de 14 mil verbetes, abrangendo praticamente todos os domínios da vida, obra e fortuna cultural de Eça de Queirós: descrição minuciosa de bibliografia activa e traduções, obra inédita e perdida, epistolografia, fontes biográficas, fontes sobre a obra ficcional e não ficcional, aspectos da criação literária queirosiana (estilo, ironia, ideias, influências, etc), relações geracionais, etc., etc.”4 . Para além de ter traduzido para português a obra de Ernesto Guerra da Cal (1954), a Helena Cidade Moura se deve o rigor que, entre as décadas de 60 e 70, se imprimiu à nova edição das obras de Eça de Queirós publicadas na editora Livros do Brasil. Porque os restantes três nomes citados se encontram fortemente actuantes na e sobre a historiografia queirosiana, coibimo-nos de fazer apreciações de mérito que pudessem, mesmo levemente, levantar suspeitas sobre hierarquias de valor. De tal tratará posteriormente a História da Literatura em geral e a história da literatura queirosiana em particular.

2. Relação entre os 3 Períodos da Historiografia Queirosiana e a Publicação da Obra de Eça Constatamos a existência de uma estreita relação entre a publicação da obra de Eça ao longo do século XX e os três períodos da historiografia queirosiana. À medida que aquela se avoluma, se complexifica e se ordena, esta sofre idêntico processo de crescimento quantitativo e qualitativo de comentários e comentadores, complexificam-se os diversos temas e subtemas explorados e, finalmente, já no final do século, a obra de Eça é submetida a uma ordenação rigorosa, 4

Sem autor, “In Memoriam”, in Queirosiana. Revista de Estudos sobre Eça de Queirós e a sua Geração, Tormes/Baião, 1993/1994, nos 5/6, p. 14.

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primeiro através da edição organizada por Helena Cidade Moura e, depois, a um nível hermenêutico superior, através da edição crítica. Desenha-se, assim, ao longo deste século, uma ligação harmónica entre todos os múltiplos estudos queirosianos, seja quanto à relação entre a publicação da obra propriamente dita e a publicação de comentários, seja na relação entre o grau de exigência teórica destes e a fase de publicação da obra de Eça de Queirós. É justamente esta tese da existência de uma unidade harmónica entre os diversos períodos da publicação da obra de Eça e idênticos períodos da historiografia queirosiana que tentaremos provar de seguida, evidenciando para tal um conjunto de três quadros cronológicos e temáticos esclarecedores: Assim, ao Período Testemunhal da historiografia queirosiana corresponde idêntico Período Testemunhal da edição das obras de Eça de Queirós: PERÍODO TESTEMUNHAL 1º sub-período: SEMI-PÓSTUMOS 1900 — Correspondência de Fradique Mendes A Ilustre Casa de Ramires 1901 — A Cidade e as Serras 2º sub-período: DISPERSOS 1902 — Contos 1903 — Prosas Bárbaras 1905 — Cartas de Inglaterra Ecos de Paris 1907 — Cartas Familiares e Bilhetes de Paris 1909 — Notas Contemporâneas 1912 — Últimas Páginas

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3º sub-período: PÓSTUMOS 1925 — Alves & Cia O Conde de Abranhos A Capital! Correspondência 1926 — O Egipto 1929 — Cartas Inéditas de Fradique Mendes e mais Páginas Esquecidas Designamos por Testemunhal este primeiro período de publicação da obra de Eça porque, ao modo do período homónimo da historiografia queirosiana, ele vive do testemunho de amigos, conhecidos e familiares que empiricamente regem a edição da obra dispersa e inédita até à década de 20, inclusive. Dividimos este período em três sub-períodos. O primeiro, o dos Semi-Póstumos, correspondente a 1900 e 1901, significa que Eça ainda preparou parte da edição dos três livros referidos, tendo Júlio Brandão revisto a parte final da Ilustre Casa de Ramires e Ramalho Ortigão a parte final de A Cidade e as Serras. O sub-período de Dispersos corresponde à década entre 1902 e 1912, tendo Luís de Magalhães recolhido alguns originais mas, sobretudo, organizado o material disperso recolhido por Sampaio Bruno e João Barreira, e feito publicar vários livros que vão desde os contos de juventude da década de 60 até aos contos religiosos da década de 90, passando por alguma correspondência e por artigos e crónicas de imprensa. O sub-período de publicação dos Póstumos corresponde aos anos de 1925 a 1929, quando, pela mão do filho, José Maria d’Eça de Queiroz, publicam-se três importantes romances inéditos e mais cartas de Fradique Mendes, o que, de certo modo, contribui para a reviviscência da importância de Eça na literatura portuguesa contemporânea. Os critérios que presidem a estas edições póstumas são empíricas, impressionistas e pessoais, como as edições críticas de Alves & Cia e A Capital! nos permitem hoje aquilatar.

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Miguel Real

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PERÍODO de BALANÇO 1940 — Novas Cartas Inéditas de Eça de Queiroz a Ramalho Ortigão 1944 — Crónicas de Londres 1945 — Cartas de Eça de Queiroz 1949 — Eça de Queiroz entre os Seus Década de 40 — Republicação da obra de Eça pela Lello & Irmão com a designação de “Edição do Centenário” O Período de Balanço corresponde a idêntico período de Balanço na historiografia queirosiana. Marcado pelas comemorações do centenário do seu nascimento, a Lello & Irmão, editora descendente da Casa Chardron, em que Eça publicara alguns dos seus livros em vida, publica a “Obra Completa”, dita “Edição do Centenário”, que servirá de suporte bibliográfico e de referência a inúmeros comentários e biografias que ao longo destas décadas se publicam sobre a vida e a obra de Eça de Queirós. PERÍODO CIENTÍFICO 1958 — Obra Completa de Eça de Queirós em 3 volumes (Lello & Irmão) 1961 — Cartas de Eça de Queirós aos seus Editores Genelioux e Lugan (1887 – 1994) 1966 — Eça de Queirós e Batalha Reis (Cartas e Recordações do seu Convívio) Folhas Soltas Década de 70 — Publicação da obra de Eça pela editora Livros do Brasil; publicação dirigida por Helena Cidade Moura 1980 — Tragédia da Rua das Flores (Livros do Brasil e Morais Editores) 1983 — Correspondência (ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, dir. Guilherme de de Castilho) 1986 — IV volume da Obra Completa de Eça de Queirós (Lello & Irmão) Década de 90 — Início da publicação da edição crítica da obra de Eça de Queirós dirigida por Carlos Reis www.lusosofia.net


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Historiografia de 100 anos de estudos queirosianos

O Período Científico, ocupando toda a segunda metade do século XX, correspondente a idêntico período na historiografia queirosiana, reflecte um notável aprofundamento de rigor na edição da obra de Eça de Queirós. Com a perda da exclusividade dos direitos de autor pela Lello & Irmão, estes passam para a família. Esta, por sua vez, faz publicar a totalidade da obra de Eça na editora Livros do Brasil (década de 70) que, sob a direcção de Helena Cidade Moura, procede a um notável trabalho comparativo da obra publicada com os manuscritos disponíveis. E é justamente porque o espírito editorial já não é empírico nem impressionista que a edição póstuma da Tragédia da Rua das Flores, em 1980, quando os direitos de autor sobre a obra de Eça caíram em domínio público, nas editoras Morais e Livros do Brasil gerou uma acesa polémica sobre os critérios de edição. Com a publicação das obras de Eça em Edição Crítica, na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, editora estatal portuguesa, com a participação de especialistas queirosianos portugueses e brasileiros, dá-se o ponto final do rigor científico e editorial no tratamento dos livros de Eça depois de um longo arco temporal e editorial (cerca de 100 anos) governado por algum amadorismo.

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Da crónica (queirosiana & outra) Annabela Rita

Folheando, mesmo descontraidamente, a imprensa oitocentista até à década de 70, apercebemo-nos da instabilidade da crónica. Atentando nela, verificamos tratar-se de uma secção jornalística que hesita entre intitular-se simplesmente ‘crónica’ ou especificar a sua temática (‘do teatro’, ‘da literatura’, ‘da arte’, etc.), que se move na 1ª página do jornal (coluna de abertura, no centro ou espraiando-se horizontalmente na base da página), ou entre ela e a 3ª página, concluindo-se, às vezes, mais para o interior, que oscila entre informar, comentar, criticar, reflectir, efabular ou procurar combinar tudo isso, que vai assumindo diferentes objectos, que, ora vai seleccionando leitores diferentes, ora aceita os do seu jornal, etc.. Trata-se de um tempo de aventura, de uma aventura de que não reza a crónica, embora ocasionalmente a denuncie: a da busca da sua própria identidade discursiva. Procurando-a entre Literatura e Jornalismo e, neste, entre ‘folhetim’, ‘crítica’, ‘conto’, etc.. Confronta-se arrojadamente com eles, anelante daquilo que neles a seduz e desejando seduzir leitores, conquistar reconhecimento, manter um diálogo que vivifique e teça de continuidade a pontualidade das suas ocorrências. Nessa sua deambulação instável, a secção ‘crónica’ tendeu progressivamente a tornar-se lugar de um discurso breve sobre alguma coisa da actualidade, fosse o que fosse, assumindo tudo como pretexto para um comentário pessoalizado, reivindicadamente autoral, firmando-se na personalidade, em geral literária, de quem a escrevia, mas sempre insinuando aqui e além um gesto de auto-designação majestático significativo da consciência de si e da sua ambição


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Da crónica (queirosiana & outra)

de dominar o cronista: ‘A crónica, hoje, quer falar de. . . ’. Foi nessa deriva que a crónica se deixou surpreender e conquistar, por seu turno, pelo projecto da Geração de 70, projecto esse que se definiu e formalizou aquando das Conferências do Casino (1871): o projecto de intervenção político-cultural, de educação do povo, pelo esclarecimento do seu aqui e agora, generoso e sedutor, arregimentou a crónica e atribuiu-lhe uma missão que ela assumiu com entusiasmo e humor. E essa missão, interiorizada, fê-la amadurecer, definir-se genologicamente, constituir-se como crónica mais ou menos como hoje a (re)conhecemos. No meu estudo Eça de Queirós Cronista — do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72) (Lisboa, Edições Cosmos, 1998; 2ª ed. rev., Lisboa, Gradiva, 2017), procurei observar e descrever com pormenor este fenómeno na escrita queirosiana, fenómeno que a excede e a inscreve no seu epicentro. Remeto, pois, para o que lá observei e reflecti, fazendo aqui apenas o apontamento breve e esquemático do que me parece caracterizar esse texto que a actualidade nos impõe, multiplicando-o às vezes na mesma publicação com diferentes autorias e seriando-o, arriscando também uma explicação para isso. No exercício das suas novas funções, a escrita cronística procura conciliar o seu ímpeto de análise crítica, a sua tentação criativa e o seu objectivo pedagógico. Quis manter dois tipos de leitores, com exigências diferentes: o par do seu autor e aquele a (in)formar. Conciliar tudo isso eficazmente exigiu uma estratégia muito hábil, diplomática mesmo, que talvez se possa exprimir pela manipulação imaginativa. Segura de que a única forma eficaz de analisar, criticar e de ensinar a fazer tudo isso passa por convencer empática e racionalmente o seu leitor (qualquer deles), a escrita cronística manipula-lhe a atenção de modo a não lhe deixar qualquer disponibilidade para olhar para o lado, para pensar à margem, para perspectivar diversamente. Em primeiro lugar, ela parodia o real, ou seja, coloca lado a lado duas imagens: a do real, da informação (garantia de fidedignidade), e a da sua perspectiva dele, que o interpreta, amplificando-o, caricaturando-o, parabolizando-o, personificando-o, encenandowww.clepul.eu


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-o, efabulando-o, etc.. Contrastando entre si, mesmo tornando aceitável a sua correspondência, elas fazem-se ponderar pelo leitor: não se excluem, conjugam-se, até para melhor evidenciarem a criatividade da cronística. Em segundo lugar, a escrita cronística, desejando persuadir o leitor de que lhe revela ce qui va de soi, o evidente e inquestionável, o incontornável, aceita a lição da literatura oral e tradicional e assume e manipula as suas figuras mais indutoras: o paralelismo, a repetição com ou sem variação, a brevidade, os crescendos, etc.. Fazendo-o, ela exibe-se como corpo: texto geometrizado pela renda tecida por essas figuras, organizado por elas (dispositio). E estas três imagens mencionadas fantasmizam-se, interferem umas nas outras, roubando ao leitor qualquer disponibilidade mental para outra, mesmo que fosse sua: cada uma faz ver as outras, criando-se transparências e des-coincidências que a psicologia da percepção afirma irresistivelmente manipuladoras da atenção. A título de exemplo, e seleccionando uma crónica um pouco ao acaso, recordo uma farpa queirosiana de Janeiro de 1872 na sua versão de Uma Campanha Alegre, apenas para esclarecer e concretizar o que tenho vindo a afirmar: “O Sr. Luciano, chefe da oposição, fez no relatório, que precede o seu projecto de Reforma Administrativa, uma exposição sombria da administração do País. Aí confessa que acabou a fé política e a dignidade política; que não existem partidos com ideias, mas facções com invejas; que o País está desorganizado e entregue ao abandono; que cada reforma cai sucessivamente com cada Governo; que as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma eficácia de organização civil. . . Enfim — que o País chegou à última decadência administrativa. Registemos esta preciosa declaração do chefe da oposição. Vamos guardá-la, como uma jóia — em algodão. O Sr. Sampaio, ministro do Reino, no relatório do seu projecto de Reforma Administrativa, declara que a Administração, como está, é uma confusão vergonhosa, uma desorganização funesta, um abandono mortal. . . Enfim — que o País chegou à última decadência administrativa. Registemos esta confissão sincera do sr. Ministro do Reino. Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho. www.lusosofia.net


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Da crónica (queirosiana & outra)

Resultado: o ministro do Reino e o chefe da oposição declaram oficialmente o País num estado deplorável de administração. Ora nem a reforma do Sr. Luciano se efectuará, nem a reforma do Sr. Sampaio se realizará. De tal sorte, que resta? Que estamos num abominável estado de administração — segundo confessa o Governo e segundo confessa a oposição: e que ficamos nesse estado! É risonho.”

Texto tripartido, o paralelismo expositivo reforça na crónica a equivalência entre as variantes discursivas e entre as duas primeiras partes, equivalência que a terceira parte vem reafirmar. Fazendo-o, também baliza entre os dois extremos possíveis (o ministro do Reino e o chefe da oposição) a observação do cronista, ao mesmo tempo que abre aí, entre eles, espaço para a observação do próprio leitor a realizar-se de acordo com o esquema que os dois enunciados formalizam: o texto abre-se pedagogicamente ao investimento de leitura, como estrutura desdobrável, multiplicável, adquirindo profundidade com a sugestão desse seu fantasma. A terceira parte, evocando o raciocínio aritmético, ainda mais convincente torna o que a redundância já tornara aceitável, criando, em simultâneo, o efeito da relação cognoscente entre o caso (observação) e a lei (conclusão), o exemplo e a regra, a realidade e a sua interpretação. Nessa malha textual que apela ao investimento de leitura para o preenchimento do espaço dedicado a esse exercício discursivamente modelizado e modelizador do conhecimento do real, cada variante, além de remeter o leitor para o real, obrigando-o a recordá-lo, constitui uma imagem de apelo imaginativo irresistível: ‘Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.’ e ‘Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.’ são comparações inesperadas, surpreendendo e criando um efeito de exotismo, comparações que, por sua vez, se confrontam no plano da imaginação do leitor. Oscilando entre um movimento lateralizante do pensamento, pelo qual evoca, imagina e confronta, relacionando textual e real ou apenas ponderando as imagens textuais, e o movimento vertical a que o obriga o curso da malha textual, o leitor não consegue o mínimo de distanciamento que lhe permita um raciocínio ou uma visão diferente: se o primeiro movimento o surpreende a cada imagem e www.clepul.eu


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o faz deter-se para a ponderar, o outro arrasta-o para a reprodução dessa imagem com lúdica variação. Basta este exemplo para esclarecer as minhas afirmações, mesmo sabendo que a cronística queirosiana é apenas um caso da cronística em geral: a sua lição informou e formou o texto da crónica moderna tal como ela se nos impôs. Não tive, pois, a preocupação de trazer à vossa atenção um texto-modelo (nem a sua primeira versão), mas tão só, e estrategicamente, um exemplo significativo e dos mais breves, onde a concentração textual evidencia a elaboração retórica de que tenho vindo a falar. Neste sentido, a escrita cronística oitocentista revelou-se, a um tempo, exibicionista e subtil: concentrando na brevidade textual a expansão e profundidade imaginativas (multiplicação e sobreposição de planos, de imagens). Curiosamente, na sua constituição genológica, a crónica antecipa as Seis Propostas para o Próximo Milénio, de Italo Calvino: leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Daí, talvez, a sua vitalidade actual e, previsivelmente, futura. . .

“De Port Said a Suez” Por iniciativa do diplomata e empresário francês Ferdinand de Lesseps, o canal do Suez foi construído com 164 Kms durante 10 anos (1859-69) e c. de um milhão de egípcios. Uma das vias marítimas mais importantes do mundo, via de encontro entre o Ocidente e o Oriente, retomando a ideia do faraó Sesostris III c. de 4000 anos antes, que promoveu a ligação e a sua utilização com interrupções até ao século VIII, tendo sido abandonado devido ao custo dos desassoreamentos que exigia. Com 23 anos de idade apenas, Eça viveu uma experiência simbolicamente decisiva: a inauguração da ligação entre Port Said, no Mar Mediterrâneo, e Suez, no Mar Vermelho. No seu regresso a Lisboa, contou a experiência ao Diário de Notícias, que lhe publicou a colaboração em Janeiro de 18701 . Um texto que tem oscilado entre diversas classificações na genologia da imprensa. 1

Reprodução da série queirosiana do Diário de Notícias de 18, 19, 20 e 21/Janeiro/1870 em: http://www.arqnet.pt/portal/pessoais/eca_suez.html. Eça de Queiwww.lusosofia.net


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Da crónica (queirosiana & outra)

O Diário de Notícias n.o 1507 (3.a feira, 18/1/1870), dois meses depois dos acontecimentos, publicava os 2 ‘folhetins’ de Eça de Queirós (cada um deles subdividido em 2 partes), afirmando: “Começamos a dar hoje uma interessante descrição das festas de Suez, feita pelo Sr. Eça de Queirós, um dos únicos quatro ou cinco portugueses que a elas assistiram”.

E a série (Diário de Notícias de 18, 19, 20 e 21/Janeiro/1870); abre com a declaração de intenções de Eça ao redactor do jornal: “Acedo da mais perfeita vontade ao seu desejo de ter a história real das festas de Suez. Conto-lhe, porém, simplesmente e descarnadamente, o que me ficou na memória daqueles dias confusos e cheios de factos: tanto mais que as festas de Suez estão para mim entre duas recordações — o Cairo e Jerusalém: estão abafadas, escurecidas por estas duas luminosas e poderosas impressões: estão como pode estar um desenho linear a lápis, entre uma tela resplandecente de Decamps, o pintor do Alcorão, e uma tela mortuária de Delaroche, o pintor do Evangelho. Talvez em breve diga o que é o Cairo e o que é Jerusalém na sua crua e positiva realidade, se Deus consentir que eu escreva o que vi na terra dos seus profetas. Hoje, faço-lhe apenas a narração trivial, o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez.”

Ora, trata-se de um projecto, desde logo, contraditório: a “narração trivial” e o “relatório chato” não podem corresponder a “o que [lhe] ficou a memória”, que é sempre o que se destaca e evidencia pela sua singularidade, uma vez que a memória é eminentemente selectiva. Para além disso, a memória é também reelaboradora: não fixa apenas, não regista só, mas transforma. rós, “De Port-Said a Suez”, Diário de Notícias, 6.º Ano, n.º 1507-1510, 18 a 21 de Janeiro de 1870; “De Port-Said a Suez (Carta sobre a inauguração do Canal de Suez)”, in Notas Contemporâneas, Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, Editores, 1909, pp. 1 a 26 [1.ª edição em livro das crónicas sobre a inauguração do canal de Suez]; “De Port Said a Suez, 1870”, in Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil (“Obras de Eça de Queiroz”), 1970 (fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura). Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Lisboa, Quetzal Editores, 2001. www.clepul.eu


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Será este singular e notável inscrito na memória, de facto, que reconduzirá a um alegado “desenho linear a lápis”, entre uma “tela resplandecente” (Decamps, 1803-1860), e uma “tela mortuária” (Delaroche, 1797-1856): eis o trabalho sobre o pormenor (seja ele panorâmico e impressionista, ou de seccionamento anunciando o fragmentarismo) com referência aos modelos estéticos, neste caso, da pintura, a analogia mais tradicional nas humanidades, esse ut pictura poesis horaciano que Eça ultrapassará n’ As Farpas (1971-72), preferindo-lhe a opereta offenbachiana consagradora do riso como filosofia. . . O tédio da viagem pouco o ocupará, como veremos, pois o seu olhar é hipnoticamente atraído pelo diferente, assinalando a adversativa a ruptura, a descontinuidade que absorverá a letra queirosiana, promovendo o discurso uma composição de assemblage2 , com uma reunião de fragmentos do diverso que, por si só, provoca o estranhamento de cada parte e do todo: “Mas naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos urras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspecto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yachts dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a “Aigle”, com a imperatriz, o “Mamoudeb” com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José, até ao caide árabe Abd el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro. Em todos os navios, empavesados e cheios de pavilhões, a marinhagem, perfilada nas vergas, saudava com vastos urras. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos escaleres, a remos, a vapor, à vela; almirantes com os seus pavilhões, oficialidades todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e apopléc2

Termo proposto pelo pintor e gravador francês Jean Dubuffet em 1953, e usado já na exposição The Art of Assemblage, no Museu de Arte Moderna — MoMA — de Nova York em 1961. www.lusosofia.net


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ticos, viajantes com os chapéus cobertos de véus e couffiés, cruzavam-se ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos Árabes, apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas riscadas de azul. Sobre tudo isto o céu do Egipto, de uma cor, de uma profundidade infinita. À noite a cidade iluminava-se, enchia-se de músicas e festas populares. As esquadras tinham as suas armações e cordagens cobertas de fios de luz. Durante toda a noite os fogos de artifício, numa grande linha de terra, faziam, sobre o céu escuro, um grande bordado luminoso.” (itálico meu)

Sendo 1870 o momento da celebração desse simbólico diálogo entre Ocidente e Oriente que Alexandre-Gabriel Decamps evoca através de Eça, é, também, a fase de profunda transformação da escrita queirosiana: entre O Distrito d’Évora (1867) e As Farpas (1871-72), assiste-se a uma revolução da poética do nosso autor, particularmente, na crónica, revolução aquecida pelo fogo prometeico do projecto da Geração de 70. E estamos a perspectivar a génese da crónica queirosiana na imprensa oitocentista, epicentrada entre Jornalismo e Literatura. Da poeira das velhas crónicas à vibrante imprensa oitocentista, que viagem de longo curso! A mais velha antecessora era a cronística dos Reis, depois, a do Reino. . . Na imprensa, os anos 40 e 50 oferecem-no-la como secção jornalística em jeito de coluna que nos informa sobre a vida do Paço, a meteorologia, notícias mais destacadas. Transita na página, mistura-se e confunde-se com outras secções (Folhetim, etc.). . . A escrita do tempo no seu quotidiano. Depois, passará a subtítulo essa indicação de historiográfico objectivo (mesmo que ficcional, como acontece com Garrett, Júlio Dinis, Eça, etc.). A escrita do tempo depois dele. . . Até à década de 70, a imprensa oitocentista portuguesa evidencia, pois, a imensa instabilidade do que hoje designamos crónica. Ao longo do tempo e na sua ocorrência, hesita entre intitular-se simplesmente ‘chronica’ ou especificar a sua temática (‘do teatro’, ‘da literatura’, ‘da arte’, etc.), move-se na 1a página do jornal (coluna de abertura, no centro ou espraiando-se horizontalmente na base da página), ou entre ela e a 3a página, concluindo-se, às vezes, mais para o interior, que oscila entre informar, comentar, criticar, reflectir, efabular ou procurar combinar tudo isso, que vai assumindo diwww.clepul.eu


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ferentes objectos, que, ora vai seleccionando leitores diferentes, ora aceita os do seu jornal, etc.. E o jornalismo em que se inscreve a crónica começa a ser assumidamente vectoriado por um programa de acção. Eça de Queirós, p. ex., na abertura do número inaugural d’O Distrito d’Évora, de 6 de Janeiro de 1867, assume um ideário que é geracional e que acabará por informar o seu verbo literário também: “É o grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os actos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença de outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo respeito do direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes.”3

Como diz Campos Matos, “Define funções e potencialidades do jornal: estabelece os objectivos e deveres primordiais de um órgão de imprensa, apresenta as características desta actividade, traça as linhas mestras que deveriam pautar o comportamento do jornalista. Os deveres fundamentais para assegurar as principais funções da imprensa são informar, interpretar e também intervir para esclarecer e guiar os espíritos e os governos, desempenhando papel de capital importância na vida política, moral, religiosa, literária e industrial do país.”4

Em “De Port Said a Suez”, nessa celebração em folhetim-crónica do encontro entre Oriente e Ocidente, veremos cindir-se a geometria imaginária da escrita queirosiana entre diferentes espaços ou cenas: “Ao outro dia os navios começaram a mover-se lentamente, voltando a proa para um ponto da baía de Port Said, onde se 3

Eça de Queirós, O Distrito de Évora, n.o 1, dia 6 de Janeiro de 1867, p. 1. A. Campos Matos (org. e coordenação), Dicionário de Eça de Queirós, Lisboa, Ed. Caminho, 1988, p. 210. 4

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Da crónica (queirosiana & outra)

erguiam, como os dois umbrais de uma porta, dois obeliscos de madeira vermelhos. Era a entrada do canal de Suez. Entretanto corriam por todos os navios estranhos boatos.”5

Três cenas atraindo a atenção do leitor e concorrendo entre si por ela em função do que a fenomenologia do olhar designa pela “rivalidade do contorno”: o visível (o movimento dos navios no canal), o comentado (deslizamento comparativo entre o visível e o evocado) e os bastidores (a escuta dos rumores). Eis-nos perante a génese do processo de espectaculatização que Eça desenvolverá sob o signo offenbachiano n’As Farpas (1871-72). Trata-se de uma geometria espacial imaginária que Eça reconduzirá ao modelo da sua escrita: Offenbach, Jacques Offenbach (1819-1880), autor de Orfeu no Inferno, onde o cancan adquiriu fama, e de tantas operetas que fizeram furor nos palcos da época, como é o caso de La Belle Hélène, La Vie Parisienne, La Grande-duchesse de Gérolstein e La Princesse de Trébizonde, com alguns motivos que iremos reconhecendo na ficção queirosiana, como é o caso da “Carta Roubada”, que atravessa O Primo Basílio. Opereta cujo objectivo principal e imediato é o riso, que o nosso autor considera “uma filosofia”, pois cria distância crítica e promove a reflexão num segundo tempo.

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Diário de Notícias de 18 de Janeiro de 1870. Cf. referências atrás. www.clepul.eu


Parte II

Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. (EQ)

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Farsa em um Acto Filomena Oliveira e Miguel Real

POLÉMICA LITERÁRIA EM SINTRA COM EÇA DE QUEIRÓS PINHEIRO CHAGAS (para Alfredo Keil) — Soube que o Sr. Eça de Queirós se encontrava em Sintra para a inauguração do eléctrico da Praia das Maçãs. Como homem honrado, vim pedir-lhe desaforo pelas calúnias, pelas insinuações, os seus ultrajes, a sua má educação. BULHÃO PATO — A sua cobardia. . . PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão, não vamos tão longe. ALFREDO KEIL — Os senhores estão irados? LATINO COELHO — Não, senhor. Vimos apresentar o nosso protesto cordatamente. BULHÃO PATO — Qual cordatamente (levantando a bengala), vimos dar umas bengaladas no Sr. Eça de Queirós. PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão, assim perdemos a razão. ALFREDO KEIL — Não vejo por que haveriam de escolher este dia de festa para se vingarem de Eça — a inauguração do nosso notável eléctrico, digo “nosso” porque, desde que levantei casa na Praia das Maçãs, já me considero um genuíno sintrense. LATINO COELHO — Vingança, Sr. Alfredo Keil? O senhor falou em vingança? Eu sou o secretário vitalício da Academia de Ciência. Vitalício! Um secretário da Academia não promove vinganças! Também eu já me considero um sintrense, tenho casa na Vila Velha. Este senhor é o ilustre Pinheiro Chagas, autor da mais notável História de Portugal em seis volumes, seis!, desculpe, acho que são oito, nem


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Farsa em um Acto

o grande Alexandre Herculano de tal foi capaz, ficou-se pelo terceiro! E aquele senhor é o digníssimo poeta Bulhão Pato, o autor de Paquita, o mais notável poema ultra-romântico. PINHEIRO CHAGAS — Viemos a Sintra para nos regalarmos com a paisagem, e comermos as famosas amêijoas confeccionados pelo Bulhão Pato na cozinha do Hotel Central. LATINO COELHO — Divinais! BULHÃO PATO — Fui eu que as inventei. ALFREDO KEIL (rindo) — Às amêijoas? BULHÃO PATO — À sua confecção, trato as amêijoas como Madre Paula de Odivelas tratava os toucinhos-do-céu. PINHEIRO CHAGAS — Fomos advertidos por um saloio que o sr. Eça de Queirós estava em Sintra, no Hotel Nunes, para a inauguração do eléctrico. Viemos pedir desaforo. . . LATINO COELHO — Pedir desaforo, não vingança. Viemos protestar. O sr. Eça de Queirós vomitou uma afronta sobre a Academia e o ilustre Pinheiro Chagas. BULHÃO PATO — Eu, por mim, espetava-lhe três bengaladas no toutiço, arrancava-lhe o bigode pêlo e pêlo, descarnava-o todo. . . PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão. . . ALFREDO KEIL — Com tantas ameaças, vejo-me obrigado a pedir a um saloio que vá avisar o sr. Eça de Queirós para não vir à inauguração. Não quero aqui encrencas. BULHÃO PATO (ostentando a bengala) — Não faça isso! PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão. LATINO COELHO — Somos homens de bem, cidadãos pacíficos. ALFREDO KEIL — Mas vingativos. . . PINHEIRO CHAGAS — Não, sr. Alfredo Keil. . . Eu sou um admirador do sr. Eça de Queirós. Detesto as suas teorias literárias, mas adoro os seus romances. Admiro a sua veia satírica, a originalidade da sua linguagem e o poder do seu estilo. ALFREDO KEIL — Procuram o sr. Eça de Queirós para. . . LATINO COELHO — O sr. Eça de Queirós tem um grave defeito, vive no estrangeiro há vinte anos e julga-se superior aos portugueses.

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BULHÃO PATO — Eça de Queirós faz de Portugal um país de bestas e dos portugueses uns brutos incivilizados. PINHEIRO CHAGAS — É um estrangeirado, um preconceituoso. . . LATINO COELHO — Descompõe a pátria. BULHÃO PATO (gritando) — Eça de Queirós é uma besta, é o que ele é, uma besta. PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão. É um homem desagradável, precisa de alguém que lhe faça frente. Serei eu esse homem, fui Ministro da Marinha! (Eça de Queirós, Titi e Teodorico Raposo aproximam-se do eléctrico.) EÇA DE QUEIRÓS (Para Raposo) — Não há como Sintra no Verão! Subir a Pena, ir beber água à Fonte dos Amores, barquejar na Várzea, subir a Serra num burro à paz fresca das grandes sombras e do murmúrio das águas correntes. TITI — E ouvir missa nas bonitas igrejas, sr. Eça de Queirós. São Martinho e São Pedro, por exemplo. Eu nunca viria a esta inauguração sem o consentimento de Nosso Senhor. Ele consentiu e eu venho em peregrinação, só para Lhe agradar. EÇA DE QUEIRÓS — Só uma alma virtuosa como a da Titi. Li no “Diário de Notícias” de ontem que a: “Exma. Sra. D. Patrocínio das Neves, opulenta proprietária e modelo de virtudes cristãs, acompanhada por seu sobrinho, Teodorico Raposo, bacharel em leis por Coimbra, partiram em viagem a Sintra para a inauguração do eléctrico.” Mas não acham, a Titi e o meu amigo Teodorico Raposo, que Sintra é um Éden Glorioso, uma obra divina da natureza? TEODORICO RAPOSO — Sim, é grandioso. Gostei do Paço da Vila, sim senhor, tem cachet! Chaminés tão imponentes lembram-nos belos jantares e belas damas. TITI — Oh, menino, que linguagem é essa? Relaxações e poucas vergonhas não, comigo não. TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, referia-me às damas celestes das pinturas murais do palácio real. São santas, rodeadas de anjos. Impressionantes as chaminés!

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EÇA DE QUEIRÓS — Chaminés tão colossais e disformes resumem tudo: uma residência toda ela reduzida a uma cozinha e uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino. TEODORICO RAPOSO — Eu por mim, já comia qualquer coisa. Sabe se a viagem é muito longa, sr. Eça de Queirós? EÇA DE QUEIRÓS — Seja o tempo que for, deixe-se levar, Teodorico! Abra esses olhos para tão grande beleza e respire, inspire, encha os pulmões do ar puro. (Titi distraí-se e não ouve a conversa que se segue) TEODORICO RAPOSO (Para Eça de Queirós) — Pois sim. É que, missas, já papei duas, logo de manhã. Tive de acompanhar a minha Titi, que não queria andar de eléctrico sem primeiro se aconselhar com o Senhor Jesus. O almocinho já me calhava bem. É que vim a Sintra para me refastelar, para uma boa pândega com Lolitas no hotel. E só vejo árvores, pedras, musgos. Nem passeios, nem um bilhar, nem um teatro, uma regata, como em Cascais. E afinal, diz-se em Lisboa que Sintra é um ninho de amores. Ainda não vi nada. EÇA DE QUEIRÓS — Há tempo para tudo. Havemos de ir numa burricada à Pena. É hilariante, quando não cai o burro, cai o cavaleiro e as mais das vezes caem ambos. Ficam por cá uns dias, não é verdade? TEODORICO RAPOSO — Sim, estamos instalados no Lawrence. EÇA DE QUEIRÓS — O Hotel Victor convinha-lhe mais. Há jogo como num casino e é de lá que partem as famosas burricadas. Conheço gente de Lisboa que comprou um burro em Sintra. Ou então o Hotel Nunes, esse tem outros interesses (sussurrando-lhe ao ouvido) as espanholas. (Titi aproxima-se). (Disfarçando) Não há como Sintra no Verão! TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, tenho estado aqui a falar com o sr. Eça de Queirós e a pensar. Sabe a Titi o que me fazia falta aqui em Sintra? O cavalo que a Titi me ofereceu lá em Lisboa. TITI — Ora essa, menino, para quê? TEODORICO RAPOSO — Para poder ir rezar a Nosso Senhor às igrejas de Sintra que são longe umas das outras, e os caminhos em www.clepul.eu


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péssimo estado, tudo a subir por esses montes. TITI — Não, filho. Acabei de ter uma inspiração do Senhor: em Sintra, compramos um burro. TEODORICO RAPOSO — Se a Titi prefere os burros. TITI — Acho, filho, é mais cristão. Como é que Nosso Senhor entrou em Jerusalém? De cavalo? Não, de burro. Ora já vês, é mais cristão. TEODORICO RAPOSO (Para Eça) — A Titi quer comprar-me um burro para visitar as igrejas de Sintra. Junta-se o útil ao agradável. Estou morto por uma boa pândega. Vamos ao Victor e às burricadas e vamos ao Nunes às espanholas!! TITI — Que dizes menino? Às espanholas? Mas que pouca vergonha! TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, falávamos de burras, de burras espanholas, que, diz o sr. Eça de Queirós, são as mais seguras para subir e descer os caminhos que levam às igrejas onde terei de ir rezar. TITI — Ah, está bem. Então compra-se uma burra espanhola. EÇA DE QUEIRÓS — É verdade, senhora D. Patrocínio! As burras espanholas são mais aceleradas, mais fogosas; as portuguesas são mais mansas, mas mais lentas nas subidas. Mas agora o que importa é esta maravilha da civilização: o eléctrico! Ora vamos que está quase a partir. TEODORICO RAPOSO — É catita, sim senhor, tem chique! TITI (Benzendo-se) — Ai, meu Deus, estou tão nervosa! Que desavergonhice de barulho ouço ali? TEODORICO RAPOSO — Devem ser as burricadas dos saloios. EÇA DE QUEIRÓS — Não, Titi, é o Pinheiro Chagas, que eu chamo sempre o “Brigadeiro”, quer pôr ordem na literatura como se fosse um polícia. Olha, olha: vem acompanhado pelo Bulhão Pato, o poeta que eu caricaturizei n’Os Maias como o nome de Tomás de Alencar. Escrevi um poema ultraromântico a Seteais em seu nome: Quantos luares lá eu vi? Que doces manhãs d’Abril? E ais que soltei ali Não foram sete mas mil! PINHEIRO CHAGAS — Vejo ali o Sr. Eça de Queirós. www.lusosofia.net


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ALFREDO KEIL — Comporte-se como um cavalheiro! BULHÃO PATO — Não sei se me contenho. . . LUCIANO COELHO — Calma, Bulhão. EÇA DE QUEIRÓS (Dirigindo-se a Pinheiro Chagas) — O meu ilustre ministro! PINHEIRO CHAGAS — Já não sou ministro. TEODORICO RAPOSO — Fez-se justiça. Não sei como o cavalheiro conseguiu ser Ministro da Marinha se não há Marinha em Portugal! EÇA DE QUEIRÓS (De lado) — Boa, Raposão! Dessa nem eu me lembraria! (Para todos) Tenho o prazer de vos apresentar as duas mais importantes personagens d‘A Relíquia: D. Patrocínio das Neves, conhecida em toda a Lisboa por Titi, e seu ilustre sobrinho, Teodorico Raposo. BULHÃO PATO (Entredentes) — Personagens desprezíveis! PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Eça de Queirós refere-se à Relíquia, o seu romance? EÇA DE QUEIRÓS — Claro. LATINO COELHO — Aquilo, um romance? PINHEIRO CHAGAS — Sr. Eça de Queirós, A Relíquia não é um romance. Serão, talvez, impressões de viagens, tipos e cenas sarcásticas de Lisboa. Aqui o Sr. Teodorico não é uma personagem, é um tipo peculiar hipócrita de habitante de Lisboa. EÇA DE QUEIRÓS — É uma das melhores personagens que criei. BULHÃO PATO — O Sr. Raposão é uma cloaca de más intenções, nem merecia entrar num romance, não tem verve, sentimento, elevação moral. É um reles atrevidote. PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Raposão e a sra. Titi são quadros da vida de Lisboa, não são personagens de um romance. LATINO COELHO — As personagens d‘A Relíquia são personagens medíocres, ignorantes. O sr. Raposão é uma personagem pérfida. EÇA DE QUEIRÓS — Confesso não ser o meu melhor livro. Falta-lhe, talvez, um sopro de inspiração lírica. Contudo, a sua crítica, Pinheiro Chagas, a que fez publicar nos jornais, ofendeu-me.

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PINHEIRO CHAGAS — O senhor desvairou neste livro, sr. Eça de Queirós! Como é possível que tenha posto um miserável como este (aponta para Teodorico) a presenciar a sublime morte de Jesus? E pô-lo à pressa. Meteu-o ali pelo meio a sonhar. Falta-lhe fantasia. Falta-lhe virtude! Não tem unidade! É um livro cheio de defeitos. LATINO COELHO — Defeituosíssimo! PINHEIRO CHAGAS (Apontando para Raposão) — Este senhor é uma personagem burlesca e imbecil, de beiços saídos de avidez. Como foi possível o Sr. Eça pôr este cocheiro, este taberneiro, este labrego, este diabo que não tem onde cair morto a contemplar o sublime mistério da paixão e ressurreição de Cristo. BULHÃO PATO — O Sr. Eça quer ser original, mas só faz disparates; o Sr. Eça é uma criança crescida. Como pôde descrever este tasqueiro a rezar a Nossa Senhora e a ver os seios de Adélia? Como pôde, diga? LATINO COELHO — Devia ser excomungado! PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Eça de Queirós fez batota, já tinha escrito o terceiro capítulo, “A Paixão de Cristo”, até a publicou no “Diário de Notícias”, em 1870, e agora fez uma mudançazinhas e enfiou o texto no meio do romance. BULHÃO PATO — E a conclusão moral é o cúmulo do cinismo! EÇA DE QUEIRÓS (Passando da defesa ao ataque) — O que os senhores queriam é que eu mostrasse um Cristo burguês, de chapéu de coco e lunetas defumadas. Os senhores queriam um Jesus Cristo apatetado, que apoiasse as trapaças de ministro e bispos. Peca-se, confessa-se, reza-se, faz-se penitência e pronto, as almas já podem ir para o céuzinho! Burlões, aldrabões, escroques da política e do altar, impostores da finança e da indústria, fazem o mal, depois confessam-se e rezam e Deus já os recolhe nos seus santos braços. Trapaceiros! Carambuleiros! Burleiros! Alicantineiros! Trampolineiros! Pantomineiros! Embusteiros!

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BULHÃO PATO (Avança para Eça de bengala em riste; Teodorico interpõe-se) — Trapaceiro é o senhor! Ridicularizou-me n‘Os Maias. Chamou-me Tomás de Alencar! (Para o público) Este senhor é um trapaceiro. Usou a minha figura e a minha vida para me caricaturizar e ridicularizar. Eu sou Bulhão Pato, não sou Tomás de Alencar! EÇA DE QUEIRÓS (Acalmando-se, falando para o público, entre a troça e a serenidade) — Pronto, o Sr. Bulhão Pato, o famoso cozinheiro das amêijoas à Bulhão Pato e o criador do poema ultra-romântico Paquita, não é a minha personagem sintrense Tomás de Alencar, o poeta de Seteais! LATINO COLEHO — Prove que não está a fazer pirraça! EÇA DE QUEIRÓS — Pois provo-o. Todos os que já leram o meu O Crime do Padre Amaro, escrito 14 anos antes d‘Os Maias, lá encontram o poeta Alcoforado, de longa cabeleira e longos bigodes brancos, passeando ao sol-pôr na praia de Vieira. Há 14 anos! BULHÃO PATO — Cobarde! Cobarde! Cobarde! Eu desmascaro-o! Olhe para aqui (mostra um livro de poemas contra Eça). Eu é que retratei o Sr. Eça de Queirós aqui, em versos imorredouros. Com os meus versos, o Sr. Eça de Queirós é o escarninho das bocas do mundo, no Chiado e em Sintra não há peralvilho que não conheça estes versos, zombando do “lázaro” cônsul! EÇA DE QUEIRÓS — “Lázaro”, eu? BULHÃO PATO — “Lázaro” porque Sr. é um feixe de ossos! Um esqueleto ambulante! Vou ler-lhe uns versos que fiz para o Sr. EÇA DE QUEIRÓS — Ainda se fossem uns belos versos! BULHÃO PATO — O Lázaro fareja as podridões da vida Como fareja a hiena a carne corrompida! Não dás ao teu país nada afectivo e santo; Nem um sorriso ao berço, nem à cova um pranto! Que sangue de escorpião gira por essas veias, Procaz embréchador de charras odisseias! ALFREDO KEIL (apressado) — Meus senhores, meus senhores! O eléctrico vai partir para a sua primeira viagem. Venham todos! BULHÃO PATO — (Impetuoso, lança o seu livro contra Eça de Queirós e recita um poema) www.clepul.eu


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LÁZARO CÔNSUL Cônsul magno e burlão, replicas, prenda rara, Uns seis meses depois de eu te cuspir na cara! Na réplica resumbra a exangue timidez. Esgueirado do brio, enjeitas a honradez! Qualquer homem capaz diria — vê se entendes: — “fui eu que te insultei. E então?. . . O que pretendes?” Mas isso não te casa ao teu temperamento: Dar mostras de viril foi sempre o teu tormento! Nunca leste a Paquita. E dizes-mo, tirano!. . . Pois leu-a, e prefaciou-a Alexandre Herculano. Mas esta circunstância, em pouco me atenua O esmagador desdém da Omnipotência tua! (Eça de Queirós, rindo, gargalhando, salta para dentro do eléctrico, põe-se ao lado do guarda-freio, fala com este, cofia o bigode e vira as costas a todos.) (Dois saloios observam o eléctrico, com algum receio e maior curiosidade. Ela traz uma bilha de barro com água fresca, ele uma cesta com frutos e legumes.) JOAQUINA (Espantada) — Ah! Isto é que é o eléctrico? É bonito! Ó João, mas se não tem burros nem bois para o puxarem, como é que isto anda? JOÃO RODELO — Anda electricamente, por isso é que lhe chamam eléctrico. JOAQUINA — Ah! Esta agora ?. . . Anda assim sozinho, sem nada a puxar? Anda electricamente, dizes tu? Ai, João, isto é uma grande invenção. A gente poder ir por aí fora, até à Vila Nova da Praia das Maçãs, assim? Sem nenhuma alimária a puxar? JOÃO RODELO — É verdade. Ir e vir. Todos os dias faz viagens para lá e para cá. JOAQUINA — Eh, João, tantos senhoritos da cedade! Vêm todos andar no eléctrico? Atão não têm eléctricos lá em Lisboa? Ouvi dizer que sim. www.lusosofia.net


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JOÃO RODELO — São banhistas de Lisboa que vão para a Vila Nova da Praia das Maçãs. Falta-lhes a água na cedade e têm de vir lavar-se por cá. Vai ser bom para o negócio! JOAQUINA — Tu já viste, João, com tanto espaço, podemos levar mais mercadoria, vai logo tudo de uma vez. E podem vir mais vizinhos, que cabem bem. Sempre vamos mais acompanhados, e os animais ficam pró amanho da terra. Isto é uma grande invenção!! JOÃO RODELO — Anda, traz a água, que eu levo a cesta, a ver se fazemos bom negócio. JOAQUINA — Espera, homem, estás todo mal arranjado. Podias ter lavado essas mãos. JOÃO RODELO — Ora, deixa-te disso, nem ma lembrei. (Aproximam-se da Titi e do grupo dos escritores, Bulhão Pato continua furioso). JOÃO RODELO — Ora com licença de vossas mercês. Os senhoritos hão-de sentir-se aqui bem, que Sintra é uma boa terra. Temos por cá muita fruta: morangos, pêssegos, maçã, muita uva, bons vinhos, o ramisco, muito legume das hortas e pêxe, há bom pêxe nestas águas. JOAQUINA — E bons ares para limpar os pulmões de vossas senhorias que hão-de estar entulhados da cedade. (Tirando água da bilha de barro) E água fresca para acalmar os calores. Fomos ali à fonte da Pipa buscá-la ainda há pouco. Com tantos senhoritos para a inauguração do eléctrico, hão-de vir cheios sede, disse aqui ao meu João. Ora vamos lá (vai servindo canecas de água), são cinco vinténs cada copázio. JOÃO RODELO — Vossas mercês não precisam de um cocheiro? JOAQUINA — Oh, homem, atão se vão de eléctrico, para que é que hão-de querer um cocheiro? JOÃO RODELO — Ou um jardineiro para os chalets de vossas mercês? JOAQUINA — Os senhoritos vêm da cedade à procura de uma boa pândega, por desfastio, não é verdade? Vêm ouvir os rouxinóis, barquejar na Várzea, comer queijadas. Têm de provar as nossas laranjas, os morangos, os pêssegos. São tão docinhos que dá gosto.

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JOÃO RODELO — Vossas senhorias já provaram o vinho ramisco? É feito das vinhas plantadas nas areias de Colares? Quando lá chegarmos eu digo aos senhores onde é. E se vossas senhorias tiveram precisão de algum burro, p’rós passeios na Serra, também se arranja e a bom preço.

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Parte III

Os lustres estão acesos. (EQ)

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Imagens em movimento Annabela Rita1

Spectre, reflet, double ou sosie continuent d’entretenir, non plus la terreur, mais un tenace halo d’équivoque. Comme si l’incertain statut de l’image n’en finissait pas de faire vaciller nos plus hautes certitudes. Qu’elles soulagent ou ensauvagent, qu’elles émerveillent ou ensorcellent, manuelles ou mécaniques, fixes, animées, en noir et blanc, en couleurs, muettes, parlantes c’est un fait avéré, depuis quelques dizaines de milliers d’années, que les images font agir et réagir. Certaines, qu’on appelle ‘œuvres d’art’, se donnent complaisamment à contempler, mais cette contemplation ne détache pas du ‘drame de la volonté’, comme le voulait Schopenhauer, parce que les effets d’images sont souvent dramatiques. Mais si nos images ont barre sur nous, si elles sont par nature en puissance de quelque chose d’autre qu’une simple perception, leur capacité aura, prestige ou rayonnement change avec le temps. Nous voudrions interroger ce pouvoir, repérer ses métamorphoses et ses points de rupture. L’histoire de ‘art’ doit ici s’effacer devant l’histoire de ce qui l’a rendu possible le regard que nous posons sur les choses qui représentent d’autres choses. Histoire pleine de bruit et de fureur, parfois racontée par des idiots, mais toujours lourde de sens. Rien n’y est joué d’avance, car l’emprise qu’ont sur nous nos figures varie avec le champ de gravitation où les inscrit notre œil collectif, cet inconscient partagé qui modifie ses projections au gré de nos techniques de représentation. /. . . / Ou comment le monde se donne à voir à ceux qui le regardent sans y penser. 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).


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Imagens em movimento

La source n’est pas l’essence, et le devenir importe. Mais toute chose obscure s’éclaire à ses archaïsmes. Du substantif archè, signifiant à la fois raison d’être et commencement. Qui recule dans le temps avance en connaissance. Ce voyage aux sources de l’image, commençons-le avec les moyens du bord: nos pauvres yeux, nos pauvres mots Regis Debray, Vie et Mort de l’image (1992)

As Conferências do Casino, em 1871, foram ocasião para um grupo se unir em torno de um programa estético e de acção que enunciou clara e inequivocamente, programa de que lhe adveio uma identidade e que, depois, lhe justificou a nomeação: a Geração de 70. Diversas foram as idades, as origens, as experiências, as tendências, as opções e os percursos existenciais, mas a proclamação desse ideário juntou-os e garantiu-lhes cumplicidade. Eça de Queirós desenvolveu a sua obra de acordo com as coordenadas mais óbvias desse programa, facto que lhe confere um efeito de coerência e de redundância lógica, mas a ironia que lhe informa o discurso confere-lhe uma singular dimensão paródica, insinua nela a imprevisibilidade sedutora, a complexidade estética, o ludismo. Que o projecto realista de observação e de análise sistemáticas do Portugal da época motiva e informa a escrita queirosiana é visível, quer na cronística, quer no romance2 . No primeiro caso, lembro o título de uma longa crónica com que colaborou no primeiro volume de As Farpas (1871/1872), lançando, com Ramalho, as bases da série periódica, crónica com que abriu a sua recolha Uma Campanha Alegre, cerca de vinte anos mais tarde: “Estado social de Portugal em 1871”. No segundo caso, recordo o projecto, seis anos depois, do seu políptico queirosiano “Cenas da Vida Real” ou “Cenas Portuguesas”3 , anunciado na contra-capa de As Farpas de Janeiro de 1878 (3a série, I tomo): 2

Sobre o modo como o faz e a evolução da sua cronística, seu ‘laboratório’ de escrita, remeto para o meu estudo Eça de Queirós Cronista — do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72), Lisboa, Edições Cosmos, 1998; 2a ed., Lisboa, Gradiva, 2017. 3 Eça apresentou-o assim ao seu editor: www.clepul.eu


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“CENAS PORTUGUESAS As cenas portuguesas são uma série de 12 estudos sobre a vida contemporânea em Portugal. Cada romance tem uma acção própria e um desenvolvimento próprio, mas os 12 volumes formam no seu todo uma análise geral da moderna sociedade portuguesa. Os volumes são publicados mensalmente e constam de 200 páginas cada um. Estão em preparação: I A capital II O milagre de Vale de Roriz III O conspirador Matias.”

Tal projecto acabou por ter duas consequências incontornáveis no desenvolvimento da obra do autor e no seu xadrez: na escrita cronística e na relação que ela manterá com a romanesca. Vejamos, em síntese, cada uma delas. Comecemos pela cronística, mais rigorosamente, pela conformação da crónica4 . Na “Chronica” d’O Distrito de Évora (1867), caracteriza-a do seguinte modo: “A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que lêem: conta mil coisas sem sistema, sem nexo: espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade: fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites: fala em tudo baixinho, como se faz ao serão ao brazeiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste: ela sabe anedotas, segredos, histórias de amores, “Eu tenho uma ideia, que penso daria excelente resultado. É uma colecção de pequenos romances, não excedendo de 180 a 200 páginas, que fosse a pintura da vida contemporânea em Portugal: Lisboa, Porto, províncias, políticos, negociantes, fidalgos, jogadores, advogados, médicos, todas as classes, todos os costumes entrariam nesta galeria. A coisa chamar-se-ia Cenas da Vida Real ou qualquer outro título genérico mais pitoresco.”. Cit. por António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa (XIX-XX), 12a ed. revista e actualizada, Braga, PAX, s.d. [1989]. 4 Cf. Annabela Rita, Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito d’Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998. www.lusosofia.net


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crimes terríveis: espreita, porque não lhe fica mal espreitar. Olha para tudo, umas vezes, melancolicamente, como faz a lua, outras vezes, alegre e robustamente, como faz o sol: a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China: ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; está aqui, nas suas colunas, cantando, rindo, palrando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico: tem uma pequena voz serena, leve, clara com que conta aos amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando.”5

Isto basta para percebermos que, se, por um lado, a crónica reivindica independência em relação ao espaço onde graficamente se inscreve, independência que a coloca entre jornalismo e literatura, por outro lado, ela ainda parece estar em busca de uma identidade textual, genológica, busca que a faz recorrer sistematicamente à comparação (e ao confronto, quando o outro termo são as outras secções do jornal) para se definir ao leitor, ao mesmo tempo que assume como modelo a conversa (seduzindo e desintimidando por isso, além de tudo poder tratar). Não esqueçamos que a “Chronica” do Distrito de Évora constituía um jornal dentro do jornal, uma secção do jornal ao lado de outras como “Critica de literatura e de arte”, “Revista crítica dos jornais”, “Ciências históricas”, “Ciências económicas”, “Interesse provincial”, etc., secção que o representava abreviadamente: a fragmentos que se sucediam entrelaçando a notícia, o comentário, a nota lúdica, o agradecimento, etc. seguiam-se subsecções intituladas, por sua vez, “crimes e delitos”, “movimento do gado. . . ”, “proclamas de casamento”, “obituário”, etc., tendendo algumas delas a emancipar-se desse corpo polimorfo e a constituir-se depois em secções. Nesse jornal dentro do jornal, o olhar queirosiano ainda percorria aleatoriamente o real, procurando dizer-lhe o quotidiano, descrever-lhe o presente, cumprindo a vocação que a sua própria etimologia lhe incutia.

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Distrito d’Évora (1), Évora, 6 de Janeiro de 1867, p. 3, col. 1. www.clepul.eu


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Com As Farpas (1871/1872), e sob o impulso do programa da Geração de 70 que as Conferências do Casino proclamaram, a crónica define a sua identidade, a sua personalidade genológica. O projecto realista definido nas Conferências orientou esse olhar no sentido da busca da imagem mais significativa e expressiva da compreensão desse mesmo real, o encontro entre ambos foi um casamento que as Farpas consagraram em texto coeso e que a escrita queirosiana passou a viver plenamente. À fase da cronística fragmentária e heterogénea informada por um olhar inquiridor e ávido, mas incerto e inseguro de critérios, que percorre e faz folhear o real, segue-se a de um olhar ponderado que se detém num objecto desse real e que nos faz considerá-lo num texto também já estruturado e depurado, centrado nesse objecto e circunscrito nos seus limites, olhar que, irresistivelmente preso ao objecto tal como no-lo apresenta na crónica, o conduzirá ao romanesco. Por implicação, registo uma direccionalidade argumentativa que se exprime num movimento mental e criativo de sistemática especificação, concretização e exemplificação que a ficção encena. Dois exemplos ao serviço desta tese: a relação entre a primeira e longa farpa e as restantes; a relação entre a série e algum romanesco, com destaque para O Primo Basílio (1878), dentre outros. Na farpa I, a meio de um levantamento de vários aspectos da situação do país, uma presença faz-se sentir espectacularmente, não se deixando ver, em jeito de Hitchock: “E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro. Pagou — já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Pagam os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga www.lusosofia.net


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tudo, paga para tudo. Em recompensa, dão-lhe uma farsa. No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez. . . — Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam./. . . /”6

Ora, sensivelmente na abertura da farpa, o cronista (a dupla Eça e Ramalho), convidara: “Aproxima-te um pouco de nós, e vê.”7

Com as farpas, portanto, o espaço do real fragmenta-se em 3 áreas: a do observador, a do observado e a da observação. Para a primeira área, o cronista procura conquistar, através do riso e da espectacularidade, a cumplicidade do leitor-espectador até aí indiferente. A segunda área é a do país encarado nos seus diferentes aspectos, realidade a analisar sistematicamente. Em rigor, conjugam-se aqui duas imagens: a da informação e a da sua elaboração. Aquela é comentada por esta, que a interpreta, amplificando-a, caricaturando-a, personificando-a ou simplesmente animizando-a, parabolizando-a, efabulando-a, etc.. E, apesar de a crónica nos fornecer a segunda imagem, permite perceber com nitidez os contornos de ambas, distinguir o factual do interpretativo e comentativo: de um aos outros, há uma trajectória intelectiva que se deseja tornar clara para o leitor, como se o texto também fizesse ver à sua margem, ao seu lado. Quanto à terceira área em que as farpas fragmentam o real, a da observação, é a que a crónica materializa e modeliza em jeito de lente, impondo-se ela própria como objecto a observar. 6

Uma Campanha Alegre, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 16-17. Para comodidade do leitor e porque as variantes não reduzem a validade das minhas observações, evitei citar aqui da versão original, de difícil acesso. 7 Op. cit., p. 9. www.clepul.eu


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Nas farpas, vemos, pois, a escrita cronística conjugar os recursos retóricos mais simples (a comparação, o paralelismo, a repetição, a hipérbole, etc.) para modelizar a análise do real e a sua identidade textual, manipulando e monopolizando o olhar do leitor. Daí um texto cuja evidência (do procedimento analítico e da sua estruturação) lhe garante uma natureza a um tempo pedagógica e teatral: trata-se de um texto que demonstra como ler o real, apresentando-o em jeito de episódio teatral (faz ver de determinada maneira) e geometrizando-se de modo a também se fazer observar, esteticizando-se. E, se o desejo de observação e análise para um público alargado promoveu esta conformação da crónica queirosiana, motivou, igualmente, uma abundante produção cronística, dessa escrita que procurava comentar quase tudo para o maior número possível. Quanto à segunda consequência desse projecto realista, lógica e natural, consistiu ela na centralidade da cronística no conjunto da obra queirosiana, centralidade que contraria uma certa secundarização a que tem sido votada, visível na simples ponderação da bibliografia crítica do autor, secundarização que pode entender-se no quadro de uma tendência tradicional de hierarquização genológica e de uma inexistente reflexão sistemática sobre a crónica em geral, texto, aliás, de acesso nem sempre fácil, maioritariamente disperso em periódicos. Acresce a estas dificuldades o hibridismo específico da crónica oitocentista da autoria de escritores, texto cuja natureza participa da literatura, mas não pode alhear-se em absoluto do jornalismo, onde se hospeda. Eça cultiva a crónica, quer por ser ela o espaço de eleição para observar sistematicamente a realidade, desmontando-a em partes/elementos que pondera caso a caso (tratava-se de rentabilizar e de materializar essa actividade), quer pelo facto de a sua brevidade favorecer a experimentação de processos de escrita e, até, a fácil verificação dos seus efeitos (no texto e no público). Em suma, para Eça, a cronística constituiu um excelente laboratório (sic) de escrita. Daí a circulação de temas, motivos e figuras (ficcionais e retóricas) na obra queirosiana, da cronística para a ficção. Certo repertório de ideias, de temas e de recursos retóricos, assim como algu-

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mas figuras da galeria de personagens configuram uma obra coesa e uma identidade autoral fidedigna. Por exemplo, quem, ao ler a farpa citada acima, não evoca o posterior episódio da avaria do fonógrafo do conto “Civilização” (1892), de cujo “bocarrão” saíu a “voz rotunda e oracular” de Pinto Porto perguntando retoricamente “— Quem não admirará os progressos deste século?”, repetindo-a até à rouquidão abafada e à fuga dos ouvintes “espavoridos”? Ou, como não recordar tudo o que Eça diz nas suas farpas sobre a educação feminina e o modo como ela favorece o adultério8 quando lemos O Primo Basílio (1878), em cuja história vamos reconhecendo a efabulação ao serviço de uma tese já exposta com clareza? Emergindo assim da cronística, o romance surge emoldurado por ela, elaboração ficcional de um elemento ou hipótese da crónica, demonstrando nesse processo um trabalho eminentemente estético do discurso sobre o discurso, distanciando-se do real invocado pelo projecto realista e pelo políptico romanesco. Como não sentir, à medida que vamos evocando esse enquadramento cronístico, diferentes implicações de leitura, uma re-semantização do universo ficcional desse “Episódio doméstico” que parecia explorar um fait divers social? Ou, ainda, como não antecipar na “calva polida” do conselheiro Acácio d’O Primo Basílio, “cuja contemplação demorada estonteava [D. Felicidade] como um vinho forte”9 , a careca brilhante do conselheiro Gama Torres d’O Conde d’Abranhos (escr. 1879, publ. póst. 1925) que depois reconheceremos no Pacheco da Correspondência de Fradique Mendes (escr. 1888, publ. póst. 1900), assinalando com o mesmo lustro a mesma inteligência avaramente escondida e nunca denunciada? E como não ver nessa imagem que transita cintilando de texto para texto, deslizando no discurso e na imaginação queirosianos, um ludismo profundamente irónico, fetichista na ponderação de certos motivos em que se fixa e que contorna, divertido, deformado n’“o gosto perverso” que atribui, p. ex., à D. Felicidade, denúncia do seu olhar deliciado a observar um outro e através dele? 8 9

Op. cit., pp. 322-342 e 386-405, respectivamente. O Primo Basílio, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 38. www.clepul.eu


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E os exemplos são inesgotáveis. Resulta daí a impressão de uma obra em que cada elemento pode remeter para outro, em que os textos não se relacionam apenas pelo projecto de conjunto nem pelo programa estético sob cujo signo foram escritas, mas também por imagens que se vão repetindo e reelaborando, por expansão, deformação e encenação, antecipando desse modo o actual hipertexto que a informática desenvolveu, a ponto de promoverem reflexos de semelhança a nível do discurso e a nível dos universos ficcionais entre os diferentes textos. Nesse regime hipertextual, não apenas o leitor é induzido a um trabalho dinâmico, de permanente associação da imaginação à memória de leitura do seu Eça, contiguando universos romanescos, mas também essas imagens adquirem uma densidade e uma concretude tais que parecem independentizar-se dos seus contextos, polarizando a atenção do leitor, em cuja imaginação se movem e se confrontam em novas e inesperadas cenas. Apeteceria dizer que é possível seguir a trajectória de uma farpa através dos diferentes romanescos, na sistemática reconfiguração de motivos e imagens que a estes adensam e confere visibilidade metamórfica. Essa coesão evidencia um procedimento em que radica a obra queirosiana e que conduz da observação do real, ao seccionamento e à elaboração cénica, simples, como na crónica, ou complexificada, como no romance. Tal dialéctica entre geral e particular, fazendo derivar este daquele, denuncia uma obra que se gera num movimento mental de sistemática especificação, concretização, exemplificação que a ficção encena. Na observação do real. Também a nível da composição da série: na relação entre a farpa I, grande painel do “Estado social de Portugal em 1871”, e as outras, tematizando aspectos ou elementos daquela. Na relação entre a série e muito romanesco, com destaque para O Primo Basílio. E igualmente entre a concepção do políptico das “Cenas da Vida Real” e cada um, ou, no interior de cada um dos romances, entre o segmento social e cada personagem que o representa. Tudo isso parece garantir ao leitor uma familiarização com a obra queirosiana sustentada no reconhecimento reconfortante, formativo e pedagógico, ainda que a ironia o surpreenda nos interswww.lusosofia.net


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tícios desse familiar, se insinue subversivamente nas dobras desse tecido de palavras e o seduza esteticamente. Um pouco grosseiramente, poderíamos falar, então, de uma obra onde a ironia resolve brilhantemente a tensão entre duas forças de natureza e consequências diversas: uma, racionalizadora, demonstrativa, argumentativa; a outra, lúdica e estética. A primeira confere-lhe a coesão e a solidez reconfortantes e necessárias para a formação do cidadão. A segunda confere-lhe a subtileza e a ambiguidade sedutoras para os seus iguais. Desconfortáveis e inquietos entre ambos os públicos, ficam os que fornecem matéria para a ficção queirosiana, sobre quem se fala, mas a quem todos afectam não falar.

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Parte IV

Mas é necessário /. . . / que haja obras originais. (EQ)

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O Primo Basílio (1878) Annabela Rita

O Primo Basílio emerge como expansão e ficcionalização de uma hipótese cronística, uma das que as farpas enunciavam sob o signo da imaginação racionalizadora e analítica moldada pelos diversos “Vejamos” ou “Veja-se” que iam introduzindo os casos apresentados em jeito de micro-narrativas susceptíveis de efabulação. No plano da história e no do discurso que a elabora. A perspectiva é claramente espectacular: “Se, porém, nos interrogam directamente sobre o adultério e os seus motivos, pedimos que observem o que se passa nos costumes. O espectáculo é curioso.”1

Assim radicado na teatralidade que a abertura das farpas emoldura, numa continuidade que a escrita tece vertendo-se em memória de leitura para o público ainda sob o efeito impressivo da série cronística, tudo parece indicar que a imagem do adultério e dos seus protagonistas se vai elaborando por reforço semântico da cronística ao romance. Mas, em vez de ponderar a possibilidade de uma leitura assente na redundância, no reforço semântico, na concretização, enfim, na continuidade imaginativa, sinto-me tentada a considerar a hipótese oposta, de uma leitura dominada pela descontinuidade imaginativa, feita de clivagens e de fracturas. 1

Por comodidade, utilizarei aqui a edição de Uma Campanha Alegre, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 401, itálicos meus.


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Na primeira hipótese, eu estaria a valorizar uma intencionalidade sinedóquica e simbólica do olhar queirosiano, incidindo sobre a grande panorâmica do real e seccionando-o de modo a destacar o elemento mais estratégico para uma leitura dele. A imagem assim obtida seria trabalhada no sentido do seu adensamento semântico para potenciar a sua capacidade de dizer o que a envolvia antes e que tal processo omitia na versão final. Essa concentração de real fá-la-ia remeter sempre o leitor para ele, tornando inevitável esse movimento de reinscrição na origem, nessa vasta panorâmica de que a escrita a afastara. Na segunda hipótese, valorizo uma intencionalidade estética do olhar queirosiano, olhar que busca no imenso real o elemento mais singular, mais susceptível de ponderação e de elaboração formal, mais capaz de atrair e de ocupar esse ginásio da imaginação do autor e do leitor por onde a faz movimentar-se, evoluir e transformar-se. Tal incidência do bisturi queirosiano denuncia uma vocação fragmentarista seduzida pela dimensão formal da imagem, pelo desenho cujo contorno, à medida que se acentua e se reelabora mais indefine e distancia o contexto original. Uma “estética do pormenor”, na expressão de Carlos Reis2 . Enquanto a primeira hipótese vincula Eça a uma estratégia mais dominada pela indagação do real e pela pedagogia sócio-cultural, vocacionada a espraiar-se numa escrita romanesca, marcada pela continuidade e por um olhar criticamente centrado, a segunda revela-lhe já uma estratégia que o finisseculariza e moderniza, dominada pelo fragmentário, pela descontinuidade e por um olhar tão excêntrico como a imagem que nos oferece, oblíquo. Vejamos o que nos diz a letra queirosiana.

2

Cf. conferência de encerramento do Congresso de Estudos Queirosianos / IV Encontro Internacional de Queirosianos, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra de 6 a 8 de Setembro de 2000: Carlos Reis, “Fragmento e montagem na ficção de Eça de Queirós: o universo sonoro”, Actas do Congresso de Estudos Queirosianos — IV Encontro Internacional de Estudos Queirosianos (6 – 8 / September / 2000), Coimbra: Universidade de Coimbra / Almedina, 2002, pp. 75-89. www.clepul.eu


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No início, a moldura Regressemos às farpas, ponto de partida da imagem queirosiana do adultério d’O Primo Basílio. Em primeiro lugar, registo a ambiguidade ontológica dessa imagem: emoldurada e, portanto, assim evidenciada ao olhar do leitor, ela hesita entre o real que a cronística diz observar e a ficção que o romance encena. A própria moldura paródica e operática da abertura das farpas participa desse hibridismo que, ora a impõe como “janela” para o mundo exterior ilimitado, delimitando-o, ora a sugere como signo estético. Em jeito de passe-partout que não deixa perceber se projecta a imagem para o fundo, em profundidade, ou para a frente, na nossa direcção. . . E isto complicar-se-á quando eu considerar a “mais valia” adquirida por essa imagem no convívio com outras que a lateralizam, pictóricas, musicais, etc., às vezes também informadas de uma ambiguidade com que a contaminam. Além disso, nas farpas, o confronto e a coexistência entre o real comum, a sua realidade textual e o corpo da crónica arrastam uma consequência inesperada, um efeito de leitura surpreendente: essas três imagens fantasmizam-se mutuamente, interferem na leitura umas das outras, monopolizando, cada uma delas por sua vez, a atenção do leitor. Segundo a Psicologia, a percepção é exclusivista. Edgar Rubin, analisando o fenómeno da ambiguidade do contorno comum, chamou a atenção para a consequente rivalidade de contorno, pela qual cada uma das figuras da composição luta pela supremacia, gerando uma tensão que faz o leitor oscilar entre duas leituras opostas que mutuamente se excluem, impedindo-o de se decidir por uma ou pela outra: a situação compositiva adquire, assim, reversibilidade3 . Recordo o célebre vaso de Rubin, perante o qual, ora vemos o vaso central, ora os dois perfis em confronto, nunca ambos simultaneamente. Estamos, pois, longe do fenómeno da anamorfose, em que a composição se organiza de modo a ser interpretada de um lugar determinado e de nenhum outro. 3

Cf. Rudolf Arnheim, Arte & Percepção Visual. Uma Psicologia da Visão Criadora, 2a ed., S. Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1984, pp. 213-223. www.lusosofia.net


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Eis-nos oscilando entre imagens que se impõem, que interferem ludicamente umas com as outras, fantasmizando-se mutuamente os contornos, vocacionadas para monopolizar, em alternância, a nossa percepção exclusivista. Hesitamos entre observar cada imagem confinada na materialidade do texto e expandida, ou pela continuidade da escrita queirosiana, ou pelo além que o real constitui. Evoque a imagem um ponto de fuga real ou literário, ela denuncia sempre, no modo como metonimiza o seu plano e o outro, uma estratégia autoral de composição em perspectiva. Tal estratégia tem como efeito manter o leitor tensionado entre duas forças de sentidos opostos: a que deriva de um sistema cêntrico, cujo centro íntimo nos atrai; a que deriva de um sistema excêntrico, privilegiando um centro externo à própria composição e exógeno (o real e/ou o literário), motivando um movimento de fuga para ele4 . Talvez seja de considerar a hipótese de a cronística promover três níveis de leitura, cada um deles correspondendo a uma dessas imagens: a do real comum, a da sua elaboração textual e a do corpo da crónica. Da primeira à terceira, realizar-se-ia um itinerário de esteticização progressiva da leitura que promoveria e que representaria a história da maturação do leitor e da leitura, história que a imagem queirosiana arrastaria consigo no seu trânsito para o romanesco, deixando-a pressentir. A aceitarmos esta hipótese, podemos conceber que a série cronística “compacte” três outras que ao leitor caberia “descompactar”. Uma seria a da mera informação, esboçando metodicamente um panorama do Portugal da época, “folheado” na minúcia do quotidiano, na atenção jornalística, e esse panorama teria uma dupla entrada: a globalizante (da primeira farpa) e a particularizante (a das outras). A outra série seria a do divertimento, a do capriccio discursivo que conforma um autêntico e moderno “álbum de maravilhas”5 , exceptuando embora as crónicas efabulatórias e mais assumidamente comentativas. Finalmente, a outra série seria a dos esquemas analíti4 Cf. Rudolf Arnheim, O Poder do Centro, Lisboa, Edições 70, s.d. [1990], pp. 17-30. 5 Maria Adelina Amorim, Viagem e mirabilia: monstros, espantos e prodígios (pp. 127-181) in Fernando Cristóvão (org.), Condicionantes culturais da Literatura de Viagens. Estudos e bibliografias, Lisboa, Cosmos, 1999, pp. 133-134.

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cos e/ou processos retóricos cuja combinatória optimiza: em ambos os casos, estamos perante “instrumentos” a um tempo intelectivos, de compreensão do real, e estéticos, da sua elaboração. O que nos conduz a um entendimento do retórico como descritivo e modelizador do pensamento, dos processos mentais. E, com isso, à herança iluminista inscrita na obra queirosiana. . . Comecei por falar de uma leitura tranquila e pacificada da obra queirosiana, assente numa vectorialidade lógica (até ensaística) e discursiva adensadora da imagem em trânsito, atenta à escuta de uma voz cujo timbre se mantinha reconhecível através das suas modulações do cronístico ao romanesco, e acabei por deslizar nestas minhas considerações para o reconhecimento da possibilidade de uma leitura instável e de progressiva tensão, oscilante entre imagens diversas e rivais, hesitante entre a natureza de cada uma delas, sensível à polifonia discursiva e capaz de decompor a “voz” ouvida em diferentes vozes (informativa, efabulatória, retórica). De um lado, a convicção de uma escrita dominada pela coerência e radicada num projecto cultural, mesmo com a incontornável ironia queirosiana; do outro, a percepção de uma escrita marcada pela carnavalização, suspensa num ludismo onde o aleatório se denuncia na descontinuidade, na conflitualidade perceptiva, na diferença. À leitura como relação cumulativa, de pesquisa que progride e se vai reforçando, parece opor-se a que sistematicamente se faz e se refaz, questionando-se, perturbada, dubitativa. E, se a litera queirosiana favorece esta dupla possibilidade e a combinatória de ambas. . . à chacun sa choix. . . Passo à minha.

Quando a palavra se faz mundo N’O Primo Basílio (1878)6 , Eça oferece-nos um discurso cuja tessitura se complexifica progressivamente através de um procedimento citacional que, se dinamiza a leitura, também a instabiliza. 6

A edição utilizada continuará a ser a de Lisboa, “Livros do Brasil”, s.d.. Por comodidade, as referências de no das páginas das citações serão indicadas a seguir a elas, no corpo do texto. www.lusosofia.net


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O Primo Basílio (1878)

O romance desenvolve-se segundo uma trajectória que nos conduz do movimento suspenso à suspensão do movimento, passando por um tempo de aceleração ficcional. Três etapas, portanto, com tudo o que tal esquematismo comporta de simplificação. Passarei a observar cada uma dessas etapas a fim de melhor perscrutar o ciclo textual no seu conjunto. A primeira. O texto abre com uma cena dominada por um certo esvaziamento de sinais vitais: som, cor, luz, movimento fazem sentir a sua quase ausência na interioridade doméstica onde as personagens hesitam entre permanecer “muito languidamente” estendidas, “quase deitada[s]”, e “espreguiçar-se” “preguiçosamente”, entre o gesto lento ou a demora “muito repousada”. O calor amolenta, amodorra, prostra tudo e todos num “silêncio recolhido e sonolento” atravessado pelo “rumor dormente” do zumbido das moscas. As janelas fechadas delimitam e isolam esse interior e mergulham-no numa obscuridade que dilui contornos, adiando a manifestação do mundo ficcional, criando e amplificando o suspense relativamente a ele ou, quiçá, familiarizando-nos com ele desde a sua génese, em que sentimos assim participar. O movimento, quando ocorre, é em câmara lenta. Nesta antecâmara da ficção, praia a que aportamos, nada parece acontecer, a não ser na mente das personagens que vagamente se espreguiçam: a suspensão começa a estimular a imaginação e a memória, como se elas irrompessem de uma fractura de um qualquer real, da ruptura de uma continuidade, em jeito de excurso, deriva e (porque não?) delírio. . . À semelhança do que nos aconteceu quando nos sentámos, abrimos o volume e começámos a ler. Pois, tratando- se de um “Episódio doméstico”, a intimidade da cena e do cenário parece prolongar, na sua suspensão, a minha própria intimidade de leitora alongada num sofá, numa realidade tão suspensa como eu: a sombra e a quietude esbatem as fronteiras entre ambos os espaços, sugerem uma perspectiva com luminosidade em dégradé terminando em contra-luz, estando eu no lugar banhado por uma luz que atingirá também o outro. No século XIX, o efeito de continuidade entre ambos os pólos era ainda maior pela familiaridade da decoração da sala do leitor e das personagens (forrada a papel ramalhado, www.clepul.eu


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com bambinelas de cretone, quadros e retratos de família, voltaires, etc.), o mesmo acontecendo com a rotina das refeições calmas, “em tão suaves preguiças” (p. 12), ou outros hábitos (o uso do roupão até mais tarde, a leitura do jornal após a refeição, etc.). A descrição passa do elemento aleatório ao pormenor típico do quotidiano, característico da média burguesia lisboeta de então, e até mesmo o movimento registado é casual, comum, banal. Julgamo-nos num mundo adormecido, como no conto de fadas da nossa infância. Aguardando o príncipe que o dinamize: Basílio ou nós, leitores? Eis-nos, pois, na abertura de um romanesco que ainda não nos deixou ver o protagonista anunciado senão pela notícia jornalística e pela memória e imaginação de Luísa. E, se é nela e através dela que ele surge na ficção, natural será que com ela contracene num já antecipado triângulo passional. . . Até aqui, a desaceleração do romanesco7 parece ter uma múltipla funcionalidade. Cria suspense, intensificando o efeito do encontro com Basílio (o nosso, o de Luísa, o de todos, enfim). Familiariza-nos com um universo que emerge da sombra acompanhado por nós, o que sugere continuidade entre nós e eles, o real e o romanesco, ou seja, o “episódio doméstico” surge como uma espécie de fait divers do nosso próprio universo. Mas, contraditoriamente, também cria um efeito de irrealidade ou de artificialidade (como se as personagens posassem para nós) que se contrapõe ao efeito anterior, ambiguizando o estatuto do romanesco, sugerindo-se como tempo de metamorfose da imagem vinda de outros lugares (porque mesmo a cronística cita a literatura). Finalmente, dá-nos tempo e elementos para ponderarmos esteticamente o romance desde o seu início, concebendo-lhe e denunciando-lhe as possibilidades ficcionais. Como num jogo, as cartas estão na mesa. Depois, como sob o efeito de “uma aragem suave que encheu as pregas das bambinelas” (67), o movimento, a luz, o som e a cor começam a definir e materializar esse mundo. Luísa, Jorge e os seus 7

No fundo, aquilo que a psiquiatria designa por “lentificação”, com toda a problemática que lhe é inerente. www.lusosofia.net


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emergem da sombra, de uma sombra “azulada” banhada pela “luz baça, com tons de leite” que os bidimensionalizou e idealizou contra um exterior onde a luz crua e faiscante e “uma vaga poeira embaci[ante]” eram factores de acrescida irrealidade. Qual teatro de sombras chinesas que se deseja e quer vida, dissolvendo o claro-escuro sob a acção da luz que as janelas, abrindo-se, deixam entrar. . . Signo do ficcional que, no Romantismo, se abria para o romanesco, fazendo o leitor tentar imaginá-lo primeiro e conhecê-lo depois, através dela, a janela funciona agora de outro modo: preservando uma interioridade semi-visível ao leitor e abrindo-se para uma realidade que cita o real comum, sendo este a referência que ilumina e inteligibiliza mais plenamente esse mundo ainda obscurecido e fechado. Dizendo de outro modo: a janela abre o romanesco sobre um exterior que se quer representação do real, denunciando assim um projecto realista que o texto irá indecidir. Progressivamente, o cenário esclarece-se, as personagens desfilam e revelam-se, os diálogos desenvolvem-se, os acontecimentos sucedem-se. O estranhamento dessa vida suspensa dissolve-se diante de nós, connosco. Esse momento quase inaugural ocorre também sob o signo da citação. A citação (sob a forma de referência, não de reprodução de um fragmento) abre o próprio texto: “Tinham dado onze horas no ‘cuco’ da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse: Tu não te vais vestir, Luísa? Logo. Ficara sentada à mesa, a ler o Diário de Notícias.” (p. 11)

A Dama das Camélias povoa-lhe as sombras iniciais que a Traviata ritma: Luísa convive com ambas as protagonistas, a literária e a operática, e estiliza-se entre elas. Mas é com a abertura das janelas que a luz evidencia outras citações pesadamente emolduradas: do Dante de G. Doré, da “Medeia” de Delacroix (1798-1863) e da “Mártir” de Delaroche (1797-1856). www.clepul.eu


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Se Dante nos faz evocar os temas do amor e da morte recortados sobre o da viagem para o além, as pinturas confrontam-nos com dois possíveis femininos entre os quais se vai definir Luísa. O napolitano de biscuit, cuja imagem reflectida o antecipa para nós, evoca o amor mais terreno e banal, vivido entre voltas da dança da vida, ao sabor delas. Basílio surgirá desse múltiplo, repetido, anúncio que desde o título, o jornal, o comentário e as recordações de Luísa nos intensifica a curiosidade e modelado por este novo símbolo que nos permite prever um acontecimento de acordo com o episódio do namoro juvenil de ambos. Na estrutura arquitectónica e decorativa, a simetria sugerida pela parede frontal com duas janelas, duas gravuras pesadamente emolduradas a dourado, dois volumes do Dante de G. Doré, etc. assimetriza-se pela introdução do napolitano em biscuit reflectido no espelho oval classicamente colocado entre as janelas (perspectiva invertida geradora da profundidade) e pela referência aos quadros de Delacroix e de Delaroche, referência que os lateraliza em nova simetria, mas que introduz na composição perspectivas que excedem a cena romanesca e mergulham no Romantismo e no Classicismo. Idêntico jogo acontece entre Literatura e Música, introduzido e equacionado pel’A Dama das Camélias e La Traviatta, que, no seu paralelismo, acentuam o desequilíbrio imaginário de Luísa e excedem igualmente as fronteiras do romanesco, projectando-se, a ele e a nós no Romantismo. No conjunto que a assimetrização deforma, a distância perspéctica varia, com clara repercussão na empatia da leitura: a proximidade da cena doméstica refracta-se no afastamento a que obriga a descrição impressionista (até ao lugar onde a mancha cromática, pontilhada de reflexos, se converte para o leitor em forma inequívoca), enevoa-se na recordação e esfuma-se ou perde-se na utopia do imaginado. Oscilo, pois, entre familiaridade convivial e estranheza em busca do lugar mais adequado, atenta à mutação imagística e sensível à tensão que ela me causa. Bastará isto para afirmar, relativamente ao limiar d’O Primo Basílio, que a geometria da perspectiva cria simetrias compositivas que reforçam a perspectiva central unificadora, simetrias que sistematicamente vai assimetrizar pela introdução de perspectivas excênwww.lusosofia.net


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tricas (laterais, invertidas e exteriores) que a descentram e chegam a abri-la a outros espaços-tempos estéticos. A estabilidade romanesca é instabilizada pela imaginação utópica e pelo literário, pictórico e musical românticos. O estaticismo cénico é dinamizado pelas diferentes “formas /. . . / que lutam em direcções definidas” e distintas, contendo em si “tensões dirigidas”8 . Os dois quadros referidos constituem citações do conjunto da obra de cada um dos autores e do Romantismo que ambos representam, mas, por outro lado, são apresentações, valendo por si na criação do ambiente do romanesco, preparando o acontecer. Mesmo aceitando, no primeiro caso, que eles sinalizam a diferença e o contraste entre a estética do romance (Realismo) e a das obras pictóricas (Romantismo), no segundo caso, suspeitamos que a continuidade também as relacione. As molduras douradas delimitam os quadros “A Medeia”, de Delacroix, e “Mártir”, de Delaroche, dirigindo para eles o nosso olhar, elegendo-os e fazendo-nos ponderá-los, insinuando também, cromaticamente, o simbólico e o onírico. “A Medeia” e a “Mártir” simbolizam os dois pólos opostos do universo feminino: a mulher perversa, capaz de assassinar os seus filhos por despeito e ódio ao ex-amante, e a mulher-vítima, abnegada, capaz de se sacrificar, de se deixar imolar por fé ou amor. Elas parecem criar entre si um espaço de possibilidades ficcionais, numa sugestão algo vertiginosa para o leitor que deseja defini-las e encontrar a do romance: o universo romanesco consegue, assim, integrar fantasmaticamente uma multiplicidade de outros, paralelos e alternativos, que só vai neutralizando à medida que se concretiza. No entanto, ambas as figuras são informadas de ambiguidade: na primeira composição, o modo de empunhar a adaga permite interpretá-la como a mitologia a propõe, mas também como a mãe que defende os seus filhos de uma ameaça; quanto à “Mártir”, oscila entre aquela que aceita o sacrifício (sujeito de vontade) e a que o sofre sem alternativa (sujeito passivo). A nitidez de ambas as figuras, dependendo também da sua interpretação, 8 Rudolf Arnheim, Para uma psicologia da arte. Arte & Entropia, Lisboa, Dinalivro, 1997, p. 81.

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esbate-se na minha memória, onde já não estavam fielmente reproduzidas. Literatura e pintura combinam-se, cruzam-se, sobrepõem-se na citação e esta procede da mesma forma com o texto em que se inscreve. Diante de um feminino que define os seus limites, representando-os nessas duas possibilidades efabulatórias, Luísa, Leopoldina e Juliana movimentam-se em busca dos seus lugares entre aquelas fronteiras que o dourado sublinha, promovendo, assim, a constituição de uma vasta galeria. Se Leopoldina é, desde logo, classificada pelo olhar masculino, Juliana é pressentida pela sensibilidade feminina e de Luísa encarregar-se-á o romance (e o leitor), mas desde já insinuando a sua ambiguidade nessa tipologia: ela participa do positivo e do negativo desse feminino que expõe na sala. Ficções e símbolos inscrevem-se, assim, na génese da ficção d’O Primo Basílio. Como quadros dentro de um quadro que se vai definindo, expandindo, volumetrizando, animizando, em suma, historicizando e, nesse processo, rasurando o expositor (que por si só, já lhe conferia uma dimensão estética) em benefício de um efeito de realidade que monopoliza a atenção do leitor. . . Depois, as referências multiplicam-se, dinamizando o texto e implicando o leitor nesse movimento progressivamente acelerado. Vejamos, p. ex., a música que atravessa e invade o universo de Luísa, ritmando-o, indiciando-o e potenciando-o: além de La Traviatta (duplicando e amplificando a versão literária que a absorve e faz devanear), ou das suas congéneres amorosas Luccia di Lammermmoor (também ouvida com emoção por Ema Bovary), Norma e A Filha do Pescador, os casos d’O Barbeiro de Sevilha, do Barba-Azul, de Don Juan e do Fausto, a sensualidade perturbadora de Medjé, a dolência e tristeza significativas de Sonâmbula, da Oração de uma virgem ou dos Nocturnos de Chopin, o pessimismo do fado, etc., tudo culminando no fatídico e antecipador Requiem de Mozart. Texto, personagem e história emergem reforçados estética e semanticamente: a sua compreensibilidade é favorecida por tal redundância e o seu horizonte simbólico e cultural amplifica-se. Note-se que a música, tocada ou cantada em casa de Luísa, nas outras casas ou na rua, entre assobio, realejo, piano, canto, etc., percorre o espaço metonimizando interiores e exteriores, ambienwww.lusosofia.net


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tando e interpretando a ficção, embebendo-a de som e de emocionalidade, enfim, de teatralidade operática que “A Carta Adorada” de Offenbach obsessivamente trauteada por Juliana intensifica, reactivando o intertexto inaugural das farpas. O mundo ficcional vai, assim, acontecendo, concretizando imagens que a citação fantasmiza, complexificando-lhes contornos e estruturas, adensando-as e subtilizando-as semanticamente, sinalizando-lhes os percursos e as hipóteses existenciais. Ou seja, no exacto momento em que as imagens se definem para o leitor, estão já em metamorfose, indecisas nos seus contornos fantasmizados por outras, em redefinição. Se, por um lado, a citação selecciona o leitor capaz de a reconhecer, reduzindo o espaço de leitura, por outro lado, ela expande o texto para além dos seus limites rigorosos, promovendo uma leitura “tabular”, no sentido kristeviano do termo: cria e mantém um segundo plano onde o evocado vibra de um modo que se repercute na superfície do primeiro. A evocação pode evidenciar a diferença e a semelhança, além de sugerir uma “linhagem” estética, mesmo inesperada. Eventualmente, a evocação funciona como entrada de leitura: ela e o diálogo que sustenta com o discurso onde ocorre como que compendiam signos-sinais para a perscrutação deste. Quando o evocado é pictórico, a imagem fantasmiza o discurso, ofelicamente visível, subtil, mas incontornável. Quando ele é musical, emociona o leitor enevoando-lhe a percepção. Etc.. Assimetria e desequilíbrio, portanto. E, aqui, as citações estão saturadas de romantismo. . . O Primo Basílio começa a surgir-me como uma arquitectura móvel, um edifício de vários níveis, como placas sobrepostas e transparentes com motivos de diferente natureza que deslizam em todos os sentidos, instáveis, cada uma interferindo na visibilidade das outras. E a movência faz, de novo, estranhecer esse mundo que me poderia ter parecido anunciado pela cronística queirosiana, em jeito de fait divers ou de hipótese argumentativa9 , e que emergiu de um encan9 Em crónicas de Março e de Outubro de 1872, ambas coligidas na recolha de Uma Campanha Alegre (pp. 322-342 e 387-405). Sobre o modo como esta relação intertextual influi na leitura do romance, cf. texto da minha conferência “Algumas observações sobre o feminino n’O Primo Basílio de Eça de Queirós”, proferida nas Caldas da Rainha em 6 de Junho de 2000 (em vias de publicação).

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tamento obscuro sob o meu olhar, qual Vénus nascida das ondas. O discurso queirosiano metonimiza, deste modo, a heterogeneidade, integrando-a: diferentes práticas artísticas (literatura, pintura, música, canto), diferentes cânones estéticos (em especial, o romântico), diferentes materiais (desde as referências que vinculam o romanesco ao real comum da Lisboa de então, até às que lhe denunciam a ficcionalidade). Fazendo-o, o discurso inscreve em si outras ficções de natureza diversa, constituindo-se numa unidade complexa potenciadora de movimentos evasivos, à semelhança do moderno hipertexto informático, e de retorno concentracionário, em jeito de boomerang. As consequências de tudo isto na leitura são dignas de nota: a cada passo, a citação suspende o meu movimento imaginativo central, vectoriado pela acção das personagens, forçando-me a um movimento lateralizante, de afastamento, e, depois, à busca de nexos entre ambos os discursos. Assim, a música e o canto obrigam-me a uma escuta mnésica, de reconhecimento da peça e de evocação da obra integral e de um anterior contexto de escuta (eventualmente, das emoções experimentadas na altura). A pintura faz-me rememorar a imagem pictórica e, por associação, outras do mesmo autor e/ou com o mesmo tema, ainda que de outros autores. A literatura induz-me a recordar obras, com os seus mundos, cânones, histórias, protagonistas, etc., confrontando-as com o ponto de partida. Eis-me, pois, leitora oscilante entre três modos de recepção, pelo menos: o que me suspende face ao movimento da imagem ficcional perseguida e da recordada no texto, o que me move com a fluidez da imagem acústica e o que me imobiliza perante imagens pictóricas evocadas, movendo-me de uma para outra. Isto significa, no fundo, multiplicar e diversificar os pontos de fuga na narrativa e criar estruturas de perspectivas encaixadas e/ou tensamente conflituais. Por ex., no momento em que a luz invade a sala de Luísa, na perspectiva da sala encaixam-se as das personagens, mas as dos quadros e da obra de Dante excedem os limites daquela, exteriores que são à ficção queirosiana, o mesmo acontecendo com outras citações. Evidenciada pela luz, a simetria “entre janelas”, que o “oval de um espelho” acentua, vê dissolver-se o www.lusosofia.net


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seu estaticismo pela sugestão de movimento do bibelot que, especularmente reflectido, cria um efeito de profundidade e de redundância, mas também de projecção para nós, orientando-nos o olhar para ele e para o que ele possa representar: no mesmo parágrafo, simetria e estaticismo transformam-se nos seus contrários, a imagem metamorfoseia-se. Acresce a isso o movimento mental de Luísa, entre a recordação impressionistamente enevoada, banhada por “uma luz saudosa, idealizadora e branca” (p. 20), e o devaneio caricatural ao sabor do desejo, do estímulo ou da insatisfação pelo quotidiano rotineiro e mediano. Veja-se o exemplo da recordação do seu casamento esfumada pelo tempo e pelos sentimentos: “Casaram às oito horas, numa manhã de nevoeiro. /. . . / Todo aquele dia lhe aparecia como enevoado, sem contornos, à maneira de um sonho antigo /. . . /. /. . . / E tão cansada à noite naquela casa nova, depois de desfazer os seus baús!” (p. 22)

Relativamente aos devaneios, “àquelas imaginações”, elas configuram-se em modo cénico, eram “suposições [e desejos] de outros destinos que se desenrolavam como panos de teatro” (p. 23), “como num romance” (p. 190), às vezes marcado pela “intriga romântica” (p. 190), outras, por hipóteses que com ela contrastam, assim como diferem da realidade de Luísa: “Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música!” (p. 17) “/. . . / via-se no Brasil, entre coqueiros, como embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!” (p. 23) “Parecia-lhe estar em Málaga, ou em Granada, não sabia: era sob as laranjeiras, mil estrelinhas luzem; a noite é quente, o ar cheira bem; por baixo de um lampião suspenso a um ramo, um cantador sentado na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor, as mulheres /. . . / batem as mãos em cadência; e ao largo dorme uma Andaluzia de romance e zarzuela, quente e sensual, onde tudo são braços brancos que se abrem para o amor, capas românticas que roçam as paredes /. . . / . . . ” (p. 55)

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“E ia desejando habitar ali numa quinta longe da estrada; teria uma casinha fresca com trepadeiras em roda das janelas, parreiras sobre pilares de pedra, pés de roseiras, ruazinhas amáveis sob árvores entrelaçadas, um tanque debaixo de uma tília /. . . /. E ao escurecer, ela e ele, um pouco quebrados das felicidades da sesta, iriam pelos campos, ouvindo calados, sob o céu que se estrela, o coaxar triste das rãs.” (p. 149)

No entanto, se Luísa constitui o ponto focal, a origem destas imagens cenicamente elaboradas, o ponto de fuga delas escapa-se-nos pela utopia, alheia a qualquer texto e não só a este. Cenas ao lado de cenas, hipóteses ficcionais implicadas na que se vai concretizando, irrompendo nela, movendo-se sob e sobre ela, parasitando-a como uma trepadeira insidiosamente envolvente que a nossa imaginação tenha dificuldade em destrinçar da árvore. . . Ao longo do percurso de Luísa, essa alternância entre o real e o imaginário (recordado ou devaneado) não apenas se acelera, mas também se complexifica, constituindo um processo obsessivo que a alienará e que acabará insuportável e fatal sob a pressão do medo da descoberta do adultério, da decepção amorosa e do arrependimento. Auscultemos alguns passos do início desse itinerário de alheamento: “Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado.” (p. 174) “As recordações da véspera redemoinhavam-lhe na alma a cada momento, como as folhas que um vento de Outono levanta a pedaços de um chão tranquilo: certas palavras dele, certos ímpetos, toda a sua maneira de amar. . . E ficava imóvel, o olhar afogado num fluido /. . . /. Todavia a lembrança de Jorge não a deixava; tivera-a sempre no espírito, desde a véspera; /. . . / era como se ele tivesse morrido, ou estivesse tão longe que não pudesse voltar, /. . . / [mas presente no seu espírito] com uma obstinação espectral /. . . /.” (pp. 181-182)

Além disso, e de acordo com o procedimento da descrição realista, Luísa surge frequentemente como ponto focal, observadora de cenários que, introduzidos pelo seu olhar, se desenrolam em função www.lusosofia.net


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da sua percepção, impressionistamente, condicionados pela luminosidade e dominados pela mancha cromática e contrastiva, pelos reflexos e reverberações, pelos ruídos e aromas, etc., como acontece com o panorama que vê do jardim de S. Pedro de Alcântara, acompanhada pelo Conselheiro Acácio: “Através dos varões viam, descendo num declive, telhados escuros, intervalos de pátios, cantos de muro com uma ou outra magra verdura de quintal ressequido; depois, no fundo do vale, o Passeio estendia a sua massa de folhagem prolongada e oblonga, onde a espaços branquejavam pedaços da rua areada. Do lado de lá erguiam-se logo as fachadas inexpressivas da Rua Oriental, recebendo uma luz forte que fazia faiscar as vidraças; por trás iam-se elevando no mesmo plano terrenos de um verde crestado fechados por fortes muros sombrios, a cantaria da Encarnação de um amarelo triste, outras construções separadas, até ao alto da Graça, coberta de edifícios eclesiásticos, com renques de janelinhas conventuais e torres de igrejas, muito brancas sobre o azul; e a Penha de França, mais para além, punha em relevo o vivo do muro caiado, donde sobressaía uma tira verde-negro de arvoredo. À direita, sobre o monte pelado, o Castelo assentava, atarracado, ignobilmente sujo; e a linha muito quebrada de telhados, de esquinas de casas da Mouraria e de Alfama descia com ângulos bruscos até às duas pesadas torres da Sé /. . . /. Depois viam um pedaço de rio, batido da luz: e na outra banda, /. . . / que o ar distante azulava, estendia-se /. . . / uma povoaçãozinha de um branco de cré luzidio. Da cidade um rumor lento subia /. . . /.” (pp. 234-235)

A propósito deste impressionismo que modaliza a descrição iniciada sob o signo demarcativo realista, não resisto a registar uma experimentação de diferentes cânones estéticos que talvez seja possível entender como denunciando uma reflexão implicada na escrita romanesca queirosiana. Seria grosseira caricatura dizer que o romantismo e o impressionismo de Luísa convivem harmonicamente com o realismo contextual, se surpreendem e se chocam com o naturalismo do adultério e com o expressionismo de Juliana, afundando-se numa semi-inconsciência febril e fatal de simbolismo finissecular vertido no “vento frio que /. . . / ia fazer ramalhar tristemente uma árvore sobre a sepultura de Luísa” (p. 448). Mas parece-me www.clepul.eu


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que o jogo entre esses cânones modeliza o edifício ficcional, modaliza as imagens romanescas que se desenvolvem e sucedem segundo um procedimento retórico que combina na figuração a redundância atenuada e a alterização (compositiva e estética). Tudo isto acaba por ser mais complexo do que uma composição à M. C. Escher, que problematiza a perspectiva nas suas “gravuras de conflito”: nelas, a aparente unidade estranhece-se na compactação de diferentes perspectivas do mesmo obtidas por rotação ou translação, como que historicizando a observação, documentando-lhe algumas possibilidades de leitura. Na composição queirosiana, são convocados outros espaços, tempos, obras, práticas e cânones que integra em si, enfim, toda uma heterogeneidade e alteridade que a potencia semântica e esteticamente: como consequência disso, ela vacila ontologicamente nos seus alicerces, rejeitando a dimensão unifónica da litera e preferindo-lhe a de uma pluralidade estética cujos limites já não são ditados pela materialidade textual, mas pela imaginação do leitor, pela sua cultura e pelas suas faculdades, pela sua capacidade de, em simultâneo, as activar, combinando-as na apreensão desse fenómeno aparentemente literário, mas, na realidade, a todos os títulos multi-mediático. Integrando, dessa forma, o leitor na máquina textual, o discurso queirosiano inscreve fragmentos da sua experiência na leitura da obra, contiguando o cronótopo da ficção e o do real, implicando este naquele, e, também por aí, por essa ambiguização das fronteiras de ambos, problematizando-se ontologicamente. Essa ambiguização pode, aliás, ser equacionada no próprio texto por Luísa: ela lê, escuta, observa e imagina, deixando-se penetrar por esses outros universos a ponto de se imaginar “levada por el[e]s” (p. 345). O ciclo do adultério termina, naturalmente, com a morte de um dos protagonistas, Luísa. Um parágrafo encerra-o em definitivo, reunindo todos os que a tinham rodeado como se de palco se tratasse, numa composição em paralelismos (no primeiro, Luísa é de novo vértice de um triângulo amoroso, embora enlutado e imaginário) e contrastes: “Àquela hora Jorge acordava, e sentado numa cadeira, imóvel, com soluços cansados que ainda o sacudiam, pensava nela. Sebastião, no seu quarto, chorava baixo. Julião, no posto médico, www.lusosofia.net


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estendido num sofá, lia a “Revista dos Dois Mundos”. Leopoldina dançava numa soirée da Cunha. Os outros dormiam.” (p. 448)

A copulativa é a chave que dá a última volta naquela fechadura, articulando-a e confrontando-a com as voltas anteriores: “E o vento frio que varria as nuvens e agitava o gás dos candeeiros ia fazer ramalhar tristemente uma árvore sobre a sepultura de Luísa.”(p. 448, itálico meu)

O cenário esvazia-se dos sinais vitais que o habitaram. A árvore esboça a vénia do drama. O quadro está acabado. O branco tipográfico, a elisão de dois dias (“Daí a dois dias. . . ”) e a luz da manhã reintroduzem a dimensão do real que as janelas, no início do romance (em contraponto e simetria especular), tinham anunciado e de que tinham preservado a cena doméstica: o Rossio, núcleo da urbe, é o lugar de onde Basílio parte ao encontro do final de Luísa, tomando conhecimento dele (ou seja, do que o parágrafo anterior concluíra) diante da casa muda e fechada. Como outrora o viajante garrettiano, mas destituído da emocionalidade que o fizera vibrar e a nós. Nessa exterioridade onde a dimensão do real se marca intensamente a luz, cor, som e movimento, tudo acontece como um comentário emoldurando o quadro acabado: a história de Luísa é vista por olhares igualmente exteriores, alheios a essa perspectiva de paixão e morte que Luísa e os seus viveram até ao desenlace. Basílio, Paula e o visconde Reinaldo diversificam esses pontos de vista, concretizando-os e, assim, esculpindo o relevo dessa moldura da ficção que a vida queria ser afinal. . .

Creio ter descrito aqui, em etapas sucessivas, uma minha experiência da leitura queirosiana, inscrevendo nela, por meu turno, alguns fragmentos do discurso que me moveu em inesperada vertigem, espelho contra espelho, imagens com imagens, discurso de discursos. . . E, se “a psicologia da representação é a história de como as

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coisas ‘ganham vida”’10 , espero ter contado bem a história de como O Primo Basílio “ganhou vida” na minha imaginação, pelo menos, para corresponder a esse outro contador aqui em causa. . . Figurações de figurações de figurações. . .

10 Rudolf Arnheim, Para uma Psicologia da Arte. Arte e Entropia, Lisboa, Dinalivro, 1997, p. 162.

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O Conde d’Abranhos (1879, p.p.) Annabela Rita

O contacto do leitor com o texto é sempre mediatizado pelo título, instaurador de um horizonte de expectativas. N’O Conde D’Abranhos — Notas biográficas de1 Z. Zagalo verifica-se que o título é triplamente informativo: de que(m) se fala, de como se fala e de quem fala. Examinemos estes elementos na sua inter-relação2 . O sujeito enunciador assume, logo de início, o estatuto de cronista/biógrafo de um homem de quem foi secretário e confidente. Na carta-dedicatória, Z. Zagalo, com aparente falsa modéstia que é, na realidade, uma acusação disfarçada, diz-se escritor e acusa o público de benevolência crítica, insinuando uma relativa sobreposição das figuras do narrador e do autor implícito, sobreposição que se denuncia especialmente pela cultura evidenciada. Outros elementos funcionam como alertas para o leitor, sugerindo a componente lúdica que atravessa o texto e em que ele assenta: a discordância entre o tom formal que se pretende (?) assumir no inicio, na dedicatória à “Ex. Sr. Condessa d’Abranhos”, viúva, e o anedótico de alguns episódios narrados, a identificação final de Z. Zagalo como “ex-secretário” (livre da autoridade hierárquica) e “sócio honorário do Grémio Recreativo. . . ” e, ainda, a data de “1.º de Janeiro”, tradicional instauradora de uma nova ordem e subversora da anterior. 1

Na edição de Lello & Irmão, Porto, 1951: “Por”. A edição utilizada do texto foi a de Livros do Brasil, Lisboa, s.d.. A “Introdução — dois manuscritos a lápis” (1925) de José Maria Eça de Queirós, incluída na edição de Lello & Irmão (1951), por reproduzir uma carta de Eça de Queirós ao editor E. Chardon relativa ao livro em causa. 2


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Julgamos, aqui, que a identificação do destinatário desta narrativa clarifica a problemática fundamental da mesma: quem fala, fala para alguém, figura virtual ou concreta que vai influir (e muito!) no discurso do emissor. Ora, o destinatário parece ser a sociedade portuguesa de um modo geral, quer dita no singular paradigmático d’“o leitor” (pp. 40, 58, 60), quer no plural “Vós” (pp. 36, 108, 135), “S. Ex.ª” (p. 92), com o mesmo quadro de referências histórico-culturais que o narrador (p. 172), quer, ainda, no cúmplice “Nós” (p. 117), só usado a partir do momento em que se verifica a coincidência de pontos de vista entre o narrador-autor e o seu receptor face ao Conde d’Abranhos. Se é, portanto, o leitor que vai determinar o tom e a estratégia discursivos, e se ele é a colectividade admiradora do “grande homem” (p. 10), o narrador, distinguindo-se pela individualidade e pelo saber — o conhecimento do “homem em chinelos e robe-de-chambre” (p. 10) —, vai destruir a imagem pública, revelando iluminando da forma mais inteligente a sua face oculta(da): afectando sempre partilhar a opinião generalizada como modo de assegurar a receptividade e a leitura, (de)mo(n)stra o seu erro, realizando uma subversão com muito maior alcance! E o leitor por excelência é aquele que, inteligente (p. 39), pressente “por um trecho o colosso, como Cuvier, por uma vértebra, adivinhou o mastodonte” (pp. 58-59) (atente-se no depreciativo), ou seja, o que, captando o “piscar de olho” do narrador, entra no jogo. . . O perfil deste narrador “indigno de confiança”3 vai-se esboçando ao longo do texto: — diz-se “a testemunha da sua[, do Conde d’Abranhos,] vida”, mas raramente presencia os acontecimentos (!), recorrendo quase sempre a fontes orais (confidências do Conde e depoimentos de testemunhas oculares ou indirectas) ou escritas (os manuscritos e notas para as “Memórias Íntimas” do próprio biografado, a sua correspondência e o rascunho dos seus discursos) em cuja veracidade insinua a desconfiança (cf. p. 155); 3 Cf. W. C. Booth, “Distance et point de vue”, in Poétique, nº 4, 1970, pp. 521-522.

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— confessa reiteradamente a sua não omnisciência, o que é, aliás, exigido pela verosimilhança interna (é homodiegético), embora o distanciamento temporal lhe permita um conhecimento mais vasto do que tinha quando personagem, mas, ocasionalmente, na falta de documentos, usa a focalização interna (cf. pp. 166-167); — afirma-se “historiador honesto”, isento, imparcial, não opinativo, mas comenta os acontecimentos e as personagens (pp. 20-21, 66-67), imagina diálogos (pp. 128-129) e episódios (pp. 72-75), embora com algumas ressalvas do tipo de “tal devia ser” (p. 75), etc., e manifesta o gosto do pormenor indiscreto, geralmente acompanhado por uma desculpa pseudo-justificativa como “estes pormenores não são indiscretos, pois que os dois esposos repousam no cemitério dos Prazeres” (p. 78), etc.; — diz não ter estudos nem grandes conhecimentos (cf. p. 41) e exibe uma vasta cultura literária, filosófica, político-social e histórica que denuncia, afinal, a figura do autor, escondida por detrás da do narrador: o cotejo de algumas opiniões com as expressas noutros textos de Eça (ex.: Cartas de Paris) revela a coincidência de pontos de vista e, até, aqui e além, de linguagem. Nem tudo, porém, é contraditório: de acordo com o subtítulo (“Notas Biográficas. . . ”), o narrador opta por uma escrita memorialística (p. 174), digressiva e não cronológica (cf. p. 32), “apenas [dando], a traços largos, as feições essenciais da /. . . / fisionomia histórica [do Conde d’Abranhos]” (p. 40). Ora, o “traço largo” e a redução ao essencial pertencem ao domínio do anedótico e do caricatural, sugeridos, quer pelo emprego da expressão (p. 61), quer pela referência ao Almanach pour rire de que Z. Zagalo – personagem é leitor e plagiador (p. 162) . . . Uma vez que falamos em estratégia discursiva, impõe-se-nos analisar os processos de que o narrador se serve para desmi(s)tificar “esta soberba figura histórica” sem, no entanto, levantar a barreira da incredulidade do leitor, dotado, à partida, de um quadro de refewww.lusosofia.net


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rências outro. Eis alguns dos que se nos afiguram mais interessantes e recorrentes: — a reprodução “indignada” de “insinuações pérfidas” (p. 19), divulgando pormenores que, afinal, as vão corroborar inteiramente, como acontece, p. ex., com a carta do Conde ao Dr. Cardoso Torres, nunca publicada por “motivos óbvios” (p. 116), ou com a cobardia daquele, ocultada pela “acta” (p. 154); — a atribuição ao Conde d’Abranhos de pensamentos “elevados” que não quadram com as circunstâncias ou, mesmo, com a sua linguagem (p. 160) — o elogio hiperbólico ao génio de Abranhos, em vivo desacordo com a “amostragem”, uma exemplificação subversora da apologia: a inspiração poética acentuada pela repetição que seria supostamente patente na quadra “Deus existe! Tudo o prova, / Tanto tu, altivo Sol, / Como tu, raminho humilde / Onde canta o rouxinol!” (pp. 30-32) , a lealdade jornalística que se percebe ao “subsídio”, à “cheta” (pp. 59-63) e a política bem evidente na deserção “com as suas armas de eloquência e a sua bagagem de saber para o campo inimigo” (p. 133), abandonando o ministério “gasto” e “sem futuro” (p. 132), a coragem heróica de duelista, tanto maior, quanto o “horror dos conflitos de força” (p. 144) lhe provocava “vómitos” e “intempestivas indigestões” (p. 154) , etc. etc.; — a pseudo-“justificação” de atitudes ignóbeis do Conde a que simula aderir, exprimindo empoladamente o raciocínio tortuoso daquele (pp. 33-40. 45-46, 51) ou argumentos que visam “defendê-lo” (pp. 134-135). Isto, por um reconhecimento implícito do “altruísmo” de quem se deixava conduzir por “deveres maiores para consigo mesmo, para com a sua carreira, o seu nome” (p. 133) . . . — a exposição de ideias verdadeiramente escandalosas que Zagalo finge partilhar entusiasticamente (pp. 34-36, 41-44), com “admiração muda e reconhecimento correcto” (p. 41);

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— o comentário subversor do discurso afectadamente laudatório da autoria do narrador (p. 127) ou atribuído a outrem; — a insinuação da dúvida subversora, p. exemplo, relativamente aos factos “calados” pelo Conde (p. 136), algumas vezes no meio de um trecho apologético como no caso do heroísmo da “acta” e das “portas fechadas” (pp. 186-187). Que resulta de tudo isto? Um Conde d’Abranhos-outro, cujo perfil se vai sobrepondo ao anterior: a técnica de apagamento é insuperável! Logo de início, a referência à mudança da “divisa” (pp. 23-24) coloca a personagem sob o signo do oportunismo, o móbil determinante dos seus actos. E procede-se à desmi(s)tificação do “Grande Homem” a todos os níveis: familiar, estudantil, social, jornalístico, político, parlamentar, legislativo, intelectual e moral. Relativamente às origens do Conde, Z. Zagalo contrapõe à plebeia, indiciada logo pela semelhança do apelido com “abrunhos”, frutos de planta espontânea, a aristocracia dos Noronhas, ascendência que “documenta” com a legenda (!) e nobreza “ilustrada” (!) pela imoralidade feminina e pela indignidade masculina. . . No âmbito da família, instituição que diz sacralizar (cf. p. 76), o seu comportamento é “exemplar”: — filho, repudia os pais que, “em nome dos interesses do Estado” (p. 38), não poderia “admitir em sua casa, no convívio da sociedade mais raffinée de Portugal!” (p. 39); — sobrinho, vê na tia a “galinha dos ovos d’oiro”, ideia perpetuada pelo monumento funerário “onde o Anjo [ele, Alípio Abranhos!!!] chora sobre uma coluna truncada que sustenta um livro, símbolo da educação que facultara ao Conde, e uma pequena bolsa, emblema da fortuna em terras que por testamento lhe deixara” (p. 40); — homem apaixonado, desfruta e lança na miséria uma jovem criada, recusando-lhe uma esmola, “tanto a esta alma severa e forte repugnavam as moles condescendências e as vãs piedades!” (p. 51), torna-se amante de uma mulher casada e socialmente inferior, pois um nível superior fazia-o temer pela sua www.lusosofia.net


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carreira (cf. p. 77) e desposa uma “encantadora herdeira de doze mil cruzados de renda” (p. 105) após um “cerco” estrategicamente realizado: aproxima-se do influente Pe Augusto, insinua-se no grupo, estuda as personalidades daquele, de D. Laura e do desembargador e, ciente das suas fraquezas, em especial da ambição e da beatice, passa à ofensiva com a lisonja generalizada, o “suborno” disfarçado (p. 98), as manifestações de espírito religioso (p. 97) e o interesse pressuroso e cínico (pp. 100-105). A sobrevalorização da carreira em detrimento da família é, aliás, patente em vários momentos (pp. 124-125, 188-189, 178), mas talvez seja o diálogo imaginado entre o Conde e D. Laura aquando do nascimento de Bibi que melhor cristaliza esse egoísmo “alipiano”: enquanto a sogra falava do parto, do outro lado da cama em que jazia “D. Virgínia, branca [. . . ] [e]xaust[a]” (p. 129), ele evocava os seus triunfos parlamentares. . . Estudante (sete anos iniciáticos!), o comportamento dissimulado, alegada “discrição”, a denúncia anónima e a lisonja, formas de “aplicação”, ilustram (!) claramente o seu “profundo amor à Ciência, à Disciplina e à Ordem” (p. 46), a sua “lealdade” e a sua “nobreza”. . . Jornalista, honra a divisa (!) e saúda a instauração de uma “nova política” (p. 53), uma “nova táctica social” (p. 55) que, “condizendo com o seu temperamento” (p. 53), assenta. . . na (dis) simulação e na intriga! Orador parlamentar, os seus discursos, mais literários que políticos (cf. pp. 126-127), em que nem tudo “vinha a propósito” (p. 127) e frutos de plágio (cf. pp. 119-120) . . . vão ser modelares e célebres pelo “estilo”, “colorido” e “período” “genuinamente de Alípio” (p. 127). Legislador, o seu “magnífico projecto” (p. 34) de “disciplinar” a Caridade por meio de “Recolhimentos de trabalho” “nunca conseguiu passar nas Câmaras” (p. 36). Estadista, após uma entrada “inteiramente providencial” (p. 109) — uma “Providência” de nome (Dr.) Vaz Correia! — na Câmara dos Deputados e um tempo de aprendizagem (segunda iniciação), mergulha intrepidamente nas “límpidas” e “calmas” águas da política: a www.clepul.eu


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ambição, o cinismo, a traição e a intriga (em suma: a estratégia!), sob a máscara do “patriotismo esclarecido” (p. 170) . . . Relativamente à sua “brilhante” figura de ministro, verifica-se a completa inadequação do homem ao cargo: — chefia “admiravelmente” (p. 190) a Marinha, temendo e detestando o mar “e tudo que dele vive ou nele trabalha” (p. 190), sem nunca ter entrado num navio e “[sem dar] grande crédito à ciência da navegação” (p. 190) . . . — administra “genialmente” (p. 189) o Ultramar, desconhecendo onde se situam Timor e Moçambique e manifestando uma perfeita (!) ignorância da geografia e de quaisquer outros “detalhes práticos que preocupam os espíritos subalternos” (p. 191) . . . A nível intelectual, há uma “sublime” combinação do raciocínio tortuoso (pp. 169-170) e da lógica paralogística (p. 42) e abusivamente generalizadora (p. 95) deste “notável filósofo” (cf. p. 26) com um espírito d’“o olho no rasgão da lona” (p. 93) . . . O progresso deste metódico e sistemático trabalho de desconstrução semelhante ao das farpas é, já o dissemos, acompanhado pelo da aproximação narrador/narratário (–leitor), no sentido de uma cada vez maior cumplicidade: do neutro “Alípio Severo Abranhos” (p. 17), o tom enciclopédico do parágrafo inicial rapidamente substituído por “Alípio Abranhos” (pp. 24, 32) e por “Alípio” (p. 36) antecedido dos adjectivos “pequeno” (p. 24) ou “jovem” (pp. 26, 33), passa-se ao “nosso Alípio [Abranhos]”, no momento em que se firma o pacto de leitura, e à introdução entre ambos dos qualificativos “grande” (p. 51), “fino” (p. 100) ou “inspirado” (p. 128). É, porém, na expressão “nosso lírico” (p. 48) que julgamos poder detectar mais raramente a emergência do autor implícito4 , entidade que se situa no limiar do mundo romanesco, da ficção, e que, transcendendo o âmbito meramente intratextual, participa do literário englobante5 : a cumplicidade narrador/narratário “filtra”, na realidade, a do autor/leitor, essa empatia que se vai desenvolvendo entre ambos e que permite responder a uma “piscadela de olho” com outra. . . 4

Cf. W. C. Booth, op. cit., pp. 514-515. Cf. também Jaap Lintvelt, “Modèle discursif du récit encadré”, in Poétique, nº 35, Setembro de 1978, pp. 352-353. 5

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O Conde d’Abranhos (1879, p.p.)

Em suma, não se trata, como pretende (?) Eça-Autor-editor, de um narrador “idiota”, “tão tolo como o ministro /. . . / que, querendo fazer a apologia do seu amo e protector, /. . . / [nos apresenta] /. . . / com crua realidade a nulidade da personagem”, mas, cremos, de um sujeito que opta por uma escrita assente no jogo de pretensa ocultação (simulação) e desvendamento, jogo indiciado, à partida, e entre outros “sinais”, pela recorrente e enfática afirmação do seu saber qualitativamente diverso do dos outros — “só eu o vi /. . . / em chinelos e de ’robe-de-chambre”’ (p. 22), “eu conheço o homem” (p. 23), “o meu conhecimento intimo da sua vida” (p. 23), “eu sei” (p. 24, itálicos meus) — e da sua função de revelador — “quem melhor do que eu poderia tornar conhecido este português histórico [?]” (p. 21) —, quebrando o “silêncio” e a “escuridão” relativos à biografia “privada”: “E surges para a História redivivo como da Noite a Aurora. . . ” (p. 27)

O Conde D’Abranhos institui-se claramente como texto-resposta e não “complementar”6 à opinião pública e à homenagem que a materializa. Começando por uma referência à estátua erguida ao Conde e terminando com a sua descrição, ciclicidade que reforça o estatuto de texto-resposta, afirma-se, quase diríamos, como uma “heteropsicografia” e, diante da imagem física, esboça o seu “negativo” psicológico-moral. Fingindo corroborar a opinião pública que vê no Conde d’Abranhos o “varão eminente” (p. 9), “Orador, Publicista, Estadista, Legislador e Filósofo” (p. 9), um espírito elevado e recto, o narrador vai, na realidade, (de)mo(n)strar o seu carácter ambicioso, mesquinho e oportunista, desconstruindo metódica e sistematicamente a imagem anterior. No final, “regressamos” à homenagem e à escultura (ponto de partida), mas já transformados pela leitura, num movimento em espiral: às “condecorações” (“merecimento”), aos “manuscritos” (o “homem de letras”), à “espada” e aos “olhos erguidos” (“fé” e “patriotismo”) já sabemos “corresponderem”, respectivamente, a lisonja e a intriga, a ausência de valor cultural e intelectual, o egoísmo e a cobardia e a ambição e o oportunismo de Alípio Abranhos. 6

Como Z. Zagalo declara na carta-dedicarória (cf. p. 9). www.clepul.eu


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No fundo, trata-se de uma escrita lúdica e que se ostenta enquanto tal: criando uma distância entre o que “se diz” (voz colectiva) e o que se “mostra” (cenas), vai instituí-la como um inter-espaço, onde se inter-diz (voz do sujeito) o “interdito” e, ao mesmo tempo, se enCENA o processo de escrita, se ostenta a figura e a atitude enunciatórias. Entre o dito dos outros (colectividade) e o feito do outro (Conde d’Abranhos): um inter-dizer-fazer do eu num espaço que é, simultaneamente, lugar de jogo e, porque (também) especular, de auto-observação (narcísica?). . .

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“Civilização” (1892) Annabela Rita

Se o título deste texto criar a expectativa de uma síntese inicial de algumas das leituras mais interessantes e incontornáveis do conto “Civilização”1 , confesso já que não pretendo corresponder-lhe, porquanto as sei bem conhecidas de todos nós, o que me permite reflectir comodamente a partir de alguns aspectos já por elas destacados. No início. . . é o eu, a primeira pessoa abre uma longa fala que constitui o conto “Civilização”, sustentando na subjectividade tudo o que é dito. Depois, na afirmação “Eu possuo preciosamente um amigo /. . . /.” (p. 67), o advérbio introduz-se como um sinal de estranheza, chama a atenção sobre si, instaurando uma modalização irónica no discurso, a distância entre o sujeito e o seu próprio discurso. Distância irónica entre o narrador e o narrado, discurso e história, portanto. Vejamos como ela se desenvolve no texto e o que ela implícita através da intertextualidade. No conto, à partida, parece falar-se, em particular, de Jacinto, personagem da história e, em geral, da Civilização, tema enunciado no título. O Jasmineiro é o nexo entre Jacinto e a Civilização, em rigor, a supercivilização: lugar que inscreve um no outro e pelo qual aquele é absorvido por esta. Torges representa a outra modalidade possível de civilização, para alguns, a sua falta. Esta relação entre ‘conteúdo’ e ‘continente’ indica, aliás, uma outra, incontornável, entre o homem e o mundo, o que nos remete para uma problemática existencial, mas também permite durante largo tempo falar de um 1 Conto publicado na Gaveta de Notícias do Rio de Janeiro em 1892 e coligido por Luís de Magalhães no volume póstumo Contos, 1902.


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quando se fala do outro (pela analogia e identificação de ambos) e, numa segunda fase, falar de um contra o outro (pelo contraste e desidentificação entre ambos). Consideremos, primeiro, a Civilização. Como fala dela o narrador? A dificuldade de falar da Civilização ao leitor leva o narrador especialmente a duas opções: descrever e simbolizar. Encará-las em separado revela-se, nalguns casos, cómoda artificialidade. Quanto à descrição, observo que o narrador a realiza principalmente enumerando e especificando. Esse “admirável mundo novo” que o Jasmineiro condensa, resume, desdobra-se à nossa frente longa e minuciosamente: os objectos e as suas funções vão-se alinhando, sucedendo e multiplicando linha a linha, página a página. É um procedimento quase contabilístico: o narrador faz uma espécie de levantamento do que é considerado instrumento característico do século XIX, afirmando-o reino da máquina na plenitude do materialismo. Isto é óbvio, em especial, numa expressão como “armazém do saber” (p. 68) designando a biblioteca: os livros cristalizam informação parada, estanque, arrumada. O saber, aí, quase só ocupa lugar. Nesse levantamento sistemático, os objectos aparecem sem mágica, pois, ou surgem disfuncionalizados na enumeração quantificadora, ou excessivos no seu uso pela personagem, ou impertinentes na sua coexistência pacífica (p. ex. as “obras cruciais da inteligência — e mesmo da estupidez”, p. 68). Assim sendo, esses objectos vão ocorrendo e acorrendo na ficção e no discurso provocando um efeito de monotonia na personagem e no leitor: o cansaço do primeiro contamina o outro através do alongamento discursivo obtido pela enumeração, na pretensão de exaustividade, o bocejo de Jacinto tende a repercutir-se no nosso próprio bocejo. Tratando-se de ensinar o que é a Civilização (do ponto de vista do narrador), esta monotonia este desprazer constituem o modo de iniciação do leitor, em ritual que duplica o da personagem. A distância emocional que marca o tédio introduz-se entre o leitor e o narrado, no caso, o descrito. O narrador consegue, pois, desmitificar a prestigiada civilização reproduzindo em nós o sentimento de Jacinto, contaminando-nos www.clepul.eu


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com o tédio e o desinteresse por via retórica. Por exemplo, as “operações do alindamento de Jacinto” cansam-no tanto como a nós: “Começava pelo cabelo. . . Com uma escova chata, redonda e dura, acamava o cabelo, corredio e louro, no alto. Aos lados da risca, com uma escova estreita e recurva, a maneira do alfange de um persa, ondeava o cabelo sobre a orelha; com uma escova côncava, em forma de telha, empastava o cabelo, por trás, sobre a nuca. . . Respirava e sorria. Depois, com uma escova de longas cerdas, fixava o bigode; com uma escova leve e flácida acurvava as sobrancelhas, com uma escova feita de penugem regularizava as pestanas. E deste modo Jacinto ficava diante do espelho, passando pêlos sobre o seu pêlo, durante catorze minutos. Penteado e cansado, ia purificar as mãos.” (pp. 73-74)

Por outro lado, tal enumeração, promovendo uma multiplicação de ”objectos“ no discurso, cria também um efeito de exotismo e, portanto, o estranhamento em relação ao que, afinal, rodeava o indivíduo do século XIX na grande urbe civilizada. Estranhamento que o autor explora no final ao encenar a ruína da supercivilização cumulativamente com a perda de laços entre ela e o Homem no modo como o narrador atravessa o Jasmineiro abandonado. Na civilização assim conformada, só a disfunção sobressai: quando o equilíbrio entediante é quebrado pela avaria que abala o status quo e que revela a máquina como potenciadora da desordem (p. ex. o caso do fonógrafo). A nível retórico, o narrador recorre, então, ao recorte do pormenor, à sua repetição e à caricatura. Para as personagens, o eleito é de irritação, enquanto para os leitores ele se torna cómico: em ambos os casos, o tédio é quebrado. O narrador fala, pois, da Civilização ensaiando objectividade: procura dar conta dela, enunciando os seus objectos, signos identificadores de uma cultura do ter. No entanto, como disse, a subjectividade sustenta todo o discurso. Em primeiro lugar, tudo é dito em função do narrador: é o que ele observa, o que sabe, o que sente e o que imagina relativamente a tudo que vai sendo veiculado. Na descrição do espaço, p. ex.:

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“Bem mais aprazível (para mim) do que esse gabinete atulhado de civilização — era a sala de jantar, pelo seu arranjo compreensível, fácil e íntimo.” (p. 71, itálico meu)

Na informação que dá de Jacinto: “Ouço que vai casar com uma forte, sã e bela rapariga de Goães. Decerto crescerá ali uma tribo, que será grata ao Senhor!” (p. 91, itálico meu)

E podia multiplicar os exemplos da subjectivização do discurso por este “eu” que encontramos desde o início do texto e que se nos impõe esclarecendo a natureza parabólica do narrado no fim do conto, quando atravessa o Jasmineiro tomado museu de objectos degradados pelo tempo e pela falta de uso. A subjectivização do discurso observa-se também no procedimento de simbolização que referi atrás. O Jasmineiro é imposto como símbolo da Civilização, “abregé” que permite o seu mais cómodo estudo tornando-a visível ao leitor, quantificando-a e descrevendo-a para, assim, nos fazer vivenciá-la e qualificá-la, em sintonia com a personagem. Porém, o Jasmineiro é também o lugar onde encontramos Jacinto, seu e nosso protótipo. Jacinto impõe-se-nos como símbolo, figura emblemática: ele é a possível personificação sinedóquica do mundo civilizado. Mais ainda: ele é o elemento imprescindível para que se fale de Civilização concretizando. A reivindicação de veracidade que poderia estar em causa na afirmação de abertura do texto (“Eu possuo /. . . / um amigo /. . . /”) foi logo infirmada pelo excesso da caracterização da personagem, da vida e origens, assunto a que voltaremos. Com a personagem, o espaço historiciza-se de forma a suscitar a curiosidade no leitor, contrariando o tédio promovido. Vejamos como. Antes de mais, Jacinto dinamiza a estrutura em que se inscreve: com o seu movimento no Jasmineiro, a descrição narrativiza-se. Os objectos adquirem movimento na sua relação com a personagem: o narrador usa-o para demonstrar as funções dos objectos, mostrando-os em funcionamento. Põe-nos, assim, em evidência e promove a sua visualização. www.clepul.eu


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Ao mesmo tempo, o levantamento torna-se interessante para o leitor. A abundância de objectos referidos exige uma cuidadosa manipulação: o narrador tem de tratar diferentemente esses objectos ou nós encararíamos longas passagens como uma espécie de ’catálogo da existência’ de um armazém. E o narrador dá provas de capacidade inventiva, chegando a ‘recortá-los’ e impô-los no centro de cenas independentes, funcionando ou disfuncionando. Nessa manipulação, o narrador chega a explorar a capacidade de alguns deles potenciarem sequências narrativas, como é o caso do fonógrafo. Depois, Jacinto multiplica o espaço ficcional: ele viaja para Torges, desloca-se, possibilitando que o narrador fale dessa viagem, do novo espaço, da relação do amigo com esse espaço e da sua própria relação com essa relação observada. Viajando, Jacinto transforma-se, o que também potência um discurso de reconhecimento. Viagem e transformação distanciam duplamente Jacinto do narrador: refiro-me ao afastamento de facto e ao emocional e intelectual. Tal afastamento justifica a revisitação pelo narrador do Jasmineiro abandonado, espaço cuja degradação é evidenciada pela comparação com um grotesco humano. É esse o momento pôr excelência para o narrador se impor no centro da cena e descodificar a parábola, conferir ao seu conto um estatuto exemplar, moralizar. Esse afastamento é também o factor que permite modalizar a parábola com uma ironia que a suspende na indecisão semântica. Falando de Jacinto, o narrador tem um discurso já dubitativo, não assertivo: “Ouço dizer que . . . ”, “. . . decerto. . . ”, etc.. Não podendo afirmar inequivocamente, o narrador não deixa que a moralidade final o seja verdadeiramente, ou, pelo menos, que ela seja inequívoca: parece-nos que Jacinto será feliz, parece-nos que Jacinto estará a realizar a síntese entre a cidade e as serras, a alegada civilização e a sua alegada falta (ou as duas modalidades de civilização, os dois possíveis cenários da civilização característica do Portugal de oitocentos), parece-nos. A dúvida é, assim, o campo da potenciação ficcional: promove a multiplicação de hipóteses no leitor, cria suspense e reforça a expectativa de leitura. De facto, no fim, não vemos Jacinto nem o ouvimos, antes perdemos o contacto www.lusosofia.net


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com ele, pelo que a dúvida permanece. E a indecisão semântica que a ironia favorece informará o título do texto que se desenvolverá a partir do conto, cristalizando-se na copulativa de A Cidade e as Serras e criando aí uma simetria não resolvida. Por outro lado, esse distanciamento de Jacinto realiza-se, por repercussão, relativamente a nós, leitores. Logo, não ”ficamos com ele“ no final, não o acompanhamos até ao fim do seu percurso, isto é, não somos captados para a causa da terceira fase que ele protagoniza (permanência no campo transformado pela Civilização estritamente necessária). Finalmente, Jacinto tem uma biografia, mais uma história que redimensiona a história que nós acompanhamos da cidade às serras. E aqui o simples revela-se complexo. No início, o narrador diz que Jacinto “nasceu num palácio, com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado”, evoca uma infância e adolescência sob o signo das “Fadas Benéficas”, feliz, cumulada, sem doenças, etc.. Essa informação inicial activa o nosso intertexto. Oscilamos entre a voz popular e a erudita. Por um lado, Jacinto aparece-nos numa espécie de “Era uma vez. . . ” do conto oral e tradicional, das histórias de encantar, emergindo ficcional desde o início. Por outro lado, actualmente, podemos evocar, por exemplo, o sujeito poético de “Lusitânia no Bairro Latino”: “Menino e moço tive uma Torre de leite. Torre sem par! Oliveiras que davam azeite, Searas que davam linho de fiar, Moinhos de vela, como latinas, Que São Lourenço fazia andar. . . Formosas cabras, ainda pequeninas, E loiras vacas de maternas ancas Que me davam o leite de manhã, Lindo rebanho de ovelhas brancas; Meus bibes eram da sua lã.”

É o sujeito poético de Só que, na “Memória” de abertura, constrói a ficção das suas origens em Trás-os-Montes, sob a protecção das “três moiras”, tempo de abundância, embora com sinais da perda a sofrer. Talvez esta associação seja mais forte quando acompawww.clepul.eu


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nhamos a perda da bagagem que afecta Jacinto à chegada às serras. Nessa altura, o lamento do António de “Lusitânia no Bairro Latino” faz ecoar, por extensão, o de um Portugal que vai tendo que confrontar-se com a transformação do seu próprio corpo geográfico ao longo do tempo2 . Para já não mencionar o intertexto bíblico, activado pela referência, p. ex., ao “surge et ambula” de Lázaro ou à tribo da descendência de Jacinto prevista pelo narrador, o que sinaliza a natureza parabólica do conto e favorece a pertinência de uma leitura que considere a intertextualidade. O ciclo biográfico de Jacinto inscreve, assim, esta ficção noutro ciclo bem mais vasto. Ou seja: através de Jacinto e da sua história, talvez este conto se redimensione na inscrição intertextual numa “linhagem” literária de textos atravessados por uma componente mais ou menos subtil de reflexão sobre a identidade e a história nacionais, sobre o passado e o futuro da sociedade portuguesa. É a ficção a pensar a História, sistema onde a cultura equaciona a relação entre o homem e o que o envolve e a dinâmica desse conjunto. Reflexão que, mais do que oferecer respostas, coloca os problemas: no lugar onde a resposta seria possível (aqui, no final), a ambiguidade deixa o leitor entregue a si próprio. Aliás, desde o início, o narrador vai promovendo a interrogação ao falar insistentemente no tédio de Jacinto. . .

2 Sobre essa transformação e o modo como ela favorece uma reflexão quase obsessiva sobre a identidade nacional cf. Annabela Rita, “Portugal ou o País das Maravilhas” e “Ainda o Pais das Maravilhas: problemas de identidade”, Islenha (n.os 2 e 4), Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, Jan.-Jun. de 1988, pp. 31-35, e Jan.-Jun. de 1989, pp. 128-129.

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“‘José Matias” (1897) Annabela Rita

Ler conduz-nos da interpretação literal a níveis de compreensão cada vez mais complexos, com base em ideias ou impressões, hipóteses de trabalho que vamos procurar confirmar na perscrutação do texto. Esse movimento de reavaliação e de análise detalhada pode, no entanto, infirmar a hipótese de partida, confrontando-nos com outras hipóteses que a excluem, fazendo-nos desistir das visivelmente menos adequadas. Quando as diferentes hipóteses são compatíveis e sintetizáveis, estamos perante um texto de diferentes níveis de leitura, aberto a diversas abordagens; caso contrário, o texto pode estar armadilhado por uma falsa pista, em trompe l’oeil, projectando-nos de uma para outra, em permanente insatisfação, até que alguma (caso das anamorfoses) ou algumas, entretanto geradas nesse movimento analítico, pareça ou pareçam resolver os obstáculos colocados pelo texto às anteriores. Na leitura de “José Matias”1 , de Eça de Queirós, que se segue, ensaio sucessivas travessias do mesmo território, desdobrando um itinerário possível, percorrido em aulas e em textos2 , começando pelo que parece mais evidente e progredindo por diferentes e sucessivos níveis de complexidade.

1

Conto primeiro publicado em 1897, no nº 2 da Revista Moderna, de Paris, e depois incluído no volume de Eça de Queirós intitulado Contos (1902). Edição utilizada: 25ª edição, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 197-222. 2 Dispersos e diversos, esses ensaios estão reunidos nos volumes I e II de No Fundo dos Espelhos, Porto, Edições Caixotim, 2003 e 2005.


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Primeira hipótese A primeira impressão que fica da leitura do conto, é a de que nele se conta a história do “interessante” José Matias, “moço” oitocentista, num diálogo desenvolvido entre amigos durante o seu funeral. O conto impõe uma progressão no conhecimento de José Matias através do depoimento de um seu amigo a outro que o teria conhecido também, itinerário que duplica o da aproximação ao cemitério: “Linda tarde, meu amigo!. . . Estou esperando o enterro do José Matias — do José Matias de Albuquerque, sobrinho do visconde de Garmilde. . . O meu amigo certamente o conheceu — um rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo destro cavaleiro, de uma elegância sóbria e fina. E espírito curioso, muito afeiçoado às ideias gerais, tão penetrante que compreendeu a minha “Defesa da Filosofia Hegeliana”! Esta imagem do José Matias data de 1865: porque derradeira vez que o encontrei, numa tarde agreste de janeiro, metido num portal da Rua de S. Bento, tiritava dentro de uma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a aguardente. Mas o meu amigo, numa ocasião que o José Matias parou em Coimbra, recolhendo do Porto, ceou com ele, no Paço do Conde! Até o Craveiro, que preparava as “Ironias e Dores de Satã”, para acirrar mais a briga entre a Escola Purista e a Escola Satânica, recitou aquele seu soneto, de tão fúnebre idealismo: “Na jaula do meu peito, o coração. . . ”. E ainda lembro o José Matias, com uma grande gravata de cetim preto, tufada entre o colete de linho branco, sem despegar os olhos das velas das serpentinas, sorrindo palidamente àquele coração que rugia na sua jaula. . . Era uma noite de Abril, de Lua cheia. Passeámos depois em bando, com guitarras, pela ponte e pelo Choupal. O Januário cantou ardentemente as endechas românticas do nosso tempo: Ontem de tarde, ao sol-posto, Contemplavas, silenciosa, www.clepul.eu


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A torrente caudalosa Que refervia a teus pés. . . E o José Matias, encostado ao parapeito da ponte, com a alma e os olhos perdidos na Lua! — Porque não acompanha o meu amigo este moço interessante ao Cemitério dos Prazeres? Eu tenho uma tipóia, de praça e com número, como convém a um professor de Filosofia. . . O quê! Por causa das calças claras! Oh meu caro amigo! De todas as materializações da simpatia, nenhuma mais grosseiramente material do que a casimira preta. E o homem que nós vamos enterrar era um grande espiritualista!” (pp. 199-200)

A biografia do morto desenvolve-se como num requiem ou discurso fúnebre, última homenagem ao “grande espiritualista” acompanhando o caixão. José Matias é sugerido como “moço” e representante de uma geração, a do narrador e do narratário, mas também, afinal, a do autor e do leitor seu contemporâneo, “ardente geração” que cursou na boémia académica coimbrã e que amadureceu e faleceu em Lisboa, vencida pela vida, percurso paradigmático. Percurso, aliás, representado por duas “imagens” contrastantes que abrem e justificam o discurso sobre ele: a do “rapaz airoso” e a do homem decadente que “cheirava abominavelmente a aguardente” (p. 199). No entanto, o estatuto de veracidade que, à semelhança do protocolo romântico, o conhecimento da personagem, as referências geográficas, temporais, sociais e outras parecem tentar garantir é completamente subvertido pela ironia que informa o discurso sobre José Matias, um discurso que deveria estar enlutado pelas circunstâncias, em jeito do requiem tão cultivado no séc. XIX (com Mozart, em 1791, Berlioz, em 1837, Bruckner, em 1849, Schumann, em 1849 e 1852, Brahms, em 1857-68, Verdi, em 1873-74, Dvorak, em 1891, etc.). Se concordarmos que um dos principais aspectos da ironia é a distância que ela cria entre sujeito e objecto, além da surpresa entre o que se anuncia e o que se faz, posso apontar alguns factores que a conformam. O primeiro e mais óbvio factor é a surpreendente coincidência de três ciclos de diferente natureza: o do percurso existencial de www.lusosofia.net


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José Matias, o do trajecto do seu funeral e o do discurso do narrador sobre ele. No último, a conclusão retoma fielmente o início: o comentário à ”linda tarde“ e a displicência modal que sublinha a distância entre narrador e narrado, reproduzindo-se entre nós e o que lemos. Tal reprodução da distância aproxima os sujeitos de escrita e de leitura, proximidade insinuada na ambiguidade de um nós (“nossa ardente geração”) que nos engloba cumplicemente. Outro operador de distanciamento é o recurso sistemático ao demonstrativo. Apontar releva de uma distância entre sujeito e objecto do discurso e confirma-a. José Matias é inumeramente designado por ”este“ (quando vivo) e por “esse” (referência ao corpo): “este moço interessante” (p. 200), “este José Matias” (p. 201), “este extraordinário Matias” (p. 211), “este Matias” (p. 212), “este inexplicado José Matias” (p. 222), “esse, que aí levamos” (p. 200). Note-se como mesmo o deíctico de proximidade, anteposto ao nome, revela afastamento, às vezes reforçado pelo adjectivo, quer do narrador, quer dos seus contemporâneos (ele foi o “único intelectual que não rugiu com as misérias da Polónia; que leu sem palidez ou pranto as Contemplações, que permaneceu insensível ante a ferida de Garibaldi!”, p. 201). Um outro factor de distanciamento é a multiplicação espantosa de adjectivos e de advérbios com que o narrador vai conformando José Matias. Ele é “macio”, “louro”, “ligeiro”, “nobre”, “puro”, “intelectual”, “triste”, “comedido”, “quieto”, “extraordinário”, “interessante”, “ultra-romântico”, etc.. Esta adjectivação é ainda salientada pelo facto de tender a dispor-se ternariamente e/ou pelo facto de ser adverbialmente maximizada: “tão macio, tão louro, tão ligeiro” (p. 209), “nobre, puro, intelectual Matias” (p. 209), ”tão infinitamente triste“ (p. 218), “tão comedido e quieto” (p. 203), etc.. Mesmo os adjectivos denunciam o excesso na personagem: o “extraordinário Matias” (p. 211) é dotado de “horrenda correcção” (p. 202), de “uma imensa superficialidade sentimental” (p. 201) e o mais que se sabe. Quanto aos advérbios com que o narrador vai modalizando a atitude da personagem, o número e variedade são impressionantes e sempre, também, excessivos: ele surge-nos “desesperadamente”, “angustiadamente”, “melancolicamente”, “freneticamente”, “subitamente”, “precipitadamente”, “violentamente”, “serenamente”, www.clepul.eu


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“tremulamente”, “inteiramente”, “infinitamente”, “infalivelmente”, “subtilmente”, “submissamente”, “incessantemente”, “cautelosamente”, “perenemente”, “desvairadamente”, ‘ ‘escandalosamente”, etc.. . . Enfim, combinando-se com e gerando-se no distanciamento assim obtido, amplificando-o, somos convidados a saber de José Matias a partir do já referido díptico inicial que o retrata e lhe baliza a trajectória existencial: em ambos os casos, José Matias surge de perfil (olhando a lua num e a janela de Elisa no outro), fazendo evocar a tradição da representação de personalidades ilustres em pose hierática (na medalhística, como na pintura). O incipit torna-se, assim, duplamente apresentacional e emoldurante: a distância do narrador a ele duplica-se na que promove entre ele e o leitor. Ora o perfil, se o compararmos com os retratos de corpo inteiro, não apenas torna evidente a omissão do outro lado, da outra face, que completa a identidade, mas também lembra a pose ficcionalizadora, gerada entre o que o indivíduo e o artista desejam mostrar e esconder, simular e dissimular em função dos seus objectivos (identitários, estéticos, etc.). Além disso, o perfil estabelece um corte comunicativo: a lateralização do rosto cria uma fissura espectacularizante entre o original e quem o observa que se duplica e amplifica entre a representação e o público a quem ela é mostrada3 . Quando José Matias surge enquadrado pela janela, emoldurado nela (“aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher”, p. 204, itálicos meus), ou, mais tarde, no portal (“três anos viveu José Matias encafuado naquele portal!”, p. 218), convoca, naturalmente, a tradição retratista de figuras à janela, tão importante no Romantismo e remontando à pintura e às iluminuras de Livros de Horas do Norte da Europa, que se tornou o mais popular tema de ilustração de livros em Inglaterra nas décadas de 50, 60 e 70 do séc. XIX, combinando-se e redimensionando-se com o do espelho4 , como acontece também com José Matias em momento 3

Sobre isto, tive já ocasião de reflectir a propósito de outro retrato no prefácio que dediquei a Senna Freitas (O Perfil de Camilo Castelo Branco, Porto, Edições Caixotim, 2005, pp. 7-24). 4 Sobre este fenómeno reflicto longamente num ensaio sobre a obra de Teolinda

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liturgicamente sublinhado: “Toda a sua atenção se concentrara diante do espelho, no alfinete de coral e pérola para prender a gravata, no colete branco que abotoava e ajustava com a devoção com que um padre novo, na exaltação cândida da primeira missa, se reveste da estola e do amito, para se acercar do altar. Nunca eu vira um homem deitar, com tão profundo êxtase, água-de-colónia no lenço! E depois se enfiar a sobrecasaca, de lhe espetar uma soberba rosa, foi com inefável emoção, sem deter um delicioso suspiro, que abriu largamente solene as vidraças! Introito ad altarem Deum! Eu permaneci discretamente enterrado no sofá.” (p. 204)

Será dentro desta moldura de perfis feita que veremos surgir outras representações de José Matias, todas contaminadas pela modalização estética daqueles, insinuando a suspeita. . . Acresce a isto a imagem do trajecto convivial que suporta o edifício da ficção: ela evoca, irresistivelmente, outros, exemplares de modelos elaborados nas metamorfoses de diferentes tradições literárias. Uma dessas tradições é a da narrativa de viagens na sua mais lata acepção (englobando os textos que se estruturam em função do tema da viagem). Em pano de fundo, o itinerário que aqui conduz parece sinalizado no incipit d’As Viagens (1846) garrettianas: empunhando a tradição dos “livre[s] de découvertes” na exibição emblemática de um novo modelo, o seu, confessional e intimista, Xavier de Maistre epigrafa a inovação de Garrett, nacionalmente redimensionada, de um modo que Camilo re-equacionará n’ As Vinte Horas de Liteira (1864) e que Francisco Maria Bordalo (Viagem à roda de Lisboa, 1855) e Eduardo de Barros Lobo (Viagens no Chiado: apontamentos de jornada de um lisboeta através de Lisboa, 1887), mais conhecido por Beldemónio, circunscrevem à capital, cenário do funeral do nosso José Matias. Outra das tradições, a que regressarei adiante, é a dos textos estruturados sob a forma de diálogo ou em que ele tem uma importância vital. Gersão que integra o volume Teolinda Gersão: Retratos Provisórios, Lisboa, Roma Editora, 2005, pp. 9-118. www.clepul.eu


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Assim fantasmizado por esta anterioridade de metamorfoses feita (tradições, linhagens, obras e topoï ), o conto queirosiano suspende José Matias na indecidibilidade estatutária da litera que o configura, entre o real, o imaginário e a tradição literária. . . Progressivamente, José Matias desliza para fora do campo de realidade que começara por apresentá-lo como que envolto em ‘bola de sabão’: “/. . . / como o Rui Blas do velho Hugo, caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante /. . . /”. (p. 205)

Problema: Tudo isto vai descredibilizando José Matias como homem, fazendo-o deslizar progressivamente do plano da realidade para o da ficcionalidade: começo a vê-lo como personagem. Segunda hipótese A nível da obra queirosiana, outras personagens surgem na minha memória: os românticos, sentimentais, mas também Fradique Mendes, alguém sobre quem Eça confessa não ter tido acesso à sua vida íntima e sentimental. A narrativa começa por iluminar José Matias com o brilho da Lua cheia, “[e]ra uma noite de Abril” (p. 199), conjugando, assim, o tópico romântico e o do ficcional maravilhoso (“era uma vez. . . ”) num único incipit, insinuando-o sob o signo estético: “Era uma noite de Abril, de Lua cheia.” (p. 199). É também n’“uma noite no terraço, à luz da lua!” (p. 202) que vê e se apaixona por Elisa. Esse exacto momento denuncia a conformação de José Matias, de Elisa e da sua

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história de amor em função de modelos estéticos, com um artificialismo acrescido pelo facto de tudo se desenvolver “como n[uma] estrofe” (itálicos meus) da letra de uma música trauteada pela sua geração: “O meu amigo decerto trauteou, como todos trauteámos, aqueles versos gastos, mas imortais: Era no Outono quando a imagem tua À luz da lua. . . Pois, como nessa estrofe, o pobre José Matias, ao regressar da praia da Ericeira em Outubro, no Outono, avistou Elisa Miranda, uma noite no terraço, à luz da lua! O meu amigo nunca contemplou aquele precioso tipo de encanto lamartiniano.” (p. 202)

É a Lua oferecida pela tópica e cuja luz, em trânsito pela História da Arte, se torna encantatória no Romantismo, evoca a tradição das “cenas galantes”5 e se sepulcraliza no Ultra-Romantismo nesse noivado (“O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos) que os escritores realistas e outros tanto parodiaram. Banhado por um luar assim modalizado, “desde essa noite de Outono” (p. 203), José Matias parece encenar outra versão de amor eterno (“forte, profundo, absoluto amor”, p. 203) ou de noivado para além da morte, em jeito de evocação paródica6 . E o José Matias “encostado ao parapeito da ponte, com a alma e os olhos perdidos na Lua” (p. 200) começa a parecer uma concretização ficcional do (ultra-)romântico, esse tipo literário ou por ele mediatizado que Eça identifica em tantos textos seus com o sentimental, dominado pelo coração e pelos afectos, um “poema” (p. 5

Se o Clair de Lune se nimba de silêncio e de melancolia, até na música (com Beethoven, na sua sonata opus 27, de 1800-1801), também evoca o artificialismo das “cenas galantes” (abrindo com “Clair de lune” as suas Fêtes Galantes, de 1869, Verlaine, p. ex., recorda esse motivo cortesão de Watteau, Boucher, Fragonard e outros, com o que ele comporta de simulação e dissimulação e de jogo na sociedade do séc. XVIII), podendo conciliá-los, como acontece em Clair de lune de La Suite Bergamasque (1890-1905) de Debussy ou evidenciar a evanescência e a fugacidade do que banha nos quadros impressionistas (p. ex., Clair de lune sur le Port de Boulogne, de 1869, de Edouard Manet). 6 No sentido que Linda Hutcheon confere a este conceito. Cf. Linda Hutcheon. Uma Teoria da Paródia, Lisboa, Edições 70, s.d. [1989]. www.clepul.eu


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208), como se sugere a meio da sua história. As Prosas Bárbaras (pp., 1903), p. ex., deixam ecoar nele a sua Sinfonia de Abertura com a referência a uma galeria de protagonistas de amores fatais reconduzíveis, afinal, a um só “tipo soberano” (sic) e essa Elvira romântica de Lamartine, Verlaine e Mallarmé parece metamorfosear-se na Elisa-objecto de paixão. . . Como o professor dirá caricaturalmente: “Ah! Muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E concluí que o Matias era /. . . / [u]m ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida, que nunca suspeitou que chinelas e cueiros sujos de meninos são coisas de superior beleza em casa em que entre o sol e haja amor.” (pp. 212-213).

Do mesmo modo, também a posterior “seriedade carregada, toda em sombra e rugas, de quem se debate numa dúvida irresolúvel, sempre presente, roedora e dolorosa” (p. 208), mesclada de melancólica abstracção, parece concretizar a atitude do poeta finissecular. O nível intelectual e cultural, por outro lado, aproxima José Matias do dilettante Fradique, objecto de longa maturação (desde o de autoria colectiva de 1868-1869, passando pelo do Mistério da Estrada de Sintra, de 1870, até ao da Correspondência, de 1888-1900), sugerindo um José Matias habitado pelo fantasma do outro. Apesar disso, José Matias é demasiado artificial, afastando-se ainda destes perfis em ponto de fuga. Como personagem, José Matias movimenta-se no seu universo. Mas tudo o que caracteriza essa acção é pouco natural, artificioso: passeia-se solitariamente num “grande cavalo branco”, com um “imenso chicote” (p. 214), janta com “serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores” (p. 205), p. ex.7 . A referência à mudança na decoração do seu quarto (cf. p. 205) reforça o efeito de encenação, de montagem cénica. E, se de montagem cénica se trata, logicamente ela é feita para o leitor. A pose e a cena. 7

Nessa versão, José Matias contrasta em absoluto com a versão de “cinismo sobremaneira satânico” de Silvestre da Silva, personagem camiliana de Vinte Horas de Liteira (1864): ambos encenam o ultra-romantismo, mas um tinge-o de branco, enquanto o outro o carrega de negro, exprimindo assim cromaticamente as suas hipóteses eufórica e disfórica.

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Na fisionomia de José Matias, o elemento mais marcante é o sorriso cujas modulações o narrador nos faz acompanhar ao longo de muito tempo: ele esboça-se “iluminadamente”, “deliciadamente”, “extaticamente”, “irresistivelmente”, “calmamente enternecido”, “religiosamente atento”, com “deliciosa certeza” e “segura beatitude”, “lento e inerte”, etc.. “Perene”, esse sorriso acaba, devido a isso mesmo, por se nos tornar inaceitável: incrível na personagem e tornando a personagem igualmente inacreditável para nós, apesar da transformação que ela sofre. E, por fim, o amor que dedica a Elisa: “submisso e sublime” (p. 209), “esplêndido, puro, distante, imaterial” (p. 204), “suspenso, imaterial, insatisfeito” (p. 209), “forte, profundo, absoluto” (p. 203), um amor “transcendentemente espiritualizado” (p. 205), de uma “adoração sublime” (p. 212), “a mais pura adoração” (p. 212), excesso que, além de não ser confirmado pelo discurso da personagem, é contradito no discurso do próprio narrador que chega a atribuir-lhe “uma alma escandalosamente banal” (p. 202) e “uma imensa superficialidade espiritual” (p. 201). O excesso e a contradição distanciam também José Matias de nós, leitores, e conferem-lhe ficcionalidade. Artificialidade reforçada pela forma encenada como nos surge Elisa, observada à distância e emoldurada (pelo jardim, pela janela), em movimento lento, formando com ele o enigmático par amoroso e intensificando-lhe o artificialismo ao lembrar tantas “damas de branco” que perpassam pela literatura, em particular, e pela Arte, em geral8 . E outro aspecto distingue ainda mais inequivocamente José Matias: o silêncio emocionado (“silêncios banhados num sorriso religiosamente atento”, p. 205) e a postura estaticamente contemplativa contrastam com o discurso brilhante de Fradique, cinzelador das Lapidárias e viajante, ou com o discurso e a acção passionais dos protagonistas amorosos. Por fim, e regressando ao tópico das janelas emoldurantes, esteticizantes: ele e Elvira surgem enquadrados por elas em face a face 8

Sobre a multiplicidade e diversidade da representação das damas de branco e o seu poder evocador, remeto para o que disse em “O Livro de Cesário Verde: Quatro Estações em Câmara de Arte e Prodígios”, na versão extensa que integro no meu livro Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2005, pp. 29-105.

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(“com as janelas de Elisa diante das suas janelas”, p. 212), sugerindo um díptico que lhes dissolve a pouca densidade psíquica, humanizadora, que tinham. As janelas recortam-nos, fragmentando-os e como que biplanificando-os num confronto de rostos, de retratos. . . Janelas que evocam outras, tão pregnantes na Literatura (caso da romântica Joaninha dos rouxinóis), como na pintura, e que se multiplicam, desenvolvendo a história, justificando episódios: pelas janelas e/ou através das suas vidraças se viram e observavam, “das janelas desse no 214”, João Seco “compreendeu o romance” entre Elisa e o apontador e o narrador viu este último e o José Matias, da sua janela, Elisa observará José Matias “dentro daquele portal” (p. 219), etc.. Janelas que, na sua multiplicada e sucessiva perspectivação, podem sugerir uma série, como as impressionistas, e exprimir os seus donos, pontuando a história da relação ou sequências dela, como acontece com as de Elisa sob o olhar de José Matias “a adorar submissamente as suas janelas” (p. 219): “luzi[ndo], de Inverno embaciadas pela névoa fina, de Verão ainda abertas e arejando no repouso e na calma”, ‘apagando-se’ à noite, etc.. Assim fantasmizado pelo artificialismo, pelo excesso ou pela falta, mas também pelos reflexos que nele se refractam, José Matias começa a insinuar-se para além das fronteiras do literário. . .

Problema: O silêncio e a suspensão de José Matias, acima de tudo, desacreditam-no também como personagem e fazem-no deslizar da ficcionalidade para um outro plano. Nessa altura, o texto gera em mim a suspeita de que, afinal, José Matias talvez não seja verdadeiramente uma personagem, nem a caricatura do romântico, nem um potencial homólogo de Fradique, mas outra coisa.

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Terceira hipótese Começo a suspeitar que a herança iluminista informa esta ficção: talvez José Matias seja um signo vazio, espécie de incógnita de uma equação, de um raciocínio, potenciando a exploração de qualquer itinerário de conhecimento de alguém/alguma coisa. Mas também me ocorre a suspeita de que José Matias protagonize uma reflexão sobre o género conto: incógnita de uma outra que em função dela se modeliza e se oferece como possibilidade retórica. Eis-me com duas novas hipóteses interpretativas: 1) a de que o discurso sobre José Matias possa conformar qualquer itinerário de conhecimento de uma pessoa/personagem/facto. Compreender esse objecto passará sempre, naturalmente, por procurar saber a sua história, ouvir os depoimentos de testemunhas, etc.; 2) a de que o texto concretize um modelo do conto queirosiano, em jeito ensaístico, reflexivo, hipótese entre outras, quiçá proposta. A arquitectura textual desenvolver-se-ia convivialmente em torno de um centro esvaziado pela morte e pelo silêncio, enigmatizado pela lacuna informativa e enquadrado por retratos. Diferindo da realidade geracional a que surgiu associado e da ficcional que nos fez evocar, José Matias adquire contornos cada vez mais problemáticos: cada hipótese o colocou mais à distância do leitor, que começou por recebê-lo como seu ‘semelhante’, tendeu a ‘assemelhá-lo’ a diferentes personagens e enquadramentos e acaba por consciencializar o vazio da sua singularidade modelizante. A ausência de discurso e de esclarecimento retiram-lhe densidade psicológica, dinamismo e volumetria, biplanificam-no numa www.clepul.eu


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espécie de recortada sombra chinesa que vai sendo deslocada de cenário em cenário, de episódio em episódio. Em geral, como referi, ele surge mesmo estrategicamente emoldurado, mais artificializado ainda, como quando o narrador o descreve “à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos /. . . / cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras” (p. 204), após a viuvez de Elisa e o seu subsequente casamento com Matos Miranda, ou concentrado ao espelho (p. 204), ou, ainda, como que “prostrado ante uma imagem da Virgem” (p. 211), ou, por fim, “encafuado naquele portal” (p. 218). O “grande espiritualista” (p. 200) torna-se progressivamente “o nosso pobre espiritualista” (p. 222), enterrado pela palavra do narrador que lhe deu vida e que declara “que nós vamos enterrar” (sic, p. 200). Isto confere a José Matias natureza problemática. Lembro que problema, etimologicamente, é o que é projectado no espaço, adquirindo maior visibilidade. A questão ainda é mais complexa: o próprio narrador, ao mesmo tempo que vai definindo José Matias, também o indefine. Indefine-o pela contradição, como assinalei. Indefine-o pela dúvida diversamente formulada e em diferentes graus. Além do tradicional recurso ao advérbio “talvez”, é o caso do par de interrogações coordenadas pela disjuntiva: “Haveria ali reconhecimento por o Miranda ter descoberto numa remota rua de Setúbal /. . . / aquela divina mulher, e por a manter em conforto /. . . /? Ou recebera o José Matias aquela costumada confidência – “não sou tua, nem dele” — que tanto consola do sacrifício porque tanto lisonjeia o egoísmo. . . ?” (p. 206) “Era o grito da alma, no assombro e horror de morrer também? Ou era a alma triunfando por se reconhecer enfim imortal e livre?” (p. 222)

A dúvida também se insinua na aparente assertividade das frases modalizadas por “decerto”, “certamente”, “com certeza”. Outros exemplos poderiam ser evocados, inclusivamente mostrando como a suposição que o narrador faz num momento acaba por ser infirmada pelo conhecimento posterior, injustificando o seu enunciado. Por fim, o narrador indefine a sua personagem confessando o seu desconhecimento, quer de factos, quer de pensamentos, quer de www.lusosofia.net


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sentimentos e/ou motivações da personagem: “não sei” (pp. 203, 206, 213, 220, 221), “não creio que” (p. 213), “nunca compreendi” (p. 206), ”sempre me pareceu que“ (p. 208) e suas variantes sucedem-se no discurso do narrador. Sendo este narrador uma instância que recorrentemente ostenta insígnias de saber (é professor de Filosofia e autor de várias obras que menciona) e de conhecimento de José Matias (foi seu amigo, acompanhou o seu trajecto e teve amigos comuns), tal incompreensão resulta como que ‘institucionalmente’ justificada, sancionada: José Matias não é apenas “inexplicado” (p. 222), mas mesmo “impenetrável” (p. 210) à análise. Esta ‘impenetrabilidade’ analítica projecta-o na esfera da indecisão de leitura (“era talvez muito mais que um homem — ou talvez ainda menos que um homem. . . ”) cujo equilíbrio só ele próprio poderia destruir. Ele não fala (ou quase) e essa falta do seu discurso impede-nos e ao narrador de o compreendermos, obsta à sua apreensão, ao acesso a ele. Está em causa mais do que a ambiguidade apenas: a afirmação final de que ele “era talvez muito mais que um homem — ou talvez ainda menos que um homem. . . ” cria uma grande amplitude interpretativa, potenciando a diversidade entre os opostos. Deste modo, José Matias emerge com natureza duplamente problemática: a distância entre ele e o leitor é aumentada pelo facto de nela se introduzir a distância de desconhecimento que, afinal, existe entre ele e o narrador, instância de quem o leitor esperava a explicação da personagem. À distância, a personagem surge claramente como artefacto, modelo, desviando a nossa atenção desse ficcional para o discurso que se vai tecendo, para um raciocínio que se vai desenrolando sobre ele. Estes mecanismos, em si e na sua combinatória, parecem-me de natureza amplificadora e esta montagem cumulativa emerge emoldurada por observações do narrador de grande displicência (contrastando com o teor da história e reforçada pela ironia inerente, queiramos ou não, ao próprio nome do cemitério dos Prazeres onde tudo termina). Assim, ocorre-me encarar “este José Matias” (p. 201) como uma espécie de exercício reflexivo ao serviço de uma prática pedagógica protagonizada pelo professor de filosofia. www.clepul.eu


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Por um lado, a história de José Matias poderia modelizar uma teoria da relação entre Espírito e Matéria, como parece insinuar, na conclusão, o narrador ao observar e fazer observar o amante de Elisa a levar flores ao falecido apaixonado: “Mas, santo Deus, olhe! Além, à espera, à porta da igreja, aquele sujeito compenetrado, de casaca, com paletó alvadio. . . É o apontador de Obras Públicas! E traz um grosso ramo de violetas. . . Elisa mandou o seu amante carnal acompanhar à cova e cobrir de flores o seu amante espiritual. Mas, oh meu amigo, pensemos que, certamente, nunca ela pediria ao José Matias para espalhar violetas sobre o cadáver do apontador! É que sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dele tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de si recebe, se tratará com brutalidade e desdém! Grande consolo, meu amigo, este apontador com o seu ramo, para um metafísico que, como eu, comentou Espinosa e Malebranche, reabilitou Fichte, e provou suficientemente a ilusão da sensação! Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José Matias /. . . / . . . ” (p. 222)

A hipotipose intensifica e manipula a nossa atenção, sublinha a estranheza, como que exige um comentário. Porém, suspeitando eu que o mais evidenciado, por vezes, dissimula o mais subtil, e tendo frequentemente constatado que Eça alicerça o óbvio e caricatural numa espécie de modelo de pensamento ou de racionínio (estrutura descritiva e indutiva), seguindo a lição iluminista9 , creio que José Matias (personagem e conto) constituirá um exemplo de como se pode procurar analisar e compreender uma personalidade, uma história, um comportamento. A figuração antropomórfica gerar-se-ia num discurso de natureza parabólica, como acontece na velha e metamórfica tradição da escrita ‘de proveito e exemplo’, em geral (desde as fábulas, às parábolas, às vidas de santos, etc.). E a dimensão epistemológica parece-me sinalizada pelo estatuto do narrador, um professor de Filosofia apaixonado pela Lógica, desmistificador da “ilusão da sensação” (p. 222) e autor de tratados filosóficos que desde logo indica, em jeito de insígnias. 9 Cf. meu estudo Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998.

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Tudo isso me conduz à tradição que referi no início dos textos estruturados sob a forma de diálogo ou em que ele tem uma importância vital. No primeiro caso, estamos num domínio onde a Literatura e a Filosofia (aqui emblematicamente representada pelo professor) se encontraram, território em cuja linha de fuga estarão os diálogos platónicos (mas também os de Cícero10 e os de Aristóteles, modelos recuperados e cultivados no Humanismo), dominados pela busca da verdade e pela estratégia pedagógica, mas que contempla, igualmente, a literatura epistolar, tão em voga nos sécs. XVIII e XIX. No segundo caso, encontramos, dentre outras, a linhagem da picaresca, com as suas mutações, mas sempre confrontando modelos e anti-modelos e com uma dimensão carnavalesca. E, como no conto, o interlocutor do professor nunca fala de facto, o reivindicado diálogo assume a forma de um longo monólogo, de velha e abundante tradição dramática e tão caro ao Romantismo. Mais uma vez, diferentes modelos e linhagens convergem na génese do edifício ficcional. . . Este conto constituiria, então, a hipótese de uma reflexão sobre tal tipo de objecto, sugerindo uma propedêutica a uma metodologia de conhecimento: anotar os factos, tentar “surpreender” (a palavra é do narrador) os comportamentos, recolher testemunhos e procurar ir tirando ilações. O conto teria, portanto, também uma componente pedagógica, de modelização do pensamento cognoscente do leitor. E a estranheza de José Matias derivaria do seu estatuto: à margem do real e do ficcional, embora mantendo o fantasma de outras personagens (o romântico, em geral, e Fradique, em particular), este exercício de pensamento não tem, pois, de conduzir a nenhuma conclusão, uma vez que se desenvolve como uma ficção que assim se faz reconhecer. . . Ao mesmo tempo, no entanto, “José Matias” também poderia constituir uma proposta modelar autoral (não a, mas uma dentre as. . . ), gerada na tradição europeia (com Boccaccio, Chaucer, Margarida de Navarra, etc.) e nacional (com Gonçalo Fernandes Tran10

Curiosamente, os diálogos de Cícero consagraram, no proémio, o enunciado das circunstâncias e das coordenadas dos mesmos. De acordo com essa lição, o incipit deste conto queirosiano é também o lugar onde se explicam as circunstâncias da sua narração.

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coso, etc.), incluindo o contoário popular, e contaminada pela escrita folhetinesca e cronística, proposta sugerindo uma hipótese de ou do conto queirosiano como narrativa entre, a partir de e em torno de imagens. Com isso, Eça reconduziria o conto à conjugação de três aspectos essenciais, retóricos: a comunicação entre quem conta e o seu destinatário (valorizando o plano da narração e os seus protagonistas); a pregnância das imagens (capazes de produzir profundo efeito na imaginação do leitor, em especial, os retratos); a combinação do discurso sobre as imagens (ut pictura poesis) e do discurso entre elas (metonimizador, narrativo). Se o primeiro aspecto justifica a convivialidade bebida na tradição e em géneros afins (crónica, folhetim, p. ex.), o segundo está na origem da importância do descritivo (com o protagonismo da hipotipose) e o terceiro esclarece a arquitectura textual (balizada e/ou marcada por imagens impressivas). No fim, José Matias permanece “inexplicado”, “talvez muito mais do que um homem — ou talvez ainda menos que um homem” (p. 222), nas palavras do professor, irónicas, se as entendermos de acordo com estas últimas hipóteses de leitura compactadas num nome-título ambiguizador do estatuto de qualquer dos termos que o constitui: uma personagem-modelo epistemológico ( José Matias) ou um modelo contístico (“José Matias”).

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Parte V

. . . é necessário que, quando se ergue o pano, se movam algumas figuras e se troquem alguns diálogos. . . (EQ)

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A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal como a fez o Constitucionalismo desde 1830 — e mostrar-lhes, como num espelho, que triste país eles formam — eles e elas. É o meu fim nas Cenas da Vida Portuguesa. Lisboa era agora a sua necessidade, o seu ideal, a sua mania. Pensava que lá, na Capital, as suas faculdades se desenvolveriam prodigiosamente, como certas plantas raras que só medram em terrenos ricos; aí encontraria decerto as glórias do coração em amores aristocráticos, e, discutido nos folhetins, recitado nos teatros, muito alto na hierarquia das letras, poderia talvez extrair uma fortuna dos cofres dos editores! Eça de Queirós



Fête de la folie dans la sentine de tous les vices — A Capital! d’Eça de Queirós Maria Cristina Pais Simon1

Commencée en 1877, laissée de côté et plusieurs fois reprise jusqu’aux années 80, A Capital! ne sera publiée qu’en 1925 à titre posthume. Eça de Queirós, occupé à d’autres œuvres, O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, O Conde de Abranhos, Os Maias, la considérait comme un mauvais roman besogneux. Ce texte qui comportait le sous-titre Começos duma Carreira, devait s’intégrer dans la série Cenas Portuguesas, un vaste projet littéraire comprenant une douzaine d’œuvres qui seraient, suivant les exigences de l’école réaliste, une “ violente condamnation de la société constitutionnelle ”, comme l’auteur le confie à Teófilo Braga dans une lettre du 28 novembre 1878: A minha ambição seria pintar a Sociedade portuguesa, tal como a fez o Constitucionalismo desde 1830 — e mostrar-lhes, como num espelho, que triste país eles formam — eles e elas. É o meu fim nas Cenas da Vida Portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso. (Queirós, 1983: I, 111).

Dans ce roman Eça s’attaque aux tares sociales en tous genres, mais il vise surtout les cercles littéraires et journalistiques, tâche délicate et compromettante: “ . . . receio que se repitam as acusações 1

Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3 / CREPAL.


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Fête de la folie dans la sentine de tous les vices — A Capital! d’Eça de Queirós

de escândalo, desta vez mais sérias, porque não se trata de mulheres, mas são pinturas um pouco cruéis da vida literária em Lisboa ( jornalistas, artistas, etc.) ” (Margato, 1997: 98). Le projet d’Eça dans Cenas portuguesas n’est pas bien original car, comme les intellectuels de sa génération, il met en cause la société et le pays pour les arracher à leur torpeur et à leur retard: “ ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada ”, disait Antero (Margato, 1997: 97). Le sujet d’A Capital!, qui rappelle par bien des aspects le roman de formation, n’est pas non plus nouveau en littérature; en effet, le protagoniste qui part à la conquête de Lisbonne a beaucoup en commun avec Rastignac, Lucien de Rubempré, ou Maurício, le héros de Memórias dum Doido de Lopes de Mendonça. Tous ces personnages, guidés par leur passion et par une grande ambition sociale, se perdront dans la grande ville qui émerge au XIXe siècle; pour A Capital! le cadre est le Fontisme fragilisé par les crises financières des années 70, c’est la société fin de siècle agitée par le républicanisme socialisant, par l’anarchisme et par les mouvements ouvriers. Le carnaval se présente dans le roman comme une métaphore de la capitale, c’est à travers la fête de la folie que l’espace citadin, dans sa dimension sociale, économique, politique, culturelle, se donne à lire. Afin de procéder à cette lecture nous analyserons d’abord la trajectoire du protagoniste à Lisbonne. Le point culminant de ce parcours étant le carnaval, nous étudierons ensuite les aspects que prend la fête, et la manière dont Eça de Queirós les exploite dans cette satire. C’est donc l’histoire du jeune Corvelo à qui sa mère a donné le nom d’Artur en souvenir de ses années de harpe et des preux chevaliers d’antan. Pâle et émotif, animé par la “ grâce nerveuse d’une fille ”2 , Artur lit, en plus des nouvelles de la Biblioteca das Damas, Filinto Elísio, Herculano, Chateaubriand, Lamartine. . . et se meurt d’amour pour Joaninha de Viagens na Minha Terra. Comme tous les 2 José Maria de EÇA de QUEIRÓS (2003). A Capital! Nota prefacial, Introdução e Notas do texto Carlos Reis. Lisboa: Ed. Presença. P. 25, 26. Toutes les références à l’œuvre renvoient à cette édition.

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jeunes gens bien nés, Artur va faire son droit à Coimbra, il y intègre le Cenáculo, un cercle de jeunes romantiques révolutionnaires qui lui font connaître Michelet, Quinet, Renan, Taine, Proudhon, Littré, Comte, Spencer, mais aussi Hugo, Musset, Gautier, Vigny, Byron. . . A Coimbra, où il mène une vie dissolue, Artur n’obtient pas ses grades de bacharel, ce qui lui permettrait de suivre la voie tracée d’avance aux bourgeois respectables; il y emprunte, au contraire, le chemin parallèle de l’illusion et de la chimère, comme le veut son âme romantique, et il décide de consacrer sa vie à la poésie et à de justes causes. Mardi gras marque la fin de ce séjour et de la première étape du parcours d’Artur: la femme qu’il entretient le trahit pendant le carnaval, son père meurt; il boude la fête et rentre à Ovar. Dans un deuxième temps, ruiné et déçu, le personnage trouve refuge à Oliveira de Azeméis chez ses tantes Ricardina et Sabina qui, pragmatiques, lui rappellent que la poésie ne nourrit son homme. Dans cette province qu’il considère comme le “ pénitentier de l’esprit ”: “ A Província é a penitenciária do Espírito ”, Artur rêve de la capitale, “ gare centrale de l’intelligence ”: “ Lisboa é a estação central da Inteligência ” (p. 113). L’approche de Lisbonne se fait en deux temps; il y a d’abord la ville imaginée et idéalisée par Artur dont les repères sont la Comédie Humaine de Balzac, puis la vraie ville, la ville vécue, hostile, sombre, rongée par la misère et par le vice. Dans cette partie du roman, afin de bien montrer toute la négativité du monde dans lequel se perd le personnage, Eça s’attache à la description des milieux influents d’où sont issus les piliers de la société qui ne font pourtant que bafouer ses valeurs et transgresser ses principes. En effet, le jeune provincial est la proie idéale des anges du mal qui hantent la capitale, journalistes partisans, politiques véreux, mondains oisifs et malhonnêtes; Amores dum poeta et Esmaltes e Jóias, les œuvres qui devaient le consacrer, ne leur inspirent que mépris et sarcasme: . . . é nesse estilo que escrevem os génios que gingam pelo Chiado. . . Mas, os génios do Chiado têm por missão histórica e social fazer rir [. . . ] Álvaros, poetas líricos, duquesas sentiwww.lusosofia.net


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mentais, cemitérios, interjeições, suspiros ao luar — tudo isso é doentio. Cure-se. (p. 82)

Avide de vengeance, Artur s’engage alors dans le militantisme républicain; il veut être un un nouveau Gambetta, un autre Garibaldi, mais il est seulement exclu du club et rossé en plein Martinho. Il ne finit donc pas en haut de l’affiche, mais acoquiné avec une prostituée espagnole de bas étage, dans les beuveries de Dafundo, fumant des cigares de la marque “ Intimidades de carnaval ”. Dans ce roman répétitif dans sa structure, dans ses personnages, dans les sujets abordés, le séjour à Lisbonne se termine de la même façon que le passage par Coimbra et il a la même fonction satirique et moralisatrice: le carnaval arrive, le personnage est abandonné par son andalouse et tante Sabina, le seul être auquel il est réellement attaché, est à l’agonie et voudrait le revoir une dernière fois. Perdu et n’ayant rien retenu de la leçon, Artur envisage alors les différentes orientations qu’il pourrait donner à son existence: poursuivre ses rêves de gloire en se consacrant de nouveau à l’art; se suicider, ce qui le mettrait sur un pied d’égalité avec Chatterton et Gérard de Nerval; se précipiter au chevet de sa tante, c’est-à-dire réintégrer l’ordre familial et faire passer le devoir avant les rêves. Le roman pourrait se terminer ainsi et l’écrivain aurait rempli le contrat annoncé dans le titre initialement prévu: A Capital! — Começos de uma carreira. De façon caricaturale, Eça aurait, comme d’autres auteurs de son époque, dénoncé les ravages du romantisme qui perdurait3 , le retard et la corruption du pays dans le dernier quart du XIXe siècle, ce qui avait déjà fait l’objet des Conférences Démocratiques du Casino en 1871 et sera à nouveau repris dans la présentation d’As Farpas. Or, le roman s’intitule finalement A Capital!, sans le sous-titre, c’est-à-dire que le propos de l’auteur est surtout de rendre compte de Lisbonne et du Portugal fin de siècle dont il parle ainsi: 3

A partir des années 60, les jeunes intellectuels vont s’opposer à leurs aînés, défenseurs de l’école romantique. La Questão Coimbrã constitue la première étape de cette querelle; aux hommes de lettres qui dans leurs textes fustigent une esthétique dépassée, s’ajoutent les journaux humoristiques de Rafael Bordalo Pinheiro: O Calcanhar de Aquiles (1870), A Lanterna Mágica (1875), O António Maria (1879).

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A Península Ibérica parece que herdou uma nevrose — que em Espanha se tornou em génio raiado de loucura, e em Portugal se tornou em imbecilidade misturada de velhacaria. Junte a isto (para Portugal) as influências hereditárias duma sífilis genérica, e explica muita coisa do país. (p. 82)

En effet, malgré le développement dû au Fontisme, à partir des années 60 le pays s’enfonce dans une forte crise économique, sociale et idéologique qui sera à l’origine d’une sérieuse mise en cause de la monarchie constitutionnelle et d’un terrible sentiment de décadence. Tout cela explique la suite qu’Eça choisit de donner à son roman; une suite que la logique interne de l’œuvre n’imposait pas et qui aurait pu être tout autre. Il s’agit d’une longue fête de carnaval qui dure du dimanche gras au mercredi des cendres et qui, du point de vue littéraire, se présente comme un morceau de bravoure qui compense la platitude du reste du roman; mais il est vrai aussi que dans cette Lisbonne fin de siècle, maussade et déprimante, on se tourne volontiers vers les plaisirs de toutes les sortes, comme le démontre José Augusto França dans son étude sur le romantisme au Portugal (França, 1975: 558). Inscrit dans le temps religieux comme une période cathartique, une parenthèse de licence, le carnaval apparaît dans l’œuvre comme une dernière tentation du diable, incarné par Melchior, qui rattrape Artur au moment où il s’apprête à courir au chevet de tante Sabina: “ Fazemos um jantarinho chic, carregamo-nos, e viva a folia. ”, lui dit le journaliste en alléguant que “ le retour d’Artur pourrait tuer la pauvre vieille ”; voilà qui rassure le poète “ qui avait besoin d’une raison plus forte, d’ordre moral ” (p. 285). Après avoir bu abondamment “ pour se mettre à la hauteur ” (p. 285), le personnage s’embarque sur une véritable “ nef des fous ” qui prend l’aspect du bal du casino dont les codes et la fréquentation vont constituer le point culminant de ce roman satirique. Le cadre et le contexte annoncés dès les premiers vers de La Nef des fous de Sébastien Brant, satire morale publiée à Bâle le jour du carnaval 1494, correspondent parfaitement à la situation du protagoniste d’A Capital!, ce qui montre que la folie et le masque dépassent le carnaval, contre lequel le texte met en garde, et sont communs aux www.lusosofia.net


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hommes de tous les temps: L’idée que carnaval Est fait pour s’amuser Est invention du diable Ou bien de la folie. Quand on devrait songer Au salut de son âme, Les fous entrent en scène Et veulent vous bénir Par leurs festivités. (Brant, 1979: 67)

À Lisbonne, le bal du Casino est, comme le Baile Nacional, le Salão de Apolo, le Baile do Teatro Françês ou la Floresta Egípcia, un temple de la folie, du cancan et de la prostitution, surtout pendant le carnaval, comme le montre Andrade Ferreira. La description des lieux, le déroulement de la fête, la fréquentation, l’ambiance et même les images, les métaphores et bon nombre de termes utilisés par Andrade Ferreira sont fidèlement repris par Eça dans ses descriptions de la fête de la folie. Au bal du casino tout ce qui est socialement, moralement, religieusement réprouvé devient règle et norme; il ne s’agit pas d’une parenthèse ou d’un jeu, mais d’une bonne occasion pour donner libre cours à sa vraie nature et pour jouer son propre drame. Ce qui connote d’emblée cette fête c’est la société qui la fréquente, ce qui en dit long sur le chemin parcouru par Artur depuis son arrivée dans la capitale. D’un côté, un public composé de miséreux: . . . dominós entreabertos deixavam ver calças ignóbeis; toda a prostituição barata mostrava as formas, duma gordura balofa, ou duma magreza esfomeada; havia vivandeiras, noites com véus de crepe, pajens, outros cobertos de vestuários confusos, duma pelintrice triste: nos ombros decotados viam-se mordeduras de pulgas. (p. 287)

De l’autre côté, des prostituées françaises, danseuses de cancan; ce sont elles qui mènent la fête dantesque ou fellinienne, avant l’heure, par laquelle Artur va être happé:

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. . . eram quatro, e destacavam pelos seus cabelos loiros, ou cor de manteiga: uma baixinha e roliça, vestida de marinheiro, com o chapéu de oleado para a nuca, o pescoço papudo à mostra, os quadris enormes apertados, a estalar numa calça branca, saracoteava-se, com movimentos que lhe faziam saltar, na camisa azul, os seios como odres mal cheios: outra, leve, esguia, endemoninhada, vestida à húngara, pulava com grandes gestos de magricela, batendo furiosamente o soalho com os altos tacões das suas botas orladas de peles: a que estava mascarada de vivandeira, parecia pesada, velha, meneava-se por dever, gravemente: — e a mais admirada era a bacante, uma grande loira, de formas soberbas. (p. 286)

Vu le contexte social et temporel dans lequel s’insère le roman, la présence de la prostitution donne clairement le ton de la fête. En effet, et comme le démontre J. M. Andrade Ferreira dans O Baile Nacional e os seus Mysterios. . . , les codes puritains qui régissent la société portugaise de l’époque considèrent la prostitution comme une menace qui pèse sur la famille bourgeoise où la femme est astreinte à un comportement qui la rend plutôt réfrigérante. Des préoccupations d’ordre moral ainsi que les théories hygiénistes, qui voient la prostitution comme une dégénérescence de nature organique, vont être à l’origine d’une réglementation stricte et d’une répression sévère de la part de la police sanitaire qui ne la tolère que dans des espaces circonscrits, comme l’écrit Machado Pais dans A Prostituição e a Lisboa Boémia do Século XIX aos Inícios do Século XX. Il est courant, comme le montrent les auteurs cités que la prostitution s’affiche sous un masque païen qui indique tout ce qui la sépare de la société conventionnelle; c’est un monde de bacchantes, de Vénus, de Circé, de “ filles d’Apollon ”, d’ “ épouses de Vulcain ”, de “ prêtresses de Thalie ”. . . (Pais, 1985: 60). Dans A Capital! le carnaval est annoncé comme une saturnale (p. 285) dont la figure principale est la bacchante; à l’instar de la fête païenne, il fait la part belle à la folie, au renversement de l’ordre et des valeurs communément admis, aux mangeailles, à l’alcool, à la danse, à la violence et aux débordements, notamment sexuels. Il s’inscrit donc dans la déviance, dans le démoniaque, ce qui nous ramène de nouveau à La Nef des Fous où l’on peut lire que “ le diable est dans le jeu ” et qu’il provoque “ débauche d’inconduite ” (Fabre, 1992: 60). Mais www.lusosofia.net


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le carnaval du casino rappelle surtout les mystères en l’honneur de Dionysos, le Délirant, le Bruissant et les bacchanales romaines, fêtes orgiaques nocturnes conduites par les bacchantes, les “ furieuses ”, les “ impétueuses ” qui, la poitrine dénudée, couvertes de peaux de tigre4 et armées du thyrse, se livraient à des danses et à des transports désordonnés qui les plongeaient dans l’extase mystique et les rendaient redoutables. La bacchante du casino, pourvue des mêmes attributs, entre en transe au cours d’un cancan frénétique qui l’entraîne progressivement dans un délire hystérique (p. 287); le rapprochement fait par Lévêque et Séchan entre le comportement des prêtresses de Dionysos et la description médicale de l’hystérie convient tout à fait à cette danseuse: Par bien des traits, le délire des Bacchantes, avec les mouvements convulsifs et spasmodiques, la flexion du corps en arrière, le renversement et l’agitation de la nuque, rappelle des affections névropathiques [. . . ] ce qui est proprement l’enthousiasme des anciens, c’est-à-dire la possession. (Lévêque, Séchan, 1966: 292)

Le délire bachique de la bacchante, de plus en plus intense et communicatif, transforme le divertissement en pure violence, en bestialité, en débauche; les fêtards perdent peu à peu le sens du jeu, n’obéissent plus qu’à leurs instincts et qu’à leurs besoins physiologiques primaires et la danseuse elle-même se change en bête féroce: sentada num mocho, com as pernas magníficas, a sua pele de tigre caindo sobre a linha dos rins [. . . ] os seus olhos eram dum pardo escuro, grandes, duros; os lábios eram tão vermelhos que pareciam sanguinolentos: e havia nos seus membros fortes, nervosos, alguma coisa de ondulado e vibrante que lembrava o movimento dum tigre (p. 288)

Entraînés par la ménade, les noceurs sont pris de mouvements convulsifs, possédés à leur tour. “ Perneemos! ” et “ pernadas ”, plusieurs fois répétés, mettent l’accent sur la fureur par l’évocation de 4 Dans la mythologie grecque, les félins, symboles de puissance et de férocité, sont associés à Dionysos. Des animaux menaçants apparaissent également dans les textes évoquant la déchéance de l’humanité; c’est le cas dans la légende babylonienne et dans l’Apocalypse avec le dragon à sept têtes, ou encore dans L’Enfer de Dante, avec la lonza, le loup, le lion, le chien.

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mouvements de jambes saccadés et violents; ces termes sont renforcés par d’autres tout aussi récurrents qui expriment la démence, l’influence démoniaque: “ furiosamente ” (furieusement), “ doido ” (fou), “ estontear ” (étourdir), “ bestialidade ” (bestialité), “ endemoninhada ” (possédée du démon), “ patear ” (piétiner), “ debater-se ” (se débattre), “ demência ” (démence), “ enfurecer ” (entrer en fureur), (p. 287-291) . . . jusqu’à l’épilepsie: “ [o] bombeiro [. . . ] sacudia os braços como um boneco epiléptico. . . ” (“ le pompier [. . . ] agitait les bras comme un pantin épileptique ”, p. 287). L’hystérie collective est entretenue par le son strident des instruments à vent: flûtes, clarinettes et autres trompettes apocalyptiques, rageusement dirigées par le maestro (p. 293). A l’ “ instrumentation grossière ” (p. 286) se mêlent les voix nasales et rauques des prostituées et les bruits inquiétants de la foule en délire: “ vozearia ”, “ algazarra ”, “ berros ” (brouhaha, tintamarre, hurlements, p. 287, 288). L’alcool, indissociable du carnaval et des cultes dionysiaques, contribue ici à souligner le caractère décadent de la fête comme le montre l’adjectif “ avinhado ”, très souvent repris, et dont le sens passif, “ être pris de vin, aviné ”, traduit bien la perte de contrôle de soi, la possession, une fois de plus. La licence devient dès lors totale, la préoccupation de chacun n’étant plus que d’assouvir son appétit charnel, c’est d’ailleurs le mot d’ordre de la bacchante abreuvée d’alcool: “ Mas o que ela queria agora, declarou, era a orgia, o vício, o crime! ” (p. 291), et le bal du casino, où plane une “ odeur de femelle ” (“ cheiro de fêmea ”, p. 288), devient l’exutoire des “ passions morbides de bordel ” ( p. 287), au vu de tous, tout sentiment de pudeur étant perdu. La lubricité et l’ivresse ravalent les hommes au rang d’animaux qui se bagarrent pour leur proie: As mesas do botequim estavam cheias, numa algazarra: dominós desmascarados absorviam cabazes, grogs [. . . ] bengalas furiosas nos mármores das mesas reclamavam álcool: sem pudor, pares amancebados da noite, beijocavam-se, palpavam-se [. . . ] Em redor, a algaravia turdia: havia copos quebrados; uma altercação pôs a uma mesa um delírio de berros; dois indivíduos engalfinhados rolaram no chão: uma mulher gania. (p. 288)

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Jamais ces êtres dont la lubricité dilate les visages, et qui suffoquent dans le salon embrasé, poussiéreux et embaumé de sueur, ne profèrent des paroles humaines, ils s’expriment pas des glapissements, par des hurlements et par des grognements: “ ganir ”, “ uivar ”, “ rosnar ” (glapir, hurler, grogner) reviennent dans le texte pour désigner ces chiens, ces loups et ces porcs, animaux toujours associés au mal, à l’inquiétant, à la mort et aux enfers dans les mythologies et dans les grands textes fondateurs. Machado Pais dans son étude sur la bohème lisboète au XIXe siècle insiste sur le fait qu’il n’y avait pas vraiment de coupure entre les milieux marginaux et la société bien établie, et que la radicalité de chaque groupe ne faisait que conforter le groupe opposé. De plus, la distribution de l’espace citadin n’intégrait pas la différence sociale et culturelle et le malfamé Bairro Alto, par exemple, abritait de très nombreux palais appartenant à la haute noblesse ainsi que l’imprimerie et le journalisme (Pais, 1985: 53; Ratazzi, 1878: 29)5 . Les milieux de la prostitution, du fado, des taureaux, attiraient les hommes de toutes les classes et certains aristocrates marialvas sont restés célèbres. Eça évoque, donc, la participation des bourgeois respectables au carnaval du casino et il remarque surtout les hommes politiques de la majorité; cependant, en insistant sur leurs mauvaises mœurs, il dénonce moins une incartade masculine, socialement admise, que le vice institutionnalisé. Le pouvoir dévastateur du carnaval atteint son point culminant lorsqu’Artur finit par être entraîné dans le tourbillon de la fête, ce qui est la dernière étape de son déclin. L’adhésion du “ poète de l’idéal ” aux réjouissances de la “ tanière de la luxure ”, selon l’expression ironique d’un député au “ cerveau abruti ” (p. 288), se fait en plusieurs temps, à mesure que l’atmosphère de folie et de débauche s’intensifie et réussit à ébranler les dernières barrières morales qui résistaient encore chez le personnage. Après un premier mouvement de recul qui lui fait quitter le salon, Artur, grisé par les vapeurs d’alcool, par la nudité et par “ l’odeur de femelle ”, cède à l’envie 5

La princesse Rattazzi, évoquant non seulement le goût des Portugais pour Offenbach, mais aussi le climat de débauche qui régnait dans la capitale, prétendait que les carillons des églises de Lisbonne appelaient à la prière sur l’air de Vénus la Cascadeuse.

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de se déguiser et de boire. Dans un deuxième temps, le journaliste Melchior, l’ange noir qui le guide depuis son arrivée dans la capitale, le présente à la bacchante et les fantasmes du poète romantique se superposent, une fois de plus, à la réalité: . . . o seu vestuário pagão excitava-o: vinham vagas ideias de mitologias clássicas: pensava em Baco, levado num carro atrelado de tigres: e nos mistérios dos bosques sagrados, onde bacantes, por um céu de tempestade, se apossam dum poeta de membros de efebo, e o deixam exausto, sob carícias devoradoras, no irritante solo de tamborins, sob os bosques de cedros. (p. 288)

A partir de ce moment Artur devient, non pas un jeune éphèbe ravi par une ménade envoûtante, mais un pantin aux mains d’une catin ivre; pris lui-même de boisson, hurlant, ayant désormais perdu “ le sentiment réel de la vie, du lieu où il se trouvait ” (“ o sentimento real da vida, do lugar em que estava ”, p. 289), il se livre à la débauche carnavalesque: Ele precipitou-se — e como a orquestra rompera a polka, lançaram-se na sala, enlaçados. Era a primeira vez que Artur dançava. A bacante, bêbeda, indiferente ao compasso, pulava ao acaso, com grandes pernadas, arrastando-o, levantando-o quase do chão, colando-o contra si, soprando alto, com o olhar doido. Artur agarrava-se a ela, todo excitado de desejo: a sala parecia-lhe oscilar vagamente: as cabeças dos pares, — guedelhas, capuzes de dominós, capacetes, chapéus de camponesas, — agitando-se num ritmo pulante, estonteavam-no. — Basta, basta, dizia. Ela não escutava, [. . . ] ia, em reviravoltas furiosas, pateando o chão sonoro. Artur julgava tê-la toda nua nos braços — e à bestialidade do desejo, misturando-se o estonteamento das voltas — sentia-se desmaiar [. . . ] Pararam, arquejantes [. . . ] Ele atirou-se de joelhos, disse-lhe frases líricas [. . . ] A bacante que misturava cognac no champagne, tinha uma loquacidade doida: cantou cançonetas obscenas, declarou-se republicana, deblaterou contra a religião [. . . ] subitamente calma, começou a comer, com uma gula afectada, risadas sem motivo, metendo os dedos no molho, limpando-os aos cabelos de Artur. (p. 290, 291) www.lusosofia.net


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Avant de tomber pour la troisième fois, Artur revient à Azeméis par la pensée et imagine l’enterrement de tante Sabina, mais il est trop tard, si l’on en croit l’auteur de La Nef des fous: Le diable est dans le jeu! Au lieu de rechercher Le salut de son âme, On danse éperdument, Mené par la folie. (Brant, 1979: 67)

En effet, à ce moment précis, l’orchestre entame, dans un chaos apocalyptique, le très symbolique Orphée aux enfers d’Offenbach: . . . e o can-can electrizante de Orphée aux Enfers fez-lhe reviver a excitação. [. . . ] Artur, diante da bacante debatia-se furiosamente: o álcool dava-lhe a raiva dos movimentos convulsivos; [. . . ] e com a face lívida, manchada, suada, torcia-se numa demência, soltando uns ganidos. Mas ao som estridente do can-can, o galope começou: era uma confusão amarfanhada de corpos engalfinhados, arremessando-se, desengonçadamente, com pulos arquejantes, patadas desesperadas no soalho: uma poeirada sufocava [. . . ] e turcos, Aquiles, dominós, pastorinhos, fadistas, prostitutas, bêbedos cambaleantes, iam num tropel de troça esbandalhado, com um desengonçado demente, num turbilhão circular, — enquanto o ponteiro negro já marcava, gravemente, a primeira hora triste de quarta-feira de cinzas. (p. 292)

Ce tourbillon circulaire qui entraîne Artur et les fêtards décomposés, pourrait bien avoir quelque rapport avec les cercles infernaux dantesques, d’autant plus profonds et suffocants que le péché est grand. Au mercredi des cendres, le protagoniste se réveille dans un lupanar immonde aux côtés d’une fille triste au corps usé, malade et sale; le temps est au repentir et à la pénitence et les paysages du Mondego, d’Azeméis et d’Ovar se présentent à son esprit sous des formes édéniques (p. 293). Au moment de s’enfuir, survient un incident à valeur de sentence ou de condamnation: Artur n’a plus son chapeau, symbole de sa dignité et de son statut social, il l’a égaré pendant le carnaval; c’est donc coiffé du couvre-chef de la prostituée, puant et déformé par les piétinements des danseurs du casino, www.clepul.eu


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qu’il quitte le bordel pour aller s’associer à la repentance de Lisbonne parcourue par la procession des cendres: . . . teve como a sensação funerária, duma grande penitência — espalhada na cidade, ainda quente do deboche do Entrudo [. . . ] sentiu o desejo de se entristecer também, de se misturar ao arrependimento da cidade, de receber de perto as emanações expiatórias dos andores e das tochas. (p. 297)

“Convalescent de la vie” (p. 314), Artur fera son carême à Azeméis, mais comme le prédit La Nef des fous: Le bonnet à grelots Apporte angoisse et peine, Mais jamais de repos, Même en temps de carême Et en semaine sainte, Il continue toujours A coiffer bien des têtes. (Brant, 1979: 67)

En effet, nul ne revient de l’enfer auquel il a été condamné et au moment de se recueillir sur la tombe de Sabina, Artur, hanté par les “ visions lascives ” (p. 320) de la capitale, ne trouve plus les mots pour parler à Dieu. Au terme de ce travail nous concluons que le carnaval de A Capital! est l’expression, volontairement grossière et caricaturale, de l’engourdissement national, du déclin, qui a tant agacé les intellectuels portugais de la seconde moitié du XIXe siècle. Le carnaval s’inscrit ici dans une logique de démolition propre aux sociétés crépusculaires, ce qui permet de le rapprocher d’autres grandes fêtes de la folie; pas seulement des fêtes païennes, mais par exemple des carnavals de Venise à la fin du XVIIIe siècle, ou de ceux de Paris pendant la monarchie de Juillet. La dénonciation de la décadence repose ainsi sur une amplification du négatif, du grotesque et du vil, jusqu’au tragique, et sur un processus de déconstruction qui érige le protagoniste, milord l’Arsouille lusitanien, en anti héros, et identifie Lisbonne à Babylone, l’ “ impudique ”, la “ grande prostituée ” de l’Apocalypse. www.lusosofia.net


Bibliografia Brant, Sébastien de (1979). La Nef des fous. Trad. Madeleine Horst. Paris: Seghers. Érasme (1964). Éloge de la folie. Trad. Pierre de Nolhac. Paris: GF Flammarion. Fabre, Daniel (1992). Carnaval ou la fête à l’envers. Paris: Gallimard. França, José Augusto (1975). Le Romantisme au Portugal. Paris: Ed. Klincksieck. Ferreira, Andrade J. M. (1860). O Baile Nacional e seus Mysterios, Physiologia das Lorettes de Lisboa e dos seus Amantes. Lisboa: Typographia Universal. Lévêque, Pierre; Séchan, Louis (1966). Les Grandes divinités de la Grèce. Paris: Ed. de Boccard. Margato, Isabel (1997). “ A (i)legibilidade de Lisboa n’A Capital de Eça de Queirós ”. In Semear. Rio de Janeiro. Vol. 1. N.º 1. Pais, Machado (1985). A Prostituição e a Lisboa Boémia do Século XIX aos Inícios do Século XX. Lisboa: Ed. Querco. Queirós, José Maria de Eça de (2003). A Capital!. Nota prefacial, Introdução e Notas de Carlos Reis. Lisboa: Ed. Presença. ________________________ (1893). Correspondência. Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda. Vol. I. Rattazzi, Maria (1878). Portugal à vol d’oiseau. Paris: Ed. A. Degorce-Cadot.


Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas — e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quase um antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Eça de Queirós



Ecos d’ As Farpas n’ Os Maias: laboratório de uma escrita niilista Miguel Gonçalves1

“Portugal é um povo triste, até mesmo quando sorri. A sua literatura, inclusive a sua literatura cómica e jocosa é uma literatura triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida.” Miguel de Unamuno, Por Terras de Portugal e de Espanha “Isto é um país impossível” Eça de Queirós, Os Maias

Introdução Fruto de uma parceria com o amigo de longa data, Ramalho Ortigão, As Farpas em que Eça de Queirós colaborou, entre 1871 e 1872, marcaram uma época, não apenas pela sua originalidade estilística, mas também pela contundência das críticas dirigidas, em especial, à burguesia e às elites que se instalaram no poder em Portugal após a Regeneração de 1851. Contudo, mais importante do que descrever a sua natureza — “um conjunto de folhetos, de publicação 1

Universidade Nova de Lisboa.


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Ecos d’ As Farpas n’ Os Maias: laboratório de uma escrita niilista

periódica”, que faziam “a crítica dos costumes da sociedade portuguesa, com o intuito de a espicaçar, levando-a a corrigir-se” — importa sublinhar, como sugere Carlos Reis, que, nestas publicações, “Eça como que prepara, em regime de “laboratório” pré-ficcional, as suas obras realistas e naturalistas”2 do futuro, designadamente, aquela que mais nos interessa para a presente reflexão, e que seria considerada, posteriormente, por um dos biógrafos do romancista, João Gaspar Simões, como a mais perfeita obra literária portuguesa depois d’Os Lusíadas — falamos, obviamente, d’Os Maias. Com efeito, n’As Farpas encontramos as grandes questões sociais da segunda metade do século XIX, trabalhadas em termos que anunciam não apenas este, mas grande parte dos romances que estão por vir. Temas como o peso institucional excessivo e perversor da Igreja na sociedade, o parlamentarismo, a literatura, o teatro, a educação, a condição da mulher, o adultério ou o jornalismo — em suma, o país inteiro — assumem subida importância numa obra que, tal como o subtítulo “Episódios da Vida Romântica” deixa antever, tinha no Romantismo a raiz de todos os males da sociedade do seu tempo. Seria esta ( juntamente com o estado da nação) a grande obsessão de Eça ao longo da vida, visível quer em textos ficcionais, quer em crónicas de natureza jornalística. Leia-se o que a este respeito escreveu Maria Filomena Mónica: “Mais do que outro tema, o que, desde sempre, o preocupou foi a questão do atraso português, posição partilhada com os amigos que, com ele, tinham frequentado a Universidade de Coimbra. Ao levantarem os olhos dos livros, ficaram horrorizados com o país que os rodeava. Segundo eles, entre a indiferença do povo, a corrupção dos políticos e a opressão da Igreja, Portugal agonizava”3

Constatamos, assim, que sempre fora Portugal e a questão identitária que estiveram em causa. Por trás do tom irónico, muitas vezes cómico das suas crónicas, encontramos n’As Farpas um programa, uma agenda reformista, muito na linha do que haviam sido as denominadas Conferências do Casino. Como refere João Medina, as 2 3

Carlos Reis, Eça de Queirós, Lisboa: Edições 70, 2009, p. 16. Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Lisboa: Quetzal, 2001, p. 236. www.clepul.eu


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críticas presentes n’As Farpas abarcavam toda a sociedade, não deixavam nada nem ninguém de fora, assemelhando-se em tudo a “um verdadeiro tratado de sociologia” 4 : . . . as suas F. constituem um sistemático e quase que completo curso de sociologia do Portugal da Regeneração, observado de alto a baixo, nas câmaras e nas ruas, nos mercados e nas prisões, nos gabinetes da administração e nas praias onde labutam e naufragam pescadores, nas salas domésticas onde se entediam as mulheres e tomam chá com torradas as famílias, nas igrejas onde rezam beatas ou se realizam eleições, nos teatros onde se confeccionam gazetas sem ideias nem gramática, nos clubes políticos onde se toma a péssima retórica republicana por promessas de Dies irae vindouros e messianicamente redentores, nas escolas onde se ensina por manuais onde o psitacismo e a estupidez se conjugam para esterilizar um País onde é já aterradora a taxa de analfabetos, nos campos onde os trabalhadores vivem mal e a agricultura definha, nas fábricas onde vegeta um operário que sonha com a emigração para o Brasil. . . 5

Com efeito, muitas das suas preocupações presentes n’As Farpas — e que têm necessariamente que ver com o atraso endémico de Portugal em relação à Europa civilizada — seriam transportadas para as suas obras literárias, sobretudo, Os Maias, questão que procuraremos demonstrar no decorrer da presente reflexão. Assim, ao longo das próximas páginas, veremos que as críticas e as ideias de Eça de Queirós acerca de Portugal e das suas instituições, isto é, o que ele observava à sua volta e o que pretendia para o país, desde as crónicas em que colaborou com Ramalho Ortigão até ao seu último romance publicado em vida, permaneceram essencialmente as mesmas, mudando apenas no tom e na forma em que eram proferidas. Por outras palavras, do ponto de vista ideológico, e apesar dos quase vinte anos que separam as duas obras, não há muito de diferente entre elas, exceto o tom pessimista que caracteriza esta última (sobretudo no que à regeneração da pátria diz 4

João Medina, Reler Eça de Queirós — das Farpas aos Maias, Lisboa: Livros Horizonte, 2000, p. 51. 5 Idem, ibidem, p. 54.

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respeito), e a questão formal, decorrente da natural evolução literária de um escritor polifacetado — responsável por uma produção literária que pode ser distribuída por três fases — e que sempre se revelou muito atento à evolução da cultura europeia, o que resultou num subtil mas progressivo afastamento da sua escrita em relação às teorias positivistas e naturalistas que caracterizaram As Farpas. Deste modo, e visando estabelecer um diálogo entre os géneros e obras supracitados, começaremos por analisar, no primeiro capítulo, o país que se encontra retratado em ambos, isto é, não tanto o país real, mas aquele que é visto pelo monóculo de Eça6 , ao qual se ligam, em nossa opinião, as ideias de patriotismo e provincianismo, ambas presentes no capítulo seguinte. No terceiro capítulo, abordaremos a incontornável questão do Romantismo, presente em vários dos setores da sociedade portuguesa, nomeadamente, na educação, concluindo com uma breve reflexão sobre o conceito de Finis Patriae, visível sobretudo naquele que é para a generalidade da crítica o romance do desencanto e da desistência: Os Maias.

Caracterização de “um sítio” “O nosso sítio é Portugal. Não é uma nação, não é um país. Não é uma nacionalidade, não é uma pátria; mas é um sítio. Já não é mau.” Eça de Queirós, As Farpas

Portugal e o seu atraso cultural em relação aos grandes centros de produção europeia sempre ocuparam posição de destaque no pensamento e obra queirosianos. Independentemente dos avanços 6

Refere Maria Filomena Mónica que, apesar de imensamente patriota, Eça nunca compreendeu verdadeiramente o seu país, deixando para a posteridade uma imagem de atraso civilizacional que não corresponde à verdade: “para muita gente, o século XIX é o de Eça, em especial o de Os Maias. Tal é a força do mundo que ele criou que vai ser muito dif ícil, se é que alguma vez se conseguirá, mudar esta imagem. Acontece que ela não é verdadeira.” Maria Filomena Mónica, op. cit., p. 237. www.clepul.eu


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tecnológicos ou das conquistas civilizacionais que a nação pudesse alcançar (e que inquestionavelmente alcançou, sobretudo, sob a administração de Fontes Pereira de Melo, na segunda metade do século XIX), a visão que o autor d’Os Maias tinha do país permaneceria, ao longo dos anos, profundamente negativa e praticamente inalterada. Assim, em Eça, encontramos um país comodista, sem vontade própria, incapaz de se modernizar ou de se reinventar, e que, para além não possuir um pensamento autónomo, no fundamental, copia sem criatividade, tal como copia nas roupas ou nos gestos, revelando um provincianismo bacoco ou uma “saloia macaqueação”, para usar as palavras de Fradique Mendes. Com efeito, a ideia de que Portugal não passava de “um país traduzido do francês em calão”7 é recorrente nas obras do romancista. Quer em textos ficcionais quer em cartas pessoais, Eça deixa bem claro o que pensa do estado da nação: os seus hábitos sociais, o seu modo de vida (representado pelas suas elites), os ambientes de doentia rotina — reveladores de ociosidade, superficialidade, corrupção, limitação intelectual e negação do progresso — demonstram uma sociedade mais apostada em parecer do que em ser, e que, procurando a todo o custo adotar os hábitos e os requintes de uma certa ideia de Europa, em detrimento da sua própria matriz cultural, caíra há muito no ridículo. É esta sociedade sem princípios ou valores próprios, em estado letárgico, deixada ao abandono, doente, incapaz (ou simplesmente sem vontade) de inverter a sua situação, descrente de si mesma e desacreditada, quer a nível interno quer a nível externo que encontramos na já famosa primeira crónica d’As Farpas, datada de Maio de 1871: O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na 7 Eça de Queirós, “O Francesismo” in Notas Contemporâneas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 147.

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imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés.8

A mesma decadência perpassa n’Os Maias, isto é, o mesmo marasmo intelectual, a mesma estagnação cultural, económica e social, visível, nomeadamente, no episódio do jantar no Hotel Central, onde as conversas focam os inúmeros problemas da sociedade portuguesa: o endémico endividamento português, a miserável condição das finanças públicas, bem como a inevitável e urgente revolução sociológica, cultural e política, da qual Ega demonstra ser o maior paladino: — Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola. (. . . ) Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos de fazer um esforço desesperado para viver. (. . . ) Sem monarquia, sem essa caterva de políticos, sem esse tortulho da inscrição, porque tudo desaparecia, estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilização como outrora. . . Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia. . . Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano!9

Como podemos depreender das palavras de Ega, a política era o espelho da nação. Ali tudo parecia acontecer às claras, sem o mínimo decoro: o rotativismo parlamentar e autárquico, as intrigas e os expedientes dos caciques, o descaramento dos trânsfugas, as manobras de bastidores dos partidos — em suma, a generalizada falta de honestidade e credibilidade de todo o sistema partidário —, tudo contribuíra para o “progresso da decadência” de que nos falavam As 8

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, As Farpas — Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, Cascais: Principia, 2004, p. 16. 9 Eça de Queirós, Os Maias, Porto: Porto Editora, s.d., cap. VI, pp. 167-168.

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Farpas. É interessante verificar que, também nesta matéria, a posição do jovem Eça não difere muito da do autor das Memórias dum Átomo, nomeadamente, quando refere que os partidos não passavam “de grupos organizados para a disputa do poder, perfeitamente homogéneos, de extração social e perfil ideológico comuns” 10 , e que, embora vivendo em permanente conflito, nada havia que os distinguisse entre eles: A luta partidária o que é? Nenhum partido se distingue dos outros pelas ideias que professa. As ideias são sempre as mesmas — poucas, pequenas, mas idênticas. Os partidos têm para as ideias de seus gastos um mealheiro comum sebento de velhice, de economia e de miséria. O que estabelece as distinções, o que assinala as diferenças, o que suscita os combates, e o que resolve as vitórias, é a intriga.11

Acusada de falta de classe ou nível, de ignorância (muitas vezes de estupidez), a política portuguesa e os seus intervenientes são, não raras vezes, satirizados e caricaturados até ao anedótico. Assim, e fazendo o paralelo com Os Maias, não é irrelevante que um político tão medíocre quanto experimentado, como o Conde de Gouvarinho, tivesse já passado por vários ministérios, ou que o imbecil Sousa Neto, que afirmara nunca ter ouvido falar de Proudhon, pondo mesmo em causa a existência de literatura em Inglaterra12 , seja, precisamente, “oficial superior da Instrução Pública”. Ainda n’Os Maias, encontramos outro episódio emblemático da crise do país, ao qual não poderá deixar de estar ligada a questão identitária. Referimo-nos ao episódio das corridas e à sua enorme carga simbólica. Nessa visão caricatural do provincianismo português, à qual se liga essa crise de identidade a que fizemos referência, 10

João Medina, op. cit., p. 56. Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, op. cit., p. 158. 12 Mais uma vez somos confrontados com as sinuosas relações entre a ficção e a realidade. Assim, não deixa de ser curioso que, apesar de se tratar de um episódio ficcional — um dos mais caricatos e emblemáticos da mediocridade e ignorância dos políticos portugueses —, encontremos uma situação análoga, vivida pelo próprio Eça: “Há alguns anos, um personagem, um político, um homem de Estado perguntava-me, com um ar de suficiência e superioridade: — Lá por Inglaterra também há alguma literatura?”. Eça de Queirós, “O Francesismo”, in Notas Contemporâneas, p. 159. 11

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encontramos o desesperado esfoço de cosmopolitização de uma nação que, ao promover um evento desportivo que nada tem a ver com a sua cultura, apenas se engana a si própria, como Afonso da Maia tão bem observa: O verdadeiro patriotismo, talvez — disse ele — seria, em lugar de corridas, fazer uma boa tourada. (. . . ) Cada raça possui o seu sport próprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, água fresca, e foguetes. . . 13

Inevitavelmente, o resultado final não podia ser outro que não o desastre completo, como o comprovam o desinteresse geral: “Um garoto ia apregoando desconsoladamente programas das corridas que ninguém comprava” 14 ; o espaço escolhido, completamente desajustado para o evento: “À entrada para o hipódromo, abertura escalavrada num muro de quintarola. . . ” 15 ; ou ainda os comportamentos desadequados dos concorrentes: “De repente, fora, houve um rebuliço, (. . . ). Era uma desordem! (. . . ) Porque o que havia naquele hipódromo era compadrice e ladroeira!” 16 ; em suma, o total desenquadramento do país em relação à Europa civilizada, o que vem apenas acentuar o caráter de fachada de uma sociedade mais interessada na aparência do que na essência: “Isto é um país que só suporta hortas e arraiais. . . Corridas, como muitas outras coisas civilizadas lá de fora, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre!” 17 . Por outras palavras, a falta de desportivismo, a ignorância do público relativamente ao que estava a assistir ou a apatia generalizada no ritual das apostas, constituem-se, acima de tudo, como elementos que têm como principal função demonstrar, mais uma vez, e de forma muito clara, que o Portugal da Regeneração — representado, sobretudo, pela aristocracia e burguesia lisboetas — não consegue manter por muito tempo a artificialidade que o caracteriza. Em vez da imagem de progresso desejada, 13 14 15 16 17

Idem, Os Maias, Cap. X, p. 308. Idem, ibidem, p. 312. Id., ibid., p. 313. Id., ibid., p. 324. Id., ibid., p. 326. www.clepul.eu


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a sua pose de país civilizado apenas deixa a descoberto a fachada de um país que, ao tentar enganar os outros, apenas se engana a si próprio, caindo, por isso mesmo, no ridículo. Como referia João da Ega: Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas. . . Nós julgamo-nos civilizados como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão. . . Isto é uma choldra torpe.18

É deste modo que Eça põe, finalmente, em prática o seu antigo plano de “pintar” Portugal, tal como o fizera o Constitucionalismo desde 1830, isto é, apresentando a radiografia social da nação, ou, parafraseando a conhecida carta a Teófilo Braga, em 12-III-1878, mostrando-lhes um espelho para que vissem — eles e elas — as suas tristes e patéticas figuras, algo que, curiosamente, se encontra expresso mais no subtítulo deste romance, “episódios da vida romântica” (e até em obras anteriores) do que no próprio título. Com efeito, e ao contrário do que este nos deixa antever, não é tanto da saga trágica de uma antiga família nobre que o autor nos quer falar: é de Portugal inteiro. Ao pôr o país em cena, Eça pretende caricaturá-lo, satirizá-lo, dissecá-lo, autopsiá-lo como cadáver de um tempo que sucumbira ao Romantismo. N’Os Maias, encontramos, sobretudo, o diagnóstico que Eça fez da pátria: um país afastado dos centros de saber, de civilização e progresso, refém do seu próprio provincianismo (por vezes de um falso patriotismo ou “patrioteirismo”, como o romancista também lhe chamou), não raras vezes agarrado a um sentimento glorioso do passado e a uma visão anacrónica do país, completamente desajustada em relação às necessidades de uma sociedade moderna, necessitando, por isso, de uma outra atitude, ou, se quisermos, de um verdadeiro patriotismo para se regenerar. Do confronto entre as no18

Id., ibid., pp. 109-110.

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ções de patriotismo e provincianismo, bem como dos assuntos que com elas se relacionam, se ocupará o próximo capítulo.

Patriotismo e Provincianismo “A verdade em tudo, em história, em arte, em política, nos costumes. (. . . ) — “Tu és pobre, trabalha; tu és ignorante, estuda; tu és fraca, arma-te! E quando tiveres trabalhado, estudado e armado, eu, se necessário, saberei morrer contigo!” Eis o nobre patriotismo dos patriotas.” Eça de Queirós, Notas Contemporâneas, “Brasil e Portugal”

Eça foi muitas vezes acusado de falta de patriotismo e até de algum provincianismo19 , antes e depois da sua morte, sendo Pinheiro Chagas e Fernando Pessoa, respetivamente, dois dos seus detratores mais famosos. Para lá do julgamento precipitado (e, como procuraremos demonstrar, profundamente desajustado e até injusto para com um dos escritores que mais contribuiu para a divulgação da língua e cultura portuguesas), o que sobressai é uma generalizada incompreensão da obra e pensamento queirosianos. Apesar do muito que, a este respeito, se tem dito e escrito sobre o autor d’Os Maias, a questão é um pouco mais complexa do que à primeira vista possa parecer. De facto, a relação de Eça com Portugal nunca foi pacífica. O estado do país entristecia-o profundamente, mas não tanto quanto a sua sonolência. Se o atraso cultural o amargurava, a ociosidade e a inércia desesperavam-no, levando-o a afirmações exageradas, por vezes, até algo radicais, e, por isso mesmo, suscetíveis de alguma ambiguidade. Atente-se no seguinte excerto: 19 Fernando Pessoa, “O Provincianismo Português”, in Textos de Crítica e de Intervenção, Lisboa: Ática, 1980, p. 159.

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Todos os estrangeiros notam, todos os viajantes consignam, todos os naturais que regressam à pátria depois da mais curta viagem por outras terras da Europa observam, que nós somos o país dos tristes, dos cismáticos, dos piegas, dos choramingas. Isto procede de sermos o país dos mandriões e dos ignorantes: a mandriice é a mãe do tédio; em século tão instruído como o actual a ignorância não pode deixar de produzir uma tristeza desconsolada, abatida e profunda. Sim, queridos compatriotas, consócios e amigos! desenganemo-nos bem disto: ninguém na Europa sabe menos, ninguém trabalha menos do que nós na Europa. Parece que só não foi para nós que os pensadores meditaram, que os historiadores escreveram, que os naturalistas pesquisaram, que os químicos descobriram, que os filósofos averiguaram! Do microscópio e do telescópio, dos meios de alcançarmos o que não víamos por infinitamente pequeno ou por infinitamente distante para a grosseria e para a mesquinhez dos nossos órgãos, aproveitamos apenas binóculos para as toilettes de S. Carlos e lunetas para as fisionomias do Passeio Público.20

Um pouco mais à frente, acrescentava: E se por acaso a companhia dos caminhos-de-ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente de fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos, — então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões — àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, com cujas civilizações possamos competir: Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etíopes, Tártaros e Hotentotes! E encontrar-nos-emos em família!21

Opinião semelhante encontramos nas tão radicais quanto inócuas tiradas de João da Ega: Então ignoravam que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o músculo como perdera o carácter, e era a mais fraca, a mais cobarde raça da Europa?. . . 22 20 21 22

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, op. cit., pp. 113-114. Idem, ibidem, pp. 234-235. Eça de Queirós, op. cit., p. 169.

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É esta ideia de “país desgraçado” que, como referimos anteriormente, transitará d’As Farpas para Os Maias (e que terá, talvez, contribuído para o equívoco em que caíram muitos dos seus críticos). Todavia, se o diagnóstico é o mesmo, as soluções “prescritas” por Eça e pelas suas personagens são diametralmente opostas. Comecemos por João da Ega e Carlos da Maia: se para o autor das “Memórias dum Átomo”, “no meio desta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes”23 , para o amigo Carlos da Maia, as opções não são muito diferentes, ou seja, se o país chegar à conclusão de que não possui em si mesmo os elementos originais e fortes para se regenerar, deve, então, demitir-se da sua condição de país e passar a ser “uma fértil e estúpida província espanhola”24 . É significativo que este tipo de pensamento seja proferido por dois elementos influentes na vida nacional (ou não pertencessem eles às elites burguesa e aristocrática), o que significa que qualquer um deles tem as suas responsabilidades na conjuntura de decadência do país. Ambos chegam a Lisboa com imensas ideias de produtividade do ponto de vista cultural, mas ambos falham nos seus projetos, contribuindo, assim, para o “desporto nacional” de copiar os modelos estrangeiros, criticar o país e não fazer absolutamente nada para mudar a situação. O desânimo de ambos perante o estado da nação não os iliba de responsabilidades; bem pelo contrário, torna-os, sem se aperceberem disso, tão provincianos como o meio de que desdenham, para além de cúmplices na indiferença nacional face à “desgraça de Portugal”. N’Os Maias, a decadência de que todos se queixam é usada, simultaneamente, como causa e pretexto para o imobilismo dominante. Atente-se, a título de exemplo, numa conversa tida entre Carlos e Cruges, a propósito de Ega. A Cruges, “o que o afligia é que o Ega, com aquele talento, aquela verve fumegante, não fizesse nada. . . ”. Responde Carlos, espreguiçando-se (atente-se no verbo utilizado), que “ninguém faz nada”, e que ele próprio, Cruges, também nada fazia, ao que este responde que se fizesse uma boa ópera, não teria ninguém que lha representasse. Previsivelmente, Carlos responde-lhe que, mutatis mutandis, era essa 23 24

Idem, ibidem, pp. 384-385. Id., Ibid., p. 385. www.clepul.eu


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a situação de Ega, ou seja, “. . . se o Ega fizesse um belo livro, quem é que lho lia?”. Ambos acabam por concordar que Portugal “é um país impossível” 25 . O que parece ter escapado à generalidade dos críticos de Eça é que n’Os Maias, contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não encontramos a habitual crítica fácil à pátria, muito menos a apologia da França ou do estrangeiro. Como Isabel Pires de Lima refere, o que Eça faz, nesta obra, é denunciar o absurdo nacional presente no círculo vicioso, segundo o qual “ninguém faz nada” porque “isto é um país impossível. . . ” [e] “isto é um país impossível” precisamente porque “ninguém faz nada” 26 : “Ega não escreve o seu livro, Cruges não escreve a sua ópera, porque o meio os não motiva. Resta-lhes espreguiçarem-se, encolherem os ombros e usufruírem da sua situação de privilegiados, obviamente contribuindo para o status quo”27 .

Concluímos, assim, que, para Eça, a solução estaria numa atitude completamente diferente daquela que o país tivera até ali, ou seja, a verdade em vez da ilusão, a ação em detrimento das estrofes e da retórica balofa (presente na figura do poeta Alencar), a resolução das necessidades do presente acima da ideia de um passado tão glorioso quanto inútil (de onde sobressai a questão das colónias28 ), em suma, o pragmatismo e o efeito moralizador e regenerador do trabalho, em vez da postura fútil e antiutilitária do dandismo e do diletantismo de que Carlos e Ega se tornam os máximos representantes, e que, no fundo, não são mais do que a outra face do “patrioteirismo” de que falava Eça na célebre polémica com Pinheiro Chagas. À impossibilidade de se apontar o que quer que seja ao país porque “o senhor D. Manuel foi outrora um grande rei” 29 , junta-se a perda da identi25

Id., Ibid., p. 222. Isabel Pires de Lima. As Máscaras do Desengano. Para uma abordagem sociológica de “Os Maias”, de Eça de Queirós, Lisboa: Caminho, 1987, p. 152. 27 Idem, ibidem, pp. 152-153. 28 É curioso verificar que, neste aspeto, quer Eça, n’As Farpas, quer João da Ega, n’Os Maias, partilham a mesma ideia. Com efeito, ambos consideram que, dada a situação financeira do país e a inutilidade das colónias para Portugal, a melhor opção seria simplesmente vendê-las. 29 Eça de Queirós, “Brasil e Portugal” [O Atlântico, 1880], in Notas Contemporâneas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981, p. 51. 26

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dade, o ócio, e a desistência como modo de vida. A análise da situação do país leva-nos a considerar outros vetores. Assim, o Romantismo e as suas consequências, quer para a família quer para a sociedade, serão objeto de reflexão no próximo capítulo.

Educação Romântica: crónica de uma morte anunciada30 Mas os que desceram para regiões românticas ficaram com a alma doente, febril, ansiada, nostálgica. Aí está como se explica toda esta geração moderna, contemplativa e doente! Eça de Queirós, Prosas Bárbaras, “Uma Carta”.

Como bem observa Carlos Reis, o Romantismo foi, “ao longo de toda a vida literária de Eça, um problema e uma sedução não raro oculta”31 . Das páginas iniciais d’As Farpas às suas obras póstumas, encontramos nos textos de Eça, em maior ou menor grau, evidências do seu pensamento de escritor realista em permanente litígio com os ideais e valores da denominada “segunda geração romântica” — sobretudo no que à educação diz respeito —, seja através da caricatura, seja através da refinada ironia com que descrevia algumas das suas personagens. Já nos seus primeiros anos de jornalista, entrevemos um jovem Eça, horrorizado com o atraso de Portugal face às nações mais desenvolvidas da Europa, como a Alemanha, a França ou a Inglaterra, justificando o atraso português com a temática da educação romântica, a qual, por se encontrar intimamente relacionada com a condição da mulher, contaminara toda a sociedade oitocentista portu30

A expressão usada para designar este capítulo foi deliberadamente pensada em analogia àquela que dá título a uma das mais famosas obras de Gabriel Garcia Marquez. 31 Carlos Reis, op. cit., p. 14. www.clepul.eu


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guesa. Deste modo, e sendo o elemento feminino o primeiro responsável pela educação das crianças, toda a educação estaria inquinada desde o berço. Leia-se o que dizia Eça sobre este assunto n’As Farpas de março de 1872: A valia de uma geração depende da educação que recebeu das mães. O homem é “profundamente filho da mulher”, disse Michelet.32

E acrescentava: Vejamos, um pouco, como estes seres interessantes se formaram, lentamente, sob a educação interior. As mães põem nas suas pequerruchas todo o interesse de uma glória: e adornam a sua glória magnificamente. Mas, infelizmente, vestindo-as, como uma pequenina senhora! A pequerrucha de seis, oito anos, uma baby, Bébé, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, já transformada, com gravidades de dama, direita, amaneirada, seriazita, tontinha de vaidade e absurda de folhos! (. . . ) Ora a toilette, é como a nobreza — obriga. E assim a pequenina penetra-se da influência dos seus vestidos. Aos oito anos olha-se ao espelho, tem perrices por causa de uma fita, põe pó de arroz conscientemente, quer a meia esticada e elástica para dar relevo a uma perninha bem feita e mimosa; todos os lábios da família peregrinam no claro, rosado rosto da Bebé, e a criaturinha que ainda é uma argila santa, vai-se impregnando de vaidade, como uma esponja de água. Depois, vivendo na certeza da sua beleza como uma santa no seu altar, toda preocupada de vestidos, afogada de mimo, admirada e beijada — começa a ter sorrisos crescidos, a espreitar com um certo disfarce malicioso, a ter umas ternuras de andar, um modo de se retrair, de se recusar — que há-de fazer corar por vezes o seu anjo da guarda. (. . . ) São pequeninas graças, leves como fios. Mas a vaidade infiltra-se na alma, gota a gota, e cria no fundo aquele lago imóvel, negro e resplandecente, onde nada a sereia misteriosa que se chama a voluptuosidade.33

A comparação com a situação que encontramos n’Os Maias, e, sobretudo, com a relação de Maria Monforte com a sua filha recém-nascida, Maria Eduarda, torna-se inevitável: 32 33

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, op. cit., p. 413. Idem, ibidem, p. 419.

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Apesar dos desejos de Pedro, Maria não a quis criar; mas adorava-a com frenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço, em êxtase, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras, pondo-lhe beijos de devota nos pezinhos, nas rosquinhas das coxas, balbuciando-lhe num enlevo nomes de grande amor, e perfumando-a já de laçarotes.34

Num outro plano, também a Igreja, com o seu peso institucional excessivo e perversor (em todos os setores da sociedade portuguesa), tinha um papel nefasto na educação, como o parágrafo seguinte o demonstra: A par desta educação profana — que educação moral? — o catecismo e a doutrina. É a educação religiosa. Faz-se assim: a pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade e a recitar o padre-nosso. Depois seguidamente, mistério a mistério, todas as orações da cartilha. Esta doutrina di-la a pequerrucha, correntemente, de cor, como a tabuada ou como as capitais da Europa, sem ideia, sem fé, sem compreensão, com um certo terror — porque lhe ensinam que Deus dá as trovoadas, as doenças, a morte e os castigos abrasados.35

É esta ideia de ensino retrógrado, bafiento, assente na memorização acéfala que encontramos na cartilha do padre Vasques, o qual apoderando-se da educação de Pedro da Maia (tal como se apoderara da religiosidade de sua mãe, D. Maria Eduarda Runa — “para quem Deus era um amo feroz” 36 ), o leva a repetir, vezes sem conta, e maquinalmente, os três inimigos da alma: “Mundo, Diabo e Carne. . . ”37 . Os resultados desta “educação à portuguesa”, isto é, católica e tradicional, estão bem expressos no seguinte excerto: Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho — para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois, lá 34 35 36 37

Eça de Queirós, Os Maias, p. 30. Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, op. cit., pp. 419-420. Eça de Queirós, op. cit., p. 19. Idem, Ibidem, p. 18. www.clepul.eu


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fora, o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores; e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas — o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do filho. . . ”38

Com efeito, Pedro crescerá um fraco, depressivo, melancólico, com uma certa propensão para comportamentos neuróticos, influenciável e sem personalidade, deixando-se arrastar por uma vida de boémia e dissipação, que culminará numa paixão obsessiva e fatal por Maria Monforte, com as trágicas consequências que conhecemos. Educação análoga encontramos na educação dos Silveiras, sobretudo em Eusebiozinho, menino muito frágil, tímido, medroso e estudioso, o produto acabado de uma educação retrógrada e deformadora: Afonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a falar do Silveirinha. Tinha três ou quatro meses mais que Carlos, mas estava enfezado, estiolado, por uma educação à portuguesa: daquela idade ainda dormia no choco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava coraçado de rolos de flanelas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, páginas inteiras do “Catecismo de Perseverança”. Ele por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá “que o Sol é que anda em volta da Terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao Sol, para onde há-de ir e onde há-de parar, etc., etc.” E assim lhe estavam arranjando uma almazinha de bacharel. . . 39

Todavia, os efeitos perversos desta educação deletéria não se restringiam apenas à esfera privada ou a alguns casos particulares; bem pelo contrário, atingiam todos os setores da sociedade portuguesa e eram bem visíveis ao nível da vida pública. Na verdade, protegida e promovida pelo poder político, o qual, por sua vez, era ele próprio produto deste sistema de ensino, a educação romântica ameaçava perpetuar-se de geração em geração, remetendo-nos para 38 39

Id., ibid., p. 18. Id., Ibid., p. 78.

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o círculo vicioso de que falava anteriormente Isabel Pires de Lima. A tão elogiada quanto imbecil tirada do Conde de Gouvarinho na Câmara a propósito de um projeto sobre a reforma da Instrução Pública é disso um bom exemplo: É verdade, falara — e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres Valente (homem de literatura, mas um doido, sem senso prático), quando o ouvira defender a ginástica obrigatória nos colégios — erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia que ele tinha feito um discurso. (. . . ) . . . Perguntara apenas ao seu ilustre amigo, o Sr. Torres Valente, se, na sua ideia, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!. . . (. . . ) . . . E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos liceus, nem nos colégios, um ensino “todo impregnado de catecismo”, ele lançara-lhe uma palavra cruel. (. . . ) . . . Voltei-me para ele e disse-lhe isto: “Creia o digno par que nunca este país retomará o seu lugar à testa da civilização, se, nos liceus, nos colégios, nos estabelecimentos de instrução, nós outros os legisladores formos com a mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio. . . ”40

Constata-se, assim, que, para Eça, a educação romântica era bem mais do que apenas uma filosofia, pensamento ou um sentimento. Inscrito no código genético da nação, o Romantismo era o próprio Portugal do século XIX, e os seus efeitos perversos os “Dâmasos”, os “Eusebiozinhos”, os “Gouvarinhos”, os “Cohens”, os “Palma Cavalões”, em suma, todo um país gerado e criado pela educação romântica. Não estranhamos, pois, que n’Os Maias, temas como a política, a vida financeira, a literatura, o jornalismo, a diplomacia, a administração pública, bem como os jantares, os saraus ou as corridas de cavalos, sejam abordados como uma “vasta crónica social, anunciada no subtítulo ‘Episódios da Vida Romântica’ — elemento que evidencia, muito claramente, a importância que o Romantismo continuava a ter numa sociedade que se aproximava “do fim do século, em ritmo de decadência e de crise institucional, a vários níveis”41 , e 40 41

Id., ibid., pp. 298-299. Carlos Reis, op. cit., p. 20. www.clepul.eu


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que levaria ao sentimento de fracasso de todo um país representado pela geração de Carlos e Ega. Deste modo se entrevê uma possível relação entre as principais personagens d’Os Maias e o próprio país, num obscuro cruzamento de destinos, numa espécie de trágica simbologia presente nas páginas da obra. Como veremos no próximo capítulo, será neste cruzamento de destinos (ao qual se junta a questão identitária) que Portugal terá de se (re)descobrir ou desaparecer enquanto nação.

Finis Patriae? — A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe sucede é, em definitivo, bom ou mau. — Ordinariamente é mau — disse o outro friamente, aproximando-se do espelho a retocar com maior correcção o nó da gravata branca. Eça de Queirós, Os Maias

Camões, Pessoa e Eça são, provavelmente, os três escritores portugueses mais frequentemente ligados ao tema “Portugal”, e em cujas obras a literatura portuguesa mais se apoiou para pensar o destino da pátria. Assim, se Camões nos canta sobre o país que parte, procurando-se fora de si mesmo, e Pessoa reflete oniricamente sobre o destino do povo que regressa, Eça mostra-nos o país que fica, o Portugal que está42 , através de uma escrita voltada para a realidade, para a observação da sociedade e dos seus comportamentos, dissecando a megalomania de um país agarrado ao passado e sem projeto para o futuro. Ao afirmar “Isto é um país impossível!”, — exclamação que voltará a ecoar, no final da obra, na desistência de Taveira: “Isto é um país perdido!” —, Cruges revela-nos, em síntese “o significado do malogro luso de que Os Maias pretendem ser a narrativa”. Se “a 42 Cf. António Valdemar, “Introdução” in Os Maias, Espanha: RBA Coleccionables, SA, e Círculo de Leitores, 2005, p. V.

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dimensão simbólica” do livro se desenvolve no “pressuposto de uma tragédia inelutavelmente inscrita no seio mesmo de uma família” 43 , o fracasso do último varão da família “traduz o ‘pecado original’ de uma raça” 44 . Seja por genuína incapacidade, seja por diletantismo ou ociosidade, Portugal revela-se incapaz de se (re)inventar, e essa incapacidade ou impossibilidade resulta, em última análise, do fracasso de todos os grandiosos desígnios de uma geração, se quisermos, de uma espécie de destino adverso que tudo corrompe e inquina desde a base, no fundo, “[d]a real impossibilidade ôntica” 45 aludida por Cruges. É esse o país “impossível” que encontramos n’Os Maias: um país sem futuro, “um país desgraçado”, sob todos os pontos de vista: político, cultural, humano ou até mesmo rácico46 . A impressão geral que nos fica é a de uma sociedade decadente, despersonalizada, apática e sem vontade de progredir. Como sugere Isabel Pires de Lima: A falta de moralidade impera de tal modo que se perdeu o sentido do decoro, abrindo-se assim caminho ao abandono dos valores tradicionais da honra e da hombridade. Por isso os mais velhos (o marquês de Souselas, D. Diogo, Afonso e até certo ponto Alencar) são considerados ou se consideram os últimos representantes de um certo tipo desaparecido de varão português47

Nas últimas páginas da obra, um desencantado Carlos da Maia passeia com Ega pelas ruas de Lisboa, apenas para constatar que, dez anos volvidos após a partida de ambos, nada mudara, talvez nem eles mesmos. É nesta espécie de tempo parado e paralisante, em que nada parece acontecer numa Lisboa adormecida pelo tédio, que ambos se reconhecem vencidos. Ao constatarem que as suas vidas foram tão elegantes quanto inúteis, descobrem-se, eles próprios, produtos do próprio Romantismo que julgavam ter vencido. Deste modo, o seu romantismo final havia sido acreditar que 43 44 45 46 47

João Medina, op. cit., p. 108. Idem, ibidem, p. 108. Id., ibid., p. 108. Cf. Isabel Pires de Lima, op. cit., p. 154. Idem, ibidem, p. 154.

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tinham já derrotado o Romantismo, não percebendo que a decadência a que assistiam era mais do que o naufrágio proveniente de uma educação errática. Por outras palavras, fracassando “não por causa da educação, mas apesar da educação recebida” 48 , para citar uma reflexão de Jacinto do Prado Coelho acerca de Carlos da Maia, constatamos que a decadência do país era, no fundo, a idiossincrasia do inconsciente coletivo português. O episódio da última visita ao Ramalhete (casarão soturno, cheio de recordações, mas sem qualquer futuro, no fundo, a imagem queirosiana do país), apenas confirma a filosofia do abandono e da desistência a que todos (país incluído) se entregaram. Assim, os “termos amargurados e pessimistas que marcam o reencontro do protagonista com um espaço que não pode deixar de evocar o sofrimento provocado pelo desenlace da intriga” 49 não são alheios à decadência da própria pátria. Na visão de Carlos não encontramos apenas o desconforto de um casarão (ou Portugal?) abandonado, encontramos, “também, uma atmosfera de dispersão e morte” 50 : E os dois amigos atravessaram o peristilo. Ainda lá se conservavam os bancos feudais de carvalho lavrado, solenes como coros de catedral. Em cima, porém, a antecâmara entristecia, toda despida, sem um móvel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. (. . . ) Depois, no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como num claustro abandonado. Nos quadros devotos, de um tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um ombro descarnado de eremita, a mancha lívida de uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantara a gola do paletó.51

Como sugere Carlos Reis, “a hostilidade do cenário descrito e as conotações de sofrimento que o caracterizam são suficientemente claras para dispensarem comentários” 52 . Todavia, e como o mesmo 48

Jacinto do Prado Coelho, “Para a compreensão d’Os Maias como um todo orgânico”, in Ao Contrário de Penélope, Lisboa: Bertrand, 1976, p. 187. 49 Carlos Reis, Introdução à Leitura d’Os Maias, Coimbra: Almedina, 2006, p. 56. 50 Idem, ibidem, p. 56. 51 Eça de Queirós, op. cit., p. 707. 52 Carlos Reis, Introdução à Leitura d’Os Maias, p. 56. www.lusosofia.net


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autor sublinha, precisamos dos momentos finais da obra — quando Carlos contempla pela última vez esse espaço que ele em tempos idealizara —, para o cenário de dispersão e morte ficar completo: O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de Inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspeto mais carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.53

Em jeito de balanço final, e uma vez “perdidas as esperanças, desfeitos os vistosos intentos de reformar a mentalidade e as instituições, ou sequer a Arte” ; os dois amigos “contentar-se-ão em apanhar um ‘Americano’ que lhes foge, prosaicamente, ao fundo de uma calçada” 54 , numa irónica alusão, não apenas a mais uma das suas contradições (incapazes sequer de se manterem fiéis ao fatalismo muçulmano que diziam agora professar), mas sobretudo à idiossincrasia de Portugal que, tendo perdido a sua identidade, os seus princípios e os seus valores, corria em direção a um novo século, mas sem quaisquer certezas de o apanhar. . .

Considerações Finais Da vasta obra que Eça nos deixou (antes e depois da sua morte), nenhum romance marcou o imaginário coletivo português com uma visão tão profundamente negativa do país como Os Maias. Para lá das críticas eternizadas em desabafos que vão desde “No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola e bordoada, e viva lá seu compadre” até “Isto é um país que só suporta hortas e arraiais”, “passando por toda uma variada gama de 53 54

Eça de Queirós, op. cit., p. 714. João Medina, op. cit., p. 109. www.clepul.eu


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outras irreverências (. . . )” desdenhando “a coletividade e o país que somos” 55 , o que n’Os Maias encontramos é uma impressionante amostra de um niilismo bastante em voga nos finais do século XIX. Ironicamente (ou não), a obra-prima de um dos maiores representantes do sucesso português nas literaturas europeia e mundial, ficará para a posteridade como o retrato mais perfeito “da descrença nas nossas próprias capacidades de sobrevivermos (ou até só vivermos) decentemente num mundo e numa Europa moderna” 56 . É isso que encontramos no autodenegrimento pátrio: [n]a insistente definição de Portugal como “choldra”, com a capital nessa “horrível Lisboa”, com o seu “apodrecimento moral, o seu rebaixamento social” e outros defeitos cuja enumeração Eça — e os seus personagens — se comprazem masoquisticamente em desfiar, recordar, insistindo na podridão, no rebaixamento, na decadência f ísica e moral de toda uma nação que vinha sendo ferozmente criticada (. . . ) desde As Farpas de 1871-72. . . 57

Tal como fomos fazendo referência ao longo do presente trabalho, Os Maias acabam por representar uma continuação d’As Farpas, mas agora em versão romance. Trata-se, no fundo, do mesmo país caricaturado quase vinte anos antes nas crónicas satíricas que Eça escrevera com Ramalho. A mesma sonolência, o mesmo tédio, a mesma decadência serão, posteriormente, postos em cena ao serviço da ficção. Atente-se no que diz Carlos Reis a este respeito: . . . o relativamente extenso conjunto de textos de imprensa confirma o que amplamente se sabe já: que há um Eça cronista e, em geral, colaborador de jornais e de revistas. Foi esse Eça que deu largas à sua arguta e sugestiva forma de olhar o mundo, ao mesmo tempo que muitas vezes antecipou ou glosou nos textos de imprensa o que depois modelou na ficção.58

Fazendo d’As Farpas uma espécie de laboratório para as suas obras vindouras, Eça colocou n’Os Maias o melhor de si, quer como 55 56 57 58

Idem, ibidem, p. 109. Id., ibid., p. 109. Id., ibid., p. 109. Carlos Reis, Eça de Queirós, pp. 32-33.

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jornalista quer como romancista: tudo o que pensava, tudo o que sentia, tudo o que sabia, no fundo, tudo o que sempre quis dizer ao país. E fê-lo de forma magistral. Talvez isso explique a razão pela qual nunca mais editaria outro romance em vida. Publicada em 1888, a obra-prima de Eça foi, inicialmente, considerada uma obra menor. Em muitos casos, foi até recebida num misto de indiferença e rancor pela crítica. Portugal levaria ainda algum tempo até perceber o alcance do romance que lhe fora “dedicado”. Confuso pelo enigmático episódio do incesto, o país não se reconheceu na tragédia que se abateu sobre a família Maia. Todavia, a temática de Portugal e do seu destino esteve sempre presente. Se observarmos de perto, constatamos que tão trágica é a impossibilidade do amor entre Carlos e Maria Eduarda como o malogro das ambições de Carlos da Maia e João da Ega relativamente às reformas do país, o que, por sua vez, remete para o “falhanço” da Geração de 70 e para a criação do grupo dos Vencidos da Vida, num sinuoso mas constante trajeto entre ficção e realidade. A antiga pretensão do romancista de ver o país deixar no bengaleiro “a perpétua inclinação nacional de escutar odes”, entrando “só com a tendência humana de resolver problemas” 59 nunca se verificaria durante o seu curto tempo de vida. Para Eça, o Romantismo era uma fatalidade e o destino de Portugal, num ambiente de pessimismo finissecular, afigurava-se pouco promissor. O escritor não viveria para conhecer o século XX e o advento da República. Morreria a 16 de Agosto de 1900, às portas de um século que já não seria o seu. Todavia, o país criado pelos seus textos perdura até hoje, rivalizando com a História (e, em muitos aspetos, sobrepondo-se à própria História). Com efeito, para muitos dos seus leitores, a imagem do Portugal do século XIX encontra-se assente mais nas suas obras de ficção do que na realidade dos factos. É essa a força da sua escrita e o seu maior legado para as gerações vindouras.

59

Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, op. cit., p. 41. www.clepul.eu


Referências Bibliográficas COELHO, Jacinto do Prado, “Para a compreensão d’Os Maias como um todo orgânico”, in Ao Contrário de Penélope, Lisboa: Bertrand, 1976. LIMA, Isabel Pires de, As Máscaras do Desengano. Para uma abordagem sociológica de “Os Maias”, de Eça de Queirós, Lisboa: Caminho, 1987. MEDINA, João, Reler Eça de Queirós — das Farpas aos Maias, Lisboa: Livros Horizonte, 2000. MÓNICA, Maria Filomena, Eça de Queirós, Lisboa: Quetzal, 2001. PESSOA, Fernando, “O Provincianismo Português”, in Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980. QUEIRÓS, Eça de, Os Maias – Episódios da Vida Romântica, Porto: Porto Editora, s.d. QUEIRÓS, Eça de, Notas Contemporâneas, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981. QUEIRÓS, Eça de e ORTIGÃO, Ramalho, As Farpas – Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes, Cascais: Principia, 2004. REIS, Carlos, Eça de Queirós, Lisboa: Edições 70, 2009. REIS, Carlos, Introdução à Leitura d’Os Maias, Coimbra: Almedina, 2006. VALDEMAR, António, “Introdução”, in Os Maias, Espanha: RBA Coleccionables, SA, e Círculo de Leitores, 2005.



A precisão matemática d’ Os Maias d’Eça de Queirós Fernando Andrade Lemos1

Introdução Um dos aspectos determinantes para a interpretação da obra queiroziana, e bastante escamoteado pela imago mundi que orientou a crítica literária portuguesa, é a sua relação com a temática e com a ideologia maçónica. Não é o momento, nestas simples reflexões, de elaborar um trabalho exaustivo acerca deste assunto; limitar-nos-emos a aspectos mais ou menos conhecidos e esclarecedores em Os Maias2 , certos de que com este substrato se compreenderá e fundamentará melhor a precisão matemática do texto do romance. Muitos dos escritores portugueses do século XIX pertenceram, a tempo inteiro ou em diversas épocas das suas vidas, à Maçonaria. Esta Sociedade entreaberta, com efeito, dominou artistas e literatos ao longo da sua existência em Portugal. Limitando-nos ao campo da escrita, a ela pertenceram Almeida Garrett, Herculano, Antero de Quental, Júlio Dinis, entre outros. Que aconteceu com Eça de Queiroz? Para o compreendermos devermos recuar ao avô do autor, Joaquim José de Queiroz e Almeida. A sua biografia delineia-se em A. H. de Oliveira Marques3 : 1 2 3

Centro Cultural Eça de Queiroz/ESEQ/CCT. Seguimos a edição dos Livros do Brasil, ao longo deste trabalho. Dicionário de Maçonaria, art. Queirós e Almeida.


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Quintas (Oliveirinha, Aveiro), 9.1.1774 — Verdemilho (Arada, Aveiro), 16.4.1850. Bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra e magistrado, desempenhou os cargos de juiz de fora em Azurara, de desembargador na Baía, Rio de Janeiro e Porto e presidente das Relações do Porto e de Lamego. Foi o avô de Eça de Queirós. Liberal e deputado por Aveiro (1826-28), chefiou a revolta de 1828 contra D. Miguel, conseguindo depois fugir para Inglaterra e França. De regresso à Pátria foi novamente deputado (1834-36) e Ministro e Secretário de Estado da Justiça (1847-48). Iniciado em data e loja desconhecidas, pertenceu à loja instalada na quinta dos Santos Mártires, perto de Aveiro (1823).

No seu cursus honorum maçónico sabe-se que chegou ao 18º grau do Oriente Lusitano, o de Cavaleiro Rosa-Cruz. É este o Avô de Carlos da Maia, um alter ego do próprio Eça de Queiroz. Convivendo tão intimamente com o culto da memória do avô, Eça certamente conheceria o ideário da Maçonaria4 . E não só este, mas também a realidade evenencial. Repare-se, à vol d’oiseau, na ocorrência que se regista com a data de 1875: a família Maia muda-se para o Ramalhete e o Oriente Lusitano para a rua do seu nome. Quanto a Eça de Queiroz. . . Embora Oliveira Marques não lhe dedique algum verbete no seu Dicionário de Maçonaria Portuguesa, Jorge Ramos5 , polemicamente, declara que em 1885, Eça ingressou na Maçonaria. Este facto depois de, em Dezembro de 1881 surgir uma loja de Adopção, a Filial Filipa de Vilhena, da Loja Restauração de Portugal. Devia viver-se, então, uma situação conflituosa no país: introduzir uma loja feminina? O irmão coabitaria com a irmã? Para a Maçonaria de carácter francês não existia problema algum; porém, para a tradicional tal realidade assumia vagueações fantasmagóricas de crime nefando. 4

Agradeço aqui as anotações tão a propósito e muito amáveis feitas pelo sr. Eng. Gonçalves Guimarães, digníssimo Presidente da Confraria Queirosiana, que me permitiram aperfeiçoar este trabalho. 5 Em O que é a Maçonaria. www.clepul.eu


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I — Algumas Considerações Gerais Toda a estória de Os Maias respira Maçonaria. Nesta primeira parte debruçar-nos-emos sobre os elementos onde essa influência se torna mais evidente.

1 . Os Mitos Três são os mitos determinantes para o sentido da obra: o da Teia de Penélope, o da Caixa de Pandora e o do Incesto. O mito exprime, entre outros significados, uma ideia sob forma poética, utilizando a metáfora e a alegoria e transmitindo uma evidência do recôndito de uma pessoa ou de uma cultura, recôndito esse que pode ser cultural ou vivencial. Poder-se-ia dizer que o mito retrata a realidade de forma simbólica. Representa, sobretudo, uma realidade do campo da verdade ou da manifestação religiosa, ou seja, do esforço para ligar um sentido pessoal com a essência de uma ideia. Elabora a ilustração de um pensamento, de um dogma ou de uma imago mundi. Isto significa que estes três mitos não constituem uma casualidade para dimensionar ou embelezar um texto já de si cativante e rico, mas determinam visões pessoais do autor, neste caso, motivadas pela vivência dos problemas que surgiam.

1 . 1 . O Mito da Teia de Penélope Maria Eduarda borda enquanto Carlos a visita, inicialmente para consultar Miss Sara e posteriormente para passarem uns momentos juntos. Este facto, com toda a naturalidade, remete para a teia de Penélope. Se com esta se vão entretendo os pretendentes ao seu amor (e sobretudo ao trono de Ítaca), com Maria Eduarda intensificam-se as paixões com Carlos da Maia. Ambas bordam ou tecem — estas acções possuem o mesmo significado. A tela surge como manifestação do amor impossível, assim como o bordado. Uma qualquer coisa desencadeará um final, de diferente direcção: ou o regresso de Ulisses, ou a caixa com os documentos que provarão a identidade de Maria Eduarda como irmã de Carlos. www.lusosofia.net


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Parece que nunca se acaba, esse bordado! — disse ele por fim, impaciente de a ver, tão serena, a ocupar-se das suas lãs. Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ela respondeu, sem erguer os olhos: — E para que se há-de acabar? O grande prazer é andá-lo a fazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha amanhã, torna-se assim uma companhia. . . Para que se há-de querer chegar logo ao fim das coisas? Uma sombra passou no rosto de Carlos. Nestas palavras, ditas de leve acerca do bordado, ele sentia uma desanimadora alusão ao seu amor — esse amor que lhe fora enchendo o coração à maneira que a lã cobria aquela talagarça, e que era obra simultânea das mesmas brancas mãos. Queria ela pois conservá-lo ali, arrastado como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado também no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão? Disse então, comovido: — Não é assim. Há coisas que só existem quando se completam, e que só então dão a felicidade que se procurava nelas. — É muito complicado isso — murmurou ela, corando. — É muito subtil. . . — Quer que lhe diga mais claramente? Nesse instante Domingos, erguendo o reposteiro, anunciou que estava ali o Sr. Dâmaso.6

Como já afirmámos, bordar ou tecer possuem a mesma significação no campo da simbólica. O ofício de tecedeira constituiu ao longo da História uma verdadeira iniciação feminina, com um ritual próprio e com uma consequência própria: a fabricação da vida do ser humano. (Lembremos a função das Parcas das mitologias celta e grega.) Pr. P. Brunel7 retrata o trabalho da tecedeira, que Releve d’un véritable acte d’initiation entre des femmes, duquel tout homme est exclu. Les fileuses, durant les veillées où elles filent, hors du champ du regard de l’hommme, parlent, évoquent, chantent. Ce sont des pratiques qui inquiètent et fascinent. A filer tout le temps, la fileuse se construirait la possibilité de s’introduire dans un autre monde.8 6 7 8

Cap. XII. Dictionnaire dês Mythes Littéraires, p. 617. A este propósito referencie-se o trabalho, em fotocópia, de Fernando Afonso www.clepul.eu


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O Professor António de Macedo fala mesmo numa R.O.T. (Real Ordem das Tecedeiras) convivendo com a R.O.C. (Real Ordem dos Construtores), a congénere masculina daquela9 . Ao fazer aparecer este mito na obra, Eça de Queiroz pretende mostrar Maria Eduarda como uma iniciada, como uma irmã. E este facto é determinante para o tema do romance.

1 . 2 . O Mito da Caixa de Pandora O mito de Pandora encontra-se representado na caixa com os documentos referentes a Maria Eduarda. Nada mais existe referente a este mito, na obra. Esta caixa, donde, como no mito, vai sair todo o mal, isto é, a origem de Maria Eduarda, fora dada por Maria de Monforte a M. Guimarans, o Guimarães, o tio do Dâmaso que residia em Paris. Sem a caixa não haveria a certeza do incesto, pois todo o processo de reconhecimento, embora encaminhando-se para este momento, não permite mais do que suposições. A abertura desta caixa desempenha um papel fundamental no desenrolar da narrativa, tal como foi decisiva para a humanidade a abertura da caixa de Pandora. Fica, assim, a saber-se que Maria Eduarda é irmã de Carlos da Maia e que os dois irmãos coabitam. Torna-se relevante, como símbolo, que esta caixa tenha sido entregue ao Ega. O seu aparecimento podia, com efeito, revelar-se em vário multimodismo, como, a título de exemplo, ser enviada, pessoal ou institucionalmente, para o Ramalhete. Porquê, então, a entrega a Ega? Andrade Lemos e Rita Maria Rebelo Andrade Lemos, A Formação Iniciática de Maria Eduarda. 9 Em carta ao autor, António de Macedo explicita: Quando me refiro às duas ordens polares, a R.O.C. e a R.O.T. (não se pode entender uma sem a outra), é importante que fique claro que a sua existência é evidenciada por muitas provas e indícios tanto lendárias como objectivas — por exemplo a R.O.C. é continuada hoje pela Maçonaria — embora não exista nenhum elemento histórico (pelo menos que eu conheça) onde os seus nomes venham taxativamente mencionados: as expressões que uso real ordem dos construtores e real ordem das tecedeiras não são nomes, mas sim descrições, pois se trata de verdadeiras ordens, ambas reais e não sacerdotais, sendo uma de construtores (maçons) e outra de tecedeiras, cujas características e desenvolvimento expus nos capítulos 24 e 25 do meu livro, e nas páginas 230-231. António de Macedo refere-se a Instruções Iniciáticas. www.lusosofia.net


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Ega é o alter ego do Eça conservador. É o seu retrato tão encegonhado como a caricatura que o autor delineia ironicamente de si mesmo. Assim, a entrega desta caixa a Ega produz um eco extraordinário: o choque sentido pela visão tradicionalista da Maçonaria, que excluía as mulheres do seu seio, em confronto com a nova visão, que as admitia em lojas de Adopção. A caixa de Pandora-Guimarães poderia deixar sair todos os males para a sociedade e para a Ordem. Traduz o medo e a insegurança. E mais uma vez, a esperança foi tudo o que ficou lá dentro e não chegou a sair.

1 . 3 . O mito do Incesto Os amores incestuosos são o principal mito da obra, para cujo significado concorrem os dois anteriores. O incesto, neste romance, é praticado por dois irmãos, a lembrar Apolo e Diana, esta branca e aquele vermelho. Estas duas cores surgirão no pátio do Ramalhete. A que cultura teria Eça buscado a história do incesto? Não faltam, quer na cultura judaica quer na cultura grega, exemplos de incesto. Pensamos que Eça se socorreu do mito de Leucipo, pelas semelhanças encontradas. Hijo de Jantio, uno de los descendientes del héroe Belerofonte, y rey de Licia. Según una leyenda referida por Partenio sedujo a su hermana, y cuando Jantio supo que su hija tenía un amante, acudió al dormitorio para matarlo, hiriendo, sin embaro, por erros a la muchacha; por su parte, Leucipo atravesó com su espada al agresor sin saber que se trataba de su propio padre. A consecuencia de este crimen tuvo que abandonar su pátria y se estableció en Creta, donde creó una colonia de Tesalios; más tarde, regresó al Ásia Menor, y fundo allá la ciudad de Cretineo. Finalmente, ataco y conquisto la ciudad de Magnesia, ayudado por la hija del rey, a quien había seducido.10

Entre a história do mito e o relato de Os Maias surgem vários pontos comuns, além de algumas diferenças. Fixemo-nos nos primeiros. Os irmãos seduzem-se e caem no incesto. Afonso constitui 10

Constantino Falcón Martinez et alii, Diccionario de la Mitologiia Clasica, art. Leucipo.

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um peso moral que oprime Carlos e a quem este, indirectamente, mata por desgosto. Como consequência do acto incestuoso Carlos e Maria Eduarda vão viajar, afastando-se. Maria Eduarda em Paris constitui família. Ela, pela descendência, continuará a geração dos Maias, dado que Carlos, no decorrer do romance, não chega a casar-se. Por detrás do incesto encontra-se o mito do hermafrodita. L’inceste symbolise la tendance à l’union des semblables, voire l’exaltation de sa propre essence, la découverte et la preservation du moi le plus profond.11

Mas como num labirinto, os dois avançam às apalpadelas e enfileiram por caminhos incorrectos. Com efeito, assiste-se à evolução degenerativa das gerações (símbolo da evolução maçónica até então?). Afonso casou-se e, embora com alguns problemas, tudo se passou normalmente; Pedro casou-se e já surgiu o problema da infidelidade, que não aguentou; Carlos não chega a casar-se. A geração de Carlos revela-se uma geração vazia porque não conseguiu encontrar o seu eu e, portanto, encontrar-se. Tinha razão quando desabafa que a vida havia sido perdida12 . Carlos secundariza-se perante o papel de Maria Eduarda. O mito do incesto, fundamental nesta obra e incomum na sociedade, re-vela a intenção profunda do autor: não se trata, como parece à primeira vista, de caracterizar a sociedade da época (embora o faça também, à boa maneira realista); projecta-se, porém, um desígnio diferente. Neste âmbito torna-se lícito concluir que o tema do romance será a introdução da Maçonaria Feminina em Portugal, introdução esta problemática e tímida, que causará a morte do Avô e a partida para França de Maria Eduarda, onde podia realizar plenamente a sua vivência. Com o tratamento que Eça dá aos mitos perfila-se a grandeza de dimensão da obra Os Maias. Este, embora nacional, universaliza-se e projecta uma época própria. Talvez, por isso, Maias derive 11 12

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des symboles, art. Inceste. Cap. XVIII.

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do comparativo latino major, us, a ecoar a cantiga Maio chegou, sê minha13 .

2 . Os Ambientes 2 . 1 . O Ramalhete O Ramalhete era assim chamado por possuir na sua frontaria um ramo de girassóis. O girassol segue o sol desde que este se levanta a oriente até que se põe a ocidente. Por isto e ainda devido à forma radiada das pétalas assume-se como símbolo solar. Não se torna necessário falar muito sobre o significado do sol nas sociedades iniciáticas. A Maçonaria, sendo uma delas, dedicou ao sol uma grande importância aliada a vasto significado. As suas principais festas ocorrem nos solstícios e há vários graus em que este astro entra no título. Na simbologia maçónica, um dos emblemas mais significativos do Sol é o esquadro e o compasso cruzados, que nessa disposição constituem a jóia distintiva do terceiro grau. O esquadro com as pontas voltadas para cima indica o céu ou o alto, para onde deve o iniciado dirigir constantemente as suas duas hastes; o compasso com as pontas voltadas para baixo e o seu eixo representavam os raios, que deles devem irradiar superiormente, tal como o disco solar representa o centro do imenso círculo, cujos pontos brilham por igual.14

E já imediatamente antes havia escrito o mesmo autor: As lendas que acompanhavam os mistérios e cultos dos povos antigos giravam em torno da marcha aparente do Sol declinando para o ocaso, para expressar, em linguagem figurada, que ele era aparentemente vencido pelas trevas, representando na mesma alegoria o génio do mal; mas reaparecia depois como o herói vencedor ressuscitado. Na Maçonaria, o Mito de Hiram Abiff é uma miniatura simulada e sinótica dessas lendas. Seu aparente nascimento, curso, morte e ressurreição periódicas descrevem alegoricamente as vicissitudes 13 14

Cap. VI. Joaquim Gervásio de Figueiredo, Dicionário de Maçonaria, art. Sol. www.clepul.eu


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cíclicas da alma e o eterno combate entre o bem e o mal, ou interação dos pólos positivo e negativo de toda a natureza; e isso tem sido universal e simbolicamente representado com variadíssimos nomes e atributos.15

2 . 1 . 1 . As árvores Esta relação maçónica representa-se no Ramalhete não só pelos girassóis, forma alotrópica do esquadro e do compasso, mas igualmente pelas duas árvores que Eça de Queiroz coloca no jardim: o cipreste e o cedro. Estas árvores ampliam e desenvolvem o significado anterior. O cipreste relaciona-se com a ideia de morte. É uma árvore que exprime o luto ao mesmo tempo que a imortalidade e a ressurreição. Por isso, se lhe chama árvore da vida16 . O cedro simboliza a nobreza, a grandeza, a força, a perenidade, a incorruptibilidade, a imortalidade17 . O cedro deu a madeira para a construção do templo de Salomão.

2 . 1 . 2 . O Pátio Dos dados anteriores depreende-se que o Ramalhete funciona como uma loja maçónica. Saliente-se a coincidência já citada da data de 1875 em que ocorreu a mudança da família Maia para o Ramalhete e a do Grande Oriente Lusitano Unido, da Rua Nova do Carmo, 35, para um palácio (sua propriedade particular)18 na Rua do Grémio Lusitano, que era conhecida outrora pelo nome de Travessa do Guarda-Mor 19 . Será lícito identificar a vida no Ramalhete com a vida do Grande Oriente Lusitano Unido? Dentro do Ramalhete uma área assume particular interesse: o pátio. 15

Joaquim Gervásio de Figueiredo, idem, ibidem. Acerca do Mito de Hiram Abiff conferir Fernand Touret, Chaves da Franco-Maçonaria, pp. 82-84. 16 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des symboles, art. Cyprès. 17 Idem, Ibidem, art. Cèdre. 18 Borges Grainha, História da Franco-Maçonaria em Portugal, p. 133. 19 Idem, Ibidem. www.lusosofia.net


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O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nu, lajeado de pedregulhos — agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos. . . 20

Praticara-se uma remodelação total do pátio e o mesmo aconteceu ao interior. Diz Eça que do primitivo só restava a Fachada tristonha, que Afonso não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa.21

De resto, tudo foi remodelado, trabalhado. Até os pedregulhos do pátio — o que nos dá a ideia do trabalhar a pedra bruta. Este trabalhar a pedra deu lugar a um lajeado à base de quadrados brancos e vermelhos. Estas duas cores relacionam-se com a Maçonaria: são cores de dois tipos de oficinas — a vermelha e a branca. Maçonaria vermelha é o Nome por que se designa a Maçonaria Filosófica, que compreende os graus 4º e 18º do Rito Escocês Antigo e Aceito, bem como os mações do Real Arco. Seu ponto culminante é o grau 18º ou Rosa Cruz e a sua principal característica é a do amor.22

Esta noção relaciona-se com Carlos. Convém lembrar que ele se forma no Cap. 4 e que o Cap. 18 é o final, quando Carlos faz com Ega o exame de consciência. O amor é a base do romance: o amor entre Carlos e Maria Eduarda — dois destinos que se cruzam com uma Rosa (a sobrinha de Carlos, filha de Maria Eduarda) a sobrepor-se. Voltando, porém ao lajedo, o quadriculado branco lembra a Maçonaria Branca ou Loja Branca que Segundo alguns autores, é uma poderosa Fraternidade ou Hierarquia de Adeptos, cujas colunas mestras são o Amor e a Sabedoria, e de que uma Loja maçónica é uma miniatura simbólica. Acrescentam eles que, por vontade do G:.A:.D:.U:., essa Fraternidade vela pela humanidade e através dos Séculos vem 20 21 22

Cap. I. Idem, Ibidem. Joaquim Gervásio de Figueiredo, op. cit., art. Maçonaria Vermelha. www.clepul.eu


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guiando sua evolução e governando internamente os negócios do nosso globo.23

Liga-se com Carlos e com Ega através do Amor mas igualmente da Sabedoria. Não desejavam Carlos e Ega educar os seus contemporâneos e refazer o país? Não era esse o desígnio de Eça e dos seus contemporâneos da Geração de 70 que pertenciam aos movimentos ocultos coimbrões? Não conseguiram, porém, os seus objectivos. E eles tiveram consciência disso.

2 . 1 . 3 . Os Arquitectos A reformulação do Ramalhete para ser habitado no Outono de 1875 levanta ainda outros problemas. Um, bastante importante, reside na troca de arquitectos. Sua Excelência mandava: — e, como esse inverno ia seca, as obras começaram logo, sob a direcção de um Esteves, arquitecto, político e compadre do Vilaça. Este artista entusiasmara o procurador com um projecto de escada aparatosa, flanqueada por duas figuras simbolizando as conquistas da Guiné e da Índia. E estava ideando também uma cascata de louça na sala de jantar — quando, inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa com um arquitecto decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto, um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio. Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu centro político que isto era um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivesse despedido o Esteves, exigia mesmo que o encarregassem da construção das cocheiras. O artista ia aceitar — quando foi nomeado Governador civil.24 23

Joaquim Gervásio de Figueiredo, op. cit., art. Loja Branca. Um dos elementos significativos na Loja maçónica é o Piso Mosaico. É em branco e preto, e o significado compreende-se: o branco significa o bem e o preto o mal. Em Os Maias as cores diferem, o que traz outra conotação. Poderá significar a oposição entre maçonaria média e maçonaria extremista ( jacobinismo), sendo esta representada pelo vermelho. Sabe-se que o Avô houvera sido jacobino na sua juventude. 24 Cap. I. www.lusosofia.net


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A Maçonaria portuguesa, na época, sofria acentuada influência do jacobinismo. Afonso, inicialmente, perfilhara-o. Este Esteves também o deveria ser e só assim se explica a actuação de Carlos: trazer outro arquitecto de Londres. Quer dizer que o Ramalhete vai ficar dependente da Maçonaria inglesa em detrimento da Maçonaria continental25 .

2 . 1 . 4 . A Estátua da Deusa Vénus No jardim existe uma estátua que é identificada com a deusa Vénus. No simbolismo maçónico. Segundo L. Umbert Santos ( Catecismo Masónico), Vénus representa a bondade, o desinteresse, a perseverança indispensável para evitar aos nossos irmãos tudo o que não desejaríamos para nós mesmos: o encanto perene que dimana da obra excelsa do G:.A::D:.U:.; o amor que nos deve unir a todos em um anelo imperecível de melhoramento e fraternização, que alija da terra as discórdias e as guerras com todas as suas horríveis consequências: a verdade, que todos buscamos com inquietude, a filosofia, campeão dessa mesma verdade.26

2 . 2 . As Reuniões no Ramalhete Toda a ambiência em que decorre a acção de Os Maias é uma ambiência maçónica. Poder-se-ia resumir a vida passada no Ramalhete com as palavras que o abade Marquet usou diante da Academia Francesa, em 173527 : Là règnent les doux loisirs, les nobles amusements; là le mérite est aimable et complaisant; là les talents sont civilises; là règne le gout exquis preferable à la science grossière, l’esprit y jouit des droits de la souveraineté, la politesse en tempere l’esprit, 25

Outro jacobino que surge em Os Maias é o Vicente, o mestre de obras que construiu o laboratório de Carlos. Vejam-se as suas ideias que, nesse capítulo IV estão mais pormenorizadas. 26 Nicola Aslan, op. cit., art. Vénus. 27 In La Franc-Maçonnerie française, présenté par Gérard Gayot, p. 115.

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mais la sagesse embellie par l’enjouement, ennemie des apparences fastueuses, des airs étudiés; là preside enfin la raison, non ce fantôme qu’on prend si souvent pour elle, mais la raison humanisée.

O Abade Marquet referia-se à Maçonaria. Este ambiente verifica-se nas reuniões de convívio e nos jantares. Na Maçonaria a refeição ocupa um espaço importante e significativo no campo do ritual, no que diz respeito à admissão de novos associados ou a reuniões de trabalho. Desde o seu início que muitas reuniões foram efectuadas em restaurantes ou em casas particulares28 . E nessas reuniões havia sempre canções. Compreende-se agora porque Steinbroken entoa canções a seguir às refeições, canções da sua longínqua Finlândia. Não é só por folclore ou manifestação sentimental: é que cada casa funciona como um templo maçónico em cujas reuniões se discutem vários assuntos, expressos conforme as tendências das pessoas. Isto por um lado. Por outro, tudo quanto ficou dito permite concluir que tanto Carlos como Ega, tanto Cruges como Steinbroken, tanto Craft como Dâmaso são companheiros. De entre as reuniões de carácter social que se efectuam no Ramalhete assumem particular significado as refeições (e não só no Ramalhete, mas igualmente nos Hotéis e outras casas). São verdadeiros jantares regulares e jantares brancos, estes destinados ao convívio com o belo sexo. 28

Aliás as refeições, sobretudo na Maçonaria primitiva, serviam para mascarar as discussões ideológicas e rituais. É o que se depreende das palavras de Aires de Ornelas e d’Alincourt (citadas em Graça da Silva Dias e J. S. da Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, p. 190 e 228 respectivamente). Diz o primeiro: Consenti assistir à entrada de Mr. D’Alincourt [na loja da Madeira], e finalmente conheci que o negócio [= ser e objectivos da Ordem] em si era tão innocente como fundado para comer e beber em companhia, com cantarolas e alegrias, sem que em nada do que obrão se encontre coisa que diga em o mais mínimo relação nem com a religião nem o estado. O segundo confirma as palavras e as ideias do primeiro: Entrara naquela confraria na inteligência de que nela não havia coisa alguma oposta nem à religião nem ao estado, em cuja inteligência ainda estava, pois que via e observava que, nos ajuntamentos que faziam entre si os sócios da maçonaria, só se cuidava em comes e bebes e outros divertimentos indiferentes, como eram tocar e dançar; e que a este fim se dirigiam as suas assembleias e conventículos. www.lusosofia.net


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2 . 3 . As Leituras Deve ainda focar-se a cultura que todas as personagens demonstram possuir. Lê-se Darwin, Freud e, sobretudo, Proudhon (que era maçon). Ora todas estas leituras se encontram dentro do âmbito da Maçonaria, quer pelo seu carácter progressista, quer psicológico, quer anti-clerical. Todas as personagens se movem dentro do realismo e do naturalismo — duas correntes defendidas pela Maçonaria. E não só: correntes com que a Maçonaria queria educar o povo na sua manifestação anti-religiosa.

2 . 4 . A Educação de Carlos Normalmente enuncia-se o binómio educação à inglesa/educação à portuguesa. E surgem os nomes de Carlos e Eusebiozinho como paradigmas. Ora o problema não é tão simples. A educação à inglesa constituía a educação que a Maçonaria pretendia e já tinha sido praticada em Portugal sob a denominação de educação à Suíça. Quando José Elias Garcia, Grão-Mestre maçónico e grande chefe republicano, foi conselheiro da Municipalidade de Lisboa, tomou a direcção da instrução primária de Lisboa, então a cargo da Municipalidade, segundo a lei de outro maçon, Rodrigues Sampaio, e ela teve neste período um desenvolvimento e brilho extraordinário. Graças a uma tentativa de imitação dos processos suíços, as crianças recebiam uma educação f ísica e militar que fazia o encanto do povo dessa época. A reacção monárquica tratou de expulsar os maçons e os republicanos da Municipalidade de Lisboa, e, para realizar a absorção total, ela centralizou toda a instrução primária nas mãos do Governo, sob a tutela do Ministério do Interior. Esta determinação foi duplamente grave sob dois aspectos, pedagógico e administrativo. Mas a Maçonaria não se deixou desencorajar, e, na impossibilidade de intervir directamente por meio dos poderes do Governo, ela tratou de vir em auxílio da instrução pela iniciativa particular.29

29

M. Borges Grainha, História da Franco-Maçonaria em Portugal, pp. 187-188. www.clepul.eu


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Repare-se que a educação de Carlos é uma educação militar, sujeita toda ela a rigores e horários e que é prestada particularmente pelo Avô. O texto citado, claro e preciso, permite concluir que a haver o binómio na educação, seria mais correcto exprimi-lo sob a forma de educação progressista / educação reaccionária. Aliás esta última fórmula estaria mais de acordo com o próprio espírito maçónico. Que ideia pretende, então, Eça transmitir com a educação de Eusebiozinho? Eusebiozinho é uma caricatura, e, como tal, Eça exagera. Não quer dizer que não houvesse uma educação desse género. Pensamos que, ao colocá-la com traços tão nítidos e irónicos, Eça, num primeiro momento, quis realçar a importância da primeira. Perante, porém, o fracasso que o correr da História parecia promover, no final da estória, acaba por condescender com a segunda, pois Eusebiozinho consegue o que Carlos não conseguiu: casar-se. Bem, ou mal, mas constituiu família.

2 . 5 . A Viagem pelo Mundo Pelo que já ficou dito, pode concluir-se que Carlos surge em Os Maias como um autêntico iniciado maçon. Corrobora o facto a sua grande viagem pelo Mundo, depois do insucesso verificado no campo do amor. Carlos efectua uma viagem durante dez anos. Ora este número não se revela alheio à vivência das ideias que professa, sobretudo as do tipo rosacruciano. O rosa-cruz Ne doit pás rester plus de dix ans hors de sa patrie.30

Esta viagem pelo mundo pode relacionar-se com o Canto X de Os Lusíadas, como a vista da Máquina do Mundo.

3 . As Personagens Costuma dizer-se, com pena verdade, que Eça retratou neste romance familiares e amigos. Não o fez, todavia, por questões mera30

Eric Muraise, Le Livre de l’Ange, p. 342.

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mente descritivas e sentimentais, embora estas se encontrem imanentes. Atribuiu-lhes, antes, um cariz fortemente simbólico, influenciado pela admiração pelo avô e pela própria idiossincrasia.

3 . 1 . O Avô Porquê o seu nome de Afonso da Maia? Quando, no momento de atribuir nome à criancinha nascida de Pedro e de Maria de Monforte, Eça fez notar que o nome não é uma coincidência mais ou menos sentimental ou de progénie, mas encerra uma realidade simbólica, profunda e nem sempre explícita. Afonso traz subjacentes várias ideias. É o nome do nosso primeiro rei, facto que remete para uma origem e para a Idade Média, a época da construção das catedrais e, portanto, da Maçonaria operativa. O nome de família igualmente se manifesta expressivo: Maia provém de Maia, mãe de Hermes, deusa da fecundidade. Faculta as ideias maçónicas de sigilo, de criação da obra e de si mesmo. Repare-se que a família Maia já possui homónimos no tempo de D. Afonso Henriques31 . Deste modo, o nome do Avô forma uma unidade muito ipseica. Afonso era maçon. Segundo Eça, Fora, na opinião de seu pai, algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal 32

Pertencia a uma ala extremista, o que é próprio da fogosidade juvenil. Isso acarretou-lhe alguns problemas: ruptura com Caetano da Maia, seu pai, e exílio. Relacionado pelos ascendentes e pela esposa (uma Runa) com o tradicionalismo português, Afonso inaugurará a tradição maçónica da sua família. O seu casamento não é mais do que o símbolo das lutas entre a nobreza tradicional, absoluta e religiosa, com o novo espírito. Durante a sua estada na Inglaterra, as ideias jacobinistas que desenvolvia abrandarão ao verificar a desigualdade existente entre os seus correligionários (e em franca oposição às ideias que defendiam): 31 32

A título de exemplo, Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador. Cap. I. www.clepul.eu


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Os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres à forra, e a plebe, o exército, depois dos padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à fome, à vérmina, à febre nos barracões de Plymouth.33

É talvez o momento que o faz assumir uma atitude moderada em vez dos excessos e veemência anteriores. Com o andar dos tempos será este o caminho que percorrerá e assumirá a sua atitude de venerável (o venerável da loja).

3 . 2 . Carlos da Maia O seu nome não indica uma escolha ao acaso. Para se entrar um pouco no mistério que rodeia o nome convém lembrar que Carlos é também o nome da personagem central da novela da Joaninha em Viagens na minha Terra, de Almeida Garrett, uma novela igualmente ligada à temática e iniciação maçónicas34 e de Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis. Estamos entre três autores que enfileiraram na Ordem. Porquê este nome de Carlos? Almeida Garrett explica na introdução ao Romance Dom Claros d’Além-Mar, inserto em Romanceiro: ‘Dom Claros d’Além-Mar’, que em muitas partes o povo corruptamente diz ‘Dom Claros’, não sei se nasceu português ou castelhano: propendo para a última origem, apesar de que, impresso nas antigas colecções dos nossos vizinhos, o povo de Portugal, todavia, o canta bastante diverso, mas não peiorado decerto.35

Conclui José de Almeida Moura36 : Assim, foi este nome eleito para o de herói romântico, com um consciente fundamento sociopolítico e histórico, mesmo sem a achega das obras em língua castelhana, alemã ou francesa que fizeram do seu tipo um protagonista. 33

Cap. I. Cf. José de Almeida Moura, Paidêutica e Expressão Literária nas Viagens de Garrett. 35 II volume, p. 231 36 José de Almeida Moura, idem. 34

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Carlos é o anagrama de Claros. Ora Claros significa iluminado, o que possui a luz. E esta luz só se torna inteligível através da iniciação. Carlos deve o seu nome ao facto de Maria Monforte admirar Carlos Eduardo Stuart. Para abrandar desde já o papá, Pedro quis dar ao pequeno o nome de Afonso. Mas nisso Maria não consentiu. Andava lendo uma novela de que era herói o último Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho. . . Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.37

E continua a sua ideia: tal como Carlos Eduardo Stuart foi o último da linha varonil dos reis da Escócia também este o foi da família Maia. Ora são os Stuart que a Maçonaria inglesa vai apoiar38 . Carlos e Maria, com nomes Stuart, serão elementos da Maçonaria destinados 37

Cap. II. Mas, em certa medida, estes Stuart são um manto diáfano da fantasia. Em 1826 surge um nome idêntico: Carlos Stuart. Este Carlos Stuart é quem, vindo do Brasil, apresenta a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro ao Conselho de Regência em 8 de Julho de 1826. Ora é esta carta que Garrett refere nas Viagens. A 1ª carta que Carlos enviou a Joaninha. Quanto à 2ª . . . essa nunca mais chegou. A ligação entre as Viagens e Os Maias surge mais nítida se se reparar na relação das datas. A Carta é trazida em 1826; os Maias deslocam-se para o Ramalhete no Outono de 1875. Entre 1826 e 1875 vão 49 anos. Isto é, o número de capítulos do romance garrettiano. Este facto pode querer significar que Os Maias serão a continuação das Viagens, e que a ligação é feita pelo Ramalhete. Ora as duas estórias são totalmente diferentes e separadas em todos os campos. Onde, então, a ligação? É que Carlos da Maia, e o que ele pretende, só são possíveis depois da entrega dessa carta. Em 1826 nasce Pedro da Maia. Nasce quando chega a Carta. Com Pedro começa uma nova era, assim como com a chegada da Carta. (Num parênteses convém notar que seria útil um estudo sobre os números em Eça de Queiroz. Para provar a necessidade desse estudo gostaria de citar aqui um facto, que, pensamos, se revela significativo.) A nascer em 1826 e a morrer em 1852, Pedro viveu 26 anos. Ora 26 é também o número do quarto de Maria Eduarda no Hotel Central. Desaparecido com o suicídio, Pedro reaparece neste capítulo VI com as lembranças de Carlos acerca da história de seu pai. Quer dizer: desaparecido com o suicídio, a história de Pedro prolonga-se a partir deste capítulo, quer pelo número de quarto de Maria Eduarda, quer pelas lembranças de Carlos da Maia. 38

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a desempenhar um papel de inovadores: a admissão das mulheres no âmbito da Ordem. E ambos, assim como o Avô, praticam a principal regra maçónica: a caridade. Há uma semelhança muito grande em certa passagem do romance garrettiano que lembra a atitude de Carlos perante Maria Eduarda. Dom Claros apaixonara-se por Claralinda e isso levou-o a exclamar a seguinte quadra: Quero fazer uma aposta, Ou eu não sei apostar: Claralinda há-de ser minha Antes d’o galo cantar.39

3 . 3 . Maria Eduarda da Maia Maria Eduarda é a primeira mulher a entrar no Ramalhete, na Loja principal. O facto ocorreu aquando de uma ausência do Avô em Santa Olávia. Carlos convidou-a a jantar no Ramalhete e mostrou-lho. Mesmo em cabelo foram ver defronte as cocheiras: o guarda-portão ficou de boné na mão, embasbacado por aquela senhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavalos, e fez uma festa grata e mais longa à ‘Tunante’, que tantas vezes levara Carlos à Rua de S. Francisco. Ele via nestas simples coisas as graças incomparáveis de uma esposa perfeita.40

Este aspecto inovador chocou as correntes tradicionais do seio maçónico. As mulheres não eram admitidas na Ordem. Em 1868, o Conseil de l’Ordre interdit l’initiation des femmes comme contraire à la Constitution, aux statuts généraux et à la tradition maçonnique.41 39 40 41

Almeida Garrett, ibidem, p. 235. Cap. XIV. In La Franc-Maçonnerie, textes présentés par Gérard Gayot, p. 29.

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Já as Constituições de Anderson diziam no cap. III: Ceux qui sont admis à être membres d’une Loge, doivent être des gens d’une bonne réputation, pleins d’honneur et de droiture, nés librés et d’un age mûr et discret. Ils ne doivent être ni esclaves, ni femmes, ni des hommes qui vivent sans morale ou d’une manière scandaleuse.42

Depois, em 1737, Bertin, na Apologie de l’ancienne, noble et vénérable société des Freys-Maçons afirma que Dieu, le Roy et l’hinneur son d’abord les trois pivots sur lesquels cette ancienne société tourne depuis près de sept siècles. Une confederation d’honnêtes gens distinguez dans tous les États, qui ne cherchent qu’à se divertir philosophiquement dans le commerce des beaux sentiments. Des belles letters et des beaux arts de toute espèce, en forme de noeud. Et, comme les dames s’occupent rarement de ces sortes de choses, que celles mêmes qui seroient dans ce goust détourneroien bientôt la conversation et les occupations de la Compagnie, soit par l’ennuy que pourroit leur causer une trop grande unifirmité, soit par la complaisance naturelle qu’auroient pour elles la plus part des frères, vous sentez d’abord, Madame, un des motifs non de l’exclusion, mais de l’inadmission. Les vertus capitales sont de tout sexe, ‘concede Bertin, mais les dames ne supportent pas l’égalité de condition et de rang; plus encore leur beauté et leurs grâces’ aiguillonnent la plus vive de toutes les passions alors que l’Amour est incompatible avec la philosophie.43

No entanto, no tempo de Eça travava-se a luta para a admissão das mulheres nas Lojas e, inclusivamente, a criação da Maçonaria Feminina. As mulheres deviam obedecer aos mesmos requisitos dos homens, isto é, ter mais de 21 anos de idade, ter costumes irrepreensíveis, ter uma profissão livre e honrosa e justificar os meios suficientes de existência; ter conhecimentos suficientes para compreender e apreciar as verdades maçónicas. É este o artigo 9 das Constituições 42 43

Idem, ibidem, p. 58. Idem, ibidem, p. 128. www.clepul.eu


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do G.O.D.F.44 , de 185845 . Em Os Maias a sociedade portuguesa da época caracterizava-se pelo aspecto conservador. Carlos torna-se o inovador. E a reacção mostrar-se-á terrível, retratando o crime do incesto. Mitologicamente, porém, Maria Eduarda levanta um problema. Carlos, por ser homem belo, inteligente e rico e em oposição a Tancredo, o italiano que seduz e leva Maria Monforte para Viena, considerado um Apolo de Feira, relaciona-se com o autêntico Apolo. Maria Eduarda deveria relacionar-se com Diana. Mas Eça prefere atribuir-lhe o epíteto de Juno. Porquê? Porque Juno é a deusa relacionada com os partos e Maria Eduarda dará à luz Rosinha, a única descendente da família Maia.

3 . 4 . João da Ega Para remate da educação que se propusera dar-lhe, o Avô monta a Carlos uma vivenda em Coimbra para que este se forme em Medicina. Aí conhece João da Ega. João, nome vulgaríssimo entre os antropónimos em Portugal, é igualmente o nome dos dois Santos que se relacionam com os solstícios. Ora é nas comemorações destes dois Santos que a Maçonaria encontra a época para as suas principais festividades. Por outro lado, Ega constitui um nome muito semelhante a Eça. Realmente o retrato físico de Ega assemelha-se e muito ao de Eça, traçado por Batalha Reis: Trajava uma longa sobrecasaca de cuja botoeira saía, com coloridos, um ‘plastron’ que nos pareceu imenso, sobre o qual se erguia um colarinho altíssimo, onde a custo a cabeça oscilava. Os punhos, que botões uniam pelo centro com uma corrente de ouro, encobriam grande parte das mãos metidas em luvas cor de palha. Vestia calças claras, arregaçadas alto, mostrando meias de seda preta com largas pintas amarelas como ouro e sapatos muito compridos, ingleses, de polimento. Tinha na cabeça um chapéu alto, de pêlo de seda brilhantíssimo. E olhava-nos com um monóculo que lhe estava sempre a cair e que ele, 44 45

Grande Oriente de França. Idem, ibidem, p. 111.

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por isso, elevando as sobrancelhas e abrindo a boca em esgares sarcásticos, amiúde reentalava junto ao lacrimal do olho direito.46

Falta dizer que era magro e nervoso. O papel de Ega revela-se muito importante em Os Maias: é ele quem vai, chocando ou corroborando ideias, emitir opiniões. Proudhon constitui novidade e falou sobre o amor e sobre as mulheres. Ega ecoa-lhe os conceitos. Diferente atitude encontramo-la em Dâmaso ao falar das camponesas do Norte do País a Maria Eduarda. Compreende-se, agora, porque ficou esta tão chocada com tal opinião. Por outro lado, a teoria da invasão espanhola para apuramento das qualidades nacionais poderá constituir o eco da luta entre várias Lojas com a Constituição de 1871 do G.O.L.U.47 . Só pela Constituição de 1878, ao revogar a anterior, a Pátria se torna uma das bases da Maçonaria. Ega funciona como padrinho de Carlos em Coimbra, cidade onde pululavam várias agremiações secretas de estudantes dominadas pela Maçonaria. Basta lembrar Antero, o Santo Antero (título atribuído de Kadosh), que pertenceu ao Raio e que possivelmente houvera endoutrinado o próprio Eça. Ega funciona, assim, como o retrato de Eça conservador, e como complemento de Carlos da Maia, o retrato de Eça progressista. Ambos, porém, em concordância com Dâmaso, coincidem na condescendência ao relacionamento sexual com senhoras casadas. O adultério mostra-se, podemos afirmá-lo, como pano de fundo de Os Maias. O problema não surge tanto social como maçónico. Desde o início que uma das impiedades atribuídas aos maçons era a de considerarem lícitas todas as práticas sexuais, à excepção da sodomia. Tais acções ímpias levaram já Clemente XII à publicação da Bula In eminenti.

3 . 5 . Craft O nome de Craft, nome do dono da Toca, torna-se elucidativo. 46 47

João Medina, Eça de Queiroz e o seu Tempo, pp. 83-84. Grande Oriente Lusitano Unido. www.clepul.eu


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O grau de companheiro foi tirado do termo ‘Fellow-Craft’ da antiga Maçonaria operativa escocesa, posteriormente adoptado pela Maçonaria especulativa, primeiro em Inglaterra e depois em todo o universo. Este termo, como se pode ver nos estatutos de Shaw de 1598, que foram os regulamentos dos pedreiros escoceses, era sinónimo de ‘Mestre’. Mas qualquer que tenha sido a posição por ele ocupada, nos primeiros quinze anos da primeira Grande Loja, o grau de Fellow-Craft (companheiro da Arte ou do Of ício) foi relegado, na Maçonaria inglesa, à sua posição actual de grau intermediário no sistema do simbolismo.48

Craft é companheiro no Ramalhete, mas, por outro lado, possui uma casa (Loja) nos Olivais. É essa casa (Loja) que ele alugará a Carlos para viver com Maria Eduarda um Verão. Actualmente instala-se nela a Bedeteca dos Olivais da Câmara Municipal de Lisboa. O manoir pertenceu à família van Zeller, último Contador-Mor do Reino. Nela Eça se encontrava com a família Resende.

3 . 6 . Brown Foi o preceptor de Carlos Eduardo da Maia, mandado vir de Inglaterra. Este nome lembra um ramo familiar ligado ainda com Eça de Queiroz (Browne), mas igualmente Patrick Brown. Supõe-se que tenha sido um dos elementos principais da Casa Real da Lusitânia. Patrick Brown Teve o encargo de informar o núncio de que a Loja se dissolvera. Era capitão de navios e natural da Irlanda, tendo nascido em Walerford, em 1698. O seu ingresso na Ordem verificou-se em Portugal pelos meados de 1737.49

Isto passou-se no reinado de D. João V. E, em Os Maias existe uma referência a este rei: é na resposta de Vilaça ao Núncio, quando este quis alugar o Ramalhete 48

Nicola Aslan, op. cit., art. Companheiro. Graça da Silva Dias e J. S. da Silva Dias, Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, vol. 1, tomo 1, p. 97. 49

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3 . 7 . Rosa Rosa, a Rosinha, é filha de Maria Eduarda e de Mc Green, irlandês. Relaciona-se com a rosa nos seus diversos significados em todas as tradições. Sub rosa significa o segredo que é devido conservar. Rosinha é o Segredo que esconde o significado profundo de Os Maias.

II — Estrutura Matemática Nesta segunda parte constatar-se-á um reforço ou acrescento das ideias anteriormente enunciadas. A divisão do texto do romance, que propomos como estrutura profunda, permitirá aclarar as motivações profundas de Eça e determinar uma cosmovisão esclarecedora da época, com todas as suas realizações e insucessos. Eça não dispôs as peripécias do romance ao acaso; antes as colocou precisa e significativamente, sobretudo as que se referem ao fim em vista, ou tema. Deste modo elaboraremos várias possibilidades de análise: a divisão 2x9, ou o centro aritmético de Os Maias; a divisão 3x6; a centralidade áurea; e as lateralidades. A nosso ver, determinam momentos importantes no desenrolar da intriga e unem sempre o masculino com o feminino, embora com predominância de um deles sobre o outro, conforme o significado do número que se lhes refere. Não constituem novidade nem especificidade do campo maçónico; puderam, no entanto, ser aproveitadas pela Ordem. Permitem estabelecer qualquer estrutura escondida. A sua origem é muito antiga e foram empregues já em outras obras, quer da Antiguidade Clássica, quer do Classicismo. Lembre-se, verbi gratia, a República de Platão, ou Os Lusíadas de Luís de Camões. Não se tornará necessário retomar aqui o número de capítulos, 18, que já afirmámos relacionar-se com o grau Rosa-Cruz da Maçonaria Escocesa. Um problema, todavia, se levanta na determinação desses centros. A obra possui um número par de capítulos. Portanto, na determinação da metade matemática do texto, esta cairia num espaço vazio. Por isso, deve atender-se a núcleos matemáticos determinados www.clepul.eu


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pela ordem directa e pela ordem inversa dos capítulos. Determina-se deste modo, o núcleo central matemático, ou qualquer outro centro nuclear.

1 . A divisão 2x9 1 . 1 . O número 2 Trata-se do cálculo mais simples. Basta dividir por 2. Assim, por este número, revela-se a análise, a fragmentação, o princípio Feminino. Está, pois relacionado com a Mulher, no seu aspecto de Mãe, de Esposa e de Filha50 . Surge Maria Eduarda em toda a sua potencialidade como personagem principal da obra. Mas igualmente o 2 designa duas realidades opostas e complementares, um problema que se torna necessário analisar. Partout où le 2 apparaît, la situation cesse d’être simple, elle devient ambigüe, elle est mise en question (le doute) (. . . ). L’expérience de la ‘séparation’ est continue dans le 2, c’est son sens élémentaire (. . . ). Voilà quelle est dans la pratique psychothérapique, la function la plus ordinaire du 2. Traduit dans le langage technique, ce chiffre signifie: probème, nécessité d’analyse.51

O número 2 coloca o problema da simetria. Revela-se imprescindível aquando da análise das lateralidades, a que procedermos mais adiante.

1 . 2 . O número 9 O número 9 remete para a perfeição no campo formal. Revela o Mestre, a realização perfeita de uma empresa, a Razão que explica a realidade. Desde a Idade Média que representa S. João Evangelista, um dos Patronos da Maçonaria e a iniciação, o Espírito. Em Dante, o 9 atribui-se a Beatriz. Quer o dois, quer o nove são números que, em diversas tradições, se relacionam com a Lua. Isto significa que a Lua preside ao centro 50 51

François-Xavier Chaboche, Vida e Mistério dos Números, p. 133 e segs. Dr. L. Paneth, La symbolique des nombres dans l’inconscient, pp. 13-15.

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aritmético de Os Maias. E este facto torna-se tanto mais evidente se se lembrar que o 18o arcano do Tarot é o da Lua (o número de capítulos da obra). ‘La Lune’ — ou ‘le Crépuscule’ — 18.eme arcane majeur du Tarot, selon certains interprètes, exprimerait l’enlisement de l’esprit dans la matière (Enel); la neurasthénie, la tristesse, la solitude, les maladies (g. Muchery); le fanatisme, la fausseté, la fausse sécurité, les apparences trompeuses, la fausse route, le vol commis par des proches ou des serviteurs, les promessese sans valeur (Th. Tereschenko); le travail, la conquête pénible du vrai, l’instruction par la douleur ou les illusions, les déceptions, les pièges, le chantage et les égarements (O. Wirth). Cet arcane complete les significations de l’Amoureux et, comme cette lame, correspond en astrologie à la sixième maison horoscopique.52

Esta citação tem o mérito de referenciar características de praticamente todas as personagens do romance. A Lua, como se sabe, é um astro sem brilho próprio; o brilho que apresenta provém-lhe do Sol. Por si não cria luz. Maria Eduarda, assim como todos os outros personagens, rodam à luz do astro Carlos. Esse facto centraliza-o, pois ele introduzirá a irmã no Ramalhete. Mas Carlos, pela melancolia que o domina, afigura-se um sol negro, que nunca dará vida. A Lua simboliza também a passagem da vida à morte e desta, novamente, à vida. Com efeito, é o que acontece com Maria Eduarda. Como ficou dito na citação anterior, a Lua corresponde à 6ª casa horoscópica. Ora, sendo Carlos e Maria Eduarda personagens submetidas ao determinismo lunar, é no capítulo 6º que se vêem pela primeira vez, em adultos, aquando da peripécia do Jantar no Hotel Central. O 9 relaciona-se com o 3 e o 6, números que dominam a estrutura de Os Maias. Segundo Nicola Aslan, 3 é a realização do começo; o 6 é a realização da oposição; 9 é a realização do equilíbrio, a consumação.53 52

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., art. Lune. Nicola Aslan, Grande Dicionário Enciclopédico de Maçonaria e Simbologia, art. Nove. 53

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1 . 3 . O número 10 O número 10 pode resultar de 5+5. Significa, neste caso, a evolução e a involução. É no capítulo 5º da obra que termina a formação de Carlos, com a operacionalidade do Laboratório. Depois, no capítulo 6º, Carlos encara pela primeira com Maria Eduarda e surge o leitmotiv da desgraça do Ramalhete e dos seus habitantes. Mas 5 é igualmente o número do casamento e de Eros. Assim, propicia-se agora o namoro e futuro casamento do casal. Según Bayard, el 10 — base de la filosofia pitagórica — es el número simbólico de Adán (el 1 representa el falo) y de Eva (el 0, por su forma, simboliza el huevo).54

1 . 4 . Episódios determinantes Como se poderá ver no esquema anexo nº 1, surgem dois factos determinantes para o desenrolar da acção: a suite 26 que Maria Eduarda ocupava no Hotel Central e a Corrida de Cavalos. Carlos apresenta um aspecto passivo, dominado pelo chamamento de Dâmaso, que então andava com a Brasileira no seu romance divino. Carlos ansiava um encontro com esta.

1 . 4 . 1 . A Suite nº 26 Maria Eduarda hospedara-se na suite 26 do Hotel Central e depois na Rua de S. Francisco. Porquê esta precisão do número da suite? O número 26 decompõe-se em 2x13. Cada um destes números é primo. O número primo pode Représenter un problème vital irrémédiable, une personne troublant constamment sa paix intérieure et qu’il ne peut écarter de sa vie; ou encore une Pierre d’achoppement intérieure, par exemple une limite infranchissable à ses aptitudes congénitales.55 54 55

J. A. Pérez Rioja, Diccionario de Símbolos y Mitos, art. Diez. Dr. L. Paneth, op. cit., p. 61.

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Representa, ainda um complexo56 , uma atitude problemática57 . Deste modo, a suite 26 indica a existência de uma atitude problemática causada por uma pessoa impossível de afastar da vida e que causa perturbação no avanço interior. Dá ao leitor o resumo do que se passa na intriga principal.

1 . 4 . 2 . A Corrida de Cavalos Trata-se do mais denso e complexo episódio de toda a obra. A sua significação desenvolve-se em dois níveis: o nacional e o da procura de Maria Eduarda por parte de Carlos.

1 . 4 . 2 . 1 . O Nível Nacional O Hipódromo de Belém retrata o país de então. Na estrutura do romance este episódio situa-se entre duas doenças: a de Rosa (Cap. 9) e a de Miss Sara (Cap. 11). Entre estas duas doenças, a Corrida de Cavalos assume-se doentia. Com efeito, todo o aspecto da corrida é de decadência: a entrada do hipódromo, o ar burocrático da mesa, a construção das bancadas, o ambiente, os cavalos, enfim tudo está mal feito ou não presta. Repare-se em detalhes como as bancadas onde se havia empregado a cor azul para a tribuna mas onde também se deixara a madeira com a sua cor natural, representando a bandeira nacional da Monarquia — símbolo do País; os cavalos que se dividiam em dois tipos: os fogosos britânicos — símbolo da colonização inglesa da época em vigência no nosso País — e os cavalicoques nacionais, representados pelo Vladimiro e pelo Minhoto. São estes que vencerão e o orgulho no País por parte de Eça brotará do fundo da crítica constante e aguda que traça. O País terá de contar com as suas fracas forças para vencer os seus maus momentos.

1 . 4 . 2 . 2 . O Nível da procura de Maria Eduarda por parte de Carlos Os cavalos significam igualmente a paixão. Os dois últimos cavalos a competir e que disputarão o primeiro lugar representam Maria 56 57

Idem, ibidem, p. 61. Idem, ibidem, p. 89. www.clepul.eu


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Eduarda e Carlos. Maria Eduarda que surge com um nome estrangeiro revê-se no Vladimiro, nome igualmente estrangeiro; Carlos sempre nacional retrata-se no Minhoto. Simbolicamente é Vladimiro quem obterá a vitória; ou seja, será Maria Eduarda quem vencerá, dando igualmente jus de louros ao significado deste centro como uma manifestação essencialmente lunar.

1 . 4 . 3 . O Ambiente vivido em cada um dos dois capítulos Para se compreender melhor a importância do núcleo central aritmético convém visualizar o que se passa em cada um dos capítulos. Cada um dos episódios que os povoam constitui um pano de fundo em que a acção principal — o amor entre os dois irmãos — se desenrola.

1 . 4 . 3 . 1 . No Capítulo 9 • Relações de Carlos e Gouvarinho. Logo no início do capítulo, o Avô entrega a Carlos uma carta da Gouvarinho a convidá-lo para jantar. Carlos passa esta semana em intimidades com os Gouvarinho. Num chá, quase que são apanhados, Carlos e Gouvarinho, pelo Conde a beijarem-se. (Referencie-se, aqui, o beijo como identificativo de encontro entre irmãos. A Gouvarinho assume-se como caso isolado de adepta da Maçonaria Feminina, ainda não introduzida em Loja). • Relações de Carlos e Maria Eduarda. Tendo Rosa adoecido, Dâmaso chama Carlos para lhe fazer uma consulta. Carlos vai, assim, pela primeira vez à habitação de Maria Eduarda. Maria Eduarda, todavia, encontra-se em Queluz e o tão ansiado encontro esvai-se. Começa aqui a anagnórise do romance com a questão de saber porque é que Rosa tem olhos azuis. • Relações de Ega e Cohen. Mascarado de Mefistófeles, Ega vai ao jantar dos Cohen, mas vê-se vergonhosamente expulso. Furioso pela injúria, pretende matar o Cohen em duelo e, posteriormente, ingressar num convento se o Cohen matar a esposa. Janta com Carlos em casa do Craft. No dia seguinte, Amélia, criada dos Cohen, despedida, vai à Vila Balzac expor o que se tinha passado. Ega deswww.lusosofia.net


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faz a Vila Balzac e anuncia retirar-se para a quinta da mãe com o intuito de escrever um livro. • Relações de Carlos e Dâmaso. Dâmaso chama Carlos para prestar assistência a Rosa. Carlos aproveita a ida a pé até ao Hotel Central para inquirir o Dâmaso acerca do romance divino em que anda metido. Irrita-se, mas tudo acaba em bem. Combinam a ida ao jantar dos Brasileiros e ao dos Cohen. Mais tarde, é Dâmaso que vem contar os boatos que se fabricaram em Lisboa acerca do Ega e da sua expulsão da casa dos Cohen. Anuncia posteriormente a Carlos que Castro Gomes se encontra doente, mas Carlos, volvidos dois dias, vê-os a passear nas Janelas Verdes. Dâmaso avisa ainda Carlos de que o Castro Gomes já não se deslocará ao Brasil e de que se encontra aborrecido com ele por lhe não ter agradecido os cuidados com Rosa. No entanto, Castro Gomes pretende enviar um bilhete a Carlos, agradecendo-lhe a visita.

1 . 4 . 3 . 2 . No Capítulo 10 • Relação de Carlos e Gouvarinho. Carlos desfruta abertamente os seus amores com a Gouvarinho em Santa Isabel. Durante a Corrida de Cavalos, a Gouvarinho previne Carlos de que se deslocará ao Porto, ao aniversário do pai, e explica o seu plano para passarem uma noite em Santarém, aquando dessa viagem. • Relação de Carlos e Dâmaso. Carlos quer encontrar-se com Maria Eduarda. Por isso, combina com Dâmaso um encontro em casa do Craft. No entanto, no dia aprazado, Dâmaso não aparece. Durante a Corrida de Cavalos, no final do grande prémio, Carlos encontra-se com Dâmaso que lhe diz que Castro Gomes foi para o Brasil. • Relação de Carlos e Maria Eduarda. Ao regressar do Grémio, Carlos vê Rosa e Maria Eduarda num coupé. Sonha, então Carlos com Maria Eduarda. Maria Eduarda não aparece na Corrida. Mora, nessa altura, no prédio do Cruges, no andar superior ao dele. No final do dia da Corrida, Carlos vai a casa do Cruges e vê Maria Eduarda a fechar as gelosias. Como Cruges se encontra ausente, Carlos retira-se para o

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Ramalhete, aonde lhe chega uma carta de Maria Eduarda a pedir uma visita médica.

2 . A Divisão 3x6 A sequência narrativa de Os Maias pode dividir-se em três conjuntos de 6 capítulos cada. Que significa esta tripla divisão? O número 6 significa a união da análise com a síntese, manifesta a harmonia, a beleza e a luz. Tal como o casal enamorado de Carlos e Maria Eduarda. Mas igualmente este número aparenta-se com a raiz da palavra sexo, e constata-se que este casal procura desfrutar o prazer, o mais possível. Mas igualmente é o símbolo do livre-arbítrio, a escolha que permite suplantar a realidade e atingir a perfeição. O número 3 é de capital importância na Maçonaria. Indica os 3 primeiros grau de Aprendiz, Companheiro e Mestre. Constituem a chamada Maçonaria Azul. Carlos faz a sua aprendizagem até ao 6o capítulo, simbolizada na educação, no curso e na formação do Laboratório; vive, de seguida como Companheiro, do 6o ao 12o Capítulos, comendo o mesmo pão com os colegas e amigos da família; no Capítulo 12 dá o primeiro beijo a Maria Eduarda, tornando-se Mestre e assumindo-se, por morte do Avô, como o Venerável da Loja Ramalhete. Esta divisão tripartida refere-se essencialmente ao trajecto vivencial de Carlos. Numa perspectiva mais romanesca, esta tripla divisão mostra a superação dos problemas: o Ramalhete revela-se fatal, mas a família continuará em França; o Capítulo 6 funciona como um zero simbólico — ponto de chegada do que já vinha do anterior e ponto de partida para os episódios futuros; o Capítulo 12 é um outro zero simbólico: final do que se estabelecera no Capítulo 6 e partida para as peripécias finais, que culminarão no incesto e na separação do casal Carlos e Maria Eduarda.

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2 . 1 . Episódios determinantes Neste núcleo, quais serão os episódios determinantes para o tema da obra?

2 . 1 . 1 . O Jantar no Hotel Central Surge no Capítulo 6. Promovido para apresentar Carlos à sociedade lisboeta, logo à chegada Carlos vê Maria Eduarda pela primeira vez. Ega apresenta Dâmaso Salcede a Carlos, que fica, igualmente relacionado com Tomás de Alencar — elemento importante para a analepse de Pedro da Maia.

2 . 1 . 2 . Visita a Maria Eduarda e 1o Beijo Verifica-se no Capítulo 12. Durante essa visita Maria Eduarda recusa receber Dâmaso: é a ruptura com este e a afirmação total da sua ligação com Carlos. Este beija, pela primeira vez, Maria Eduarda. Carlos compra as mobílias do Craft e consegue o aluguer da sua casa nos Olivais, a que porá o nome de A Toca.

2 . 2 . O ambiente vivido em cada um dos Capítulos Teremos de estabelecer uma análise por núcleos, dado que, neste caso, impõe-se a ordem directa e inversa em momentos separados da intriga.

2 . 2 . 1 . Núcleo dos Capítulos 6 e 7 2 . 2 . 1 . 1 . O Capítulo 6 • Visita de Carlos à Vila Balzac. Um pormenor importante dessa visita é a prolepse visualizada por Ega de que Carlos acabará numa tragédia infernal. Trata-se de um pequeno leitmotiv que balbucia logo no primeiro Capítulo. Por outro lado, Carlos afirma a Ega o seu desapontamento com a Gouvarinho. • Interesse de Carlos por Maria Eduarda. Dâmaso informa Carlos de que a Brasileira se chama Castro Gomes por parte do marido. Carlos confessa interessar-se por ela. O Capítulo termina com o sonho erótico de Carlos em relação a Maria Eduarda. www.lusosofia.net


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• Referências aos pais de Carlos. Carlos toma consciência de quem foi seu pai e da desgraça que o vitimou. Carlos relaciona conversas havidas a esse respeito com Ega, o Avô e, agora também, Alencar.

2 . 2 . 1 . 2 . O Capítulo 7 • Admiração de Dâmaso por Carlos. Dâmaso segue Carlos, defende Carlos, passa apontamentos a Carlos, apaixona-se pelo bric-à-brac, imita Carlos. Arranja o romance divino, o que o obriga a separar-se de Carlos. Por outro lado, confessa-se amuado com Castro Gomes por este não lhe agradecer o interesse demonstrado por Rosa. • Relacionamento de Carlos e Gouvarinho. Carlos desabafa com Ega a sua indiferença pela Gouvarinho. Ega, no entanto, garante-lhe que ela o ama. A Gouvarinho vai ao Consultório de Carlos. Admira os quadros e convida-o para um chá. Reflexões de Carlos. • Procura de Maria Eduarda por Carlos. Conhecido o relacionamento de Dâmaso com a Brasileira, Carlos insiste no seu desejo de se encontrar com ela. Anteriormente, Carlos já a vira por duas vezes e percorrera o Aterro à sua procura uma vez, mas sem a encontrar.

2 . 2 . 2 . Núcleo dos Capítulos 12 e 13 2 . 2 . 2 . 1 . O Capítulo 12 • Jantar da Gouvarinho. Neste jantar já se impõe a presença de Maria Eduarda, pois a Gouvarinho sabe do caso pelo Dâmaso. Aversão do Carlos pelo Dâmaso. A Gouvarinho tenta reavivar o seu amor com Carlos através da mentira do mal-estar de Charlie, e consegue dar-lhe dois beijos.

2 . 2 . 2 . 2 . O Capítulo 13 • Relacionamento de Carlos e Gouvarinho. Carlos recebe uma carta da Gouvarinho a lamentar as suas ausências. Esta, incógnita e sem aviso, foi encontrar-se com Carlos. Passeiam pelo Aterro. Carlos pede-lhe explicações acerca deste seu comportamento e ela

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chega a saltar-lhe para o colo. No final do capítulo constata-se o rompimento total com a Gouvarinho. • Relacionamento de Carlos e Dâmaso. Ega informa Carlos acerca dos boatos que Dâmaso espalhara. Alencar defende Carlos dos boatos em casa dos Cohen. Ao encontrar Dâmaso com o Cohen e o Gouvarinho, Carlos ameaça arrancar-lhe as orelhas. Dâmaso manda pedir explicações ao Ramalhete por Teles da Gama. Tudo acaba em bem para Carlos. • Relacionamento de Carlos com Maria Eduarda. Carlos começa por ver se a casa dos Olivais está em ordem. De seguida vai à Rua de S. Francisco, mas Maria Eduarda havia ido a Belém. Carlos vai, depois, com Maria Eduarda aos Olivais; vêem a casa, põem-lhe o nome de A Toca; saúdam o génio tutelar da casa.

3 . A Proporcionalidade Áurea O Número de Ouro, φ, define-se como proportio habens medium duoque extrema. Ou seja, consiste na divisão de uma recta nas razões média e extrema. Número sagrado, por excelência, foi igualmente o número secreto da Maçonaria Operativa. E como tal continuou a ser aplicado na Maçonaria Especulativa. Exprime o equilíbrio entre o saber, o sentir e o poder58 ; a pulsação e o crescimento. Em Os Maias, feitas as contas com a medida 1,61859 , a centralidade áurea recai no Capítulo 11 da ordem directa, ou no 8, na ordem inversa. Seria, assim, melhor falar-se, não em centro áureo mas num núcleo áureo que ocuparia o espaço romanesco que medeia entre os Capítulos 8 e 11. Neste espaço se encontram os Capítulos do centro matemático. Quer isto dizer que esta área romanesca é a mais intensa da obra.

58 59

Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., art. Nombre. 18x0,618=11,124. Desprezam-se as casas decimais por supérfluas.

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3 . 1 . Os Capítulos Áureos 3 . 1 . 1 . O Capítulo 8 O Capítulo 8 é ocupado pela ida de Carlos a Sintra, com Cruges, à procura de Maria Eduarda. Aí encontram Eusebiozinho com Palma Cavalão e duas espanholas. Carlos encara com os Castro Gomes a sair do Palácio da Vila e a dirigirem-se, posteriormente, para Mafra. Carlos regressa a Lisboa. Porquê a Serra de Sintra? Esta serra, pelas suas características, constituiu um dos lugares dilectos do período romântico. Podem dispensar-se, como exemplo comum, os nomes estafados nomes de Lord Byron e do rei D. Fernando II. Mas a Serra de Sintra detém um significado mais profundo. O seu nome antigo era o de Serra da Lua. Deste modo, já se compreende o significado da procura de Maria Eduarda nesta serra paradisíaca. Por outro lado, a Lua representava-se pela serpente: símbolo fálico relacionado com a Árvore da Ciência do Bem e do Mal do Éden. A Serra de Sintra surge, assim, como um espaço indispensável na simbólica do romance.

3 . 1 . 2 . O Capítulo 11 Chamado, por carta de Maria Eduarda, no Capítulo anterior, para consultar Miss Sara, Carlos visita Mme Castro Gomes às 10 da manhã. Reconhece o Domingos, sabe o nome verdadeiro da Senhora que o chamara e consulta Miss Sara. As consultas sucedem-se e surge a intimidade, a princípio e por determinação tácita, casta, suave e plena de legitimidade. Com Carlos, Maria Eduarda troca impressões acerca de Dâmaso. Este havia seguido com os Gouvarinho para o Norte, regressa, numa tarde em que Carlos se encontra com Maria Eduarda. Expõe, então, as suas ideias sobre as camponesas. Carlos, entretanto ausenta-se da casa, ficando ainda lá Dâmaso. À noite vai ao Ramalhete. Carlos censura-o e ele acaba por expor-lhe os ciúmes que sentia. A Gouvarinho escreve bilhetes a Carlos, a partir do Norte.

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3 . 2 . Os subcentros áureos Os subcentros áureos possuem as funções de ligação com as outras divisões e de reforço das ideias das mesmas. O primeiro, situado no Capítulo 6 da ordem directa e no 13, na ordem inversa. Não nos demoraremos em paráfrases e em chamadas de atenção para pontos fulcrais, dado que estes já ficaram analisados na Divisão 3x6. O segundo subcentro áureo situa-se nos Capítulos 15 da ordem directa e 4 da ordem inversa. Ligam, como se verá, este intenso espaço central com o que apelidaremos de Lateralidades.

4 . A Última Fronteira Chamamos de Última Fronteira à precisão dos amores de Carlos e Gouvarinho e de Carlos e Maria Eduarda. Neste caso deve distinguir-se entre o namoro e o noivado. Se este nunca aconteceu com a primeira, por motivos óbvios, com Maria Eduarda a distinção verifica-se no Capítulo 14. Neste, com efeito, num primeiro momento, Carlos pretende acabar tudo com a Irmã, mas acaba por pedi-la em casamento. Cada um dos relacionamentos amorosos prolonga-se por capítulos: 5 a 13 para a Gouvarinho; 6 a 14 para Maria Eduarda. Nada será necessário acrescentar aqui sobre o número 9. Mais uma vez se identifica com a mulher e o seu papel preponderante. Por outro lado aponta-nos o Mestre à procura de si mesmo. Para tal é preciso ter a visão correcta da sua anima. A Última Fronteira permite ligar o espaço central, denso e coeso, às Lateralidades, pois ocupa os dois capítulos que se encontravam livres. Por outro lado, unem-se com a divisão 3x6. Quer isto significar que nada de vazio existe na obra; antes tudo se encontra unido e consequente.

5 . As Lateralidades No conjunto dos Capítulos constata-se que, até agora, praticamente nada se afirmou sobre os 4 primeiros e os 4 últimos capítulos da obra. www.clepul.eu


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Estes capítulos são marcados pelo 2.os subcentros áureos, que, deste modo ligam toda a estrutura central da obra a estes conjuntos laterais. Apresentam-se simetricamente. Formam as duas colunas da entrada do templo de Jerusalém e do templo maçónico. Por isso, permitem identificar a estrutura de Os Maias como a de um Templo, o que é próprio de uma grande obra de iniciação60 . Quais são, porém, estas duas colunas e qual o seu significado? Segundo a Bíblia, os seus nomes são Bo’az61 e Iakin. A primeira situava-se do lado esquerdo e a segunda do lado direito62 . Significavam respectivamente nele há força, ou perseverança e Deus estabeleceu. Bo’az indica o princípio passivo, negativo, a casa. É a coluna branca que se relaciona alquimicamente com o Mercúrio. Iakin exprime a firmeza, a estabilidade, a rectidão. É a coluna vermelha e relaciona-se com o Enxofre. Repare-se que estas duas cores são as que aparecem no restauro do pátio do Ramalhete e permitem retratar psicologicamente as duas personagens principais: Carlos e Maria Eduarda.

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Comparável certa mas mais veladamente com Os Lusíadas de Luís de Camões, ou a Mensagem de Fernando Pessoa. 61 I Reis, VII, 13 e segs.. 62 Na Maçonaria Francesa ocupam posições contrárias, o que tem sentido nesta obra, dada a influência francesa na introdução da Maçonaria feminina. www.lusosofia.net





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Conclusão Pouco ou quase nada se sabe da Loja de Adopção Filipa de Vilhena, filial da Loja Masculina Restauração de Portugal. Adivinha-se que as mentalidades não se encontravam preparadas para que vingasse. Podíamos afirmar que deve ter constituído um escândalo. Teve de acabar, depois de uma existência efémera, frustrando os seus organizadores. Atente-se no nome da Loja Masculina: Restauração de Portugal. Não era este o programa que toda aquela sociedade, que nos é apresentada em Os Maias reunindo-se no Ramalhete, pretendia e procurava realizar? Eça de Queiroz editou este romance em 1888. A Loja de Adopção surgiu em 1881. Eça, cujo espírito prestava extraordinária e minuciosa atenção a tudo o que o rodeava e se passava no país, deve ter sabido da sua existência. E partilharia, certamente, dos seus objectivos. Assim, no retrato da sociedade portuguesa da época não ignorou esta Loja e, simultaneamente, prestou profunda e reverente homenagem ao seu avô. Documento histórico algum o confirma e comprova; só uma análise a pormenores, que frequentemente se vêem abafados pela intensidade da escrita, e à estrutura muito bem escondida na sequência de peripécias que raptam a nossa imaginação, o permitem supor. Que a admiração que sentimos por este grande autor da nossa língua não evite a formulação de novas hipóteses, a investigação dos factos e as conclusões que aumentem o nosso conhecimento da grandeza de Eça de Queiroz.

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E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. /. . . / /. . . / E agora já era tarde, lembrou Ega. /. . . / Os dois amigos lançaram o passo, largamente. /. . . / — Que raiva ter esquecido o paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena /. . . / De novo a lanterna deslizou, e fugiu. Então, para apanhar o ‘Americano’, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia. Eça de Queirós



Parte VI

. . . Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco. . . (EQ)

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1º Amigo /. . . / Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana. . . Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo. . . Façamos fantasia!. . . Eça de Queirós. O Mandarim



Entre a Fantasia e a Realidade, a ambiguidade reveladora do narrador em O Mandarim António Augusto Nery1

Em meio à vasta produção de Eça de Queirós (1845-1900), a obra O Mandarim (1880) possui uma peculiaridade que não pode deixar de ser mencionada quando se empreende qualquer tipo de análise sobre o enredo: a narrativa vem acompanhada frequentemente de dois paratextos, um prólogo e uma carta-prefácio, que são importantes complementos para sua compreensão. O prólogo fora publicado conjuntamente com o texto, quando veio a lume, já a carta-prefácio, Eça endereçou ao editor da Revue Universelle Internationale — periódico francês para o qual costumava colaborar —, em 1884, por ocasião da publicação de O mandarim na França, e somente seria incorporada a todas as outras edições do livro a partir de 1907, quando a obra já estava em sua 5ª edição. Tanto a carta-prefácio quanto o prólogo parecem querer alertar e prevenir o leitor acerca de um estilo com o qual ele provavelmente não estaria acostumado, pois, ao mesclar realidade e fantasia, o escritor se distanciava consideravelmente da prosa realista-naturalista, empenhada na crítica social, que não somente vigorava no contexto 1 Professor Associado de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, Paraná, Brasil. Agradecimentos à Professora Annabela Rita pelo convite para publicação deste texto, que é uma versão de parte da minha tese de doutoramento Diabos (diálogos) intermitentes: individualismo e crítica à instituição religiosa em obras de Eça de Queirós, defendida na Universidade de São Paulo (USP), Brasil, em 2010.


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finissecular do Oitocentos, mas da qual fizera uso em outras ficções, como O crime do padre Amaro (1875: 1ª versão; 1876: 2ª versão; 1880: 3ª versão) e O primo Basílio (1878). O pequeno prólogo é apresentado da seguinte forma: Prólogo 1º Amigo (bebendo conhaque e soda, debaixo de árvores, num terraço, à beira d’água). Camarada, por estes calores do Estio que embotam a ponta da sagacidade, repousemos do áspero estudo da Realidade humana. . . Partamos para os campos do Sonho, vaguear por essas azuladas colinas românticas onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural, e musgos frescos recobrem as ruínas do Idealismo. . . Façamos fantasia!. . . 2º Amigo Mas sobriamente, camarada, parcamente!. . . E como nas sábias e amáveis alegorias da Renascença, misturando-lhe sempre uma Moralidade discreta. . . (COMÉDIA INÉDITA) (QUEIRÓS, 1992, p. 79).

Na conversa cordial dos dois amigos temos representada justamente a preocupação de Eça em esclarecer o dilema realidade versus fantasia. No convite feito pelo primeiro camarada, encontrase a explicitação do desejo em sair da realidade e entrar nos devaneios da fantasia, ao que responde o segundo camarada, aceitando o convite, porém fazendo uma objeção: “Mas sobriamente, camarada, parcamente!. . . ”. Embora o segundo camarada seja, por assim dizer, mais cético que o primeiro, sugerindo que se misture à fantasia “uma moralidade discreta”, como nas “Alegorias da Renascença”, ambos concordam em “partir para o campo dos sonhos” e, enfim, “fazer fantasia”2 . 2 Esse prólogo poderia ser melhor compreendido se fosse analisado à luz de um outro texto que Eça escreveria em 1893, intitulado “Positivismo e idealismo”. O artigo, publicado em julho de 1893 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, coligido postumamente no volume Notas contemporâneas, revela tanto a preocupação do autor com as mudanças que estavam ocorrendo no campo das ideias na França, daquele contexto, quanto sua defesa de que realidade e fantasia poderiam “conviver” harmoniosamente.

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A apologia à conciliação entre a maneira realista de descrever a realidade, entremeada com o aparecimento de elementos ligados ao campo da fantasia será perseguida por Eça também no decorrer da Carta-Prefácio. No texto, intitulado “A propos du mandarim. Lettre que aurait du être une préface”, nota-se o mesmo tom discursivo do prólogo e o adensamento das indicações encontradas no primeiro paratexto, ou seja, Eça nitidamente procura advertir, orientar e precaver o público leitor acerca dos sentidos que o texto poderia suscitar, levando em consideração a estética realista/naturalista que vigorava e da qual era muito próximo. Assim, O mandarim era “une oeuvre bien modeste et qui s’écarte considérablement du courant moderne de notre littérature devenue, dans ces dernières années, analyste et expérimentale” (QUEIRÓS, 1992, p. 197), mas que, embora se afastasse da análise e do experimento do Realismo, traduzia fielmente, por intermédio da fantasia, o espírito português de perceber a realidade: [. . . ] et cepedant par cela même que cette oeuvre appartient au rêve et non à la réalité, qu’elle est inventée et non observée, elle caractérise fidèlement, ce me semble, la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais [. . . ] Des esprits ainsi formés doivent ressentir nécessairement de l’éloignement pour tout ce qui est réalité, analyse, expérimentation, certitude objective. Ce qui les attire, c’est la fantaisie, sous toutes sés formes, depuis la chanson jusqu’à la caricature; aussi, en art, nous avons surtout produit des lyriques et des satiristes. (QUEIRÓS, 1992, p. 197).

E para o país que produzia em arte, sobretudo “líricos e satíricos”, O mandarim celebraria a realidade descrita conforme os moldes e o gosto do português autêntico, que tinha a fantasia e a eloquência como “os dois signos do homem superior”: “[. . . ] et toujours nous considérerons la fantaisie et l’éloquence comme les deux signes, et les seuls vrais, de l’homme supérieur.” (QUEIRÓS, 1992, p. 197), ao que Eça conclui, reconhecendo-se também detentor desse espírito: “Nous sommes des hommes d’émotion, pas de raisonnement.” (QUEIRÓS, 1992, p. 198). De acordo com o escritor, o povo lusitano, emotivo por natureza, não suportaria a exatidão e a aridez da linguagem realista/naturalista, www.lusosofia.net


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sentindo saudade da “quimera” e da “linguagem poética”, próprias de uma literatura mais lírica, sentimental, fantástica. Para a espontaneidade do “espírito português”, importaria muito mais a fantasia do que a realidade, a análise, a experimentação e a certeza objetiva. São essas justificativas que o escritor utiliza para explicar ao editor da Revue Universelle o porquê de os escritores portugueses — ele incluído — continuarem a escrever contos fantásticos, mesmo após o advento e sucesso do Naturalismo: Eh bien, Monsieur, dans ce milieu réel, contemporain, banal, l’artiste portugais habitué aux belles chevauchées à travers l’idéal, étouffait; et s’il ne pouvait quelquefois faire une escapade vers l’azur, il mourrait bien vite de la nostalgie de la chimère. Voilà pourquoi, même après le naturalisme, nous écrivons encore des contes fantastiques [. . . ] (QUEIRÓS, 1992, p. 199).

Entretanto, nessa apologia ao “jeito português de prever e descrever a realidade”, Eça adverte que a literatura, a partir do Realismo, não poderia ser entregue somente ao mundo da fantasia como aquela produzida anteriormente, uma literatura que não pressupunha “a verdade social e humana”. Segundo ele, na antiga literatura “de poesia e eloquência”, os autores, mantendo uma “embriaguez extática”, se preocupavam mais com as “elegias sentimentais” do que com a realidade: Aussi le roman et le drame jusqu’à ces derniers temps n’étaient que des oeuvres de poésie et d’éloquence, quelquefois des plaidoyers philosophiques, d’autres fois des élégies sentimentales. L’action y était conçue hors de toute vérité sociale et humaine. [. . . ] Les auteurs dramatiques, les romanciers, en créant leurs épisodes, n’avaient qu’à s’abandonner à cette espèce d’ivresse extatique qui fait chanter les rossignols par nos beaux soir de pleine lune: tout de suíte le public se pâmait. (QUEIRÓS, 1992, p. 198).

Para Eça, no século XIX, não por uma “inclinação natural da inteligência”, mas por um “sentimento de dever literário”, os autores deveriam “não mais olhar o céu” e sim “a rua”, metáfora que apresenta uma crítica direta ao idealismo e uma apologia também direta à maneira realista/naturalista de descrever a realidade: www.clepul.eu


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On s’est donc imposé bravement le devoir de ne plus regarder le ciel — mais la rue. Seulement, faut-il le dire? On faisait cette noble besogne, non par une inclination naturelle de l’intelligence, mais par un sentiment de devoir littéraire — j’allais presque dire de devoir public. (QUEIRÓS, 1992, p. 198).

De fato, todas as ponderações da carta-prefácio, refletem a forma como Eça de Queirós construiu O mandarim, mesclando o sério e o cômico, a realidade e a fantasia. O escritor desenvolveu a história a partir de acontecimentos fantásticos, sem deixar de expor críticas à realidade portuguesa. E esse processo foi possível em grande medida devido às características do controverso narrador em primeira pessoa, Teodoro, que em suas memórias, entremeadas de elementos insólitos, deflagra questionamentos corrosivos à sociedade na qual habita e, concomitantemente, a si próprio, como típico indivíduo pertencente ao meio, tudo fazendo para se adaptar, sobreviver e ser bem sucedido. O narrador/protagonista é um funcionário público, que principia o relato reconhecendo sua existência “equilibrada e suave”, na rotineira vida que levava sendo Amanuense do Reino e morador na casa de hóspedes de D. Augusta. No discurso memorialista, temos uma sinceridade jocosa, típica dos narradores de primeira pessoa construídos por Eça: Ela [D. Augusta] ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. “Enguiço” era com efeito o nome que me davam na casa — por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar. Infelizmente corcovo — do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranqüilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca, e vinte mil réis mensais. (QUEIRÓS, 1992, p. 83).

Embora Teodoro deixe explícito na narrativa que era submisso, acrítico e leniente, ele também confessa possuir ambições, não de www.lusosofia.net


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ordem intelectual ou de altos valores humanos, mas simplesmente de ordem material: Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso — como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; — mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros — quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito — como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando! (QUEIRÓS, 1992, p. 83).

O discurso inicial, dentro da narrativa memorialista, parece ter o intuito de demonstrar ao leitor que a pacata vida do protagonista — “equilibrada e suave” —, com alguns interesses “materiais”, sofreria uma reviravolta a partir dos acontecimentos que estavam por vir. Tanto que após as confissões acerca de suas ambições, Teodoro faz uma modulação no discurso, esclarecendo que era resignado, esperando, à mercê do destino, ou de algum acontecimento sobrenatural, os sonhos materiais pelos quais ansiava: “As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: — pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores, e comprava décimos da lotaria” (QUEIRÓS, 1992, p. 83). A ambiguidade do caráter do narrador, que desejamos destacar, também se encontra aparente logo nas primeiras linhas do texto. Em meio ao reconhecimento de que não era um “pária”, por desejar diversas benesses materiais, Teodoro expõe sua personalidade volúvel, propondo ser adaptado à vida regrada, sem sonhos, desejos ou metas de vida:

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Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um “pária”. A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ao pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o “Diário de Notícias”; pelas tardes de Verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo aos goles um café, ouvir os verbosos injuriar a pátria. . . Depois, nunca fui excessivamente infeliz — porque não tenho imaginação: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporação de um lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ao racional, ao tangível, ao que já fora alcançado por outros no meu bairro, ao que é acessível ao bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d’hôte mastiga a bucha de pão seco à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe. (QUEIRÓS, 1992, p. 83, grifo nosso).

O final da citação é interessante para confirmarmos o discurso duvidoso do narrador ao descrever-se, pois, se levarmos em conta as situações “fantásticas” que estavam por vir, já desconstruiríamos aqui as afirmações de que ele era um ser positivo que “só aspirava ao racional”, não tinha imaginação e almejava somente o que “era acessível ao bacharel”. Foi sem muitos questionamentos, não obstante o espanto e a admiração, que Teodoro facilmente se entregou aos episódios extraordinários, originados através da leitura de um livro. Ao declarar-se “resignado”, “à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe”, o protagonista expõe que procurava passar seu tempo livre lendo ficções, as quais, a julgar-se pelos títulos e pelos comentários realizados acerca das obras, eram todas de teor insólito.

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É durante a leitura de um desses textos, um “in-fólio vetusto”, intitulado “Brecha das Almas”, que Teodoro visualiza um “indivíduo corpulento, todo vestido de preto, de chapéu alto, com as duas mãos calçadas de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo de um guarda-chuva.” (QUEIRÓS, 1992, p. 89), cujo intento era incentivá-lo a tocar uma campainha e, com o ato, matar um Mandarim no “fundo da China”, obtendo a fortuna que o chinês deixaria. Focando especificamente nas características do narrador, podemos inferir que os comentários de Teodoro sobre os livros que lia sejam uma estratégia de Eça para justificar os acontecimentos extraordinários que estavam por vir, deixando para o leitor várias possibilidades de explicações para o fenômeno. Tal qual Luísa de O primo Basílio, seduzida e influenciada pelos romances românticos, e Gonçalo Mendes Ramires, de A ilustre casa de Ramires (1900), imerso nos romances históricos, entre tantos outros personagens queirosianos “construídos” a partir do que liam, Teodoro poderia estar sendo influenciado pelo tipo de literatura que vinha consumindo: [. . . ] tinha tomado o hábito discreto de comprar na Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e à noite, no meu quarto, repastava-me dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de títulos ponderosos: GALERA DA INOCÊNCIA, ESPELHO MILAGROSO, TRISTEZA DOS MAL-DESERDADOS. . . O tipo venerando, o papel amarelado com picadas de traça, a grave encadernação freirática, a fitinha verde marcando a página — encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingénuos em letra gorda davam uma pacificação a todo o meu ser, sensação comparável à paz penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr da água triste. . . (QUEIRÓS, 1992, p. 85).

Além do mais, antes da descrição da cena inusitada, o próprio Teodoro afirma que “ia caindo numa sonolência grata”, fato que poderia sugerir que tudo não passara de um sonho. Entretanto, todo o desenrolar da trama se dará por conta dos acontecimentos sobrenaturais que o protagonista/narrador vivenciaria por intermédio da leitura, com o constante retomar da cena para justificar as agruras que estava sofrendo. E todas essas retomadas ilustram o episódio como se realmente tivesse ocorrido. www.clepul.eu


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Sobre o colóquio com o “indivíduo corpulento”, em um primeiro momento Teodoro supõe ter diante de si o Diabo, entretanto, as convicções de “classe média” e a aparência do interlocutor, o fazem renegar tal pensamento. A reflexão desenvolvida acerca do que realmente seria aquela criatura, possibilita inferir mais algumas características da personalidade do narrador que, a nosso ver, são fundamentais para a compreensão de suas memórias e as críticas nelas contidas: Veio-me à ideia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocínio se insurgiu resolutamente contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo — como nunca acreditei em Deus. Jamais o disse alto, ou o escrevi nas gazetas, para não descontentar os poderes públicos, encarregados de manter o respeito por tais entidades: mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substância, rivais bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amáveis, — um de barbas nevadas e túnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Luís XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa imitação burguesa do pitoresco Plutão — não acredito. (QUEIRÓS, 1992, p. 89).

As reflexões de Teodoro sobre seu interlocutor, bem como as elucubrações advindas delas, reveladoras do caráter ambíguo do narrador, oportunizou que ainda hoje muitos leitores — e críticos —, fiquem na dúvida se Eça de Queirós quis mesmo representar o Diabo ou apenas tudo não passara de uma projeção da fértil imaginação do narrador3 . 3 Conforme demonstramos de forma mais aprofundada em nossa tese de doutoramento, acreditamos que Eça quis ilustrar o Diabo como o grande motivador e força motriz da fantástica história de Teodoro. Propomos isso baseados não somente no próprio enredo, mas considerando especialmente a carta-prefácio composta para “explicar” a obra. Obviamente, que não será o Diabo conhecido e difundido pela tradição religiosa, mas um Diabo moderno, ao gosto dos escritores do século XIX, mesclado com características da religiosidade popular portuguesa. (Ver: NERY, Antonio Augusto. Diabos (diálogos) intermitentes: individualismo e crítica à Instituição religiosa em obras de Eça de Queirós. Tese de Doutorado. São Paulo, USP, 2010.)

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De toda forma, depois de se mostrar hesitante em aceitar a proposta4 , Teodoro toca a campainha, nitidamente incentivado pela chance de enriquecimento que a morte do Mandarim Ti-Chin-Fú lhe possibilitaria. Acreditamos que desde antes do episódio insólito, ele já se demonstrava disposto a herdar uma fortuna de forma fácil, ainda mais se considerarmos as várias ambições confessadas no início de suas memórias. Tanto é verdade, que em suas “hesitações” não notamos elucubrações louváveis ou valorosas capazes de impedir o toque da campainha. Ainda nesse sentido, vale lembrar as incessantes afirmações feitas por Teodoro no decorrer da história, no sentido de confirmar para o leitor sua personalidade positivista e racionalista, as quais, ou imediatamente antes, ou imediatamente depois de serem proferidas, são desconstruídas pelas informações e discursos expostos por ele mesmo, tais como: a peculiar e renitente “fé” em Nossa Senhora das Dores, a insistente afirmação de que sua fortuna tinha lhe sido dada pelo Diabo e a necessidade de uma “proteção extra-humana” contra os “males públicos”. Assim será quando ele se questiona se tem ou não diante de si o Diabo, revelando a sua peculiar fé: Não, não acredito! Céu e Inferno são concepções sociais para uso da plebe — e eu pertenço à classe média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque, assim como pedi o favor do senhor doutor para passar no meu acto; assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do senhor deputado; igualmente para me subtrair à tísica, à angina, à navalha de ponta, à febre que vem da sarjeta, à casca da laranja escorregadia onde se quebra a perna, a outros males públicos, necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações, desde a Arcada até ao Paraíso. 4 É mister mencionar que o dilema sobre tocar ou não a campainha para herdar uma fortuna, fruto de um assassinato, não se constituía uma novidade em termos literários para o contexto do século XIX. António Coimbra Martins (1967) faz um alentado ensaio, intitulado “O mandarim assassinado”, no qual explicita que o conceito “tuer le mandarim” (matar o mandarim) já estava veiculado, direta ou indiretamente, em obras de escritores anteriores a Eça, entre os quais Rousseau (1712-1778), Chateaubriand (1768-1848) e Balzac (1799-1850).

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Com um compadre no bairro, e uma comadre mística nas alturas — o destino do bacharel está seguro. (QUEIRÓS, 1992, p. 89).

Ou no momento em que já está rico e reflete sobre a origem da fortuna “herdada”: Foi só na manhã seguinte, ao fazer a barba, que reflecti sobre a origem dos meus milhões. Ela era evidentemente sobrenatural e suspeita. Mas como o meu Racionalismo me impedia de atribuir estes tesouros imprevistos à generosidade caprichosa de Deus ou do Diabo, ficções puramente escolásticas; como os fragmentos de Positivismo, que constituem o fundo da minha Filosofia, não me permitiam a indagação das causas primárias, das origens essenciais – bem depressa me decidi a aceitar secamente este Fenômeno e a utilizá-lo com largueza. (QUEIRÓS, 1992, p. 109, itálicos do autor).

Em situação posterior, quase no final de suas proezas, encontramos outro discurso que revela explicitamente a ambiguidade e a contradição contidas nas confissões iniciais do narrador. Quando se encontra na China, fugindo de um grupo de pessoas que queriam saqueá-lo, pouco depois de tentar legitimar a “herança” deixada pelo Mandarim, é novamente a Nossa Senhora das Dores a quem Teodoro pede proteção no momento do desespero: Subitamente, na loja térrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia pelas portas despedaçadas: decerto me procuravam, supondo que eu teria comigo o melhor do meu tesouro, pedras preciosas ou ouros. . . O terror desvairou-me. [. . . ] Então, alucinado, sentindo atrás rugir a turba, abandonado de todo o socorro humano — precisei de Deus! Acreditei nele, gritei-lhe que me salvasse; e o meu espírito ia tumultuosamente arrebatando, para lhe oferecer, fragmentos de orações, de Salve-Rainhas, que ainda me jaziam dentro da memória. . . (QUEIRÓS, 1992, p. 169, itálico do autor).

O narrador congrega em si muitos elementos que, se não traduzem fielmente um racionalista/positivista típico, o descrevem como um adepto a crenças populares e/ou superstições. Não acredita em Deus e nem no Diabo, mas recorre à Nossa Senhora das Dores para www.lusosofia.net


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“favores” não de ordem espiritual, mas explicitamente de ordem material — a devoção inclusive é posta em prática em prol das necessidades questionáveis que ele tinha em seu dia-a-dia, unindo, assim, a mesma atmosfera de “adulações”, “assim na terra como no céu”. Conforme constatamos em um trecho citado anteriormente, “Com um compadre no bairro, e uma comadre mística nas alturas — o destino do bacharel está seguro.” (QUEIRÓS, 1992, p. 89). Enfim, não será necessária nenhuma perspicácia do leitor para perceber que Teodoro é ilustrado, desde as primeiras linhas de suas memórias, como um ser humano extremamente interesseiro, capaz de tudo para melhorar de vida. Seu “positivismo” e “racionalismo” eram entremeados pela crença em Deus ou em entidades sobrenaturais — mesmo, é óbvio, que tais crenças sejam muito ao gosto de crendices e superstições. Na verdade, desde o começo de sua história, o narrador/protagonista revela-se um demagogo, crê nisto ou naquilo de acordo com as conveniências. Todavia, a personalidade ambígua, questionável e hipócrita de Teodoro não desautoriza o teor crítico dos discursos cômicos e satíricos emitidos por ele, já que, pela mão dupla da ironia, as falas do narrador constituem-se críticas ferinas e proporcionam reflexões voltadas para diversos aspectos da sociedade Oitocentista — portuguesa ou chinesa — representada em seu relato. No trecho abaixo temos transposta uma de suas dúvidas, explicitada ao “indivíduo corpulento”, antes de tocar a campainha. Observemos como ela é construída e como é oportuna para que emane do texto críticas voltadas à religiosidade: Eu sei o que deve a si mesmo um cristão. Se este personagem me tivesse levado ao cume de uma montanha na Palestina, por uma noite de Lua-cheia, e aí, mostrando-me cidades, raças e impérios adormecidos, sombriamente me dissesse: — “Mata o Mandarim, e tudo o que vês em vale e colina será teu”, — eu saberia replicar-lhe, seguindo um exemplo ilustre, e erguendo o dedo às profundidades consteladas: — “O meu reino não é deste mundo!” Eu conheço os meus autores. Mas eram cento e tantos mil contos, oferecidos à luz de uma vela de estearina, na Travessa da Conceição, por um sujeito de chapéu alto, apoiado a um guarda-chuva. . . Então não hesitei. E, de mão firme, repeniquei a campainha. (QUEIRÓS, 1992, p. 97). www.clepul.eu


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Reconhecendo-se um cristão e retomando a famosa cena bíblica presente nos Evangelhos canônicos, na qual Jesus Cristo é tentado pelo Diabo5 , Teodoro decide tocar a campainha, porque o tentador que tinha diante de si em nada parecia ou lembrava aquele da passagem bíblica, além de, obviamente, ter como incentivo para o ato os “cento e tanto mil contos” do Mandarim. Os evangelistas tidos como santos em meios cristãos, para Teodoro eram somente mais alguns de seus autores conhecidos. Na paródia do trecho bíblico, a desconstrução também é clara: ao preferir tocar a campainha, Teodoro rejeita os ensinamentos e a atitude que Cristo teve, quais sejam, a resistência diante da tentação e a preferência por valores não materiais, superiores aos prazeres e delícias da vida terrena, que o dinheiro e o poder poderiam oferecer. É a opção clara pelos desejos individuais e prazeres carnais em contraposição a leis, regras e discursos tidos por boa parte da sociedade como valorosos e exemplares, embora poucos praticados e vivenciados. A partir do momento em que recebe a notícia de que herdara “cento e seis mil contos” do Mandarim, Teodoro passa a contar suas proezas como milionário, tendo tudo que queria, realizando viagens e desfrutando de todos os prazeres que o dinheiro poderia comprar. Mas, antes mesmo da nova rotina se concretizar, o protagonista/narrador parece fatigado, demonstrando-se desiludido com a sociedade que somente o bajularia e o respeitaria por causa do dinheiro e das posses: Eu então fui abrir, toda larga, a janela: e, dobrando para trás a cabeça, espirei o ar cálido, consoladamente, como uma corsa cansada. . . Depois olhei para baixo, para a rua, onde toda uma burguesia se escoava, numa pacata saída de missa, entre duas filas de trens. Fixei, aqui e além, inconscientemente, algumas cuias de senhoras, alguns metais brilhantes de arreios. E de repente veio-me esta idéia, esta triunfante certeza — que todas aquelas tipóias as podia eu tomar à hora ou ao ano! Que nenhuma das mulheres que via deixaria de me oferecer o seu seio nu a um aceno do meu desejo! Que todos esses homens, de sobrecasaca de domingo, se prostrariam diante de mim como 5 A narrativa encontra-se nos Evangelhos de Mateus: 4, 1-11; Marcos: 1, 12-13 e Lucas: 4, 1-13.

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diante de um Cristo, de um Maomé ou de um Buda, se eu lhes sacudisse junto à face cento e seis mil contos sobre as praças da Europa!. . . Apoiei-me à varanda: e ri, com tédio, vendo a agitação efêmera daquela humanidade subalterna — que se considerava livre e forte, enquanto por cima, numa sacada de quarto andar, eu tinha na mão, num enveloppe lacrado de negro, o princípio mesmo da sua fraqueza e da sua escravidão! Então, satisfações do Luxo, regalos do Amor, orgulhos do Poder, tudo gozei, pela imaginação, num instante, e de um só sorvo. Mas logo uma grande saciedade me foi invadindo a alma: e, sentindo o mundo aos meus pés, — bocejei como um leão farto. De que me serviam por fim tantos milhões senão para me trazerem, dia-a-dia, a afirmação desoladora da vileza humana?. . . E assim, ao choque de tanto ouro, ia desaparecer a meus olhos, como um fumo, a beleza moral do Universo! Tomou-me uma tristeza mística. Abati-me sobre uma cadeira; e, com a face entre as mãos, chorei abundantemente. (QUEIRÓS, 1992, p. 105).

A citação é extensa, porém resume exemplarmente a insatisfação que a herança de Ti-Chin-Fú provocara em Teodoro, antes mesmo que ele usufruísse dela. E foi, de fato, como um prenúncio: a fortuna trouxera desprezo e infelicidade para a vida do Amanuense, conforme notamos no decorrer de suas memórias. Além dessas intempéries, Teodoro passa a ser atormentado com visões fantasmagóricas que lembravam o Mandarim assassinado. Tudo indica ser a consciência da personagem, “questionando-o” por ter cometido o ato torpe: Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado, diante da mesma visão: ou estirada no limiar da porta, ou atravessada sobre o leito de ouro — lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e túnica amarela, com o seu papagaio nos braços. . . Era o mandarim Ti-Chin-Fú! Eu precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava. [. . . ] Mas logo os próprios lençóis de bretanha do meu leito, tomavam aos meus olhos apavorados os tons lívidos duma mortalha; a água perfumada em que me mergulhava arrefecia-me sobre a pele, com a sensação espessa dum sangue que coalha: e os peitos nus das minhas amantes entristeciam-se, como lápides de mármore que encerram um corpo morto. (QUEIRÓS, 1992, p. 119; 121). www.clepul.eu


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Determinado a se livrar da culpa e da assombração que o atormentavam, Teodoro decide viajar até a China para encontrar a família de Ti-Chin-Fú e desposar alguma mulher da mesma casta do Mandarim para legitimar a herança que obtivera e, definitivamente, conseguir a tranquilidade, tendo uma vida de riquezas. Grande parte da narrativa, quatro dos oito capítulos da obra, detém-se em explicitar as aventuras e peripécias que Teodoro realiza na China para conseguir seu intento6 . O discurso cômico, irônico e sarcástico expõe a saga do protagonista/narrador em território chinês e, de forma muito direta, faz críticas mordazes a várias características das sociedades chinesa e portuguesa, entre as quais, a corrupção na política, a ganância desmedida, a cobiça e o adultério. Não obtendo sucesso em seu objetivo, Teodoro regressa a Lisboa. Em terras portuguesas ainda continua a ser atormentado pelo fantasma do Mandarim, fato que o faz querer decididamente livrar-se da fortuna do chinês. Ele retorna, assim, à pensão e ao ofício de Amanuense, porém, como ainda mantém a riqueza nos bancos, prossegue sendo perseguido pelo espectro de Ti-Chin-Fú. Nesse ínterim em que retorna à antiga condição, Teodoro percebe que a sociedade lisboeta, que antes estava “a seus pés”, agora se voltava contra ele, insultando-o e desprezando-o. São justamente essas contrariedades que o fazem revoltar-se e retomar a vida de milionário, morando em um palacete e tendo a sociedade novamente submissa a si. Certa noite, desiludido e decepcionado com sua existência, o narrador/protagonista encontra-se na rua com o mesmo indivíduo que o incentivara a soar a campainha, iniciadora de suas peripécias. Demonstrando estar desesperado, insiste com a criatura para que ressuscitasse o Mandarim e lhe restituísse a fortuna “roubada”. O interesse com isso era obter a paz da consciência. A resposta é negativa e peremptória, sendo que o “Demônio” desaparecera para nunca mais ser encontrado. Logo após o acontecimento, Teodoro finda sua história desilu6

Segundo Beatriz Berrini (1992, p. 16), Eça pautou-se em outros autores para descrever o país asiático, uma vez que nunca o visitara: “a sua China não foi vista e examinada com seus próprios olhos, porém imaginada e criada a partir de informações colhidas em textos alheios”.

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dido, lamuriando-se e legando a fortuna para aquele que o incentivou a conseguir seus próprios intentos — insistimos, intentos estes que Teodoro já trazia estabelecidos em suas ambições: As flores dos meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro — como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias defuntas. . . Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e que os reparta. . . (QUEIRÓS, 1992, p. 191).

Suas últimas falas, entretanto, são destinadas aos leitores, para quem deixa a seguinte lição moral: E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!” E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! Angers — Junho de 1880. (QUEIRÓS, 1992, p. 191).

Ao praticamente transcrever o verso final do poema “Au Lecteur” (“meu semelhante e meu irmão!”), primeiro texto da obra Les Fleurs du mal (1857), de Charles Baudelaire (1821-1867), o narrador demonstra não somente conhecer a obra baudelairiana, mas também manter o mesmo intuito de aproximação e cumplicidade com o leitor — mesmo que à revelia deste —, expresso pelo autor francês. Embora sarcástico, o discurso final de Teodoro é representativo, pois resume a mensagem moralizante que sua história pretende passar ao leitor, qual seja, a de que qualquer ser humano pode tocar a campainha, deixando preponderar suas ambições desmedidas, suas imoralidades ou outro comportamento repreensível à luz da ética, da moral e dos valores humanos mais essenciais. E as consequências do livre-arbítrio podem ser nefastas, desanimadoras, mortais. www.clepul.eu


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Todavia, a suposta “danação” em vida de Teodoro, com a consciência sendo-lhe uma “serpente irritada” é muito relativa. Para além de buscarmos os diversos elementos que comprovam nossa afirmação, citamos apenas as últimas linhas da história. Teodoro termina sua saga não mais no tempo passado, no qual compôs toda a narrativa, mas sim no tempo presente, inclusive localizando e datando o contexto no qual finda suas memórias. Encontra-se nem em Lisboa, onde toda a sua história começara, tão pouco em Paris ou na China, localidades por onde passara, mas em uma outra cidade francesa, Angers. Assim, embora não tenha trazido felicidade, ao menos a fortuna do Mandarim permitiu a Teodoro desfrutar das diversas delícias sonhadas e, mesmo em sua última lamúria, estar em uma bela cidade que, já no final do século XIX, era tida como turística, com seus castelos e exuberantes paisagens7 . Desta forma, para além de simplesmente investir na dualidade maniqueísta de que todos os seres humanos possuem um lado Bom e um lado Mal, forças antagônicas que coexistem na condição humana, Eça de Queirós realiza uma crítica mordaz e impiedosa à sociedade, na qual se encontravam expostos valores pequenos burgueses, que Teodoro, em um primeiro momento, deseja, usufrui e, logo após vivenciá-los, os enoja e expurga. De formas e tonalidades diferentes, O mandarim apresenta a mesma verve crítica presente em obras escritas por Eça anteriormente, nas quais a crítica social estava declarada e que foram importantes para o consagrar como o grande escritor do Realismo/Naturalismo português. São vários os elementos, inclusive, que fazem da ficção uma obra de denúncia e crítica social. Fazendo rir, mas também refletir, a crítica ferina do discurso queirosiano se sobressai expondo a realidade “nua e crua” das mazelas sociais em meio a cenas “fantásticas”. Conforme mencionamos ao longo da análise, em jogo estão críticas voltadas a comportamentos humanos reprováveis, tais como a ambição, a ganância, a cobiça, o adultério e a corrupção política. Também não escapam à pena de Eça, questionamentos direcionados à ideologia 7 Mais informações sobre a localidade, ver http://www.angers.fr. Acesso em 16 de abril de 2020.

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capitalista, que dominava o pensamento burguês, e contestações à religiosidade e aos religiosos hipócritas daquele contexto. O escritor utilizou a fantasia, a ironia, o burlesco, o cômico, a sátira, enfim, um sem número de recursos para desenvolver a já famosa crítica voltada para a sociedade, que figura explicitamente decadente e corrompida. Para além da ambiguidade de caráter do protagonista/narrador e da tonalidade moralizante encontrada no final de suas memórias, explicitando ao leitor questionamentos acerca das formas escusas de se conseguir bens ou de que o dinheiro não traz felicidade, nos trechos finais de O mandarim temos veiculada, indiretamente, a mensagem de que não adianta ao homem buscar a redenção no que se refere à ganância, pois, por natureza, o ser humano é ganancioso, não podendo existir, portanto, uma ideia de culpa para algo que naturalmente é humano. Outro corolário observado é que mesmo se os desejos de Teodoro o conduziram à frustração e à decepção no decorrer da trama, fazendo-o querer retroceder em sua opção, a apologia à livre-escolha e ao individualismo é realizada de forma clara e veemente em suas memórias, demonstrando ao leitor que, embora possa haver consequências negativas em um ato “reprovável” aos olhos da maioria, também se pode contemplar algo positivo nesse ato: o desfrute, ainda que deletério, dos gozos e das alegrias proporcionadas pela livre escolha.

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Referências Bibliográficas BERRINI, Beatriz. Introdução. In: QUEIRÓS, Eça de. O Mandarim. (Edição de Beatriz Berrini. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Coordenação de Carlos Reis). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992. MARTINS, António Coimbra. Ensaios Queirosianos — O mandarim assassinado/O incesto d’Os Maias/Imitação capital. Lisboa: Publicações Europa-América, 1967. QUEIRÓS, Eça de. O Mandarim. (Edição de Beatriz Berrini. Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós, Coordenação de Carlos Reis). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992.



A magnificência orquestral, junto à riqueza social que sentia em redor, davam-lhe uma vaga opressão. Quando o pano desceu, respirou com alivio. (EQ)

. . . recorta, cirze, cose, remenda, cola aqueles pedacinhos à língua de cada personagem, salpica-os de gestos de desespero, faz esguedelhar os cabelos, ensaia músicas tristes para os finais de actos (puxando assim ao sentimento o arco do rabecão), manda levantar o pano — e repousa na imortalidade. (EQ)



Notas Biográficas ANNABELA de Carvalho Vicente RITA [URL:http://sites.google.com/si te/annabelarita1/] Doutorada, com Agregação e dois pós-doutoramentos em Literatura, é professora e Directora de Licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Presidente / Academia Lusófona Luís de Camões-SHIP | Instituto Fernando Pessoa-SHIP | Assembleia Geral da CompaRes, Coordenadora / CLEPUL, Directora / Associação Portuguesa de Escritores | Observatório da Língua Portuguesa. Membro de instituições científicas e culturais nacionais (Academia Portuguesa de História, Grémio Literário, Sociedade de Geografia de Lisboa, etc.) e estrangeiras (CIMEEP – Centro Internacional e Interdisciplinar de Estudos Épicos, CREPAL – Centre de recherches sur les pays lusophones e outros), integrando diversos Conselhos Científicos de revistas e de projectos. Distinções: Diploma de Mérito Cultural (2007) pela Academia Brasileira de Filologia e pela Faculdade CCAA (Rio de Janeiro); Medalha Municipal de Mérito – Grau Ouro (2010) pela Câmara Municipal de Oeiras; Medalha de Mérito Cultural do CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (2012); Embaixadora da Meeting Industry e da Economia do Conhecimento e Membro do Clube de Embaixadores de Cascais e da Costa do Estoril (2013); Certificado de Mérito da World Communication Association (2015-17); Membro Honorário do Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora (2016); “Homenagem e agradecimento” (2017) no Colóquio Internacional Professor Manuel Sérgio; “Mérito Cultural” (2017) & Categoria “Autoridade Cultural” (2017) pelas Rede Mídia de Comunicação & Editora Sem Fronteiras; Distinção cultural e agradecimento (20o aniversário do Centro de Estudos Regianos, 2017); Membro Correspondente do Instituto Balear de la Historia (2017); Medalha das XIV Jornadas Histórico-Culturais / Junta de Freguesia do Lumiar (2017); “Reconocimiento a la Promoción de la Cultura Ibérica” (2018) da Universidad Libre de Infantes Santo Tomás de Villanueva; Prémio Pró-Autor 2019 da Sociedade Portuguesa de Autores pelo seu relevante trabalho “em prol dos Autores e da Cultura” (2019); Homenagem da Câmara Municipal de Oeiras


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no âmbito das Comemorações dos seus 250 anos (2029); Recepção como Académica Honorária na Academia Portuguesa da História (2020). Obras principais: Eça de Queirós Cronista (1998; 2017); Labirinto Sensível (2003-04); No Fundo dos Espelhos (2003-2007); Emergências Estéticas (2006); Itinerário (2009); Cartografias Literárias (2010; 2012); Paisagem & Figuras (2011); Focais Literárias (2012); Luz e Sombras no Cânone Literário (2014); Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018); Novas Breves & Longas no País das Maravilhas (2018); Última vontade régia incumprida (2018); No Fundo dos Espelhos. Em Visita (2018); Perfis & Molduras no Cânone Literário (2018); Sfumato. Figurações in hoc signo. Na senda da identidade nacional (2019); Teolinda Gersão: encenações (2020): Da Língua Portuguesa vêem-se galáxias (2020); COmVID 19 em 2020: na ‘dança’ das representações (2020). ANTÓNIO AUGUSTO NERY – Universidade Federal do Paraná. Professor Associado de Literatura Portuguesa na graduação e na pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É graduado em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2002), Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2005), Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo – USP (2010) e Pós-doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pelas Universidades de Coimbra – UC (2014), do Minho – UMinho (2020/1) e de Campinas – UNICAMP (2020/2). Foi Professor Visitante do Programa CAPES/PRINT/UFPR na Cátedra Infante Dom Henrique, vinculada ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa, entre Setembro de 2019 e Fevereiro de 2020. Foi docente da rede pública de educação do Paraná por doze anos, dedicando-se à Alfabetização de jovens e adultos e ao ensino de Língua Portuguesa, Literaturas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa no Ensino fundamental, Médio regular e Médio-técnico. É vinculado ao Centro de Estudos Portugueses da UFPR (CEP-UFPR), ao Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra (CLP) e ao Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL). Dentre as Associações científicas da área de Letras, é sócio da Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP), da qual foi secretário no biênio 2016/2017. Participa como líder dos seguintes grupos de pesquisa, desde suas criações: Diálogos com a Literatura Portuguesa (UFPR, 2012), Cenáculo (UEL, 2017) e Camilo Castelo Branco (UNESP, 2019), além de ser pesquisador, desde 2014, do grupo Eça (USP). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa. Seus intewww.clepul.eu


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resses de pesquisa, cursos ministrados, produções científicas e trabalhos que orienta em nível de Conclusão de Curso, Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, centram-se principalmente nos seguintes temas: Eça de Queirós; Camilo Castelo Branco; José Saramago; Literatura Portuguesa do século XIX à Contemporaneidade; Literatura e Religião; Paródia; Literatura Comparada (Diálogos da Literatura Portuguesa com as Literaturas de Língua Portuguesa e outras Literaturas). FERNANDO ANDRADE LEMOS – Centro Cultural Eça de Queiroz FILOMENA OLIVEIRA – Dramaturga e diretora artística da Éter – Produções Culturais MARIA CRISTINA PAIS SIMON – Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 / CREPAL Licenciada em Letras pela (Universidade Nova de Lisboa); licenciada em Português e em Lettres Modernes, mestre em literatura, civilização e língua portuguesas, doutorada em literatura com tese sobre Camilo Castelo Branco (Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3); titular do D.E.A. e da «agrégation» de português, M. C. Pais Simon é maître de conférences de Estudos lusófonos na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, onde se formou, e onde leciona literatura, civilização e tradução literária. Investigadora no CREPAL, associada ao CHAM, da Universidade Nova de Lisboa, e ao CLEPUL da Universidade de Lisboa, ao CLP da Universidade de Coimbra, membro do ALLC e do IFF, tem realizado e participado a congressos e a colóquios internacionais na Europa, Estados Unidos e Brasil e publicado trabalhos sobre autores e temas oitocentistas, muitos dos quais relativos à questão feminina. Do ponto de vista administrativo, depois de ter assumido, por eleição, cargos nas altas instâncias da sua Universidade, é actualmente membro da Comissão editorial das PSN, membro eleito dos Conselhos de gestão da Bibliothèque Sainte Geneviève e da Bibliothèque Sainte Barbe de Paris. Fernando MIGUEL de Matos GONÇALVES – ferngoncalv@hotma il.com. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses e Ingleses; Licenciatura em Ramo de Formação Educacional em L.L.M. – Estudos Portugueses/ Ingleses. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de www.lusosofia.net


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Lisboa: Mestrado em Estudos Portugueses. Universidade Católica Portuguesa / Instituto de Estudos Políticos: Frequência de Doutoramento em Ciência Política e Relações Internacionais MIGUEL REAL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Escritor com vastíssima obra literária e ensaística publicada e homenageado nos 40 anos (1979-2019) de vida literária, ensaística e dramatúrgica [http://labcom.ubi.pt/ciclodehomenagemMiguelReal/#about].

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Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projecto «UIDB/00077/2020»


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