Jornal da ABI 403

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CIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

ABI DE OLHO NO FUTURO

JUSTIÇA DEFINE DATA DA ELEIÇÃO GERAL

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Pela primeira vez na História, sócios de outros estados poderão votar. PÁGINA 3

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VIDAS IVAN JUNQUEIRA • MAX NUNES • RUBEM ALVES


EDITORIAL

CICATRIZES TARCÍSIO HOLANDA PRESIDENTE DA ABI

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eleição que se avizinha é a mais importante da história da ABI. Ela vai decidir a sobrevivência e o futuro da Casa de Barbosa Lima Sobrinho, a mais longeva guardiã das liberdades. Criada em 1908 pelo visionário Gustavo de Lacerda, a entidade vive momentos extremamente delicados. A solução dos problemas que sitiam e flagelam nossa querida ABI exige uma extraordinária capacidade de doação dos seus futuros dirigentes. Essa tarefa não pode ser exercida por qualquer um. O novo comando da Casa deve ter prestígio, visibilidade e competência para enfrentar os desafios do futuro. Sou testemunha das dificuldades que se enroscam, como cipós, pelas dependências da ABI, depois de tanto tempo de inércia. Apesar da determinação jesuítica da atual Diretoria não se pode medir o esforço despendido, em poucos meses, para tentar reverter o quadro de descaso e abandono em que se encontrava a entidade. Foi uma tarefa que exigiu enorme desprendimento e capacidade de trabalho. Quando assumi a presidência da ABI, em fevereiro deste ano, ela enfrentava grave crise estrutural e de credibilidade que drenava o pouco prestígio de que ainda desfruta junto à classe jornalística e à sociedade brasileira. Fiz o possível para que a mais notável trincheira contra o arbítrio e a opressão se reconciliasse com seu passado e voltasse a ocupar o papel que historicamente sempre foi seu. Foi uma missão quase impossível diante das cercas de arame farpado que encontrei, dentro da própria instituição. As maiores dificuldades estão em setores internos, herança da antiga administração, que representam o atraso e impedem a entidade de crescer. Não se pode admitir que grupos que ainda controlam setores importantes do Conselho Deliberativo bloqueiem, desde março, o ingresso de novos sócios ao reterem, na gaveta, dezenas de propostas de filiação. Isso é inaceitável em uma entidade que defende o direito e a defesa das liberdades. Não tem sido fácil tentar resgatar o espaço que a ABI perdeu entre as entidades mais representativas da sociedade civil. A Casa de Herbert Moses precisa alongar sua sombra e projetá-la sobre a vida política e social do País, sob pena de ver sua identidade transformar-se na sombra de si mesma, a se desfazer nas dobras do tempo. Não devemos ter medo do novo. A ABI precisa alargar seus horizontes e se erguer para enfrentar de pé os desafios do futuro. Faz-se necessário convocar as gerações mais jovens de jornalistas para que se envolvam na reconstrução da nossa entidade, a fim de que ela seja realmente capaz de lutar por uma sociedade mais justa, humana e igualitária. Não tem sido uma tarefa fácil libertar a ABI dos liames que a impedem de avançar em direção à modernidade. Eles resistem a qualquer processo de transformação, sugando as energias de uma instituição centenária que precisa mudar rapidamente para não 2

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desaparecer. Os inimigos do futuro utilizam-se de todos os recursos para impedir que ela receba um hálito de vida. Seu objetivo é manter a Casa dos Jornalistas como está, mumificada, para que possam continuar nela incrustados como os microorganismos que se hospedam no casco das embarcações. Ao ser empossado no comando da ABI por decisão judicial, ao conquistar um direito que me fora usurpado, de forma despudorada, acreditava, amparado nos meus 60 anos de jornalismo, que pudesse trazer uma lufada de esperança para uma entidade que respirava com a ajuda de aparelhos. Não imaginava os obstáculos e as vilezas que enfrentaria para tentar fazer a ABI caminhar em direção ao futuro. Confesso minha perplexidade diante das agressões que sofro até hoje por ter desafiado as confrarias interessadas em manter a Casa de Fernando Segismundo no mundo das trevas. Minhas fantasias começaram a se dissolver na sessão do Conselho em que deveria ser empossado no cargo do então Presidente Maurício Azêdo, quatro dias após a sua morte, traído pelo coração. Ao chegar de Brasília, em outubro do ano passado, na condição de vice-Presidente da ABI, fui vítima da primeira trapaça. Imaginei que a cerimônia de posse seria breve. Não foi o que aconteceu. Inicialmente pressionaram para que renunciasse. Como resisti, cassaram meu mandato. Num açodamento incompatível com a natureza do nosso ofício, transformaram ilegalmente uma sessão ordinária em extraordinária, e elegeram Fichel Davit Chargel Presidente da entidade até 2016. Maurício Azêdo, a quem conheci no velho Jornal do Brasil, nos anos 1960, se vivo fosse não permitiria tamanha demonstração de violência e mesquinharia. Em 2010, havia aceitado seu convite para ser o vice na Chapa Prudente de Morais, Neto. Nos conhecíamos há mais de 50 anos. Várias vezes cheguei a substituí-lo, a seu pedido, como seu representante e legítimo sucessor, em diferentes ocasiões. Com sua morte, que a todos abalou, acreditei que minha posse ocorreria de forma protocolar. Jamais poderia supor que fosse publicamente tão humilhado. Naquela sessão tresloucada , onde as ambições afloraram sem nenhum pudor, não se ouviu nenhuma palavra em homenagem ao Presidente que falecera quatro dias atrás. Estavam todos possuídos pela ambição e pelo poder. Em fevereiro deste ano, a justiça restituiu o mandato que fora cassado, ao arrepio da lei, pelos meus antigos companheiros da Chapa Prudente de Morais, Neto. Nunca mais tive paz. Até hoje sou diariamente linchado por eles através das redes sociais. Uma das primeiras iniciativas que tomei, ao restabelecer a democracia interna da entidade, com o retorno do primado do Colegiado, em substituição ao modelo centralizador da antiga administração, foi apedrejada pela internet de forma infamante. A distribuição de tarefas entre os diretores, que eliminou em pouco tempo o quadro de apatia e abando-

no que colocara o edifício-sede à beira de um colapso, foi objeto de toda sorte de aleivosias. O programa de gestão compartilhada foi igualmente alvejado com uma fúria doentia. O expressivo volume de obras em curso, o maior já registrado nos últimos 40 anos na história da ABI, foi atacado pelos integrantes da chapa Prudente de Morais, Neto, de forma enlouquecida. Fui levado ao cadafalso sem compaixão. Qualificaram-me como um interventor ambicioso interessado em postergar a realização de eleições para me perpetuar no cargo. Nada mais injurioso para um homem de 78 anos que dedicou mais de 60 à profissão que acreditava ser o reduto natural das pessoas de bem, empenhadas na defesa do direito e da verdade. Lamento ter cometido tamanho equívoco nessa quadra da vida.

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agressividade dos meus detratores, que usam a internet como biombo e estilingue para me ferir pessoalmente, lembrou-me a selvageria do repulsivo Mensur alemão, duelo que ocorria entre quatro paredes e que tanto excitava os universitários, no final do século 19. Nessas lutas de sabres, com os braços e o tórax protegidos por almofadas, não havia risco de morte. Não era a perspectiva de quem sairia vitorioso que despertava o interesse do público. O que atraía a platéia era a dimensão dos ferimentos que os lutadores sofriam quase sempre em dois lugares: no topo da cabeça e no lado esquerdo do rosto. Pedaços de couro cabeludo e bochechas estavam sempre voando pelos ares, tingindo de vermelho paredes manchadas de cerveja e sebo de vela. As cicatrizes, na verdade, eram o que mais interessava aos circunstantes. O público refestelava-se com o sangue e a profundidade dos ferimentos. No Mensur à brasileira, a lâmina do sabre é substituída pela infâmia e a calúnia. A incontinência verbal que prospera sem controle pelas redes sociais foi definida pelo escritor mexicano Henrique Krauze como “o discurso do ódio”. O mais longo dos prazeres, como observou certa vez, Byron, em Don Juan, ao falar sobre as raízes do ódio. Instintos primitivos que afloram em textos falsificados, onde fingem pregar a purificação dos costumes, apesar de exalarem enxofre. Na hora de votar e escolher os novos dirigentes da Casa, o associado da ABI precisa ter o que os alemães chamam de Zeitgeist ; ou seja, “o faro para o ar do tempo”. O futuro da Casa dos Jornalistas está nas mãos do seu corpo social. Ele é quem escolherá o candidato e os integrantes da chapa que conduzirá a ABI através do rubicão. Nesse caminho sem volta, um erro de avaliação será fatal. Diante das manifestações da natureza, com vento forte e mar encapelado, não podemos nos deixar arrastar pelo autoengano. Escapar do naufrágio depende mais da cepa daqueles que estão no comando do que da madeira usada no casco da embarcação.


DEMOCRACIA

JUSTIÇA MARCA NOVA DATA DA ELEIÇÃO A nova data foi fixada depois de julgados os recursos impetrados por integrantes da Chapa Prudente de Morais, Neto, contrários à votação eletrônica e à colocação de urnas nas representações estaduais da Casa dos Jornalistas. A juíza Maria da Glória Bandeira de Mello, da 8ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, marcou as eleições gerais da ABI para 26 de setembro. A nova data, fixada durante uma audiência de conciliação, foi conseqüência da avalanche de recursos impetrados por integrantes da Chapa Prudente de Morais, Neto, contrários à votação eletrônica e à colocação de urnas nas representações estaduais da entidade. A juíza havia marcado inicialmente as eleições para 1º de agosto, mas resolveu adiá-las até que as partes chegassem a um acordo.

Os representantes da Chapa Prudente de Morais, Neto, queriam que a votação fosse inicialmente realizada em 11 de julho, antevéspera da final da Copa do Mundo, o que foi negado pela juíza. A decisão foi, entretanto, contestada nos autos, sob a alegação de ser “uma falácia absoluta utilizar a Copa como pretexto para postergar a realização das eleições” (página 792 do processo). Na mesma petição, os advogados da Chapa Prudente de Morais, Neto sustentaram que o pleito não poderia também ser realiza-

do em todo o País, mas só no Rio de Janeiro, “considerando-se a impossibilidade de se montar tesourarias em diversos Estados do Brasil” (página 797). O mesmo documento afirmou que “é da tradição da Casa” a realização de eleições apenas na sede da entidade, “não havendo razão, quer de ordem legal, quer de ordem prática, para se alterar tal costume” (página 791). Como não havia consenso em relação à data e aos locais de votação, a juíza Maria da Glória Bandeira de Mello

convocou uma audiência de conciliação em 4 de agosto. No acordo firmado entre as partes, que tem força de decisão legal, foi decidido que serão realizadas eleições gerais na sede da ABI, no Rio, e nas representações estaduais da entidade localizadas em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Maceió e São Luís. No mesmo documento ficou estabelecido que a votação eletrônica só deverá ser adotada a partir de 2015, quando ocorrerá a eleição para a renovação do terço do Conselho Deliberativo da entidade.

OAB vai acompanhar o pleito RAUL AZÊDO

Em cumprimento ao texto do acordo judicial, o presidente Tarcísio Holanda solicitou pessoalmente ao Presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a indicação de observadores da entidade em todos os locais de votação. Marcus Vinícius comprometeu-se a designar representantes das entidades regionais da OAB para acompanhar todo o processo eleitoral. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) vai também enviar observadores a todos os locais onde ocorrerá a eleição. A votação será realizada na sede da ABI, no Rio de Janeiro, e nos endereços indicados no quadro ao lado. Até o dia da eleição, os associados receberão informações mais detalhadas sobre os locais de votação mais próximos das cidades onde moram ou trabalham. Todos os associados, mesmo aqueles que se encontravam há vários anos afastados da entidade, foram anistiados e poderão participar da eleição de 26 de setembro, mediante o pagamento do mês de agosto. Os sócios de qualquer cidade do País poderão votar em um desses locais. Basta apresentar a carteira social, documento de identidade e o comprovante de quitação da

RE AÇÕE AI OTAÇÃO REPP R E S E NT NTA ÇÕESS - LOC LOCAI AISS DE VVO SÃO PAULO (CAPITAL) Rua Martinico Prado 26, grupo 31. Santa Cecília (em frente ao Pronto-Socorro da Santa Casa) BELO HORIZONTE Rua Bahia 1.450, Centro MACEIÓ Rua Sargento Jaime Pantaleão, 370 BRASÍLIA SCLRN 704, Bloco F, loja 20 Asa Norte (DF) SÃO LUÍS Rua Assis Chateaubriand, s/n, Renascença II

mensalidade. Aqueles que, por qualquer motivo, não tenham recebido o boleto bancário pelos Correios poderão quitar seu débito no próprio local de votação. O pagamento (R$35,00) será efetuado contra-recibo, através de talonário próprio, emitido pela Tesouraria da ABI. As dúvidas serão dirimidas na hora, através de consulta via Skype, com os funcionários da sede, no Rio, colocados à disposição das representações estaduais, no dia da eleição. A votação eletrônica, via internet, ou através da opção telefônica 0800, contestada em juízo pelo representante

Tarcísio Holanda cumprimenta o Presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, que irá indicar observadores da entidade em todos os locais de votação.

da Chapa Prudente de Morais, Neto, que postulava a realização de eleições só no Rio de Janeiro, impediu que todo o corpo social da ABI se manifestasse livre e democraticamente sobre a escolha dos novos dirigentes da Casa. Apesar de se submeter à decisão judicial, a atual Diretoria da ABI pretende corrigir essa anomalia nas eleições do ano

que vem. Não se pode admitir que associados, por trabalharem e residirem em outras cidades, não possam ser ouvidos sobre os destinos da entidade a que estão filiados. É inaceitável que, por motivos políticos, sejam emudecidos e tratados como “jornalistas de segunda classe”, em uma instituição que prega a defesa das liberdades. JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

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ACONTECE NA ABI

Uma casa em obras O hall recebeu novas luminárias e o prédio começa a ganhar cara nova. Estão sendo trocadas quase duas toneladas e meia de placas de mármore italiano em toda a fachada da ABI. O programa de intervenções imediatas adotado pela atual Diretoria, nos últimos meses, mudou a cara da ABI , além de impedir que o Edifício Herbert Moses entrasse em colapso, depois de longo período de descaso e abandono. O conjunto de providências conduzido pelos diretores Domingos Meirelles e Orpheu dos Santos Salles destinou-se à recuperação de setores vitais da Casa, registrados no laudo de vistoria realizado em 2012 pelo arquiteto Fernando S. Krüger. Apesar dos problemas terem sido diagnosticados como de “caráter urgente”, nada foi feito, nos últimos dois anos, para sanar pendências que colocavam em risco não só a segurança dos associados como a dos inquilinos do prédio. Entre as medidas emergenciais, apontadas pelo arquiteto, estava a substituição imediata dos cabos dos elevadores, que só vieram a ser trocados dois anos depois, juntamente com as 24 escovas dos motores. Uma intervenção que merece destaque especial é a obra da fachada que deveria ter sido iniciada em fevereiro de 2013. A ABI foi obrigada a comprar recentemente cerca de duas toneladas e meia de lajotas de mármore italiano travertino para substituir as placas que se encontram estufadas ou trincadas nas duas faces do prédio. O estado de deterioração das placas representava grave ameaça para as pessoas que circulavam pelas calçadas da ABI, tanto na Rua México como na Araújo Porto Alegre. A reforma da fachada, que exige mão de obra especializada, deverá ser concluída até o final de outubro. VIDA NOVA A instalação de novas luminárias, na portaria central, deu também vida nova ao prédio. A portaria deixou de exibir aquele aspecto lúgubre e cavernoso que durante décadas marcou a entrada da sede da ABI. O piso de granito do hall principal, cujo aspecto encardido causava má impressão a quem entrava ou passava pelo edifício-sede, foi totalmente polido e encerado. O piso não recebia nenhum tipo de tratamento há mais de 40 anos, quando foi realizada a última grande reforma do prédio. 4

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FOTOS RAUL AZÊDO

O conjunto de intervenções imediatas recuperou a central de ar-condicionado em duas semanas. O equipamento encontrava-se paralisado, há cerca de um ano, privando a ABI de importante fonte de receita alternativa representada pelo aluguel do auditório, que se encontrava fechado desde outubro de 2013. Com o conserto da central de arcondicionado, o auditório passou a ser alugado quase todos os dias. A substituição de encanamentos comprometidos pelo uso e pelo tempo melhorou a pressão do sistema hidráulico, ao permitir que a água voltasse a circular por todas as dependências do prédio, o que não ocorria há mais de um ano. As letras ABI que se destacam na entrada principal, há muito que haviam perdido a cor. Na semana passada, voltaram a exibir o brilho original, depois de receberem um banho de metal.

As bombas d’água foram reformadas (acima) e o canos enferrujados (abaixo), substituídos. Com isso, a pressão do sistema hidráulico melhorou em todo o prédio.

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JUSTIÇA

A AUDIÊNCIA QUE PROMOVEU O ACORDO Texto do acordo judicial firmado em 4 de agosto, na sala de audiência da 8ª Vara Cível da Comarca da Capital do Rio de Janeiro, onde foi fixada a data de 26 de setembro para a realização das eleições da ABI. ASSENTADA Em 4 de agosto de 2014, às 14h01, nesta cidade, na sala de audiências do Juízo da 8ª Vara Cível da Comarca da Capital, onde se encontrava presente Drª Maria da Glória Oliveira Bandeira de Mello, Juíza de Direito, para a realização de Audiência Especial. A hora designada, aberta a audiência depois de regularmente apregoadas, responderam as partes e seus patronos. Presentes na presente audiência o autor Domingos João Meirelles, atual diretor financeiro, Marcos Antonio Mendes de Miranda, Conselheiro Suplente do conselho deliberativo, Roberto Monteiro de Pinho, atual secretário da diretoria executiva, com seus respectivos advogados. O objetivo da presente audiência foi tentar um consenso entre as partes para viabilizar a curto prazo as eleições da ABI, cessando a situação atual de administração provisória, cuja duração obviamente não se faz ideal para a entidade, impondo-se a situação definitiva que consolidará pelas eleições. Em que pese as impugnações a reunião do conselho deliberativo cuja ata segue às fls. 795/797, mormente no que tange ao quórum concordam as partes, inclusive o autor para efeito conciliatório sem prejuízo de seu entendimento, que será mantida as deliberações da referida reunião no que tange à eleição da Comissão. Quando da discussão eleitoral apenas com a substituição do Sr. Orfeu Santos Sales pelo Sr. Roberto Monteiro de Pinho. A ré se compromete a no prazo de 48 horas trazer a declaração do referido conselheiro Orfeu de que desiste de sua participação na Comissão. Quando da discussão da substituição foi levantado pelo patrono do assistente a impossibilidade do Sr. Roberto participar da comissão com direito a voto tendo em vista o cargo atualmente por ele ocupado o que encontraria óbice estatutário. Foi, todavia ponderado inclusive com a interferência da Magistrada, que independentemente da discussão quanto ao impedimento estatutário a aceitação do Sr. Roberto com direito a voto disponibilizaria finalmente a formação da comissão, considerando-se que esta também é ocupada por membros da outra chapa, encontrando-se assim um equilíbrio com relação à posição deste. Acresce-se que a convocação de uma nova reunião do Conse6

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lho para o mesmo fim, além de retardar o desfecho da questão, ainda poderia se deparar com a dificuldade de quórum que também impossibilitaria nova deliberação a curto prazo. Fica todavia desde logo consignado que a inclusão do Sr. Roberto com o voto é feita na situação específica que ora se decide, atendo por objetivo como visto acima a solução de um conflito não implicando de forma alguma interpretação em qualquer sentido com relação às disposições estatutárias a respeito. Com a formação da comissão nos moldes supra se prosseguirá o processo eleitoral em seus regulares trâmites inclusive com a inclusão dos membros indicados pela chapa. Com relação à forma de votação ficou assentado que a votação eletrônica se faz precipitada para o próximo certame tendo em vista que a situação de litígio demandaria providências mais cautelosas para este fim, inclu-

sive com contratação de empresa escolhida em consenso o que sem dúvida implicaria em um inevitável atraso e quiçá impedimento do prosseguimento regular do certame. Ficou todavia assentado que em nome de uma maior transparência, e salvaguarda em relação a futuros questionamentos quanto a restrição do eleitorado, que serão colocadas urnas para votação nas unidades representativas da Associação, quais seja; Brasília, São Paulo, Belo Horizonte, Maranhão e Alagoas. A administração colocará no site à disposição dos eleitores boleto para pagamento de suas mensalidades. Será feito ainda um controle para verificação quanto ao adimplemento dos eleitores quando da votação. As eleições se realizarão nos dias 25 e 26 de setembro de 2014. Fica deliberado ainda que o exame de aceitação dos novos sócios se fará já sobre a gestão da administração a ser eleita, evi-

tando-se assim discussões acerca da lisura do pleito. Foi deferido o pedido de assistência de Marcos Miranda. Fica assentado que os Editais das eleições serão elaborados e publicados pelo Conselho Deliberativo dentro das diretrizes fixadas neste fato. Fica ainda assentado que a atual Diretoria deverá se abster de publicações no site da Associação e no seu jornal que envolvam nomes de representantes das chapas concorrentes no contexto das eleições, sob pena de ter de conferir o mesmo espaço a tais chapas para resposta. Pelo autor foi requerido, aceito pelas demais partes e deferido pelo Juízo a expedição de Ofício à OAB para designação de um representante da OAB nos locais de votação, ressaltando-se que tendo em vista não ser um nome de consenso, não será publicada no site e no Jornal da Associação. Nada mais havendo encerro presente às 15h43.

ASSOC IAÇÃO BR AS I LE I R A DE I M P R E N SA

EDITAL DE CONVOCAÇÃO ASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA Nos termos do artigo 20 do Estatuto da Associação Brasileira de Imprensa-ABI, e obedecendo a decisão do juízo da 8ª Vara Cível, são convocados os associados quites com suas obrigações estatutárias a se reunirem em sua sede, na Rua Araújo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Rio de Janeiro, no dia 25 de setembro do corrente ano, às 10 horas, para: 1) tomar conhecimento do Relatório da Diretoria, do Parecer do Conselho Fiscal e da decisão do Conselho Deliberativo sobre aquele e este e para discutir e resolver assuntos que lhe forem apresentados pela Diretoria ou por associados por intermédio da Mesa; no dia 26 de setembro do corrente ano, das 10 às 20 horas, na sede da entidade, à Rua Araújo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Rio de Janeiro; e nos seguintes endereços; em São Paulo, à Rua Martinico Prado, 26, Grupo 31, Santa Cecília, Cep 01224-010 (SP); em Belo Horizonte, à Rua da Bahia, 1450 – Centro, Cep 30160-011 (MG); em Brasília, à

SCLRN 704 – Bl. F. Loja 20, Cep 70.730-536; em Maceió, à Rua Sargento Jaime, 370 – Prado, Cep 57010-200 (AL); e em São Luís, à Rua Assis Chateaubriand SN – Renascença II – Cep 65.075-670 (MA), para eleger: a) o Conselho Consultivo; b) o Conselho Fiscal; c) a Diretoria; d) dois terços do Conselho Deliberativo, efetivos e suplentes. O Relatório da Diretoria estará a disposição dos associados a partir de 11 de setembro, na Secretaria da ABI. As chapas concorrentes, devidamente completas, deverão ter sido registradas no período de 28 de agosto a 6 de setembro, nos termos do artigo 19 e 21 do Regulamento Eleitoral aprovado pelo Conselho Deliberativo da ABI em 17 de fevereiro de 2014. Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2014 Vitor Iório Presidente do Conselho Deliberativo


HOMENAGEM

DIVULGAÇÃO/BRUNO VEIGA

O SORRISO LARGO DO GAIATO Homem de índole gozadora e literatura diversificada, João Ubaldo, morto aos 73 anos, foi escritor múltiplo, que deixa clássicos contemporâneos, livro de contos inacabado e roteiro inédito. POR M ÁRIO M OREIRA

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m intelectual diferente – popular, gozador e meio macunaímico. Ao mesmo tempo, profundo em sua literatura e arguto conhecedor da história e da alma brasileiras. Essa é uma definição possível para o escritor, jornalista e acadêmico João Ubaldo Ribeiro, morto aos 73 anos no último dia 18 de julho, no Rio, vítima de embolia pulmonar. Autor de pelo menos dois clássicos contemporâneos – Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro, ambos ganhadores do Prêmio Jabuti –, João Ubaldo deixa um livro de contos inacabado (Noites Lebloninas) e um roteiro cinematográfico ainda inédito (O Sonho Erótico de Eugênia Mota), escrito em parceria com o dramaturgo Domingos de Oliveira. Além de, talvez, um número incerto de poemas escritos em inglês. Esse homem múltiplo, nascido na ilha de Itaparica, na Baía de Todos os Santos, Bahia, com formação em Direito e Ciência Política, detinha também o Prêmio Camões, maior honraria para autores de Língua Portuguesa, recebido em 2008. Mas sua obra já de há muito ultrapassara as fronteiras da literatura, transbordando para o cinema, o teatro e a televisão. O estilo marcadamente irônico e descontraído se fazia presente tanto nos escritos quanto na vida pessoal de João Ubaldo. Se a informalidade – da linguagem, dos personagens, das situações – é uma das marcas da sua literatura, foi também a principal característica do modus vivendi ubaldiano, fosse em Itaparica ou no botequim que freqüentava no Leblon, no Rio, onde passou os últimos 23 anos.

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HOMENAGEM O SORRISO LARGO DO GAIATO

Seus amigos, conhecidos e companheiros de Academia Brasileira de Letras o retratam como um sujeito despojado, quase sempre de bem com a vida, alegre e contador de causos, que preferia a bermuda e o chinelo de dedo ao fardão acadêmico – alguns imortais, embora lhe enaltecendo a obra, não deixam de observar que Ubaldo pouco freqüentava a Casa de Machado de Assis, apesar de ter pertencido a ela por 20 anos. Nem mesmo aos tradicionais chás das terças e quintas ele ia. Preferia mesmo um chopinho com os amigos do Leblon.

LEO PINHEIRO/VALOR/FOLHAPRESS

CONVERSA DE BOTEQUIM Era nessas ocasiões que o escritor se embebia do mundo ao redor e, conscientemente ou não, buscava inspiração para o trabalho. Ubaldo era habitué do Tio Sam, legítimo boteco carioca situado na Rua Dias Ferreira, a duas quadras do seu apartamento. Rumava para lá todos os sábados, domingos e feriados. Aparecia por volta das 11h30 com seus indefectíveis chinelo de dedo, bermudão e camisa xadrez. Se instalava em sua cadeira cativa, numa mesa na parte externa do bar, logo na entrada. Chegava de mansinho, cumprimentava os amigos, pedia um chope – ou, conforme a fase, um prosaico guaraná zero – e dedicava-se a seu passatempo favorito: jogar conversa fora. Quando não encontrava nenhum dos parceiros da turma, telefonava para convocá-los, conta Roberto Ortega, freqüentador da mesa de Ubaldo e ele próprio um dos convocáveis. “Ele só falava sacanagem, abobrinhas”, narra. Segundo seu irmão Eduardo Ortega, também freguês do bar, Ubaldo dizia que tanto o pai quanto o avô tinham morrido aos 73 anos e comentava a seguir: “Eu consegui passar”. “Para mim, no fundo ele tinha medo de chegar a essa idade”, avalia Roberto. Outro cliente do botequim, Artur Rey, embora fosse apenas um admirador de Ubaldo, puxou conversa com ele duas vezes para falar sobre experiências de vida. “Não era uma pessoa espalhafatosa: chegava sempre na dele, queria viver como um ser humano qualquer. O importante era estar no meio do povão”, acredita Rey. “Nas crônicas a gente percebia que ele tirava aquilo da vida, do cotidiano.” O garçom José Pereira Rodrigues, há dez anos na casa, conta que Ubaldo pedia sempre camarão à milanesa com arroz à grega ou então tournedô mal passado com arroz e farofa de ovo. “A gente já perguntava: camarão ou carne?”. Para beber, o escritor limitava-se nos últimos tempos a meros dois chopinhos. O expediente no bar terminava por volta das 14h30, no máximo. Segundo o dono do estabelecimento, o português Francisco Simões Esteves, o Chico, João Ubaldo assistia aos jogos do Brasil nas Copas do Mundo de sua mesa no Tio Sam – isso quando não estava nos 8

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“Ele estava sempre pensando o Brasil e seus problemas, mazelas, momentos de grandeza. Como foi jornalista, era muito ligado às questões atuais.”

locais da competição, a trabalho. Foi da cadeira cativa no bar que viu a melancólica participação brasileira no último Mundial, incluindo os 7 a 1 para a Alemanha. “Ele ficou revoltado, chateado mesmo”, conta Chico. Mas não chorou nem fez discurso sobre o papelão.

ATUALIDADE Os números de sua obra reforçam a imagem de um escritor eminentemente popular. Nos últimos 15 anos, desde que ela passou a ser publicada pela Editora Objetiva/Alfaguara, João Ubaldo Ribeiro vendeu ao todo 363 mil exemplares. O livro que mais saiu nesse período foi A Casa dos Budas Ditosos, com 220 mil. Viva o Povo Brasileiro vendeu 35 mil somente nos últimos cinco anos. De acordo com a Objetiva, estima-se que as vendas do clássico lançado em 1984 alcancem 200 mil exemplares por outras editoras.

Candidato à vaga de João Ubaldo na Academia, o escritor e jornalista Zuenir Ventura destaca a preocupação do amigo com a atualidade, tanto nos romances quanto nas crônicas. “Ele estava sempre pensando o Brasil e seus problemas, mazelas, momentos de grandeza. Como foi jornalista, era muito ligado às questões atuais.” Zuenir conheceu o colega baiano na primeira metade dos anos 1970, quando foi a Salvador entrevistar o escritor Jorge Amado. Outro filho da terra, o cineasta Glauber Rocha, o estimulou a conhecer Ubaldo, seu amigo de infância. O conselho foi reforçado pelo próprio Amado. “Simpatizei logo com ele, era muito carinhoso e envolvente, com aquele sorriso e aquela voz de barítono. Mas também havia quem antipatizasse, porque era um temperamento muito extrovertido”, conta Zuenir. Ele e Ubaldo firmaram então uma amizade à distância, já que o baiano foi viver no exterior e os dois se encontravam esporadicamente, em feiras de livros. Numa dessas ocasiões, em 1986, em Paris, Zuenir flagrou Ubaldo burlando a proibição médica de ingerir bebida alcoólica. “Eu o peguei com um copo de uísque no bar do hotel e ele disse: ‘Tô aqui tomando meu guaraná..’. Como se em Paris se vendesse guaraná...”, relembra, rindo, o autor de Cidade Partida. O jornalista assinala que, mesmo sendo uma espécie de herdeiro literário de Jorge Amado, Ubaldo trilhou um rumo diferente, escapando do estilo Bahia mística e sensual. “Isso dá idéia da inde-

pendência estética, literária e até mesmo política dele, diferente do Jorge, que era comunista militante. Jorge Amado era um deus, uma pessoa adorável, generosa, que abrigava todos aqueles jovens, e seria muito fácil trilhar o mesmo caminho literário. E o João Ubaldo manteve sua originalidade, um caminho próprio, mas sem antagonismo”. Zuenir desconfia até que, em sua baianidade, Ubaldo – que se definia como um “cético político” – nutrisse certa admiração por Antonio Carlos Magalhães, a exemplo de Glauber e Jorge Amado. “Os dois achavam que o ACM fez muito bem à Bahia. Nesse sentido os baianos são muito baianos!”. O lado cronista de Ubaldo, exercitado ao longo dos últimos anos nas edições dominicais de O Globo, também é lembrado por Zuenir. “Às vezes as crônicas eram mais políticas, muito enfáticas nas críticas, fossem contra o Fernando Henrique ou o Lula. Por outro lado, mantendo o pé presente na atualidade, ele introduzia os personagens de Itaparica, essas coisas mais engraçadas, folclóricas.” Segundo Zuenir, na vida real o amigo era também um grande contador de histórias. “Numa roda, ele monopolizava as conversas, até pelo vozeirão. Eram histórias dele, do botequim, de Itaparica. E tinha uma gargalhada interminável. Olhando, você não tinha idéia de que ali havia um intelectual. Era um personagem rico e multifacetado.” Um desses causos, narrado pelo próprio Ubaldo, foi exibido recentemente pelo programa de tv Observatório da Imprensa e remete ao jogo Brasil x Áustria,


MARCO ANTONIO CAVALCANTI/AGÊNCIA O GLOBO

No escritório de seu apartamento, no Leblon, o lugar de trabalho (esquerda). Para buscar inspiração, sua mesa no boteco Tio Sam era o ponto certo.

pela Copa de 1958: “Quando Nilton Santos fez o gol, eu estava dando descarga no banheiro. A partir daí, toda vez que o Brasil ia ao ataque meu pai me mandava correr para o banheiro e dar descarga”, contou ele, dando risada. Engana-se, porém, quem pensa que o escritor se limitava aos causos e amenidades. O poeta Geraldinho Carneiro, grande amigo de Ubaldo, relata conversas intermináveis, freqüentemente sérias e profundas, nas mesas do restaurante Diagonal ou da pizzaria Guanabara, ambos também no Leblon, onde os dois se encontravam pelo menos uma vez por semana. “Ele não gostava de falar de literatura, aliás nem eu, e acabávamos falando. Mas conversávamos sobretudo da vida. Ele ficava como um guia meu, falando da decrepitude futura que ia me atingir, já que sou 11 anos mais novo. Às vezes era jocoso, às vezes melancólico, profético ou metafísico. Isso nos permitia conversar horas sem cansar. Amigos meus brincavam dizendo que nós tínhamos um caso”, diverte-se Geraldinho. O poeta conta que viu Ubaldo pela última vez oito dias antes da morte do amigo, quando foi incitá-lo a escrever suas memórias e até sugeriu quatro modelos literários diferentes, recomendando que lesse alguns memorialistas famosos. “Não posso ler, senão plagio”, respondeu Ubaldo, que na verdade não se empolgou com a idéia das memórias: “Vou esperar ficar velho”. Ainda segundo Geraldinho, Ubaldo “demorava muito a gestar um livro”, mas não a escrevê-lo – redigia em média duas

páginas por dia. “O curioso é que primeiro ele fazia o título, depois a epígrafe, e só então escrevia a história. Começava sempre de um esboço vaguíssimo, sem ter certeza do caminho a tomar.”

FORMAÇÃO DO PAÍS Entre seus pares de Academia, Ubaldo desperta comentários de grande admiração. Para o poeta e africanólogo Alberto da Costa e Silva, ganhador do Prêmio Camões deste ano, Viva o Povo Brasileiro não é apenas um romance. “Sendo ficção, é na verdade um tratado sobre o Brasil, sob a perspectiva da visão que o brasileiro tem de si e da formação do País. É uma interpretação do Brasil tão importante quanto as de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes ou Darcy Ribeiro. Ele próprio me dizia, referindo-se aos meus livros: ‘Você não se esqueça que a minha formação é também altamente antropológica.’ E era verdade”, comenta Costa e Silva. Seu colega Cândido Mendes destaca no livro o “ineditismo do ponto de vista de criar um épico brasileiro”. Para ele, o livro contém “a decantação da cultura brasileira”. Outros imortais exaltam igualmente Viva o Povo Brasileiro e Sargento Getúlio, que deu a João Ubaldo o Jabuti de 1972, na categoria revelação de autor. “Com esses dois livros, ele revolucionou a arte do romance no Brasil”, resume Cícero Sandroni. “São obras-primas da literatura nacional”, define o Presidente da ABL, Geraldo Holanda Cavalcanti. Nascido no sertão baiano, o acadêmico Antônio Torres prefere enaltecer tex-

tos menos falados do conterrâneo, como o conto Era Diferente o Dia de Matar o Porco. “A leitura desse texto, que narra a morte vista por um menino, me remeteu muito à minha infância na Bahia. E lembra um conto de Guimarães Rosa, As Margens da Alegria, em que um menino vê um peru tendo a cabeça cortada”. Torres destaca ainda A Casa dos Budas Ditosos (“uma proeza, mesmo sendo feito por encomenda”) e O Albatroz Azul, último romance do João Ubaldo, lançado em 2009 (“um livro pouquíssimo falado, que aborda vida, morte e renascimento”). Para Cícero Sandroni, a obra de Ubaldo reflete um homem “de uma cultura enorme, leitor dos clássicos portugueses e brasileiros, europeus e americanos”. A também imortal Nélida Piñon vê uma “feliz combinação do culto e erudito com o popular e uma oralidade muito rica, até mesmo escatológica. Nos momentos de erotismo, ele se expressa por um léxico muito sofisticado, com uma impetuosidade absoluta”, analisa a escritora. Embora lamentassem a pouca assiduidade do colega baiano à ABL, os acadêmicos guardam uma lembrança carinhosa de João Ubaldo. “Viajamos muito juntos. Eu adorava dar palestras com ele, tinha uma verve inacreditável”, diz Antônio Torres. Outro acadêmico, Arnaldo Niskier, lembrase de uma palestra de Ubaldo a que assistiu na Sorbonne, em Paris. “Ele falou sobre Viva o Povo Brasileiro para 120 alunos e foi aplaudido de pé, mas ficou sem jeito, não sabia onde pôr as mãos. Era muito cheio de causos, e a gente ria muito. Alguns eu desconfio que ele inventava na hora”, diz.

“Era um homem muito agradável, do riso, que deixou em nós a melhor imagem. Tinha um jeito irônico, mas sempre muito fino, com uma certa jocosidade que aliviava essa ironia”, afirma Geraldo Holanda Cavalcanti. “Acho que ele não vinha porque não usava paletó e gravata”, conclui, rindo.

CINEMA E TV A primeira obra de João Ubaldo a ser adaptada para outra linguagem foi Sargento Getúlio, que o cineasta Hermano Penna roteirizou (junto com Flávio Porto) e dirigiu. O filme foi rodado em 1978, mas só finalizado em 1982. No ano seguinte, recebeu diversos prêmios no Festival de Gramado, incluindo o de melhor filme e o de melhor ator para Lima Duarte, no papel do sargento que recebe a missão de levar um prisioneiro, inimigo de seu chefe político, de Paulo Afonso até Aracaju. O quadro político muda no meio da história e a missão precisa ser abortada, mas Getúlio insiste em levá-la até o fim a todo custo. Segundo o diretor, uma produtora paulista, a Blimp Filmes, ganhara um concurso da Embrafilme para rodar clássicos da literatura brasileira e o convidou para apresentar um projeto. Um amigo lhe sugeriu então filmar Sargento Getúlio. “Li e fiquei encantado pela beleza e perfeição literária. Foi um encontro com as minhas raízes, já que sou do Crato, no Ceará”, diz Hermano Penna. Após a aprovação do projeto, o cineasta foi à Bahia falar com João Ubaldo. “Antes eu cheguei a ler o livro em voz alta para o Flávio Porto duas vezes, explicando as expressões regionais. O Ubaldo ficou impressionado: ‘Pô, você conhece mais o meu livro do que eu!’”, conta o diretor. “Muita gente já tinha querido filmar o livro. O Ruy Guerra chegou a escolher os atores e as locações. Ainda retardei um pouco o projeto porque li que o Glauber também pensava em filmar, e falei isso pro Ubaldo, mas ele respondeu ‘Que nada, é conversa de Glauber, venha falar comigo!’. Ele disse que já tinha uns oito roteiros do filme e me ofereceu para ler, mas recusei, para não me influenciar. Aí passamos quatro dias seguidos nos encontrando”, conta Penna. A idéia de convidar Lima Duarte foi da produtora. “A história é absolutamente a mesma do livro. O sofrimento em adaptar foi a impossibilidade de filmar algumas cenas por restrição orçamentária. O Lima já conhecia o personagem e cobrou um cachezinho bem baixo”, lembra o cineasta. “Ele vinha de fazer o Zeca Diabo (personagem de O Bem-Amado, novela da Globo) e quis trazer um pouco desse personagem para o Getúlio, mas decidimos que não seria por aí.” Hermano Penna conta que a crítica literária norte-americana Judy Stone havia lido o livro, um monólogo, e dissera que ele era infilmável. “Um dia ela comentou isso com o Hector Babenco, que JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

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HOMENAGEM O SORRISO LARGO DO GAIATO

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Hibridismo torna obra inclassificável, diz estudiosa Uma obra de tal maneira híbrida, diversificada e original que se torna impossível classificá-la em qualquer vertente da literatura brasileira, pois dialoga com todas elas. É assim que uma das maiores especialistas em João Ubaldo Ribeiro, Rita Olivieri-Godet, vê a obra do escritor baiano. “A diversidade temática e a maestria em manipular os múltiplos registros lingüísticos fazem de cada romance de João Ubaldo uma obra singular”, afirma ela. Professora titular de Literatura Brasileira da Universidade de Rennes 2, na França, Rita é autora do ensaio Construções Identitárias na Obra de João Ubaldo Ribeiro, que em 2010 recebeu o primeiro prêmio na categoria de ensaios críticos literários da UBE-RJ (União Brasileira de Escritores). Em sua avaliação, não é possível sequer falar de influências, “mas de diálogos fecundos” entre a obra de Ubaldo e a tradição literária universal e brasileira. “Quando você lê João Ubaldo, a depender do texto, encontra referências explícitas e/ou sutis a Walter Scott, Alexandre Dumas, Euclides da Cunha, Cervantes, Shakespeare, Dostoiévski, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Camões, Jorge Amado, Homero, Antônio Vieira, enfim, todos os que o formaram e fizeram dele um dos maiores escritores da língua portuguesa.” Ainda segundo ela, Ubaldo dialogou, entre outros, com o Regionalismo brasileiro, “inovando-o ao escrever duas obras-primas, Sargento Getúlio (1971) e Vila Real (1979)”. O autor, diz, “compartilha com Jorge Amado a exuberância, a irreverência, o humor, a admiração e o respeito pela cultura popular afro-brasileira e, sobretudo, a liberdade de pensamento, mas traça seu próprio caminho”. Dentre os livros de João Ubaldo, Rita Olivieri-Godet considera Viva o Povo Brasileiro (1984) o mais completo, “exatamente porque ele condensa, no amplo painel que elabora revisitando quatro séculos de história do Brasil, temáticas e estilos de romances anteriores e posteriores”. Nele, afirma a estudiosa, Ubaldo “revisita as diversas visões interpretativas produzidas por intelectuais e escritores, ao longo dos séculos, questionando o exercício do poder em todos os níveis, discutindo os diferentes projetos identitários que integram o processo de construção da nação e incorporando uma multiplicidade de pontos de vista”. Dos muitos personagens criados por Ubaldo, o que a professora mais destaca é Maria da Fé, filha de uma negra estuprada por um representante das elites brasileiras em Viva o Povo Brasileiro. O itinerário da heroína, diz, “é marcado pela experiência da segregação, da injustiça e dos preconceitos que marginalizam os negros e pobres que constituem o povo do Recôncavo, metonímia do povo brasileiro, herói anônimo do romance”. A pesquisadora considera que, por todas as suas qualidades, Ubaldo é não somente um dos maiores escritores brasileiros, mas um dos maiores escritores contemporâneos. “Quanto aos que podem julgar um exagero equipará-lo aos melhores escritores brasileiros, convido-os a ler a obra de João Ubaldo, porque só pode duvidar disso quem a desconhece ou então aqueles que elegem um modelo literário único como expressão máxima de ‘qualidade literária’. Lendo João Ubaldo também irão perceber que o interesse e a riqueza da vida, e da literatura que a reinventa, estão na diversidade.”

LUIZ CARLOS FERNANDES

riu e contou que o filme já existia”, diz o cineasta, rindo. “Fiquei tão encantado com o texto que decidi ser totalmente fiel, inclusive à oralidade. Eu não adaptei um livro; eu documentei um livro.” Hermano Penna cogitou adaptar para as telas O Sorriso do Lagarto, lançado por Ubaldo em 1989. “Não deu tempo nem de maturar o projeto, porque dois anos depois virou minissérie da Globo, aí abandonei”. O cineasta também chegou a pensar em rodar Viva o Povo Brasileiro, romance histórico de quase 700 páginas. “Cheguei a elaborar o projeto, aí soube que o André Luís Oliveira tinha comprado os direitos e desisti”. O negócio foi fechado em 1998, mas o filme jamais foi realizado. A outra obra de João Ubaldo adaptada para o cinema foi o conto O Santo que Não Acreditava em Deus. O próprio autor roteirizou o filme com o cineasta Cacá Diegues, e o resultado foi a comédia Deus É Brasileiro (2003). Antônio Fagundes faz o papel de Deus, que deseja tirar férias e procura um santo para substituí-lo na sua ausência. Ubaldo e Cacá se conheciam desde 1962, apresentados por Glauber Rocha. “Em 1981, ele (Ubaldo) me deu de presente seu livro de contos recém-lançado, chamado então Livro de Histórias, reeditado mais tarde como Já Podeis da Pátria Filhos. Meu primeiro impulso foi o de fazer um filme misturando todos os contos do livro, seria uma comédia sobre Itaparica”, explicou Cacá ao Jornal da ABI. “Depois de muitas tentativas, não consegui fazer essa mistura de histórias e decidi fazer um filme baseado em apenas um conto, O Santo que Não Acreditava em Deus. Ubaldo concordou e escreveu o roteiro comigo.” O filme foi “livremente inspirado” no conto, como anunciam os créditos iniciais. “O conto original tinha apenas uma meia dúzia de páginas que tínhamos que transformar num roteiro de cerca de cem páginas. Partimos dos personagens (Deus, o pescador, etc.) e da situação básica da história (a busca por um santo), inventamos todo o resto. O processo de trabalho foi mais que tranqüilo, foi muito divertido. Ubaldo, além de ser um autor inteligente e talentoso, era um homem de grande humor e ironia. Acabamos escrevendo tanto que tivemos que cortar depois, para poder manter o filme numa duração de longa-metragem.” Deus é apresentado no filme como um sujeito relaxado e espirituoso, mas também raivoso, eventualmente sedutor (aos olhos da personagem de Paloma Duarte) e exageradamente orgulhoso de suas criações. “O Deus do filme é o Deus do livro. Nunca perguntei isso a Ubaldo, mas sempre achei que ele se inspirara muito mais no Deus furioso e sangüíneo do Velho Testamento do que no Deus ausente dos cristãos”, afirma Cacá. Segundo ele, essa caracterização não rendeu nenhum problema com a Igreja Católica ou qualquer outra, e o filme foi visto no Brasil por 1,7 milhão de espectadores.

Cachorro e festa de porteiros são temas de novos contos O livro de contos que João Ubaldo Ribeiro escrevia nos últimos tempos, Noites Lebloninas, era inspirado no tranqüilo bairro do Leblon, no Rio, onde o escritor morava. A obra teria ao todo 11 contos. Os dois primeiros estavam prontos, e Ubaldo trabalhava no terceiro. “Seriam todos histórias do Leblon, aventuras de moradores, coisas assim”, relatou ao Jornal da ABI a viúva do escritor, a psicanalista Berenice Batella, que leu os dois primeiros contos. Segundo ela, os trabalhos são “absolutamente hilários”. Um deles trata de uma festa de porteiros, promovida por um deles, aniversariante, que trabalha num edifício chique do bairro e convida dois colegas, de prédios mais modestos, para uma noitada com mulheres. O outro se chama Dagoberto e Seu Cachorro Fala Fino, sobre um cão que... falava fino. A Editora Objetiva, que já sabia do projeto do livro, tem planos de lançar os contos inéditos de João Ubaldo até o final deste ano, mas ainda sem data marcada. Berenice conta que era sempre a primeira leitora do marido e que, por vezes, o convencia a fazer alterações nos textos. “Eu às vezes estranhava alguma coisa, e ele mexia numa boa. O João era bem auto-suficiente (em relação ao seu trabalho), mas gostava que eu lesse e até ficava ansioso por isso. Posso dizer que quase cem por cento das vezes ele dava uma mexidinha no texto quando eu fazia alguma observação”, conta ela. A secretária de Ubaldo, Valéria dos Santos, confirma: “Ela era a única pessoa que ele ouvia”. Indagada sobre futuros projetos do escritor baiano, a viúva disse que ele “estava tentando escrever mais coisas, mas primeiro queria acabar esse (de contos)”. “Fora isso, o único projeto era passar o mês de janeiro em Itaparica e fazer lá uma festa de aniversário (dia 23), como todo ano.”


Em roteiro inédito, candidata à ABL redescobre feminilidade João Ubaldo Ribeiro tinha um roteiro cinematográfico inédito escrito em parceria com Domingos de Oliveira. De acordo com o dramaturgo, o texto se chama O Sonho Erótico de Eugênia Mota. “É um filme sobre a Academia”, contou com exclusividade ao Jornal da ABI. O roteiro narra a história de uma escritora que se candidata a uma vaga na ABL. “Aí sai a fofoca de que ela, se for eleita, vai posar nua, só com o fardão. A partir daí ela se redescobre como mulher. É bem João Ubaldo”, comenta Domingos. Ele disse que já conversou com Patrícia Pillar para interpretar Eugênia Mota. O projeto, porém, não tem perspectiva imediata de sair do papel. “Esses imbecis desses produtores não se interessam”, dispara Domingos.

NOS PALCOS O dramaturgo foi o responsável pela adaptação para os palcos do livro A Casa dos Budas Ditosos, lançado em 1999. A sugestão partiu de sua mulher, a atriz e roteirista Priscilla Rozenbaum, que achou que o livro daria um bom monólogo. “Primeiro liguei para a Vera Fischer, que não quis fazer. Aí procurei a Fernanda Torres, que se interessou totalmente”, relembra Domingos. O passo seguinte foi procurar João Ubaldo, a quem o dramaturgo não conhecia pessoalmente, para convencê-lo a lhe vender os direitos para transformar o livro em peça. “Fiquei meia hora falando como eu sentia o livro. Quando acabei meu discurso, ele disse: ‘Os direitos são seus e somos amigos para sempre’”, conta Domingos. Ele afirma que precisou cortar bastante o texto de Ubaldo – o livro, um relato em primeira pessoa feito por uma mulher de 68 anos relembrando em detalhes suas intensas e variadas aventuras sexuais, tem 163 páginas. Um ano depois, Domingos e Fernanda Torres passaram a trabalhar juntos na formatação final do texto, já que a atriz

O poeta que morava em João Ubaldo

também fizera sua versão da peça. “Começamos a cotejar as duas versões até sentir que dava certo. Dois meses depois, o espetáculo estava pronto”, diz ele. Segundo Fernanda, esse método de trabalho foi combinado. “Cada um foi separando o que achava mais dramático no livro. No meu caso, redatilografei tudo que me parecia importante, para me aproximar da linguagem do Ubaldo. O ofício de ator é um trabalho de aprender a ler, e a escrita do Ubaldo foi brotando. Quando começamos a ensaiar, eu e o Domingos separamos logo o que havia em comum entre as duas versões, e as outras partes nós fomos conversando”, explica ela. “O Domingos entende muito do arco dramático, foi importante para extrair o drama, contar a história afetiva da personagem, os homens e mulheres que fizeram diferença na vida dela, e não só a história sexual.” De acordo com a atriz, Ubaldo não ia aos ensaios e se mostrou “totalmente desapegado” do texto. “Quando ele viu o ensaio geral, foi horrível”, relembra ela, e explica: “Aconteceu que, no processo de ensaiar, o Domingos um dia me lembrou que a personagem era baiana. Aí, no ensaio geral, na frente do Ubaldo, eu me vi pela primeira vez falando baiano, diante de um baiano. Acabamos tudo meio mudos, achando que aquilo não daria em nada. Felizmente, na estréia a coisa funcionou. Mas teatro é assim mesmo”. A peça estreou em 2004, rodou o Brasil durante sete anos, foi exibida em Portugal e ultimamente tem tido temporadas mais curtas uma vez por ano. Fernanda deve voltar a girar com a peça após o término da atual temporada da série Tapas & Beijos, da TV Globo. Em janeiro, vai reapresentá-la em Portugal. “Já fiz centenas de apresentações, mas nunca me canso, porque é como estar com o Ubaldo, um autor extraordinário.”

“Till the day I die I’ll ever fret For what I found and I have never met” São esses os dois primeiros versos do poema original de João Ubaldo Ribeiro traduzido por Geraldinho Carneiro e apresentado pelo poeta em texto publicado em O Globo no dia 21 de julho, três dias após a morte do escritor. No texto, Geraldinho revelou o lado poeta de João Ubaldo, até então ignorado, e o fato de que o baiano escrevia seus poemas em inglês. Procurado pelo Jornal da ABI, Geraldinho recitou esses versos originais, os únicos dos quais se lembra, e contou ter traduzido pelo menos mais um poema de Ubaldo, além de um terceiro, que não se lembra se concluiu. Como se mudou recentemente, ele afirmou não saber ao certo onde estão esses poemas, escritos há mais de dez anos. Mas revelou que fez uma tradução “bem livre” do poema já divulgado e que acrescen-

tou um verso inexistente na versão original: “Benditas Berenices, Beneditas” – era a época do lançamento do livro Miséria e Grandeza do Amor de Benedita, do ano 2000. (Leia abaixo texto do acadêmico Antonio Carlos Secchin contendo a íntegra da tradução do poema) Segundo Geraldinho, o poema original tinha uma métrica “inconstante”. “Traduzi tudo em decassílabos para ficar mais de acordo com a tradição da língua portuguesa”, conta o poeta. “Acho que baixava nele (Ubaldo) uma mistura de William Butler Yeats com W. H. Auden. Eu dizia isso e ele falava ‘Pô, é mesmo? Gosto tanto deles!”, conta Geraldinho. “Aquela foi uma fase em que vinham muitos poemas. Teve outra, na época de Diário do Farol (2002). Ele me mostrou alguns poemas também dessa época, mas jogava fora. Nem sei se guardou algum.”

“Fomos mais amigos escritos do que amigos falados”

DIVULGAÇÃO/BRUNO VEIGA

Na Sessão da Saudade promovida pela Academia Brasileira de Letras no dia 23 de julho para homenagear Ubaldo, foi lido um texto do acadêmico e crítico literário Antonio Carlos Secchin sobre sua convivência com o escritor baiano em que ele também reproduzia o poema. Secchin não pôde ir à sessão, mas forneceu uma cópia de seu texto ao Jornal da ABI. Leia a seguir a homenagem dele a João Ubaldo, com a íntegra do poema traduzido por Geraldinho Carneiro: “Não vou falar de João Ubaldo romancista, sobre o qual tantos confrades já se manifestaram com percuciência. Prefiro evocar nossa amizade: se tivemos poucos encontros pessoais, por outro lado trocamos centenas de mensagens via e-mail, sobre os mais variados temas. Ousaria dizer que fomos mais amigos escritos do que amigos falados, não fora um detalhe: adepto fervoroso das novidades tecnológicas, Ubaldo, nos últimos tempos, se comprazia em enviar e-mails com registro de voz. Não à toa, a oralidade é uma constante em sua obra, mas não a oralidade difusa e disforme: antes, a oralidade pautada por extraordinário domínio rítmico – períodos longos que enleiam o leitor. É provável que João Ubaldo tenha desenvolvido a excelência de seu ritmo frasal na freqüentação amorosa do discurso poético e na frui-

ção de clássicos da opulência do léxico e da sintaxe, a exemplo do Padre Antônio Vieira. Mas, se constantemente me reiterava a paixão pela poesia, nunca me revelou que também a praticava. Segundo revelou Geraldo Carneiro, em belo depoimento sobre a amizade entre ambos, João Ubaldo escrevia poemas unicamente em inglês – como se a necessidade de exprimir-se nessa alteridade poética lhe exigisse tamanha entrega que se faziam necessárias não só outra linguagem, como também outra língua para manifestá-la. E o ficcionista Ubaldo, ocultando-se na máscara de mil personagens ficcionais, acaba revelando-se na voz do sujeito lírico, conforme lemos na tradução de Geraldo Carneiro: Até a morte eu me atormentarei Pelo que descobri e não encontrei, Pelo que, pascaliano como sou, Eu compreendi, e ainda assim maldigo. Sou o idiota mais perfeito, aliás, Por feito mais de carne que de gás. É esse o fado que me leva adiante, Num mundo para o qual não sou prestante. Tudo o que tenho as mulheres me deram, Consolação, razão para existir. Benditas Berenices, Beneditas. Também sejam benditos meus amigos, Pois gosto deles, tenham longa vida, E até eu mesmo que não a mereço, Mas que a observo e sei qual é seu preço.”

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RAQUEL CUNHA/FOLHAPRESS

IMPRENSA

O OUTRO MICO DA COPA Não só pelo vexame dos nossos craques ficará marcada, na memória dos brasileiros, a Copa de 2014. Entrevista com sósia de Felipão, publicada como sendo um furo de reportagem, já entrou para a História como uma das faltas mais graves já cometidas pela imprensa nacional. P OR P AULO C HICO

“P

arece, mas não é”. Se você já passou dos 30 ou 40 anos, há de se lembrar deste slogan de sucesso, veiculado em comerciais que vendiam as maravilhas de um shampoo, que prometia dar fim à caspa. A idéia era simples: de tão eficiente, o tal produto bem poderia ser classificado como remédio. Contudo, na prática, era encontrado nas prateleiras comuns de cosméticos, e não nas seções de medicamentos. Tal como Denorex, há muita coisa assim por aí – que até parece, mas não é. Programas populares de televisão estão lotados de sósias de famosos. Humorísticos fazem esquetes a partir de semelhanças, por vezes mórbidas. Triste é quando alguém não entende a piada. Ou, pior do que isso. Cai numa pegadinha, embarca numa simples trollagem. Aí, o que era apenas para fazer graça pode gerar desdobramentos sérios... Foi o que aconteceu com Mario Sergio Conti. No dia 18 de junho, o jornalista embarcava na ponte-aérea do Rio para São Paulo quando, incrédulo, avistou em meio à multidão duas celebridades. Ninguém mais, ninguém menos, do que o técnico da Seleção Brasileira, o gaúcho Luiz Felipe Scolari, e o seu principal craque, o garoto Neymar, estavam bem ali, espremidos entre passageiros comuns, tentando furar a zaga e chegar às poltronas. “Não, não pode ser! Que sorte!”, certamente pensou o veterano profissional da imprensa. Diante do que seus

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olhos viam, mas sua mente não processava, Conti apenas observou. Isso, somente no início. Logo na seqüência, interpelou. Aquilo mais parecia um sonho. Um delírio. Bobagem. Era apenas... Denorex! Nada, nenhum surto de bom senso ou resquício de contato com a realidade parecia poder evitar a tragédia que se anunciava. Em momento algum, o jornalista desconfiou ser ao menos ‘improvável’ que o técnico da Seleção pentacampeã do mundo, e seu maior trunfo, estivessem viajando numa simples aeronave comercial, num vôo de carreira, da cidade maravilhosa para a terra da garoa, em plena hora do rush. Nem estranhou que isso ocorresse no dia seguinte à disputa com o México, em jogo de placar zero a zero, transmitido diretamente da Arena Castelão, lá longe, na capital cearense. Tampouco questionou a si mesmo por qual razão eles estavam ali sozinhos, sem assessores ou seguranças, descolados do restante do grupo. Nem mesmo o fato de ambos terem passado despercebidos, sendo incomodados por um único pedido de selfie, atiçou o faro de Mario Sergio. Colocou-lhe uma pulga atrás da orelha. Pronto. Estava feito o estrago. “Neymar e Luiz Felipe Scolari foram os últimos passageiros a embarcar no avião, às 17h30 de ontem. Como o vôo da ponte-aérea, do Rio para São Paulo, estava lotado, ambos se espremeram em poltronas entre passageiros, Felipão na

25E e Neymar na fileira da frente”, narrou o jornalista no início de sua ‘reportagem’, que trazia a patética reprodução de diálogos entre o técnico e seu pupilo. Publicada ainda na noite do dia 18, às 21h24, no site da Folha de S.Paulo, a matéria logo obteve grande repercussão nas mídias sociais. Em pouco tempo, estava também na versão online de O Globo. E por pouco, muito pouco, não chegou às bancas na edição impressa da Folha de S.Paulo de 19 de junho. Detectado o erro, deu-se uma corrida contra o tempo. Não mandaram parar as máquinas, porque o jornal já estava quase todo impresso. Cerca de 75% dos exemplares estavam rodados e no caminhão: foram trazidos de volta à gráfica. Achando ter a notícia quente do dia, Conti escreveu rapidamente o texto, que enviou para os dois jornais. Alertado de que o verdadeiro Felipão ainda estava em Fortaleza, Conti ligou para o número do cartão do sósia e confirmou: aquele que sentara junto a ele no avião até que era bastante parecido com Felipão. Mas, não. Não era ele... Denorex! “Desliguei imediatamente e fui apagar o ‘incêndio’, ligando para as Redações”, contou. O texto ficou no ar por mais de uma hora, no site de ambas as publicações. “Realmente foi um erro tolo. Agi de boa fé. Percebi o erro e corrigimos, deu para corrigir. Hoje eu preferia ser um sósia de mim mesmo, preferia ser um homônimo, não ser eu. Mas, enfim, fiz um erro tolo”, repetiu.

Reimpressa, a página D10 do caderno Copa, onde antes chamava a atenção o título “‘O principal problema do Brasil é a zaga’, diz Felipão”, da entrevista ficcional feita por Conti, passou a estampar a seguinte manchete fria: “Felipão avalia modificar meio e ataque da Seleção”. Mas, como assim? Aquela, afinal, não era uma matéria exclusiva? Parecia um furo. Mas, não. Era apenas uma barriga. É assim que casos de ‘Denorex’ costumam ser chamados no jargão jornalístico. Mais uma vez, parecia. Só parecia. Bola fora!

O OUTRO “FELIPÃO” TRABALHA NO ZORRA TOTAL O suposto Felipão era Wladimir Palomo, ator de 54 anos. Onze a menos que o Luiz Felipe legítimo, aquele mesmo, que não treina, nem tem esquema tático. E que, diante da Alemanha, solta as tiras. Aposentado, corintiano, Palomo voltava para casa após mais uma gravação no Projac, os estúdios da TV Globo, na zona Oeste do Rio, onde há tempos dá expediente como sósia do técnico em quadros do Zorra Total. O erro cometido pelo colunista parece ter sido detectado pela própria Folha de S.Paulo já tarde da noite do dia 18. Às 23h26 foi feita uma edição no site do jornal, em que foi incluída a suposta cena do sósia se revelando para o cronista, para dar a impressão de uma reportagem ficcional – um mero trote nos leitores. De pouco adiantou. Não colou.


EPISÓDIO EVIDENCIA CRISE NA IMPRENSA Há quem não veja a coisa assim. O jornalista Fernando Brito, ex-assessor de imprensa de Leonel Brizola e editor do blog Tijolaço, escreveu um dos artigos mais contundentes sobre o episódio. “Errar, todo mundo erra. A diferença é que os arrogantes, mesmo quando diante da evidência do erro, tentam ficar justificando. O jornalista Mario Sergio Conti não acreditou – prefiro esta hipótese a achar que ele desejou enganar seus leitores, deixando para citar apenas nas últimas linhas – quando Wladimir Palomo

Detalhe da página com a polêmica reportagem, que chegou a ser impressa na Folha de S.Paulo do dia 19: só a foto era do verdadeiro Felipão. REPRODUÇÃO

A princípio, a publicação do ‘erramos’ pela Folha e pelo O Globo passou a impressão de ter sido aplicado um trote do sósia no jornalista. O Globo, inclusive, logo tratou de apagar todas as cópias da reportagem. Contudo, a realidade dos fatos era bem mais grave. E, àquela altura, indisfarçável. Palomo jamais tentou se passar por Felipão enquanto conversou com o jornalista. Talvez nem mesmo ele, considerado sósia oficial do treinador, acreditasse poder ser tão convincente naquela esdrúxula situação. A leitura de que aqueles eram Scolari e Neymar partiu, única e espontaneamente, de Conti, nutrido por sua falta de percepção. Como bem esclareceria o jornal Zero Hora, em matéria publicada ainda no dia 19 de junho. Essa sim, um furo. “Estávamos dentro do avião, sentei ao lado dele. Foi uma conversa com uma pessoa comum, como eu converso com você. Cinco a dez minutinhos no vôo, só isso. E outra coisa: nem sabia que ele era jornalista. Só na hora de ir embora, eu perguntei quem ele era, e ele disse que era repórter. Entreguei um cartão onde diz que eu faço eventos como sósia. Eu sou aquele rapaz que trabalha no Zorra Total. Ele se confundiu... Você acha que o Felipão ia ficar andando sozinho em um avião em plena Copa?”, esclareceu Wladimir Palomo à reportagem do jornal de Porto Alegre. Conti também falou com o Zero Hora. “Pensei realmente que era o Scolari. Nunca estive com Felipão. Sequer vi entrevistas dele na televisão; só nas partidas, ao lado do campo. Achei todas as respostas dele sensatas. Nossa conversa durou cerca de meia hora. O tempo do vôo do Rio a São Paulo. Não desconfiei em nenhum momento que não fosse ele. Lera em algum lugar que a Seleção estava de folga”, disse Mario Sergio, que nem mesmo diante do cartão que lhe foi entregue por Palomo, com a devida identificação do sósia, percebeu aquilo que, pelo visto, não lhe parecia óbvio. “Quando perguntei se toparia ser entrevistado na televisão, na GloboNews, ele disse que sim, mas que estava muito ocupado naqueles dias. Aí me deu o cartão e rimos. Imaginei que era uma piada dele: entreviste esse sósia meu...”, resumiu Conti, que buscou minimizar o ocorrido. “Perdão pela confusão. Felizmente, ela não prejudica ninguém. Não afetará a Bolsa, a Copa ou as eleições”.

mais neutro: ‘Erramos: Felipão não falou com colunista da Folha’. Na nota, publicada também no site de O Globo, os leitores foram informados de que ‘Felipão não estava no vôo do Rio para São Paulo. Ele passou o dia em Fortaleza’. Aliás, o grande furo não seria a conversa em si, mas o fato de Scolari abandonar a delegação. Sou jornalista e sobrinha do Wladimir. Ele trabalha como sósia, mas em nenhum momento deu entrevista se fazendo passar por ninguém. Ele nem sequer sabia que o cara ao lado era jornalista. Eles conversaram como pessoas normais. O colega, com más intenções, e provavelmente tentando um furo, deu com os burros n’água”, escreveu Marcela Palomo, que atua como assessora do tio, cuidando da concorrida agenda do sósia de Felipão.

NINGUÉM ASSUME O ERRO. SÓ O COLUNISTA

Wladimir Palomo, em foto publicada em sua página no Facebook: “Eu sou aquele rapaz que trabalha no Zorra Total. Você acha que o Felipão ia ficar andando sozinho em um avião em plena Copa?”

entregou-lhe um cartão esclarecendo que não era o técnico da Seleção. Aliás, não reparou o jornalista que, com 1,75m de altura, nosso bem-humorado modelo dificilmente poderia ter sido zagueiro no simpático Caxias, do Rio Grande do Sul. O Felipão-Felipão tem 1,82m, por isso é ‘Felipão’. Mas a Folha prefere se dizer vítima de ‘trote’. Negativo. Quem faz trote – e com os leitores – é quem publica uma entrevista como sendo do téc-

nico da Seleção, em plena Copa do Mundo, como se fosse a do próprio. O ‘erramos’ da Folha está entre os tópicos mais acessados do jornal, mas este vetou qualquer comentário sobre o assunto. Que beleza! A qualidade moral da imprensa brasileira faz dela uma espécie de sósia do jornalismo. Parece, mas não é”, escreveu. “O título inicial do desmentido no Uol – ‘Colunista da Folha é vítima de trote’ – foi rapidamente modificado por um

Na própria Folha de S.Paulo, o chamado ‘Conti do vigário’ foi alvo da crítica de Vera Guimarães Martins, ombudsman do jornal. No artigo ‘Arrogância, 2 a 0’, publicado no dia 22 de junho, ela escreveu: “Nem bem assentado o pó da vaia, na noite de quarta, o jornal encalhou num rochedo – ou numa monumental barriga, como se denomina nas Redações uma notícia errada. Não chega a ser consolo (nem desculpa), mas, nesta, a Folha não embarcou sozinha. A barriga foi compartilhada com O Globo e um dos mais conhecidos jornalistas brasileiros. Conti tem currículo incomum. Foi diretor de Redação do Jornal do Brasil e das revistas Veja e Piauí. Na tv, mediou o Roda Viva, na

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IMPRENSA O OUTRO MICO DA COPA

Cultura, e atualmente ancora o programa Diálogos, na GloboNews. Escreveu o livro Notícias do Planalto, sobre o impeachment de Fernando Collor. O erro foi percebido fora da Redação, por um dos repórteres da equipe que acompanha a Seleção e leu o site. O post foi retirado. Parte da edição nacional já impressa foi recolhida e destruída. Sobrou a perplexidade diante de erro tão primário”, pontuou ela, que seguiu com sua avaliação. “Não vou listar aqui todas as improbabilidades que deveriam ter ligado o sinal amarelo do colunista ou de quem editou o material. Blogs, sites noticiosos, leitores e diletantes já fizeram isso à exaustão. Erros, por mais crassos, acontecem. A diferença está em como se lida com eles e, neste aspecto, a Folha ficou devendo. Na primeira versão, o ‘erramos’ do site dizia que o colunista havia sido vítima de trote, versão difícil de engolir quando o próprio entrevistado entregou um cartão escancarando sua condição de imitador. O segundo foi mais direto: ‘Felipão não falou com colunista da Folha’. Na quinta à noite, o site publicou matéria com as explicações de Conti e o conteúdo original da entrevista – no que fez muito bem, só que fez muito tarde. A história já tinha ganhado o mundo virtual, levando o jornal a reboque. No impresso, o caso foi relatado na sexta, em reportagem menor e no pé de página. Em ambas, só Mario Sergio Conti se explica e se desculpa. Ninguém da Folha se pronuncia. O colunista assumiu a falha sozinho. ‘Foi um erro tolo. Não prejudiquei ninguém, a não ser eu mesmo’, declarou. É muita modéstia. Faltou lembrar dos prejuízos materiais e do arranhão na credibilidade dos jornais, um ativo que não tem preço. Fim do jogo (e da semana): Arrogância, 2 x Autocrítica, 0.”

O GLOBO USA DE EVASIVAS E FOGE DA RESPONSABILIDADE Na matéria “Colunista do Globo confunde sósia com Felipão”, o jornal carioca, que também publicou a barriga monumental, tergiversou. “O colunista do Globo Mario Sergio Conti achou que tinha ‘esbarrado com a notícia’ na ponte-aérea, no fim da tarde de quarta-feira. Sentou-se ao lado de um sósia do técnico da Seleção Brasileira, Luiz Felipe Scolari, e achou que se tratava do próprio Felipão e que este viajava com ninguém menos que o garoto de ouro da Copa, Neymar. A dupla de sósias não causou alarde no vôo que saiu do Rio para São Paulo, mas Conti notou que as comissárias olhavam para o garoto parecido com Neymar com interesse e deferência. O colunista puxou conversa com o ‘técnico’, que respondeu a todas as perguntas: sobre o zero a zero com o México, o time da Itália, os favoritos para o Mundial... ‘Achei que era o Scolari, tive certeza de que era ele. Eu estava lá esperando o vôo, ele entrou, sentou-se ao meu lado. Eu fui perguntando e o cara respondendo. Não é que ele queria ter me enganado. Longe disso’ – disse Conti, que contou que nunca se encontrou pessoalmente com 14

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Reprodução da entrevista com o falso “Felipão” publicada também no site de O Globo e a correção, que foi postada no mesmo dia.

o técnico e que só o via pelos jogos na tv”. Ascânio Seleme, Diretor de Redação de O Globo, apenas afirmou. “Foi um equívoco, por isso tiramos a história do ar. Estava errada”, finalizou. Flavio Gomes é jornalista, com grande experiência na área de esportes, onde atuou em publicações como o Lance!. Além disso, é dublê de piloto, escritor e professor de Jornalismo. E sarcástico. Foi esse o tom do artigo ‘Big Barriga’, publicado em seu blog no dia 19 de junho. “Durante a conversa no avião, segundo Palomo, Conti não disse que era jornalista. Só no final revelou que era repórter. Achou que estava abafando, certamente. Descolou, no papo, uma exclusiva. Palomo não se sentiu na obrigação de dizer que era um sósia. Afinal, não tinha dado entrevista alguma, tinha apenas conversado com o vizinho de poltrona sobre futebol — todo mundo só faz isso por estes dias. Depois, porque lhe deu o cartão onde estava escrito que ele trabalhava como sósia de Felipão. Mais claro, impossível. Não? Não”, contextualiza para, logo na sequência, detonar. “Se o colunista cometeu uma gafe inacreditável é porque não tem a menor condição de escrever sobre futebol nem hoje, nem nunca. Talvez não possa escrever sobre nada, porque a um jornalista não é dado o direito de ostentar tal grau de alienação no meio de uma Copa do Mundo no seu País. Mas a coisa é ainda pior. Alguém recebe, lê, edita e fecha esse material. Em geral, um editor. Sendo o assunto importante, é de se imaginar que as maiores autoridades em esportes dos jornais leiam o que vão publicar. E como é que um editor engole isso sem questionar: o Felipão numa ponte Rio-SP junto com Neymar, e nenhuma câmera de tv por perto? Neymar num vôo de carreira, sem multidões enlouquecidas tirando fotos e pedindo autógrafos? A declaração mais sem sentido do mundo, que o problema é a zaga da Seleção, justamente o que de melhor o time tem? A pura im-

possibilidade de um técnico de Seleção criticar abertamente, no meio de uma Copa do Mundo, seus jogadores? Quem é o sósia do tal cartão mencionado no fim da matéria (um Google impediria essa catástrofe)? Pois tudo isso passou batido. Ninguém nas Redações dos dois jornais notou nada de esquisito e a entrevista foi publicada alegremente. Grande furo, grande cara, esse colunista! Sempre na hora certa, no lugar certo! Os jornais estão acabando, como se diz, mas não é por causa da internet.”

DINES: “NOSSA IMPRENSA NÃO É TREINADA PARA PEDIR DESCULPAS” No dia 24 de junho, em seu site Observatório da Imprensa, Alberto Dines contemporizou. “Mario Sergio Conti admitiu o disparate, a burrada ou que nome tenha. Não ensaiou qualquer justificativa: percebeu o tamanho do desastre, desculpou-se prontamente, reconheceu de forma inequívoca que não tinha qualquer argumento em seu favor. Nem poderia admitir que errou traído pela sedução virtuosística de escrever uma matéria e, no fim, invalidá-la com a revelação da fonte falsa. Jornalista de alto quilate, preparadíssimo, um dos melhores do País, ele sabe que com notícia não se brinca. No entanto, tentou brincar: está pagando por isso. Na Veja, em 1983, uma brincadeira (ou ingenuidade) semelhante produziu o episódio do ‘boimate’, memorável barriga científica corrigida somente meses depois e com enorme má vontade.” Por fim, Dines condenou a espécie de linchamento público a que foi submetida a imagem do jornalista. “Nossa imprensa não é treinada para pedir desculpas. Assume-se infalível, inquestionável, usa a mitra pontifícia mesmo não a merecendo. A periodização absurda do rodízio de colaboradores (quinzenais ou mensais), somada à falta de editores traquejados e cultos, capazes de detectar e chamar a atenção para eventuais impropriedades, torna nossos jornais uma vas-

ta terra de ninguém em matéria de responsabilização. Injustificável o linchamento a que está sendo submetido Mario Sergio Conti. Os ressentimentos com a grande imprensa levam muitos a descontar nele suas frustrações. Converteu-se em bode-expiatório de culpas que não tem. Na Botucúndia pratica-se a crítica da mídia com os tacapes do preconceito e do rancor. Não é esse o caminho.” Jornalista, escritora e professora da Universidade Federal Fluminense, Sylvia Moretzsohn também escreveu para o Observatório da Imprensa. “Vamos discutir isso a sério: um jornalista experiente como o Mario Sergio Conti, colunista da Folha de S.Paulo e de O Globo, realiza uma entrevista com o Luiz Felipe Scolari. Os dois jornais publicam a entrevista em seus sites. Só que o Felipão não é o Felipão, é um sósia dele. Aí os jornais publicam um desmentido e tiram o texto original do ar. A história cai na rede e provoca uma série de comentários contraditórios e especulações. Uma jornalista recupera o texto no cache do Google e sugere que pode ter havido um erro de quem fez o título, considerando o final da entrevista, em que Conti convida o suposto Felipão para o seu programa na GloboNews e o sósia lhe entrega um cartão, identificando-se como ‘Vladimir Palomo – sósia de Felipão – eventos’. Em suma, os redatores de ambos os jornais teriam se empolgado e tomado por verdade o que era fake. Outra jornalista diz que o texto era claramente uma ironia. Faz sentido?”, provocou. “O caso acabou esclarecido no fim da tarde de quinta-feira, quando o jornal Zero Hora publicou entrevista com o jornalista e o sósia entrevistado por ele. Logo depois, apareceria matéria no site da Folha e, pouco mais tarde, também no do Globo, nas quais o jornalista reconhecia o erro. A matéria não havia sido escrita em tom de farsa; ele de fato acreditara ter esbarrado com o verdadeiro Felipão. O mais relevante, entretanto, é a maneira como os jornais trataram o episódio: inicialmente, com um sucinto pedido de desculpas e a eliminação do link para o texto original, só ressuscitado depois da repercussão que o caso ganhou nas redes sociais. Não vivem dizendo que o leitor deve tirar suas próprias conclusões? A que conclusões o leitor pode chegar (mesmo a essa, hoje sabidamente equivocada, de que teria sido uma ironia mal compreendida), se não tem acesso ao texto?”, questiona Sylvia. Além de repercutir intensamente em colunas e publicações especializadas em temas da mídia, a entrevista de Mario Sergio Conti com o sósia do técnico da Seleção Brasileira também ‘bombou’ na internet. A pedido do Portal dos Jornalistas, a Obiit Business Intelligence, empresa especializada em mensuração e análise do noticiário da web por meio da plataforma Media Analytics, fez um levantamento da disseminação da gafe na rede. De sua publicação, na noite do dia 18 de junho, até as 10h do dia 24 do mesmo mês, foram


computados mais de 2,5 milhões de pageviews de audiência sobre o assunto, distribuídas em matérias produzidas por dezenas de veículos de peso. No facebook e no twitter, proliferaram posts com piadas sobre a entrevista de Mario com Felipão, que jamais ocorreu. “O erro, em si, não ficou mais do que duas horas no ar, tanto no site da Folha como em O Globo. Mesmo assim, foi tempo suficiente para que a inserção na Folha alcançasse mais de quatro 4 mil page-views. Porém, o breve tempo de permanência foi o suficiente para que a repercussão fosse implacável. Coleguinhas de Conti não o pouparam e diversas matérias começaram a pipocar nos maiores veículos do País. Foram entrevistas, chacotas, análises e até protestos pelo fato ter acontecido com jornalista tão eminente”, analisa Alexandre Martins, da Obiit Business. Segundo o levantamento, os sites em que o caso teve maior audiência foram R7 (1.286.873 de pageviews, com destaque para a coluna de Barbara Gancia), Folha Online (318.137), A Tarde (271.615), Conversa Afiada (blog de Paulo Henrique Amorim – 226.891), GGN (de Luís Nassif – 134.568), Estadão (125.899) e Terra (77.287). Em tom de desabafo, Mauro Beting escreveu no Lance!, alertando para o risco que é apostar em colunistas no lugar de repórteres. “Não conheço jornalista esportivo que tenha confundido ministro com sósia. Mas conheço muito colunista premiado por chefia padrão Fifa, que ganha credencial de Copa como se fosse promoção de patrocinador da entidade. Em 1998, uma cara colega mais se divertia com Paris do que com a Copa que, a princípio, estava escalada para cobrir para mostrar o ‘outro lado’ do Mundial. Sim, ela podia não ver alguns jogos. Mas não deixar de ver quase todos, como fez. E agora? Um culto e letrado colega que tudo sabe dos bastidores da notícia não erraria jamais! Onde já se leu?!!! Nós, limitados jornalistas esportivos, vamos continuar contando nossas tacanhas historinhas. Nos vemos na Rússia 2018, colegas colunistas. Ou, provavelmente, não. Lá só vai colunista para fazer paralelo com a Revolução de 1917, Glasnost, queda da URSS, Putin... É muito areia pro nosso aviãozinho da ponte-aérea”, ironizou. De tudo isso, como balanço da Copa de 2014 no Brasil, ficam algumas lições. Primeiro, a de que as aparências, e também nossas crenças, podem nos trair a percepção, subverter a lógica. A despeito das previsões pessimistas, o Brasil conseguiu realizar a contento o mais destacado evento esportivo internacional. Os estádios ficaram prontos a tempo, e aeroportos funcionaram sem atrasos. Ao contrário do que desejava nossa sempre otimista torcida, a Seleção da casa nem chegou perto de conquistar o hexa. Deu vexame em campo. Da euforia, fez-se, mais uma vez, a decepção. Bem, amigos do Jornal da ABI... Há muitas coisas neste País que não são exatamente aquilo que parecem ser. Dentro e fora de campo. Dá até vergonha.

ORIGINAL Leia a íntegra do texto publicado pela Folha de S.Paulo no dia 19 de junho e a reprodução do ‘erramos’

“O principal problema do Brasil é a zaga”, diz Felipão MARIO SERGIO CONTI COLUNISTA DA FOLHA

Neymar e Luiz Felipe Scolari foram os últimos passageiros a embarcar no avião, às 17h30 de ontem. Como vôo da ponte-aérea, do Rio para São Paulo, estava lotado, ambos se espremeram em poltronas entre passageiros, Felipão na 25E e Neymar na fileira da frente. “Vê se dorme, moleque”, disse o técnico ao jogador. Neymar desligou o celular, mas não dormiu, apesar de apenas um passageiro ter-lhe pedido um selfie durante o vôo. Tampouco Felipão pregou o olho. Um tanto apreensivo com o céu carregado, ele respondeu de bom grado tudo que lhe foi perguntado. “Acho que, até agora, os melhores times foram a Holanda e a Alemanha”, disse. “Eles vão dar trabalho. A Itália também. Ela sempre chega às semifinais. É como o Brasil: tem tradição, empenho, torcida”. O zero a zero com o México não o abalou: “Pode ter sido até positivo, na medida em que jogou um pouco de água fria no oba-oba, na idéia de que é fácil ganhar uma Copa”. Num campeonato de nível tão alto, ele acha imprevisível fazer prognósticos. “Quem diria que a Espanha sairia da Copa logo de cara?”, indagou. O mesmo raciocínio ele aplica à seleção sob a sua responsabilidade. “O Oscar fez uma excelente partida na estréia, mas não foi bem no segundo jogo”, disse, mastigando um salgado de gosto insosso. “O Neymar foi bem, mas não teve a genialidade da partida anterior. São coisas que acontecem. E quem esperaria que o goleiro mexicano defendesse todas?” Felipão concordou com o raciocínio que Neymar parece mais centrado agora do que antes, não se joga tanto no chão nem faz demasiado teatro. “É verdade, ele está mais objetivo. Mas pode melhorar ainda mais. Não dá para apressar muito esse processo: ele é muito moço, tem que aprender as coisas na prática”. Mas não tem dúvidas: “se tivéssemos três como ele, a Copa seria uma tranquilidade”. O avião deu solavancos e o técnico comentou: “isso sim é que é um especialista, repare como o piloto conduz o avião com mão firme, fazendo mil coisas ao mesmo tempo”. O que seria mais difícil: pilotar um avião ou a seleção nacional? “Não tem comparação, avião é muito mais difícil. O piloto lida com vidas humanas, é responsável por elas. Se a seleção perder, será muito triste para o Brasil, para os jogadores, a minha família e eu. Mas ninguém corre risco de morte”. Felipão se disse satisfeito com o ambiente geral da Copa. Não esperava que tantos mexicanos e chilenos viessem, nem que as torcidas se confraternizassem. “Até os argentinos estão se dando bem com os brasileiros. Pelo menos, até agora”. Disse que os estádios são bons e a organização dos jogos funciona. “E te digo: tive dúvidas, mas os aeroportos onde estive até agora estão uma maravilha”. Contou que ninguém do governo o procurou, em momento algum. E ouviu com agrado o relato de meu encontro recente com um ministro, seu fã atilado. “Pelo que ouço dizer, o governo está torcendo pela seleção, e a oposição nem tanto”, disse. “Acho uma bobagem misturar futebol e política. Eu mantenho essa separação custe o que custar, não dou uma palavra sobre política”. Os xingamentos a Dilma no jogo de abertura, portanto, não lhe dizem respeito. Perguntado se lia comentários de especialistas nos jornais, ou ouvia o que diziam na televisão, Scolari sorriu: “Até papagaio fala”. Ao ouvir os nomes de alguns, ex-jogadores e ex-técnicos, repetiu, divertido: “Papagaio fala!”.

Felipão terminou de tomar a caixinha de suco de laranja e se explicou melhor: “os comentários são necessariamente frios, distantes. A experiência de jogar no Maracanã lotado, de cobrar um pênalti, de ouvir vaias, são coisas que mexem com o jogador, com o indivíduo. Não é questão de aplicar uma receita”. Para ele, as variáveis envolvidas numa partida são inúmeras, não é possível reduzi-las ou quantificá-las. Deu como exemplo a seleção da Alemanha: “Ela está na Bahia, no sol, entre mulatas lindas. Claro que isso os influencia”. Felipão riu de novo: “Desconfio que alguns deles nem voltarão para a Alemanha”. Se não acompanha os comentaristas da imprensa, ele está ciente de dificuldades táticas e de entrosamento na seleção. “O principal problema é a zaga”, disse. “Ela cai para o lado, quando deveria ir em frente, buscar o jogo lá na frente”. O que mais o irritou até agora foram os boatos, divulgados pela imprensa européia, que o Brasil já ganhou a Copa, já que a Fifa teria orientado juízes a facilitarem a vida da seleção. “Mais que um absurdo, é um desrespeito. Você imagina comprar a Itália, a Alemanha? Isso não existe”. O avião sobrevoava São Paulo, coberta por nuvens. “É como descer a serra de Santos com um nevoeiro fechado, sem enxergar nada”, disse. “Esse comandante sabe tudo”. Neymar e o técnico tinham participado da gravação do programa “Zorra Total”, no Projac, o estúdio da Globo em Jacarepaguá. “Não gosto de passar muito tempo longe de São Paulo: veja que cidade interessante”, apontou. Felipão estava curioso em saber como seu filho se saíra numa prova naquele dia. Ele estuda Economia nas Faculdades São Judas Tadeu, e pegara uma recuperação. “Mas o garoto vai bem, é estudioso”. Perguntei se toparia dar uma entrevista ao programa Diálogos, da GloboNews. “Claro, vamos lá. Só que ando meio ocupado...”, disse, rindo. Pegou sua carteira, tirou um cartão de visitas e me entregou, afirmando: “Mas isso pode te ajudar, por enquanto”. O cartão de visitas dizia: “Wladimir Palomo - Sósia de Felipão – Eventos”. Depois das gargalhadas, apertou a mão e disse: “Deus te proteja”.

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FOTOS FÁBIO REBELO

DOCUMENTÁRIO

O show da vida Filme de Jorge Furtado discute, com bom humor, o processo de espetacularização do Jornalismo. P OR C ELSO S ABADIN

Antônio Carlos Falcão, Eduardo Cardoso e Thiago Prade: Negociando as melhores notícias no salão da barbearia.

A grande platéia presente no CinePE, Festival de Cinema de Pernambuco, explode em gargalhadas. Na tela, nenhuma comédia, mas sim um documentário. E mais: um documentário que tem o Jornalismo como tema. Explica-se: o filme em questão é O Mercado de Notícias, dirigido por Jorge Furtado, um cineasta que consegue colocar saborosas doses de humor e ironia em tudo o que faz. Até num documentário sobre Jornalismo. Além de ter realizado alguns dos curtas-metragens mais significativos do cinema brasileiro (Ilha das Flores, Barbosa, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda), e dirigido longas premiados (O Homem que Copiava, Saneamento Básico, Meu Tio Matou um Cara), Furtado também assinou como roteirista, diretor (ou ambos), marcantes trabalhos para a televisão, como Comédias da Vida Privada, A Invenção do Brasil e Doce de Mãe. Uma de suas marcas registradas é saber abordar temas sérios e importantes com leveza, bom humor e pitadas de sarcasmo. Em O Mercado de Notícias não foi diferente. Entremeando a encenação de uma peça teatral do século 17 com depoimentos de alguns dos mais importantes jornalistas em atividade, o documentário aborda, de acordo com as palavras do seu diretor, “os processos de novelização e de espetacularização pelas quais o Jornalismo vem passando, o que afasta os leitores mais sérios, minando a credibilidade da atividade”. Os depoentes que aparecem no filme não deixam dúvida quanto à seriedade do trabalho: Bob Fernandes, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luís Nassif, Maurício Dias. Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete. O documentário abre espaço também para analisar, com diferentes graus de profundidade, quatro casos que até hoje envergonham a atividade jornalística brasileira. O primeiro, e mais icônico, é o da Escola Base, uma pequena instituição paulistana de ensino infantil que foi acusa16

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Elisa Volpatto (esquerda) numa cena do filme e as comadres sendo orientadas por Jorge Furtado durante as filmagens.

da de acobertar a prática de pedofilia, ganhou a imprensa com estardalhaço sensacionalista, destruiu as vidas de seus proprietários, para mais tarde ser inocentada. Como se trata do episódio mais conhecido e alardeado, o cineasta fez a feliz opção de retratá-lo apenas com a contraposição das manchetes da época, sem nenhum tipo de narração ou explicação verbal, apenas escancarando, na tela, a absurda desproporção do espaço destinado pela mídia para as acusações, em contraposição à minúscula notinha de esclarecimento, depois que a verdade veio à tona. Tarde demais. O segundo caso abordado é o da demissão do então Ministro dos Esportes, Orlando Silva, envolvido em acusações de corrupção igualmente alardeadas de maneira sensacionalista, e igualmente desmentidas em minúsculas notinhas. Outros dois episódios causam risos na platéia. Num deles, uma reprodução barata de uma obra de Picasso é encontrada enfeitando um escritório do INSS em Brasília, e reportada pela imprensa como sendo verdadeira e, portanto, valiosíssi-

ma. A não autenticidade da obra, que poderia ser comprovada facilmente em minutos por qualquer estudante de Artes, ganha contornos de espionagem internacional, arrancando risos do público e denunciando a fragilidade atual da imprensa em lidar com a velha, desgastada e “fora de moda” questão da checagem de informações. Mas é no famoso caso da bolinha de papel que o auditório realmente vem abaixo. Analisando minuciosa e ironicamente as imagens de cinco câmeras (quatro profissionais e uma amadora) que cobriam a campanha do então candidato José Serra, em outubro de 2010, Jorge Furtado comprova, sem deixar margem a dúvidas, que o suposto “atentado” contra Serra (que inclusive o levou a fazer tomografia num hospital) foi na verdade “cometido” por uma bolinha de papel atirada contra sua cabeça. E mais: que o “autor” do crime foi um dos próprios homens da segurança do candidato do PSDB. Muito mais do que simplesmente criar humor a partir desta revelação, o filme

levanta a falta de empenho e interesse da própria imprensa em cumprir sua função investigativa, posto que da mesma forma que Furtado teve acesso fácil às imagens das cinco câmeras, qualquer outro órgão de imprensa igualmente poderia ter. Mas a necessidade do sensacionalismo tem falado muito mais alto e forte que qualquer tentativa de investigação mais séria. Afinal, como diz Bob Fernandes, num de seus depoimentos no filme, “O Jornalismo, dependendo de quem faz, pode ser tudo. Pode ser negócio, pode ser pilantragem, escada pra subir na vida. Pode ser tudo”. A própria “verdade jornalística” é um conceito relativizado por Janio de Freitas, em depoimento ao documentário. “Se um chefe de governo tem um caso com uma repórter, dependendo de quem seja este chefe de governo, isso é publicado ou não. Seja verdade ou não”, diz o jornalista. Após participar e ser premiado em festivais de cinema pelo Brasil, O Mercado de Notícias estréia nos cinemas no mês de agosto.


FÁBIO REBELO

Jorge Furtado: “Sou um jornalista frustrado” Jornal da ABI – Você é conhecido como cineasta e roteirista, e tem grande atuação no campo da comédia. Como surgiu a idéia de fazer um documentário sobre jornalismo? Jorge Furtado – Bom, eu sou cineasta, mas também sou um jornalista frustrado [risos]. Na verdade eu até comecei a estudar Jornalismo, mas acabei abandonando o curso exatamente para fazer Cinema. Profissionalmente, quase tudo o que eu faço se desenvolve nas áreas do cinema e da televisão, mas pessoalmente eu não consigo imaginar minha vida sem ler jornais, sem procurar notícias na internet, sem me atualizar muito sobre todas as coisas. Gosto tanto de jornalismo que já há algum tempo eu venho fazendo um blog falando de vários assuntos, entre eles, o jornalismo. (digite em seu navegador o endereço goo.gl/CYYnDr) Jornal da ABI – Mas, pelo menos no seu documentário, sua postura em relação ao jornalismo é bastante crítica. Jorge Furtado – Já há algum tempo que eu vinha notando que o jornalismo está em risco. Num primeiro momento pela mudança brutal da tecnologia, que transformou toda a lógica da profissão, e fez com que o jornalismo tradicional perdesse espaço. Mas este risco acontece também porque o jornalismo começou a abdicar dos seus próprios princípios fundamentais, como a investigação, a imparcialidade, a busca pela verdade, e tudo o mais. Eu já estava com esta inquietação, com esta indignação, e de repente, ao ler o livro A História Social da Mídia, de Peter Burke, fiquei sabendo da peça The Staple of News,

Jornal da ABI

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

que o dramaturgo inglês Ben Johnson escreveu no século 17. Fui atrás de uma tradução, e não encontrei nada, nem em português de Portugal. Resolvemos, então, eu mesmo e a professora Liziane Kugland, fazermos a tradução, que passou a ser a primeira tradução de The Staple of News para o idioma português, passando a se chamar O Mercado de Notícias. Encenar a peça dentro do filme foi uma forma que encontrei de tornar o documentário menos formal, de fugir pelo menos um pouco daquela formatação clássica das entrevistas e depoimentos, embora o filme tenha, obviamente, vários entrevistados dando seus depoimentos.

tivemos um problema de agenda e o depoimento dele acabou não saindo.

Jornal da ABI – Qual foi seu critério para escolher os depoentes do filme? Jorge Furtado – O critério foi escolher basicamente jornalistas da área de Política, de hard news, de repercussão nacional, de vários veículos. Foi um critério bastante pessoal também, de entrevistar gente que eu leio e sigo.

Jornal da ABI – Você convidou alguém que não aceitou? Jorge Furtado – Apenas o Elio Gaspari. E por um simples motivo: ele não dá entrevistas para ninguém. Nunca. Todos os demais aceitaram sem problemas. Eu mandava a peça para eles, e adiantava que as perguntas seriam sobre jornalismo, seus rumos, o mercado, critérios, etc. Todos toparam.

Jornal da ABI – Quantos jornalistas dão depoimento no documentário? Jorge Furtado – Pensei em colocar 14 jornalistas. Defini primeiramente este número porque usei 14 atores para a encenação da peça, e usar 14 depoentes daria um certo equilíbrio. Na verdade, a peça tem mesmo 36 personagens, mas iria ficar demais, e resolvemos fazer uma adaptação para 14 atores. Fizemos tudo pensando em 14 nomes depoentes, mas acabaram ficando apenas 13, porque deu um probleminha para gravar o Caco Barcellos. Já estava tudo acertado com ele, mas

Jornal da ABI – O filme cita vários casos importantes, até divertidos, de grandes erros da Imprensa. Imagino que não deva ter sido fácil escolher quais entrariam no documentário, e quais não caberiam. Jorge Furtado – No filme há quatro casos interessantes de jornalismo mal feito ou mal apurado: o da Escola Base acusada de pedofilia, a bolinha de papel atirada no então candidato José Serra, a demissão do Ministro dos Esportes, Orlando Silva, e o caso do suposto quadro do Picasso encontrado na sede do INSS. Mas

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Apoio à produção editorial: André Gil, Cesar Silva, Conceição Ferreira, Paulo Chico. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva. Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Rua Martinico Prado, 26, Cj 31 Vila Buarque - São Paulo, SP - Cep 01224-010 Telefones (11) 3868.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha) Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder (in memoriam), Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

há vários outros a serem levantados e que não estão no filme. Por exemplo, no final de 2008, começaram a sair na imprensa notícias “denunciando” um “absurdo”: a publicação de receita de caipirinha no Diário Oficial da União. O problema é que isso não é absurdo nenhum, pois como a caipirinha é produto de exportação, é uma norma legal e obrigatória que o Diário Oficial publique a sua receita. Não só da caipirinha, mas de qualquer produto brasileiro de exportação. E a publicação da receita foi divulgada com estardalhaço e indignação porque nenhum jornalista se preocupou antes em querer saber os motivos da receita estar ali, publicada. Jornal da ABI – Casos parecidos não faltarão nunca. Jorge Furtado – Por isso a idéia é atualizar o filme através de um site. Fizemos o site (omercadodenoticias.com.br) que será sempre atualizado com novos casos como este. Também colocaremos no site, aos poucos, as entrevistas em suas versões integrais. Cada entrevistado rendeu aproximadamente uma hora de material, que obviamente não cabe no filme, mas cabe no site.

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (in memoriam), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

DA ABI DE 4032008. • JULHO DE 2014 O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DEJORNAL SETEMBRO

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CENSURA

WILSONSANTOSCPDOC JB

O ‘REI’ ESTÁ NU! Livro do jornalista Paulo Cesar de Araújo conta os bastidores da batalha judicial travada com Roberto Carlos, devido à publicação de biografia não autorizada em 2006. Aprovado na Câmara, projeto de Lei que trata do tema deverá ser discutido no Senado em agosto. P OR P AULO C HICO

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JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

Meio esquecida Citada por Paulo Cesar, a chamada Lei das Biografias, que ocupou lugar de destaque na mídia nos últimos anos, anda meio esquecida. Depois de três anos em tramitação, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou no dia 6 de maio o Projeto de Lei 393/11, que modifica o Código Civil e libera a publicação de

DIVULGAÇÃO/COMPANHIA DAS LETRAS

Quando resolveu dedicar 16 anos de pesquisas e 175 entrevistas a seu ídolo, Paulo Cesar de Araújo não imaginava que sua iniciativa, fruto de legítima admiração, teria como resposta a irritação e a fúria de seu homenageado. Lançado em novembro de 2006 pela editora Planeta, Roberto Carlos em Detalhes acabou sendo alvo de duro embate judicial, que teve como desfecho a vitória do artista biografado e a derrota, ao menos temporária, da liberdade de expressão. O jornalista, no entanto, não se deu por vencido. E desdobrou, em novo volume, a relação controversa com o mais popular cantor e compositor brasileiro, com o lançamento de O Reú e o Rei – Minha Relação com Roberto Carlos, em Detalhes, dessa vez pela Companhia das Letras. “A idéia de produzir este segundo livro surgiu logo depois da proibição da primeira obra. Participei de debates em bienais e outros eventos, como a Flip em Paraty. E nestes locais, invariavelmente, quando contava sobre os encontros com Roberto Carlos no fórum, e todos os desdobramentos daquela disputa, as pessoas me perguntavam detalhes. Na verdade, pediam para que eu organizasse tudo aquilo e publicasse em um novo livro. A sugestão final, que me fez iniciar pra valer o projeto, veio do Luiz Schwartz, da Cia das Letras. Sabíamos que havia um perigo, de também esta obra ser proibida, mas decidimos correr o risco. Fechamos contrato em janeiro de 2009, e trabalhei em O Réu e o Rei por cinco anos, em absoluto sigilo, que se fazia necessário dado o contexto e o perfil do personagem, para que o livro não fosse abortado antes mesmo de ficar pronto”, contou Paulo Cesar de Araújo ao Jornal da ABI.

A obra, que chegou ao mercado no dia 25 de maio deste ano, causou novo rebuliço no mercado editorial brasileiro, e foi muito bem recebida por crítica e público. Desde então, figurou por seis semanas na lista dos mais vendidos, segundo ranking publicado pela revista Veja. E segue em fase de lançamento. Em agosto, novas noites de autógrafos estão programadas para o Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por exemplo. Da primeira edição, com tiragem inicial de 30 mil exemplares, já foi providenciada a reimpressão de mais 15 mil volumes. “Na verdade, o livro estava quase pronto, prestes a ser lançado, no final de 2013, quando ocorreu todo aquele episódio do Procure Saber, grupo liderado pela Paula Lavigne, que acirrou ainda mais a polêmica sobre a chamada Lei das Biografias, ou seja, o confronto entre o direito à privacidade e a liberdade da prática jornalística e de expressão, no que diz respeito às personalidades públicas. Ninguém jamais imaginaria que, a partir do Roberto Carlos em Detalhes, haveria um debate nacional, mobilizando escritores, inclusive estrelas como Paulo Coelho, passando por políticos e artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso. Decidimos então que, assim que fosse arrefecida a polêmica, chegaria o momento ideal de lançar a obra com o desdobramento do caso da biografia de Roberto nos tribunais”, conta.

“imagens, escritos e informações” biográficas de personalidades públicas, sem necessidade de autorização do biografado ou de seus descendentes. Desde então, a imprensa tem tratado pouco do assunto. O texto da Lei ainda deve ser votado pelo Senado e, se aprovado, seguirá para sanção da Presidente Dilma Rousseff.

Quem ri por último? Em nova obra, o jornalista Paulo Cesar de Araújo conta em detalhes a luta judicial contra Roberto Carlos e provavelmente irá relançar o livro proibido.

Mas, quando isso acontecerá? Com a palavra, o Deputado Federal Newton Lima (PT/SP), autor do projeto. “A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado deve realizar, no início de agosto, uma audiência pública para debater o meu projeto. A proposta partiu do Senador Ricardo Ferraço (PMDB/ES), relator da matéria naquele colegiado. Eu espero que depois disso o projeto seja rapidamente aprovado na comissão e em seguida no plenário, para que a Presidente Dilma possa sancioná-lo. O ideal é que o Congresso decida sobre o fim da censura às biografias, antes do Supremo Tribunal Federal. Até porque foi o Poder Legislativo que errou ao aprovar o Código Civil de 2002, com o artigo 20 que prevê a censura”, contou o parlamentar em entrevista ao Jornal da ABI. Segundo Newton Lima, a censura prévia às obras biográficas está inibindo produções teatrais, cinematográficas e de livros que se destinam a contar a história de pessoas públicas que, de alguma forma,


da com a remoção definitiva de qualquer possibilidade de censura prévia, como no caso do artigo 20 do Código Civil”. Em paralelo, a liberação das biografias não autorizadas também é discutida no Supremo Tribunal Federal. “Estamos aguardando a posição do STF, e nossa expectativa é positiva em relação à Ministra Cármen Lúcia, Presidente da Casa”, avalia Paulo Cesar de Araújo. ANTÔNIO CRUZ/ABR.TIF

foram importantes para a história e merecem ser conhecidas pela sociedade. “Autores e diretores estão receosos de tocar projetos de cunho biográfico, com medo de terem a obra censurada depois de todo um trabalho concluído. As próprias editoras têm medo de apostar em obras deste tipo. Quem perde com isso é a sociedade”, explica ele, que garante não temer que o projeto seja barrado no Senado. “Não percebo a existência de uma resistência organizada no Congresso. Existem opiniões divergentes, mas isso é da essência do Poder Legislativo. Acredito que a matéria será aprovada. Os senadores terão a sensibilidade para perceber que é necessário acabar com esse entulho autoritário que é a censura prévia. O Brasil é um único país democrático do mundo onde existe a possibilidade de censura às obras biográficas”. Newton Lima acompanhou com especial interesse o embate jurídico entre o jornalista e o artista capixaba, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, em 19 de abril de 1941. “Vejo este segundo livro – O Réu e o Rei – como uma importante iniciativa no sentido de esclarecer a controvérsia. Essa polêmica não deve se restringir ao ambiente jurídico, por tratar-se da liberdade de expressão, uma conquista da luta democrática, que precisa ser efetiva-

Deputado Newton Lima: Quem perde com a censura às biografias é a sociedade.

A DELICADA RELAÇÃO ENTRE BIÓGRAFO E BIOGRAFADO Roberto Carlos em Detalhes tinha tudo para ser um tremendo sucesso de vendas. Afinal, lançava luzes sobre a história pessoal e artística do ‘Rei’ da Música Popular Brasileira. Sua infância, o acidente com o trem que resultou na amputação da perna direita aos seis anos de idade, o início da carreira, a Jovem Guarda e as diferentes fases posteriores, a construção do mito, sua personalidade controversa, religiosidade, superstições, a relação com os colegas, relacionamentos, casamentos, os filhos legítimos ou não. Estava tudo lá. No entanto, por pouco tempo. Cerca de dois meses após o lançamento de sua biografia, mais precisamente em 10 de janeiro de 2007, Roberto bateu às portas dos tribunais contra o autor e sua então editora. Foi o início da batalha judicial, e também de uma das mais graves agressões à liberdade de expressão na história brasileira recente. A reação que se seguiu à notícia de que o artista propusera ações nas esferas cívil e criminal contra Paulo Cesar – que resultaram na apreensão dos livros, que ao que tudo indica seguem armazenados em um depósito – ocupou os principais veículos de comunicação no País e até no exterior.

“Até hoje, o livro continua fora do mercado, mas circula livremente pela rede de internet. Seu recolhimento acabou ocorrendo por causa do acordo firmado entre os advogados de Roberto e a editora da época que, infelizmente, amedrontou-se e resolveu não brigar pela obra. Aguardo apenas essa desejada mudança da Lei para retomá-la e publicá-la com outra editora, uma vez que o contrato com a Planeta já venceu”, antecipa Paulo Cesar, que analisa com objetividade a reação aparentemente blasé do cantor à sua segunda investida autoral. “É preciso entender que, quando do lançamento recente de O Réu e o Rei, o País já vivia um momento diferente daquele de quando o primeiro livro chegou ao mercado. Após o fiasco do Procure Saber, já vivíamos num contexto favorável à liberdade de expressão... Roberto, na verdade, agiu no piloto automático quando proibiu meu livro, assim como fez em relação à obra do antigo mordomo, Nichollas Mariano, escrita em 1979. Fez o mesmo contra Ruy Castro, em 1983, por matéria escrita pelo jornalista para a revista Status. Processou até jornais, como o Notícias Populares. Em todos esses casos, não hou-

ve maiores polêmicas ou reações. Contudo, hoje, o momento é outro. A sociedade está mais vigilante, atenta e consciente, não só em relação ao direito à liberdade de expressar-se, mas também à discussão de outros temas, como a homofobia, por exemplo”, diz Paulo Cesar que, no entanto, acredita não terem ocorrido avanços no posicionamento do artista quando o tema em questão são as biografias. “Em nota emitida por seus advogados, Roberto deixou bem claro que não tomaria uma atitude em relação a O Réu e o Rei simplesmente por considerar este segundo livro uma biografia,escrita por mim, sobre a minha própria história. Ou seja, se ele considerasse esta obra também uma biografia dele teria, sim, adotado a mesma postura de censurá-la”. Diz a nota oficial divulgada por Roberto e assinada por Marco Antonio Campos, advogado: “Com relação ao livro O Réu e o Rei, Roberto Carlos não vai tomar qualquer medida jurídica, em face de: a) o livro não ser uma biografia sua, mas uma autobiografia do autor; b) ao contrário do livro anterior, não conter invasão de sua privacidade e/ou injúrias ou difamações à sua pessoa. O livro Roberto Carlos em Detalhes não foi censurado ou apreendido, mas saiu do mercado em face de um acordo judicial, irrevogável e definitivo, assinado espontaneamente pelo autor do livro, o editor e a editora”. “A nota divulgada pelo advogado, que, aliás, é personagem de O Réu e o Rei, mostra que eles ainda estão se agarrando ao que lhes resta, que é proibir o livro anterior. Dizer que o acordo foi assinado ‘espontaneamente’ é um sinal de que não leram meu novo livro. A luta continua. Roberto Carlos em Detalhes não será proibido para sempre, como diz a nota do advogado de Roberto Carlos. Lamento que eles insistam nisso”, reagiu o autor. A Companhia das Letras também posicionou-se. “Consideramos O Réu e o Rei – com o relato da pesquisa e dos passos que fizeram com que a biografia de Roberto Carlos fosse retirada do mercado – um marco na história da luta pela liberdade de expressão no Brasil, e em particular da luta pela liberdade de publicação de biografias e livros que retratem a história do nosso País. Como todos os editores, aguardamos agora que o Senado dê continuidade à tramitação do projeto da nova Lei das Biografias.” Num trecho de O Réu e o Rei, Paulo Cesar relata o que teria dito a Roberto Carlos, antes de assinarem o acordo proibindo a biografia de 2006: “Roberto, este

acordo, da forma que está proposto aqui, é um absurdo. Isso é ruim para mim, para a editora Planeta, para o mercado editorial, para a sociedade, e é ruim principalmente para você. Proibir e queimar livros em pleno século 21 é barbárie. Isto nos remete à Inquisição, ao nazismo, às ditaduras militares. Protagonizar um ato desses a essa altura de sua carreira será uma mácula na sua biografia. Não a que escrevi, mas à sua própria”. De nada adiantou. Roberto foi até o fim e, em pleno tribunal, anunciou que lançaria em breve a própria biografia autorizada. E – surpresa! – que a mesma chegaria às livrarias pelas gráficas da Planeta. Sim, isso mesmo: a mesma editora que assinaria o acordo de recolhimento, entregando ao ‘Rei’ mais de 10 mil exemplares da biografia escrita por Paulo Cesar. Com a expectativa de aprovação do projeto de Lei no Senado, e a posterior sanção da Presidente da República, o cenário será outro, aposta Paulo Cesar de Araújo, reconhecido pesquisador da história da MPB e autor de Eu Não Sou Cachorro, Não (Record) – outra obra de sucesso, dedicada à produção de artistas do chamado gênero brega, e sua relação com a Ditadura Militar. “Roberto Carlos em Detalhes entrará para a história como o último livro proibido no Brasil, e o popular cantor vai figurar como o último censor do País”, prevê o jornalista que, apesar de toda a batalhada com o ‘Rei’, garante não terem sido abalados seu interesse ou posição de fã no que se refere ao artista. “Tenho ainda o mesmo sentimento, e falo isso com toda a sinceridade. Entenda bem: minha relação com o Roberto sempre foi estritamente musical, sempre gostei de ouvir suas músicas, admirei suas composições. Mas, por outro lado, sempre fomos muito diferentes, estivemos mesmo quase que em lados opostos. Ele é muito supersticioso; eu não. É católico fervoroso; eu sou agnóstico. Enquanto pessoa pública, ele não gosta de se envolver com a política; eu sempre tive atuação neste campo... Ele é vasco, eu sou flamengo... Sempre fomos muito diferentes, mas suas músicas não ficaram feias só porque ele me processou. Roberto ajudou a construir algumas das mais belas passagens da história da MPB. Continuo acompanhando sua carreira, pesquisando, e não posso ter ressentimentos em relação ao meu objeto de estudo. Apenas lamento o que todo este episódio agregou de negativo à sua imagem enquanto artista”, conclui Paulo Cesar, pesquisador sempre atento aos ‘detalhes’. JORNAL DA ABI 403 • JULHO DE 2014

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DEPOIMENTO

Sobral Pinto e Prestes: duas vidas que se cruzam Amigo fiel de Sobral Pinto, o jornalista GERALDO PEREIRA DOS SANTOS gravou preciosos depoimentos do grande jurista desde 1970. Aqui, ele relata alguns deles. Em especial, seu encontro com Luís Carlos Prestes.

Agradeço a Jorge Amado ter conhecido o admirável e saudoso ser humano que foi Heráclito Fontoura Sobral Pinto, de quem me tornei amigo, amizade que durou mais de quarenta anos, décadas de lições aprendidas para não desaprender jamais. Mineiro de Barbacena, onde nasceu em 5 de novembro de 1893, Sobral Pinto estudou na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro e, em 1917, estava formado. Sua banca de advocacia entra em atividade dois anos depois. Faleceu no Rio de Janeiro em 30 de novembro de 1991, deixando bem mais pobre a sua Pátria e o seu povo. Com o seu desaparecimento perdeu o Direito a sua grande voz, a liberdade o seu amante amantíssimo, dedicado que lhe foi extremamente fiel. Sendo o segundo maior advogado que o Direito brasileiro produziu em toda a sua existência (o primeiro foi Ruy Barbosa), transformou a sua Banca de Advocacia e Saber numa policlínica popular, para todos os doentes, em todas as épocas que necessitassem de liberdade. Por lá passaram – além de Luís Carlos Prestes –, Graciliano Ramos, Adauto Lúcio Cardoso, Juscelino Kubistchek, Carlos Lacerda, Miguel Arraes, Hélio Fernandes, Mauro Borges, Carlos Marighela, Francisco Julião, Gregório Bezerra, Oswaldo Pacheco, Luís Tenório de Lima e uma infinidade de vítimas do arbítrio que se instalou no Brasil, em 1937, com a ditadura de Getúlio Vargas, e em 1964, com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Tínhamos a mesma paixão pelo time do América do Rio de Janeiro: pertencemos durante anos ao seu Conselho Deliberativo. Nunca vi o velho Sobral mais alegre do que quando o clube do nosso coração levantou o Campeonato Carioca de 1960. O vi extremamente triste, indignadíssimo quando o Conselho ao qual pertencíamos aprovou o nome do General Médici, então Presidente da República, como Presidente de honra do nosso América. Ele esteve ausente dessa reunião. Na reunião seguinte compareceu. Foi à tribuna, fez um violentíssimo discurso contra o ato e contra o ditador, e perguntou: “Quem foi o responsável por esse ato? Se eu estivesse aqui teria impugnado essa proposta e teria votado contra. O América não precisa disso!”. Vivíamos uma ditadura cruel, o próprio Sobral Pinto havia sido preso e jogado brutalmente no camburão, na cidade de 22

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LEWY MORAES/FOLHAPRESS

P OR G ERALDO P EREIRA DOS S ANTOS

Sobral Pinto e Luís Carlos Prestes (na página ao lado): uma fraterna amizade que começou na prisão.

Goiânia. Após o discurso, deixou o plenário, acompanhei-o até a sua residência, na Rua Pereira da Silva, no bairro das Laranjeiras, onde morou por mais de 75 anos. Despediu-se de mim dizendo: “Não piso mais no América”.

VIDAS INTERLIGADAS

Já tentei diversas vezes escrever sobre Sobral Pinto sem citar Luís Carlos Prestes, coisa absolutamente impossível. Essas duas existências, esses dois grandes homens, tiveram suas vidas interligadas. Prestes, marxista, ateu; Sobral Pinto, líder católico, conservador, anticomunista. Ambos nos deram exemplos de dignidade humana diária. Sobral Pinto, aos 95 anos, ainda trabalhava para viver. Prestes, deixo que sobre ele fale o mestre Sobral Pinto: “Por maiores que sejam as suas culpas, há nele alguma coisa de grande e elevado. Se ele tivesse pensado somente em si, como aconteceu com Góis Monteiro, Getúlio, Juarez, e tantos outros, seria estas horas General do Exército brasileiro, e quiçá, Ministro da Guerra. Em 1930, não lhe faltaram oferecimentos, os mais

sedutores. A tudo resistiu, porém, para ficar fiel às suas idéias, erradas e funestas, é verdade, mas adotadas e seguidas com rara sinceridade”. Na ditadura de Getúlio não havia um advogado com coragem suficiente para defender Luís Carlos Prestes e Sobral Pinto assume a sua defesa. A batalha é travada em favor de Prestes e, também, para salvar a sua filha Anita Leocádia, nascida num campo de concentração da Alemanha nazista, para onde fora enviada Olga Benário Prestes, sua mãe.

O JULGAMENTO DE OLGA

Antes, em 3 de junho de 1936, o advogado Heitor Lima ingressou na Suprema Corte – como era chamado o Supremo Tribunal Federal – com um pedido de Habeas Corpus em favor de Olga, a fim de evitar a sua expulsão do Território Nacional. Na petição ele apela para o Presidente da Corte, Ministro Edmundo Lins, que “o presente pedido se processe sem custas (...) porque a paciente se encontra absolutamente desprovida de recursos. O vestido que traz hoje é o mesmo que usava quando foi presa; e o

pouco dinheiro, os valores e as roupas que a polícia apreendeu na sua residência, não lhe foram restituídos; e que faça submeter a paciente a uma perícia médica, no sentido de precisar seu estado de gravidez”. Olga estava grávida de sete meses. O pedido foi indeferido. O advogado Heitor Lima vai à réplica: “Se a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência do mais fino quilate, como o insigne Presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma encarcerada sem recursos, não há de a história da civilização brasileira recolher em seus anais judiciários o registro dessa nódoa: a condenação de uma mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O impetrante satisfará a despesa do processo. Rio de Janeiro, 4 de junho de 1936. Heitor Lima, advogado.” As custas do processo totalizaram quatorze mil e oitocentos réis (14$800). O processo foi julgado e a decisão pela Suprema Corte foi a seguinte: “Nº 26155 – Vistos, relatados e discutidos estes autos de habeas corpus, impetrado pelo Dr. Heitor Lima, em defesa de Maria Prestes, que


6º que a personalidade humana começa com o nascimento, mas, a lei assegura e garante desde a concepção o direito do nascituro, ela estava grávida de 7 meses, grávida de quem? De um brasileiro. Ficou grávida onde? No Rio de Janeiro, território Nacional. Então, aquele feto era brasileiro, sendo brasileiro não podia ser extraditado porque a lei de extradição, de expulsão, não permitem que o brasileiro seja expulso ou extraditado. O brasileiro que pratica um crime no estrangeiro vem para o Brasil, a Nação pede ao Brasil para extra-

sível que a Ordem não tenha...’ E eu disse: ‘Não! Você está sendo generoso, porque a lei autoriza você indicar e ninguém pode recusar, e se recusar você pode suspender. O Conselho suspende, está na Lei’. Mas esse católico não sabe o que é a caridade cristã. Ele não conhece o evangelho: ‘Aquele que é do reino de Deus tem que ser amigo, não só do amigo, mas do inimigo’. Fazer bem àquele do qual recebeu o mal está no Evangelho, isso que Santo Agostinho resumiu numa frase lapidar: ‘Odiar o pecado e amar o pecador ’”. ACERVO UH/FOLHAPRESS

ora se encontra recolhida à Casa de Detenção, a fim de ser expulsa do território nacional, como perigosa à ordem pública e nociva aos interesses do País. A Corte Suprema, indeferindo não somente a requisição dos autos, do respectivo processo administrativo, como o comparecimento da Paciente e bem assim a perícia médica a fim de constatar o seu estado de gravidez, e atendendo que a mesma Paciente é estrangeira e a sua permanência no País compromete a segurança nacional, conforme se depreende das informações prestadas pelo Exmo. Sr. Ministro da Justiça; atendendo a que em casos tais não há como invocar a garantia constitucional do habeas- corpus, a vista dos dispositivos artigo 2, do Decreto nº 702, de 21 de março deste ano; ACCÓRDA, por maioria, não tomar conhecimento do pedido. Custas pelo impetrante. Corte Suprema, 17 de junho de 1936. Edmundo Lins, Presidente, Bento de Faria Relator.” Uma decisão vergonhosa e mesquinha que cobriu de vergonha todos os membros daquela Corte: entregar aos carrascos nazistas uma mulher grávida de sete meses, casada com um brasileiro. A sessão foi presidida pelo Ministro Edmundo Lins, com a presença de todos os Ministros, componentes da mesma, a saber: Hermenegildo de Barros, vice-Presidente; Bento de Faria, relator; Eduardo Espínola, Plinio Casado, Carvalho Mourão, Laudo de Camargo, Costa Manso, Octávio Kelly, Ataulpho de Paiva e Carlos Maximiliano. A decisão da Suprema Corte foi a seguinte: “Não conheceram ao pedido contra os votos dos Ministros Carlos Maximiliano, Carvalho Mourão e Eduardo Espínola, que conheciam e indeferiam.”. Olga foi metida no navio La Coruña, que partiu do Rio de Janeiro, em 23 de setembro de 1936; chegando a Hamburgo em 18 de outubro. É imediatamente entregue aos seus carrascos, levada para prisão feminina nazista de Barnimstrasse, onde dá à luz uma menina, em 27 de novembro, que recebeu o nome de Anita Leocádia. Ficando com a filha, na fase de amamentação até os 14 meses. Depois, a menina é entregue à Dona Leocádia, mãe de Prestes, sua avó, que se encontrava na Europa, lutando, clamando pela liberdade do filho. Graças à solidariedade recebida, conseguiu salvar a criança das garras das bestas nazistas. Em março de 1938 Olga é transferida para o campo de concentração Lichtenburg, sendo um ano após levada para outro campo de concentração, esse só de mulheres, o Ravensbrück, onde como cobaias serviam para experiências médicas. Olga foi assassinada em 1942 no campo de extermínio de Bernburg, onde centenas de milhares de judeus tiveram o mesmo fim. Sobre este episódio, Sobral Pinto deu-me o seguinte depoimento: “Se eu fosse advogado de Olga, ela não teria sido expulsa, não teria sido expulsa! O advogado escolhido foi o Heitor Lima, era a coisa mais simples desse mundo. O Código Civil Brasileiro declara no artigo

de. Muita coisa não era. Então, ele me proibiu de apresentar a defesa”, conta Sobral Pinto, que segue em seu relato. “No dia que eu entrei com a petição ao Tribunal, em defesa do Prestes, eu fui à prisão onde ele se encontrava, para lhe entregar uma cópia. Mandei levar. Eu não fui ao quarto dele, porque foi uma coisa desagradável, o que tinha acontecido antes. Ele levou mais de meia hora e pediu para vir à minha presença, o comandante autorizou. Ele veio com dois guardas, um de cada lado. Disse-me: ‘Eu queria perguntar ao senhor, se o senhor realmente entrou com essa petição?’. Eu respondi: ‘É evidente que sim. Eu não seria capaz de trazer ao senhor palavras que não tivesse apresentado ao Tribunal, sobretudo ao senhor que não tem meios de verificar se entrei. O senhor não tem ninguém em contato, a única pessoa em contato com o senhor sou eu’. E perguntei ‘por que?’, e ele respondeu-me: ‘A petição está muito bem feita, sobretudo, muito corajosa. Meus parabéns!’. A censura esqueceu de avisar os jornais que não publicassem nenhuma defesa no Tribunal de Segurança Nacional. Um comunista pediu uma certidão dela e levou para o jornal O Radical, que a publicou, na primeira página. E outro comunista, marinheiro francês, mandou para a dona Leocádia, que se encontrava em Paris. Ela leu a petição e se entusiasmou. Escreveu a Prestes dizendo: ‘tenha confiança no doutor Sobral. Não há motivo para recusar a sua defesa’. Ele mudou de orientação e aceitou a minha defesa”.

AS CARTAS DE SOBRAL E DONA LEOCÁDIA

ditar, o governo não pode extraditar. Compromete a processá-lo aqui, mas não extradita, ele não manda. Uma das partes tinha que ter isso. A Lei não permite a expulsão de brasileiro e esse feto é brasileiro. Era canja isso e o advogado não fez isso.” Sobral Pinto, então, é questionado se não poderia ter orientado o colega em sua defesa de Olga. “Nem eu sabia, só vim a saber depois, porque isso foi em setembro de 1936, e eu só fui advogado do Prestes em janeiro de 1937. Eu fui convidado pelo Tragino Ribeiro, Presidente da Ordem dos Advogados, que bateu à porta de seis advogados, alguns dos quais, supôs ele que fossem comunistas ou esquerdistas, ele me disse que procurou aqueles que, por suas idéias, tinham obrigação de defendêlo, mas todos recusaram. Tragino então recorreu a um advogado católico que também recusou, em nome do catolicismo. Nessa altura, ele louco porque o juiz estava a exigir a indicação de um nome. Ele então vem a mim e diz: ‘Sobral, não é pos-

Indicado pela Ordem, Sobral conta como foi o seu primeiro encontro com Prestes, na condição de seu advogado. “Eu fui a primeira pessoa com a qual ele se entendia após a prisão. Ele tinha sido interrogado pelo juiz do Tribunal de Segurança que tinha o processo dele. Foi apenas interrogado e saiu. A primeira pessoa com quem ele conseguiu falar francamente fui eu. Então, durante uma hora e meia, numa exaltação tremenda, ele atacou o governo, atacou o Tribunal de Segurança, atacou o tratamento brutal que lhe estava sendo aplicado em incomunicabilidade rigorosa, atacou a Ordem dos Advogados, atacou a mim dizendo o que é que eu poderia fazer se o Senador Chermont, que havia requerido um habeas corpus ao Tribunal, com autorização do Senado, estava preso e sendo processado. O que é que o senhor, um ‘advogadozinho’ pode fazer? E durante aquela uma hora e meia de um discurso extraordinariamente exaltado, nesse discurso muita coisa era verda-

A correspondência entre Dona Leocádia e Sobral Pinto é constante. Em 19 de março de 1937, ele dá ciência ao Ministro da Justiça, José Carlos de Macedo Soares, através de uma carta sua: “Honrando o apelo angustioso que Dona Leocádia Prestes me dirige, do seu penoso exílio, passo às mãos de V.Exa. a carta que ela, aflita e esperançada, escreveu ao senhor Ministro da Justiça do Brasil. Católico e patriota, eu me honro com o desempenho desta missão, de que me vi investido pela veneranda mãe de Luís Carlos Prestes. Tudo farei, na medida das minhas energias morais e da minha capacidade profissional, para evitar que o Governo bárbaro e odiento de Hitler pratique a monstruosa iniquidade de tirar das mãos de sua mãe uma tenra criança de dez meses. Se me dirijo agora à V.Exa., na qualidade de advogado ex-officio de Luís Carlos Prestes, é porque não posso alijar da minha convicção a certeza de que cabe ao Governo brasileiro a maior responsabilidade desse crime contra os direitos da maternidade, que ora se prepara, fria e cruelmente no recinto de uma prisão da outrora e gloriosa Germânia. Como admitir, assim, justificativa para o ato do Governo Brasileiro, que entregou, consciente e deliberadamente, Olga Benário Prestes à vingança do racismo odiento e perseguidor de Hitler. Cruzar as autoridades brasileiras, os braços, ante a iniquidade que ora se projeta levar adiante contra um coração materno, num dos presídi-

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DEPOIMENTO SOBRAL PINTO E PRESTES: DUAS VIDAS QUE SE CRUZAM

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Commercio e do Correio da Manhã. Ele recebia diariamente esses dois jornais. Consegui também a autorização para o Prestes receber livros, e chegou a ter mais de mil volumes na prisão onde se encontrava, na Casa de Correção, na Frei Caneca.”

A DEFESA DE PRESTES

Sobral Pinto falava ainda da expectativa de conseguir a absolvição de Luís Carlos Prestes e os seus companheiros da revolução comunista. “Eu não podia de forma nenhuma tentar obter a absolvi-

o exemplo do cavalo. O cavalo precisa de espaço, e se colocar o cavalo numa baia sem poder sair, sem poder correr, depois de certo tempo começa a entristecer... Sem querer comer, ele acaba morrendo. Colocar um homem num socavão de escada com acesso para o primeiro andar, pela qual dia e noite desciam e subiam os soldados, e com uma grade externa e frontal, era positivamente uma monstruosidade. Era a prática de um ato criminoso até para um animal, quanto mais para um ser humano. Eu levei seis meses para conseguir tirá-lo

de agora, não só no que diz respeito ao seu futuro, mas, também, no que se refere ao futuro da nossa Pátria”, introduziu Sobral. “Quero fixar, de início, a posição dramática em que me encontro. Sou seu advogado ex-officio até ontem, vivemos juntos e solidários oito longos anos de sofrimentos, inquietações e incertezas permanentes, animados sempre, todavia, pela certeza da vitória final contra a prepotência sombria e brutal da ditadura do Sr. Getúlio Vargas, que oprimia, com desrespeito às prerrogativas de homem, a dignidade do próprio cidadão brasileiro. Nada valho, nada sou, modesto obreiro do Direito, minha vida se vem processando em lutas cotidianas, ásperas e bravias, em prol do reinado da Justiça. A nada aspiro, senão lutar pela liberdade, efetiva e real, no seio de nossa Pátria. Eis porque, magoado e triste li sua entrevista. Ora, Capitão Luís Carlos Prestes, para que possamos chegar no Brasil ao entendimento dessa natureza, é indispensável que nós não nos aproximemos do Sr. Getúlio Vargas”. Nas eleições de 2 de dezembro de 1945, Prestes se elege Senador pelo Distrito Federal, antiga capital da República, como se chamava a cidade do Rio de Janeiro. Eleito para o mandato de cinco anos, só cumpriu dezoito meses. Vivíamos o GoO jornalista Geraldo verno do General Eurico Gaspar Pereira ouve o jurista Sobral Pinto: um Dutra, um governo arbitrário na amante da liberdade. acepção da palavra – para ele não havia Constituição. Ele agia como um subalterno do governo americadesse lugar. Quando eu consegui me entenno, fiel cumpridor de todas as suas ordens: der com o Berger, ele estava preso há mais intervir nas entidades sindicais de esquerde um ano nessa situação, e já estava um da; prender, espancar e processar seus dipouco perturbado. Eu consegui que um rigentes; proibir comícios do Partido Comédico psiquiatra fosse examiná-lo e ele munista, empastelar seus jornais, cassar o me disse que a perturbação que o Berger registro do Partido Comunista e os mantinha era proveniente da situação em que datos dos seus parlamentares. “Prestes se encontrava. E se fosse retirado logo levou meses sem aparecer no Senado, mesdesse local, ele ainda poderia salvar-se, mo sem ter sido cassado”, me diz Sobral poderia readquirir o seu juízo perfeito. Pinto. Mas se ele continuasse assim, poderia se O Senador Bernardes Filho avisou ao agravar. E aí seria irremediável a loucura. Dr. Sobral que a polícia estava esperando E foi o que aconteceu, quando eu o tirei Prestes no Senado para prendê-lo. Sobral ele estava inteiramente perturbado.” Pinto de imediato comunicou ao Prestes, através do Capitão Rolemberg. Uma cerLIBERDADE E ELEIÇÃO ta tarde, Prestes chega ao Senado, faz um Depois de cumprir nove anos de prisão, discurso de alguns minutos e vai embora. Luís Carlos Prestes é anistiado por GetúPerguntei ao Dr. Sobral por que nunca se lio Vargas, em 19 de abril de 1945, próxicandidatou a cargo eletivo, ao que ele mo ao término da Segunda Grande Guerrespondeu-me: “Eu poderia ter-me feito ra Mundial, juntamente com os demais Deputado tranqüilamente, pelo Rio de presos políticos. Já em liberdade, Prestes Janeiro ou por Minas Gerais. Eu tive a dá uma entrevista coletiva à imprensa, oportunidade de ser Senador em condipregando a União Nacional com Getúlio ções excepcionalíssimas. Em 1947 fez-se e também a “Constituinte com Getúlio”. a eleição do terceiro Senador. Lembre-se Uma semana após, mais precisamente em que a Constituição de 1946 criou só dois 28 de abril, Sobral Pinto escreve a Luís Senadores, mas no curso de 1946 resolveCarlos Prestes: “O respeito que lhe devo, ram fazer o terceiro. Então, nessa ocasião a amizade que nos une, a magnitude do três partidos no Rio de Janeiro reuniramassunto, e os altos interesses do Brasil não se e me ofereceram a senatoria, dispenme permitem guardar silêncio em face da sando-me dos seus respectivos prograsua atitude, corporificada nessa entrevista mas. Foi anunciado isso nos jornais. de ontem. Julgo-me, assim, no dever indeNessa época, o Partido Comunista era clinável de lhe expor, com franqueza e legal. Prestes era Senador pelo Rio de sinceridade, o que eu penso da sua atitude Janeiro e mandou me convidar através de ACERVO PESSOAL GERALDO PEREIRA DOS SANTOS

os políticos da Alemanha, é procedimento que não se compreende que a consciência cristã profliga”. Respondendo a outra carta recebida de Dona Leocádia, diz o notável jurista que um delegado de polícia vai falar com Prestes, na Casa de Correção para saber “em que País, e em que data Luís Carlos Prestes teria se casado com Olga Benário Prestes. Das respostas do filho de V.Exa. é que irá depender a situação da menina Anita Leocádia”. Antes foi a luta para encontrar um Tabelião a fim de lavrar a escritura pública de reconhecimento, por parte de Luís Carlos Prestes, de sua filha Anita Leocádia. Sobral bateu às portas de quase todos os cartórios e só encontrou o medo e a má vontade. Isto sem falar em alguns membros do Partido Comunista que não se mostravam satisfeitos com a sua atuação no processo. A esse respeito, Sobral escreve: “Consolo-me, porém, com as declarações do filho de V.Exa. feitas de público, de que ‘estando cercado na Polícia Especial, só de vermes, apareceu-lhe, afinal, um homem’. Este homem fui eu”. Mais adiante, na sua defesa oral, acrescentou Luís Carlos Prestes: “O senhor Sobral Pinto exerce a advocacia como um sacerdócio”. O prazo para o reconhecimento da paternidade de Anita Leocádia praticamente estava no seu final, mas Sobral Pinto consegue um tabelião e envia diretamente à Gestapo uma certidão com a respectiva versão alemã da escritura de reconhecimento da menor Anita Leocádia. O que pouca gente sabe, o que o Brasil precisa saber, é que esse documento pelo qual Sobral Pinto tanto lutou, salvou a menina das garras odientas da Gestapo. Em outra carta, datada de 12 de maio de 1937, Sobral Pinto escreve para Dona Leocádia: “Obtive ontem, finalmente, autorização do Chefe de Polícia para entregar ao seu filho os objetos que me remeteu para tal fim. Hoje, se Deus quiser, irei até a Polícia Especial para, na presença do Comandante dessa Força, passar às mãos de Luís Carlos Prestes as roupas e objetos de uso que ele estava realmente necessitado. Parece incrível que a supressão das liberdades tenha atingido, no Brasil, tais extremos que um advogado precise fazer as peregrinações às quais tive que me entregar para conseguir dar a um preso político algumas roupas que a sua velha mãe, também exilada, lhe mandara de longas terras”. Pergunto ao Dr. Sobral: “O Prestes só se comunicava com a mãe através do senhor? Ele tinha liberdade de ler jornais e livros?”. O velho mestre, com a memória privilegiada, responde: “Eu estabeleci uma correspondência permanente minha com a dona Leocádia e consegui que o juiz do processo estabelecesse uma correspondência semanal do Prestes com a mãe. Ela, primeiramente, em Paris, depois, com a Segunda Grande Guerra Mundial, em 1939, foi para o México. Ele semanalmente escrevia à Mãe e recebia uma carta dela. Eu consegui também para Prestes a assinatura do Jornal do

ção, por duas razões muito simples. A primeira é que o Prestes e o Berger tinham declarado à Polícia, quando foram pegos, que eram os organizadores da Revolução de 1935. De modo que eles assumiram nobremente a responsabilidade por ela. Em segundo lugar, ao prendê-los juntamente com o Bonfim, que era o secretário do Partido Comunista, a polícia ficou com todo o arquivo desses personagens. Ela tinha a prova concreta e documental da participação deles de modo que não podia pensar em absolvição. O que eu pretendia e tentei fazer em relação ao Berger e ao Prestes era obter uma condição de pessoa humana que lhes estava sendo negada pelas autoridades policiais da época, que consideravam ambos como uns animais hidrófobos. Prestes, de início, estava em incomunicabilidade rigorosa. Colocado numa prisão sem livros, sem jornal. E o Berger num socavão de escada, como se fosse um cão hidrófobo. Então, eu tinha a obrigação de tentar que eles fossem colocados numa prisão condigna, numa prisão à altura da sua situação de pessoas humanas, membros da família humana. Isso era o que achava que devia fazer”. O brilhante advogado ainda explicoume as razões que o levaram a pedir para Berger a Lei de Proteção dos Animais. “Ele estava num socavão de escada, e a lei de proteção aos animais não permite que se coloque o animal numa situação imprópria para sua natureza. Alguns utilizavam


um grande amigo dele e meu, o comunista Rolemberg (oficial que foi expulso do Exército e voltou pela anistia 16 anos depois). Ele vinha toda semana aqui no meu escritório. E veio me consultar se, na realidade, eu era candidato porque, se fosse, o Partido Comunista votaria fechado comigo. Logo que eu vi as notícias nos jornais, comuniquei imediatamente aos três partidos que eu não aceitava, e não aceitava por isso: porque eu não confiava nos partidos. Eis a razão porque eu nunca fui nem Senador nem Deputado.”

AS PRISÕES DE SOBRAL PINTO

Tanto na ditadura de 1937, como na de 1964, Sobral Pinto foi preso. A primeira detenção ocorreu na Casa de Detenção, quando o tenente Canepa, seu temível diretor, tentou agredi-lo, chamando-o de mentiroso. “Mentiroso é você”, respondeu-lhe o corajoso Sobral. De outra feita, revoltado com a agressão covarde cometida por meia dúzia de policiais, diante do comandante da polícia especial, coronel Euzébio Queiroz, contra Prestes, Sobral Pinto sai em sua defesa. O coronel Euzébio Queiroz, era um homem forte e violento, partiu para cima do Sobral Pinto, que era franzino, agarrando-o e rodopiando seu corpo. Sobral agarrou-se ao pescoço do coronel, para não ser arremessado ao chão. Recordei, certo dia, na casa de Prestes, esse episódio covarde e violento, quando ele ressaltou a coragem de Sobral Pinto: “Nesse momento, também, sobrou para ele”. Em 18 de dezembro de 1968, Costa e Silva assina o Ato Institucional nº 5. Sobral Pinto encontrava-se em Goiânia, para onde fora paraninfar a turma da Faculdade de Direito da Universidade de Goiás. Depois, me confidenciou o que acontecera com ele naquele dia. “Geraldo, Goiânia é muito quente. Eu estava de chinelo, sem meias, de manga de camisa, bateram à porta. Era um emissário de um importante político de Goiás, que colocava à minha disposição, com total segurança, um carro completamente equipado, com um motorista que conhecia minuciosamente toda a região, inclusive com condições de levar-me para o exterior, pois eu seria preso à tardinha, o que seria uma vergonha para o Estado de Goiás.” Sobral Pinto agradece o zelo pela sua pessoa, mas não aceita a oferta. Declara para o mensageiro: “Devo dizer que dos 70 bacharelandos, até o momento em que a comissão foi ao Rio de Janeiro, comissão constituída de três bacharelandos, para me dizer que tinham me eleito paraninfo da turma, eu não conhecia o nome de nenhum só desses bacharelandos, nem sabia quem eram. Evidentemente, essas pessoas me convidaram pelo meu passado que não é de covardia, nem de medo. Então, nessa hora eu vou dar a esses rapazes uma demonstração de medo e covardia? Em hipótese alguma! Agradeço muito o seu interesse e do seu amigo. Mas, eu fico aqui. Eu apenas não acato a ordem de prisão que querem me dar.” E realmente, mais tarde, o que era previsto aconteceu. “Um militar bateu à

porta e me disse o seguinte: ‘O Presidente da República, Marechal Costa e Silva, mandou ao senhor uma ordem por meu intermédio, para o senhor me acompanhar ’. E respondi: ‘Ordens ilegais como essa, eu não as obedeço’. Então, ele me disse: ‘Nós temos que quebrar o senhor’. ‘Então, quebre! Pouco me interessa. Eu não vou absolutamente. Com os meus passos, não vou.’ Eles tiveram que me arrastar, e me jogaram no camburão.” Levaram-no para o quartel do Exército, em Goiânia, e depois para Brasília, onde ficou preso durante três dias. Mas Sobral Pinto protesta, em carta enviada ao Presidente Costa e Silva: “... através do referido Ato, V.Exa. instituiu em nossa Pátria a Ditadura Militar. Sou, senhor Presidente, uma das vítimas do Ato Institucional n.º 5. A Polícia Federal de Goiás, invocando o nome de V.Exa. deu-me voz de prisão, ordem que não acatei, declarando que nem V.Exa., nem ninguém, nesse País, é dono da minha pessoa e da minha liberdade. Nada fizera para esta perder.” “Recusava altivamente acatar ordem tão absurda e tão ilegal. Mal pronunciei essas palavras, quatro homens de compleição gigantesca lançaram-se sobre mim, como vespas sobre a carniça, imobilizando-me os braços e apertando-me o ventre pelas costas. Em seguida, empurraram-me, como autômato, do quarto ao elevador, onde me empurraram. Deste até o carro, que se encontrava à porta do hotel, fizeram idêntica manobra. Colocado no carro de mangas de camisa, como me encontrava no quarto, conduziram-me a um batalhão, que fica nos arredores de Goiânia. Neste permaneci uma hora, mais ou menos. Depois de um atrito com o Comandante da Unidade, que tentou desrespeitar-me, fui levado ao Quartel da Polícia do Exército, em Brasília, onde fiquei três dias, sempre respeitado pela oficialidade, desde o coronel comandante até o mais modesto dos tenentes”.

PARA PAGAR AS CONTAS

Advogado criminalista,professor universitário, Sobral Pinto não cobrava honorários dos políticos, nem dos pobres, que eram a sua grande clientela. “Cobrava de quem?”, perguntou-se, certa vez, o mestre Evandro Lins e Silva. Na década de 1940, para adquirir a carne verde (como se chamava a carne de boi, na época), só no câmbio negro. O chefão do câmbio negro, na cidade de São Paulo, estava com a polícia no seu encalço. Ele é aconselhado a procurar um grande advogado para defendê-lo. O indicado era o famoso advogado carioca Sobral Pinto. Segue para o Rio de Janeiro e procura Sobral, cujo escritório ficava na Rua da Assembléia, e tinha como vizinho de sala outro grande advogado. Era Evandro que, tomando conhecimento do caso, disse para o colega: “Esse fulano tem muito dinheiro, na hora de cobrar os honorários quem acerta sou eu”. Sobral Pinto concordou, mas pediu a Evandro que não cobrasse muito. Essa his-tória quem me contou, rindo muito, foi o saudoso Evandro Lins e Silva.

Sempre que visitava o doutor Sobral, vida Sobral Pinto para ser Ministro do conversávamos longamente, sobre os Supremo Tribunal Federal. O velho Somais diversos assuntos. Lembro que numa bral, com aquela dignidade que era o seu dessas vezes, o encontrei muito preocumaior patrimônio, não aceita o convite. pado. “Dr. Sobral, se precisar de mim, Fixando-me bem nos olhos, disse: “Iriam disponha. Estou vendo que o senhor está dizer que eu defendi a posse dele para ser muito preocupado”. Era fim de mês. Ele me Ministro. Não! Não podia aceitar.” respondeu: “Tenho que pagar minha secre“Para ser um bom advogado não é sutária, dona Marlene, telefone, luz”. Digoficiente só estudar o Direito. É preciso ter lhe, estou indo para São Paulo, se o senhor um temperamento próprio para a profisme autorizar, falarei com Caio Graco, fisão, pois a profissão requer luta, trabalho, lho de Caio Prado, editor da Brasiliense, coragem, esperança, a profissão requer muito meu amigo, que pode tirar uma um ideal pela aplicação justa e razoável nova edição dos seus lido Direito. Não basta, vros Lições de Liberdade conhecer as O velho Sobral, com portanto, e Porque Defendo os Coleis e interpretá-las. São munistas, ambos esgotaindispensáveis todas aquela dignidade dos. Dr. Sobral concorqualidades que acaque era o seu maior essas da. Em São Paulo, falei bei de enumerar. Um com Caio que ficou congrande advogado não se patrimônio, não tentíssimo. Na hora ele faz sem esses elementos aceita o convite. telefonou para a Editora que eu acabo de apontar. Comunicação, de Belo Fixando-me bem nos Não é só a razão, não é só Horizonte, e foi inforinteligência, não é só a olhos, disse: “Iriam acultura mado que havia uma que fazem um ponta de estoque de 800 dizer que eu defendi grande advogado: é exemplares de um título o seu temperaa posse dele para ser também e 700 do outro, o que immento, é também a sua possibilitava que a Brasiministro. Não! Não convicção de que a proliense editasse os referifissão exige muito espodia aceitar.” dos livros. forço, muita coragem, e Com o apoio de meus muita disposição para a amigos Luís Tenório e Afonso Delelis, luta”, defendia Sobral. assessor para assuntos sindicais do GoverMesmo com idade avançada, ele não nador Franco Montoro, chego à sua prelargava seu ofício. “Eu preciso trabalhar sença e lembro-lhe do Congresso da Deporque não tenho rendas. Eu trabalho por mocracia Cristã, realizado no Uruguai, em necessidade. É claro, é evidente que tam1946, cujos representantes do Brasil seribém por gosto. Eu gosto de trabalhar, eu am Sobral Pinto e Alceu Amoroso Lima, as acho que o trabalho completa o homem. maiores expressões do catolicismo brasiNosso Senhor, quando criou o homem, leiro. Sobral telefona para Alceu e diz: “Almandou que ele trabalhasse. Então, eu ceu, tem em São Paulo um jovem de muiacho que o trabalho é elemento fundato futuro, ele vai com você no meu lugar”. mental da existência de todo e qualquer Esse jovem era André Franco Montoro. homem. Mas, além dessa circunstância, Expus as dificuldades em editar o livro. eu trabalho porque preciso da renda do De imediato ele se prontificou a adquirir escritório, pois não tenho outra para me todos os exemplares para distribuí-los nas manter e à minha família. Eu trabalho, escolas do Estado. Saí dali muito satisfeitambém, por entender que enquanto tito. À tardinha já estava no escritório do ver saúde, essa saúde que Deus me deu, é mestre Sobral Pinto. Dou-lhe a notícia. minha obrigação trabalhar.” Ele me encara e com uma impostação de Por fim, o questiono sobre a receita para voz, até então, desconhecida por mim, tamanha vitalidade. “Geraldo, você perdiz: “Montoro não pode gastar o dinheigunte isso a Deus. Eu jamais fiz qualquer ro do Estado comprando os meus livros. coisa para manter a vitalidade que consigo Não aceito. Você não está autorizado a até essa idade. Nunca fiz dieta, nunca fiz falar mais nesse assunto, se quiser ser regime, nunca tive preocupação em ter um meu amigo”. Não disse mais nada. horário permanente em cada dia; a minha vida é inimiga de horários. Eu só tenho duas UM SONHO DE SOBRAL horas certas: é a hora de me deitar e a hora Certa tarde, em seu escritório, num de me levantar. A hora de me deitar raralongo bate papo, dizia-me que o seu somente é antes da meia noite; e a hora de me nho era ser Ministro do Supremo. De levantar é raramente depois das seis da imediato lhe respondi: “Dr. Sobral, esse manhã; as únicas coisas que tenho feito sonho não se tornou realidade porque o com constância. O mais não é absolutasenhor não quis, não é verdade?”. Recormente resultado de esforço ou preocupademos um pouco a história: Juscelino ção minha, é única e exclusivamente geneKubitschek havia vencido a eleição, em rosidade e bondade de Deus. Aquilo que 1955, e as forças mais retrógradas do País sou, aquilo que tenho sido, decorre única queriam impedir a sua posse. Sobral Pine exclusivamente da minha fé em Deus, da to, com o seu saber e, acima de tudo, com minha fé em Jesus Cristo e da minha fé na a sua reconhecida força moral, que lhe Igreja como depositária das verdades eterconferia a mais alta respeitabilidade púnas pregadas por Deus. Vou todos os sábablica da Nação, saiu em defesa do Juscedos à missa e, no domingo, eu ouço na lino. Foi a ‘pá de cal’ no sonho dos golpistas televisão. Também meus filhos são católida UDN. Ao tomar posse, Juscelino concos. Alguns, relaxados. Mas são católicos.”

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DOCUMENTO HISTÓRICO

MAX NUNES E O HUMOR QUE BALANÇA, MAS NÃO CAI

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LEO PINHEIRO / VALOR ECONÔMICO / AGÊNCIA O GLOBO

Exatos 50 anos separavam o carioca Max Newton Figueiredo Pereira Nunes, Max Nunes, daqueles que foram sem dúvida os doze meses mais marcantes de sua vida, quando o entrevistei para o jornal Gazeta Mercantil, na primeira semana de maio de 1998. Ao longo do ano de 1948, ele se casou, conseguiu o tão sonhado diploma de Medicina e foi, enfim, contratado pela primeira vez por uma emissora de rádio, a Nacional (uma espécie de Rede Globo radiofônica dos anos de 1940 e 1950), depois de algumas experiências avulsas no meio. Segundo ele, o rádio surgiu em sua vida a partir da combinação de certo acaso e da necessidade de bancar os estudos de Medicina. Concluído o curso, o jovem médico continuou dividindo seu tempo entre as duas profissões. Não demorou para que essa aparente esquisita mistura de consultório com texto para fazer rir lhe desse duplo credenciamento para tratar da saúde do brasileiro, seja na emergência de um hospital, seja por meio do riso como terapia. Max ganhou autoridade para afirmar que dar risada é mesmo o melhor remédio. Em um depoimento de 1985, ao confrontar o rádio dos áureos tempos da Nacional e a televisão dos anos de 1950 – quando o veículo chegou ao Brasil – com o que estava sendo feito nos dois veículos naquele momento, Max não deixou escapar a nostalgia e disse considerar o rádio daquela época muito mais criativo e inteligente. “Hoje, na televisão, o sucesso e o fracasso não dependem mais de cada um de nós. Existe todo um complexo industrial que castra a criatividade sufocada pelos ibopes, estatísticas, pesquisas de mercado. Isso faz do produtor um simples executante de uma receita de bolo”, reclamou. E acrescentou, com seu estilo perspicaz e de inteligência bem humorada. “Se o estilo é o homem, a televisão acabou com o estilo e está prestes a acabar com o homem. Creio no que disse o Sérgio Porto: ‘A televisão é uma máquina de fazer doidos’. Espero, se Deus quiser, livrar-me o quanto antes de uma provável camisa de força”. O humorista, dessa vez, falou sério, mas jamais abandonou os bastidores da telinha. Pelo contrário, abandonou o rádio e mergulhou de cabeça no humor de caras e bocas. Por outro lado, Max nunca deixou de lado a carreira de cardiologista. Na déca-

Como homenagem, o Jornal da ABI resgata e publica histórica entrevista do mestre do humor, concedida há 16 anos. POR GONÇALO JÚNIOR

da de 1960, foi um militante ativo na fundação do Instituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema. Nas últimas décadas, porém, a televisão passou a absorver a maior parte do seu tempo. Nos 22 anos em que trabalhou na Globo, antes de se mudar para o SBT, criou quatro programas antológicos de humor: Faça Humor, Não Faça Guerra (1970), Satiricom (1973), Planeta dos Homens (1976) e Viva o Gordo (1981). Com excesso de modéstia e franqueza incomum, Max garantiu durante esta entrevista que todas essas atrações eram, na verdade, a “mesma coisa”, só que reformuladas depois de algum tempo, com a inclusão de novos tipos e cenários. No caso dos três primeiros, ele bolou personagens hilários que consagraram o talento do humorista Agildo Ribeiro. Mas foi com Jô Soares que formou uma dupla não menos eficiente e com quem mais teria se identificado. Tanto que gerou um comentário apimentado de Agildo, alguns anos depois: “Em parte, a inteligência exibida por Jô Soares se deve a ele”. A contribuição desse cardiologista de reconhecida competência é única na história do humorismo nacional. Dotado de talento natural para fazer trocadilhos com as palavras e ver tudo de modo caricatural, Max Nunes fez do rádio e, principalmente da televisão, uma diversão para quem queria fugir das amarguras do cotidiano. Aos 76 anos, ele optou por trocar, nos últimos dez anos, o exercício de alimentar com graça parte de suas centenas de personagens e criar tantos outros por um cargo um pouco mais sério: escrever para o programa de entrevistas de seu afilhado, Jô Soares Onze e Meia, exibido pelo SBT a partir de 1988. Em 2000, o programa seria transferido para a Rede Globo, com o nome de Programa do Jô, para onde o apresentador levou toda a sua equipe – Max seria responsável pelos textos de abertura até a sua morte, ao lado do fiel escudeiro Hilton Marques. O afastamento do riso pareceu pouco lhe importar. Sempre um autor por trás das câmeras, ele se disse satisfeito com o que construiu em mais de meio século de rádio, quase 40 anos de tv e outros tantos como autor de revistas de teatro. Sua lucidez e disposição, no entanto, continuavam as mesmas, como demonstrou nesta longa entrevista em sua casa, no bairro da Gávea, Rio de Janeiro.


Como se deu sua formação de humorista? Veio de casa, do seu pai? Max Nunes – O meu pai era jornalista, escritor e humorista no começo do século. O nome dele era Lauro Carmeliano Pereira Nunes, mas assinava com o pseudônimo Guerra de Sena. Papai foi secretário de vários jornais, fundou outros. Uma revista que ele lançou foi O Que Há, que se escrevia OQ-A. Ele também trabalhou na Vamos Ler; uma revista que circulava quando ele estava começando na profissão. Papai cuidava de uma seção chamada Gazeta de Cartas, na qual recebia poesias dos leitores e dos colaboradores da revista. Mas ele trabalhou a maior parte de sua vida mesmo em jornal. Passou pelo Diário de Notícias e Gazeta de Notícias. Seu pai participou diretamente da guerra dos jornais que marcou a Revolução de 1930, quando algumas publicações foram invadidas e destruídas por serem simpatizantes do governo deposto? Max Nunes – Sim, a Redação de O Jornal, onde papai trabalhava, foi empastelada na Revolução de 1930. Ele não era político, não se metia nesses assuntos, mas fazia parte da seção artística do jornal. Quando estourou a Revolução, ele saiu arrastado da Redação com uma arma apontada na cabeça por um sujeito que não parava de gritar, acusando-o de estar escrevendo contra os tenentes. Foi aquela confusão quando os revoltosos amarraram os cavalos no obelisco... Felizmente, ele escapou sem ferimentos desse episódio. O fato de seu pai ser jornalista aproximou o senhor do interesse pela imprensa? Max Nunes – Nossa casa, naquela época, vivia cheia de escritores, de colegas jornalistas de papai, que trabalhavam em diversas publicações. Então, sempre o via com Bastos Tigre, Camilo Cordeiro e os grandes caricaturistas da época, como J. Carlos e outros. Enfim, cresci nesse meio e isso deve, de alguma forma, ter me influenciado. Seu pai tinha formação acadêmica? Max Nunes – Não, não tinha nada. Era apenas jornalista auto-didata. Como não havia escolas de jornalismo naquela época, geralmente o sujeito passava antes pelo curso de Direito. Mas papai nunca foi advogado. Ele era um sujeito tão inteligente que, mesmo sabendo pouco inglês, trabalhava na Companhia de Eletricidade Light (acabou diretor da Revista da Light), ia para as reuniões da empresa e conseguia entender tudo o que os oradores falavam. Éramos dois filhos, eu e Lauro, que foi durante muito tempo engenheiro da Panair, trabalhava como instrutor de vôo. Ele me disse certa vez: “Avião não cai, derrubam”. Por isso nunca tive medo de avião. Seu pai também desenvolveu algumas atividades no meio artístico? Max Nunes – Sim, foi empresário de muitas companhias de óperas e operetas. Foi ele quem lançou a cantora Marília Batista, que se consagraria como uma das intérpretes preferidas de Noel Rosa. Papai também organizava festivais de música da Light. Eu mesmo fui acompanhado, certa vez, por Noel Rosa numa dessas competições.

Como foi mesmo essa história? Max Nunes – Nasci em Vila Isabel e morava numa casa praticamente vizinha à de Noel. Quer dizer, eu sabia que era vizinho dele, mas ele não fazia a menor idéia de que eu era vizinho dele, claro. Noel conhecia meu pai, mas não chegou a freqüentar nossa casa. Quem aparecia lá de cantores eram Sílvio Caldas e outros. Naquela época, eu até cantava bem, viu? Recebi o apelido de “gargantinha de veludo”, num programa infantil da PRC-8, Rádio Guanabara. Pois, num desses concursos da Light, Noel me acompanhou no violão. Cantei: “Vai pra casa depressa / vai prevenir teu senhor...” De quem se recorda desse período como cantor mirim que se tornou famoso? Max Nunes – Bom, derrotei na finalíssima de uma competição, que não me recordo qual, o futuro tenor Paulo Fortes. Na adolescência, cheguei a fazer parte do conjunto Bando Tropical, com Hélio (violão), Miltinho (pandeiro) e Nanai (percussão). Decidi interromper a carreira quando o grupo começou a exigir viagens para outros estados, o que me obrigaria a faltar às aulas da faculdade. Nesse ambiente cultural que seu pai lhe apresentou, certamente tinha muito contato com os livros? Max Nunes – Sem dúvida. Papai gostava muito de literatura e também acabei pegando o gosto. Eu lia de tudo. Desde (a revista infantil) Tico-Tico a hábitos esquisitos, como gostar muito de decorar os verbos no particípio, de fazer paródias. Apesar de tudo, da influência de papai, sempre quis ser médico. O que seu pai apoiava: a Medicina ou a carreira artística? Ele queria que o senhor seguisse a profissão dele, jornalista? Max Nunes – Não, ele não falava nada sobre isso. Eu cantava porque precisava de dinheiro para estudar. Papai não tinha dinheiro. Tanto que nasci no dia 17 abril de 1922, mas só fui registrado no dia 17 de setembro do mesmo ano, porque papai não podia pagar uma multa por causa de um problema qualquer – creio que ele estava viajando – e não me registrou logo. Para não pagar a multa, colocou a data do meu aniversário em 17 de setembro. Aquele foi um ano bom, porque tivemos a Semana de Arte Moderna. Como se deu sua aproximação com o mundo artístico? Tudo aconteceu somente por causa do fato de seu pai conviver com artistas? Max Nunes – A relação de papai com o pessoal do teatro, da imprensa e do rádio facilitou de certa maneira as coisas. Mas ele nunca falou que eu deveria ser artista ou que seguisse outra profissão qualquer. Apenas tocava um pouco de violão e decidi arriscar. A coisa ficou mais séria quando, na época do ginásio, fui colega de Mauro Muniz, que hoje é o maior cardiologista do Rio de Janeiro. Pois bem, a mãe dele, que assinava Maria Célia, escrevia para Barbosa Júnior, que tinha um programa na Rádio Nacional à noite. Como vivia muito na casa do Mauro, ela pareceu ter se espantado com meu jeito brincalhão e sarcástico de tirar sarro de tudo e, ao saber das minhas dificuldades financeiras, propôs que a substituísse: “Ô Max, você leva jeito para essas coisas de rádio. Faz o seguinte,

você fica secretariando Barbosa Júnior no meu lugar, porque você precisa de um dinheiro. Faz isso por mim porque estou querendo deixar esse trabalho. Por enquanto, você fica trabalhando comigo. Quando achar realmente que você já pode me substituir, paro de escrever”. E foi assim que comecei. O que fazia inicialmente para Maria Célia? Max Nunes – Eu me tornei literalmente um assistente de Barbosa Júnior, que também trabalhava na Rádio Guanabara. Estava sempre atrás dele, fazendo pequenos trabalhos de texto. Aí, passei a escrever alguns esquetes para o programa dele, Barbosadas, apresentado à noite na Nacional. Fazia ainda paródias, pequenas canções, interpretava provérbios. Com o tempo, o senhor foi assumindo outras funções no programa? Max Nunes – Tornei-me meio que um estepe para ele. Minhas funções passaram a ser também redigir comerciais e escrever pecinhas. Fiz isso até entrar para o curso complementar, quando aconteceu um fato engraçado. Meu pai chegou para mim e disse: “Olha, Max, tenho um amigo, Frederico Schmidt, que é poeta e se dá com muita gente. Vai lá, fala com ele, vê se consegue uma matrícula para você no (colégio) Dom Pedro II, parece que ele é parente de alguém importante lá”. E fui procurá-lo na Rua da Quitanda. Schmidt era um sujeito enorme, dava uns três Jô Soares. Eu disse de quem era filho e o que queria, e ele respondeu: “Pois não, pois não, vou lhe dar um cartão para que o senhor procure o colégio em meu nome”. Quando ele me deu o papel e olhei, não tinha nada escrito, só um rabisco. Fiquei assim, olhando, e ele disse: “Você está estranhando, né? É o seguinte, se for sentar para escrever: peço, por favor, para ajudar meu amigo, filho de um amigo meu, a pessoa do colégio não vai te atender”. Porque essas pessoas influentes têm esses truques, né? O rabisco funcionava como uma senha, não era? Max Nunes – Sim, exato. E ele disse: “Você dá esse cartão para ele assim mesmo em branco”. Aí fui lá, no Flamengo, disse que estava ali em nome do senhor Frederico Schmidt. O funcionário respondeu: “Ah, pois não, o que você quer e tal. Volte amanhã, às 9 horas, no Pedro II”. Pronto, aí fiz meu curso complementar. Nem sei se havia curso preparatório para entrar no colégio. Se havia, eu não teria mesmo dinheiro para pagar, não é? Na sua época tinha vestibular? Max Nunes – Tinha, tinha. Não era esse vestibular maluco que tem agora, claro. Havia um vestibular em que o candidato fazia prova oral, escrita. Lembro-me que fiquei dois anos em casa trancado, de pijama, sem ir a lugar nenhum, só estudando para o vestibular. O senhor foi aprovado em que ano? Max Nunes – Passei em 1942, mais ou menos na época em que acabaria contratado para trabalhar no rádio. Quando o senhor começou a colaborar com Barbosa Júnior? Max Nunes – Por volta de 1940, 1941. Estava ficando maior de idade. Continuei tra-

balhando com Barbosa Júnior até que um dia Ary Barroso e Chacrinha ouviram algumas coisas que eu tinha feito, gostaram e me apresentaram ao diretor da Rádio Tupi, Gilberto Martins, o mesmo que seria responsável pela introdução das radionovelas na Nacional. Martins, então, pediu alguns textos meus para ler. Ele era um sujeito tão inteligente que leu aquilo tudo que eu havia feito e não achou a menor graça. Disse apenas: “Seu Max, o senhor deixa seu nome, endereço e telefone que, se precisar, ligo para o senhor”. Aí disse: “Seu Gilberto, é o seguinte, não tenho nenhum ideal de rádio, estou querendo apenas ganhar um dinheiro para estudar”. Ele respondeu: “Ah, não faz mal, deixe seus dados, deixe aí...”. Mas, 15 dias depois, ele mandou alguém telefonar para que fosse lá e assinou comigo meu primeiro contrato como profissional de rádio. Isso ocorreu por volta de 1942. E a música? Nesse momento, o senhor não quis seguir adiante a carreira como ‘gargantinha de veludo’? Max Nunes – Não. Logo depois de ter feito o vestibular para entrar na faculdade, não podia mais continuar cantando, porque as viagens atrapalhariam meus estudos Quando o nosso conjunto fechou um contrato com o Cassino da Pampulha, em Belo Horizonte, até que íamos bem, mas era difícil conciliar essa atividade com o curso de Medicina. O senhor já fazia composições, marchinhas de Carnaval? Max Nunes – Fazia, mas deixava na gaveta. Não participava de concursos de marchinhas, nada disso. Sempre fui um compositor eventual, nunca me dediquei a compor músicas regularmente. E a inclinação para o humor, já existia nessa época? Max Nunes – Ah, meu gosto pelo humor veio do papai. Como já disse, além de jornalista, ele era humorista e já havia escrito dois livros de humor, que nunca foram reeditados. Eu já acumulava alguma noção de como escrever pecinhas do gênero porque havia colaborado com textos em jornais de colégio – fazia sonetos para professores, gozando deles. Enfim, essas coisas de brincadeiras de escola. Apesar do trabalho no rádio, a Medicina sempre foi uma prioridade profissional? Max Nunes – Sempre. Gostava muito de biologia e desde pequeno queria ser médico. Sabe por quê? Quando papai me perguntava por que queria ser médico, respondia para ele: “Tenho vocação para ser pobre, então, vou ser médico”. Tenho quatro filhos: Maria Cristina e Bia Nunes, que são atrizes; Maurício, que era diretor do Domingão do Faustão e agora está trabalhando com Gugu (Liberato), no SBT; e Sílvia, que está em piores condições que todos porque é médica (risos). Quanto tempo o senhor ficou escrevendo textos para a Tupi? Max Nunes – Quando comecei na Tupi, havia um programa chamado Rádio Sequência G3 e, por acaso, estourei nele um quadro, que era A Queixa do Dia, apresentado diariamente ao meio-dia. Fez muito sucesso. Naquele tempo, a grande estrela da locução de rádio era Aloísio Silva Araújo, com o programa Cadeira de Barbeiro, e trabalhava com

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DOCUMENTO HISTÓRICO MAX NUNES E O HUMOR QUE BALANÇA, MAS NÃO CAI

ele quando fiz um programa noturno, aos sábados, chamado Ninguém Rasga, que era um jornal de humor. Tinha esse nome porque, como era um jornal falado pelo rádio, ninguém poderia rasgá-lo. Ainda na Tupi, fiz outros programas, como Audições Rataplan e O Jornal, entre alguns menos votados, ou melhor, menos ouvidos. Com esses pequenos sucessos, Victor Costa me chamou para trabalhar na Rádio Nacional. Voltando um pouco, como funcionava seu primeiro êxito no rádio, A Queixa do Dia? Max Nunes – Era um quadro com menos de dez minutos e se parecia com um tribunal de justiça, bem engraçado, onde se discutiam pequenos casos. Havia todos os elementos de um tribunal, o advogado de defesa, o promotor, o juiz, que era o doutor Mendonça, as testemunhas, o júri... O doutor Mendonça foi meu primeiro tipo de sucesso, interpretado por Abel Pêra. A programação de humor no rádio nessa época, anos 1940, já era significativa? Max Nunes – Não, estava começando. Havia o Haroldo Barbosa, que fazia algumas coisas nesse gênero, mas não tínhamos muitos programas com quadros de humor. Tanto que, quando lançamos Balança Mas Não Cai, em 1950, tratava-se do primeiro programa de humor do rádio brasileiro com quadros em determinado local, isto é, tudo se passava dentro de um edifício. Os seus primeiros programas de humor tinham personagens fixos, como o radiojornal de humor Ninguém Rasga? Max Nunes – A Queixa do Dia tinha. Depois, para o programa do Manoel Barcelos, fiz o Palácio dos Veraneadores, uma assembléia legislativa municipal que funcionava como uma sátira aos vereadores que não gostavam de aparecer muito nas sessões legislativas. Nessa época, fazia também um quadro chamado O Amigo da Onça, baseado no personagem homônimo de Péricles, uma página de humor que era publicada semanalmente na revista O Cruzeiro. O êxito de seus quadros teve impacto a ponto de atrair a atenção de outros produtores para seu trabalho? Max Nunes – Olha, teve. Eram quadros que não derrotavam as novelas da Rádio Nacional, que eram apresentadas naquele horário, mas tanto tiveram repercussão que Victor Costa resolveu me chamar para trabalhar na Nacional. Entrei para a Nacional quando já havia me formado em Medicina. Isso aconteceu em 1948, no mesmo ano em que me casei (com a artista plástica Nina Rosa). Lá, fiz Rádio Show, Show é 8 ou 80, Quando o Mundo Gira, Rua 42, Cine Metro e Meio e Doutor Infezulino. Fiz dois anos de programas diversos até que, no final de 1950, lancei Balança Mas Não Cai. Este programa, aliás, mudaria os rumos do humor no rádio e influenciaria bastante a tv nas décadas seguintes. Como ele surgiu? Max Nunes – Sobre a história do programa, aconteceu um fato engraçado. Era uma época ainda praticamente do pós-guerra e havia muita dificuldade de se conseguir casa ou apartamento para morar no Rio de Janei-

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ro. As famílias se reuniam e alugavam um único apartamento para morarem todas no mesmo lugar. Então, os prédios estavam tão apinhados de gente que dizíamos: “Tem tantas pessoas que o prédio chega até a balançar”. Daí nasceu Balança Mas Não Cai. Quer dizer, a idéia de ambientar um programa num único prédio surgiu do problema do déficit habitacional no Rio? Max Nunes – Sim, aí fui elaborando os tipos. Até aconteceu outro episódio também curioso. Quando levamos o programa para Floriano Faissal, que era o diretor, ele tinha escalado os personagens da seguinte forma: o Primo Pobre seria interpretado por Paulo Gracindo, e o Primo Rico, por Brandão Filho. Então, tá. Só que eu disse para o Faissal que achava engraçada a escalação dele, porque Gracindo tinha cara de rico, mas ia fazer o papel de pobre, e o Brandão, que tinha cara de pobre, faria o papel de rico. Como já estava tudo acertado previamente, convenci Brandão e Gracindo a mudarem de lado. E logo no primeiro programa foi um sucesso danado. Tínhamos também o Peladinho, torcedor do Flamengo, que sempre dizia aquele bordão “Mengo, você é o maior”, e era interpretado pelo Germano. É verdade que o programa ficou na gaveta por um tempo? Max Nunes – É verdade. Criei o programa, fiquei elaborando os quadros durante muito tempo, mas não tinha data exata para lançá-lo e nem sabia sequer se ajudaria a emissora. Até que encontrei no corredor Victor Costa, diretor da rádio, e ele me disse: “Max, estou com um problema aí porque Lauro Borges e Castro Barbosa — que faziam o programa de maior sucesso da emissora, o PRK-30 — não estão querendo renovar o contrato. Já estamos há quase um mês sem eles no ar e acho que eles querem ir para a Tupi. Você tem algum programa para colocar no ar?” Respondi: “Olha, tenho um programa aí, sim, que se chama Balança Mas Não Cai e, se o senhor quiser, levo para mostrá-lo”. Ele respondeu: “Não, não precisa levar para eu ver, não. Faz o seguinte, fala para o Floriano Faissal que você falou comigo e lança o programa na sexta-feira, às 9 horas”. Nessa época, vocês satirizavam figuras públicas? Max Nunes – Havia ainda muita censura dentro da Rádio Nacional, que era do governo e, por isso, tínhamos de maneirar um pouco. Mas fazíamos, sim. Éramos obrigados a mandar o texto para o DIP, que voltava censurado. Por causa disso, não satirizávamos exatamente uma personalidade pública, mas falávamos da falta d’água, transporte, esses problemas relacionados à administração pública. A censura vinha e apertava, mas não era algo tão violento como foi na fase dos generais, de 1964 para cá, quando a censura se tornou terrível. Quais tipos foram lançados na fase inicial do Balança Mas não Cai? Max Nunes – Havia um sujeito que era dono de uma motocicleta que para pegar tinha de dizer o nome de uma cidade americana. “Massachusetts, Massachusetts”, mas não pegava. A figura era interpretada pelo comediante Apolo Correia, que passava

“Quando estava na Globo e queria que passasse determinado trecho, e o censor estava lá, de prontidão, nós combinávamos: ‘Quando o censor estiver lendo esse trecho, você entra e arma uma briga daquelas violentas comigo’. Então, no momento combinado, o pau quebrava, e o censor entrava para apartar. Aí, não raro, passava aquilo que a gente queria.”

para o ouvinte algo entre xingamento e sentido de motor se afogando — “Maas... saaa... chus... setts! setts! sets!” Havia muitas outras atrações que bolávamos, sempre com um textozinho de passagem de um quadro para outro, como se fosse uma vinheta: “E no apartamento tal, o casal tal...” Nesse momento, o senhor criava sozinho os quadros? Max Nunes – Comecei sozinho, mas teve uma época em que fiquei doente e entrou o Mário Brasile, depois Paulo Gracindo também começou a fazer os textos. Fiquei mais ou menos um ano sozinho. Mas sempre gostei de trabalhar com outras pessoas, sabe? Vamos conversando, batendo papo, e as idéias vão aparecendo, a gente discute. Além do Balança, havia a dupla Lauro Borges e Castro Barbosa, a mesma que fazia o PRK-30 e cuja saída nos permitiu lançar o Balança. Com esse pessoal, o humor radiofônico começava a ganhar espaço. Destacaram-se nesse começo ainda Silvino Neto, Haroldo Barbosa, J. Rui e Afonso Brandão. Esse tipo de humorismo prosseguiria na tv com Hilton Marques, José Mauro, Chico Anysio, Mário Meira Guimarães, Agildo Ribeiro, Ronald Golias e Jô Soares. O senhor se recorda da primeira vez em que estava na rua e alguém repetiu um bordão de um personagem do Balança Mas Não Cai? Max Nunes – Não me lembro com precisão, mas acontecia muitas vezes. Era desconhecido fisicamente, mas aí começaram a publicar retratos meus em jornais, e as pessoas começaram a me identificar. Qual foi o seu primeiro bordão a ser adotado pelo público? Max Nunes – Acho que foi mesmo com Balança Mas Não Cai, e o bordão era do Flamengo, dito pelo Peladinho. Era um torcedor fanático que sempre repetia: “Mengo, tu és o maior”. Esse realmente não só foi um dos primeiros a pegar como ficou na boca do povo para sempre. Até hoje tem torcedor rubro-negro repetindo isso. Olha, não posso afirmar com precisão, mas creio que esse quadro, esse personagem, foi responsável pela simplificação do nome do Flamengo para Mengo. Chegaram a afirmar isso, que o Peladinho tinha sido o primeiro a chamar o Flamengo dessa forma, mas não sabia que

estava fazendo isso de modo pioneiro. Portanto, para mim, Mengo foi a partir do Balança Mas Não Cai. Quando, finalmente, começou a fazer marchinhas de Carnaval? Max Nunes – Nessa época em que o programa estava começando, ainda não compunha marchas carnavalescas. Meu ingresso no mundo da música como compositor aconteceu em decorrência do sucesso do Balança na Rádio Nacional. Por isso, ao longo de muito tempo, escrevi 36 peças para teatro de revista e, por necessidade, fazia as composições. Música de sucesso mesmo que fiz foi Bandeira Branca, em parceria com Laércio Alves, lançada em 1970, e talvez o último grande sucesso popular de Carnaval, porque depois vieram só enredos de escola de samba, né? Outro sucesso nosso, de 1959, foi Peço a Palavra, em parceria com Jota Maia, satirizando o jeito falastrão do Deputado Federal baiano Aliomar Baleeiro. Ganhamos até um concurso de marchinhas com essa composição. Tem uma que fiz com Haroldo Barbosa, mas que não traz meu nome porque eu era de uma organização, e ele, de outra. Eu era da União Brasileira de Compositores (UBC), e ele, da Sociedade Brasileira de Autores. Na época não podíamos assinar parcerias porque essas entidades recolhiam os direitos separadamente. Hoje, felizmente, já pode. Mas nunca fui exatamente um autor de música, um compositor que trabalha com regularidade. Ao mesmo tempo que emplacava esses êxitos no rádio, continuava a exercer a profissão de médico? Max Nunes – Sim. Após concluir a Faculdade de Medicina, trabalhei durante dois anos no Hospital do Câncer. Depois fiquei durante 20 anos prestando serviços ao Estado. Nesse período, fundamos o Instituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema, onde trabalhei durante trinta e tantos anos e só larguei há uns dez anos porque vim para São Paulo fazer o programa do Jô Soares. Como o senhor conciliava consultório com tantos programas de rádio e teatro, além da música? Max Nunes – Praticamente não dormia. Levava papel e lápis para os plantões e ficava escrevendo para o rádio nos breves momentos de folga. Ficava ligado naquilo tudo, tinha de escrever, ensaiar, uma loucura. Balança Mas Não Cai ficou no ar durante quanto tempo? Max Nunes – Saí da Nacional dois anos depois do lançamento do Balança, e a emissora deu continuidade ao programa. Nos tempos da Nacional, além de exercer a Medicina, eu fazia seis ou sete programas, eram programas demais. Faziam sucesso, a rádio me pagava em dia, mas estava difícil suportar aquela rotina. Aí, um dia me chamaram e conversamos num bar: “Ô Max, é o seguinte: nós queríamos que você voltasse para a Tupi. O que você imagina que poderíamos fazer para convencê-lo a mudar de casa?”. Respondi: “Olha, faço sete programas na Nacional e gostaria de fazer apenas um programa”. Eles: “Nós queremos você para fazer um só programa”. Disse isso achando que eles desistiriam de mim, por-


ADIR MERA/AGÊNCIA O GLOBO

A censura era violenta também contra suas revistas de teatro? Max Nunes – Pois é, eram implacáveis com tudo que pudesse ser atentatório à moral. Antes da estréia de cada peça, éramos obrigados a fazer uma apresentação do espetáculo para as pessoas da censura, que ficavam lá sentadas com a função arbitrária de cortar o que achavam que o público não deveria ver. Até teve uma cena engraçadíssima, com Agildo Ribeiro, numa dessas apresentações para a censura. O diálogo surrealista aconteceu entre ele e a censora. Ela dizia: “Esse palavrão não pode”. Ele argumentava: “Então, troco esse palavrão, mas a senhora deixa esse aqui passar, está bem?”. Eles negociavam e saía um acordo engraçadíssimo, apesar de trágico, por se tratar da censura.

que queria mesmo era continuar na Medicina, entende? Mas eles insistiram? Max Nunes – Não desistiram e insistiram na mesma hora. Aí, perguntaram: “Para fazer um programa na Tupi, quanto é que gostaria de ganhar?”. Pensei comigo: “Vou pedir logo um absurdo que é para eles desistirem desse negócio”. E pedi um absurdo, tipo 50 mil cruzeiros na época. E eles: “Fechado!”. Sem alternativa, limitei-me a dizer que estava bem, que iria conversar com Victor Costa sobre a proposta deles. Quando disse isso, eles ficaram com receio de a Nacional fazer uma contraproposta e acrescentaram: “Está bem, você vai falar com o Costa, mas antes nós vamos ali num escritório bater uma carta-compromisso, não é contrato. Se você conseguir se livrar da Nacional, você assina com a gente”. Ainda tentei um último argumento: “Mas acontece que, se sair da Nacional, terei de pagar uma multa de 100 mil cruzeiros”. E eles remendaram: “Nós pagamos”. E pensei: “É, não tem jeito”. Como Victor Costa reagiu à sua saída? Max Nunes – Ele era meu amigo. Antes de conversar com ele, falei com Eurico Silva e Paulo Gracindo, e eles me disseram: “Max, não há jeito de você não aceitar isso. Nós sentimos muito, mas vá em frente, vá falar com Victor ”. Sabe o que ele disse para mim: “Você está proibido de passar pela porta da Rádio Nacional”. Mas depois voltou a ser meu amigo. Quando foi para a Rádio Clube, ele até me chamou para ir trabalhar lá. Ainda na Nacional, tinha uma equipe para ajudá-lo a escrever os programas? Max Nunes – Não, tinha o Gracindo, que escreveu quando fiquei doente. Quando voltei, ele continuou me ajudando. Na Tupi, o senhor teve alguma criação de impacto na audiência como aconteceu com Balança Mas Não Cai, da Nacional? Max Nunes – Curioso foi que, quando estava indo para a Tupi, a televisão estava engatinhando no Rio. Na rádio fiz Uma Pulga na Camisola, meu primeiro programa na emissora e que acaba de virar até livro, lançado pela Companhia das Letras. O programa deu mais que certo e fez muito sucesso. Tinha uns tipos que ficaram bastante conhecidos, como Seu Viúvo e Dona Viúva. Criamos uma dupla de personagens – que, anos depois, levei para a Globo – interpretada pela Nádia Maria, que era Ofélia, e Fernandinho, com aquele refrão que ainda hoje é conhecido de todos: “Cala a boca, Ofélia” (o mesmo quadro voltou a ser apresentado a partir de 1999, no programa Zorra Total, da Rede Globo). No final de cada quadro, ela sempre dizia para o marido: “Você sabe que eu só abro a boca quando tenho certeza”. Algo parecido agora está sendo aproveitado pelo Sai de Baixo, da Globo, quando o personagem de Miguel Falabella diz: “Cala a boca, Magda!”. Tivemos um quadro que também agradou muito, Boate do Ali Babá e os Quarenta Garçons, que logo ganharia uma versão para a tv. Foi nessa boate que apareceu o famoso deputado Baiano, mais uma sátira minha ao jeito falastrão do deputado Aliomar Baleeiro. Ainda na Tupi, no rádio e na televisão, fiz Marmelândia, o País das Maravilhas.

Max Nunes, em 1979, também teve que driblar os censores quando era redator na Rede Globo.

Era exatamente aí que queria chegar, na sua entrada para a televisão. Foi uma consequência natural, como acontecia com os quadros da Rádio Tupi, que costumavam ser aproveitados na tv? Max Nunes – Olha, sim. O primeiro programa que fiz na Tupi foi o Folie Brandão, com Brandão Filho. Depois de lá fui para a Excelsior. A ida para a televisão, antes de qualquer coisa, acrescentou-lhe mais uma profissão e mais trabalho, além do que o senhor fazia no rádio, na música, no teatro e na Medicina? Max Nunes – Sem dúvida. Fui para a Excelsior em 1962, onde fiquei dois anos, até a Revolução de 1964, que realmente viria a acabar com a emissora. Lá, fazíamos programas de humor, ajudávamos nos shows de auditório. Na Excelsior, o senhor criou um programa que faria história no humor televisivo, que era A Grande Família, certo? Max Nunes – Fizemos também A Grande Revista, um programa no formato de teatro de revista adaptado para a televisão. Nessa época ainda era tudo ao vivo, o videoteipe não havia chegado ao Brasil. Na Excelsior, criamos A Grande Família, reforçando a audiência da prestigiada emissora. Nesse momento, o senhor ainda colaborava com o rádio? Max Nunes – Não, deixei o rádio ainda na década de 1950. Fui para a Rádio Tupi com o objetivo de fazer programa de rádio, mas fui sendo levado cada vez mais para a televisão, onde acabei me fixando em definitivo. Com o golpe militar de 1964, o senhor sofreu alguma pressão dos militares naquele processo de expurgo dos comunistas e supostos opositores do regime? Max Nunes – Não, não tinha nenhum passado revolucionário. (risos)

Havia sempre em sua carreira, até então, a preocupação no sentido de fazer humor político, de satirizar as mazelas sociais e o governo em seu programas? Max Nunes – Sempre houve, sempre houve. Acredito que se poderia acompanhar a história do Brasil nas décadas que se seguiram a 1950 pelos meus programas, apesar de ter um histórico de muita perturbação por parte da censura contra meus textos. Até os anos 1980, quando já tínhamos alguma liberdade para falar mais abertamente, a censura não largou do meu pé. No tempo da rádio e depois da TV Tupi, a censura era forte. Éramos forçados a brigar com os censores do DIP. Implicavam com tudo, política, sexo. Nada passava sem identificarem algum problema, alguma ameaça ao sistema. Nos tempos da revolução que se seguiu a 1964, porém, foi muito pior, porque aí não tinha jeito de conseguir convencer os censores a liberarem nossos programas impunemente. Até frase do Hino Nacional eles censuravam. Na ditadura, a censura aos programas de humor para tv era sempre prévia, ainda no texto? Max Nunes – Os textos voltavam com um carimbo de proibido. Havia casos curiosos como o de uma censora que chegou para mim certa vez e disse: “Olha Max, até deixaria passar, mas se fizer isso vão me transferir para o Amazonas”. Era terrível, a pressão vinha de todos os lados. Mas nós inventávamos recursos interessantes para tentar driblar os censores. Quando estava na Globo e queria que passasse determinado trecho, e o censor estava lá, de prontidão, nós combinávamos assim: “Olha, quando o censor estiver lendo esse trecho, você entra e arma uma briga daquelas violentas comigo”. Então, no momento combinado, o pau quebrava, e o censor entrava para apartar: “Espere aí, calma, não vamos brigar por bobagem”. Aí, não raro, passava aquilo que a gente queria, porque desviava a atenção do censor quando ele ia ler o trecho que achávamos difícil de ser aprovado. (risos)

Em algum momento, a repressão relacionou seu nome com a subversão, uma vez que seus programas não poupavam o governo até onde era permitido? Max Nunes – Não, não. No tempo do Primo Pobre e Primo Rico, no começo dos anos 1950, Osvaldo Aranha, então Ministro de Vargas, chegou a fazer uma declaração na imprensa que aquele quadro era a maior infiltração comunista no Brasil. Perguntei: “Mas como?”. O primo pobre nem trabalha, pois assim poderiam dizer que a gente estava colocando ele contra o patrão. Enfim, aconteciam coisas assim, mas nunca chegaram a me incluir em lista de subversivos. Claro que sofremos um pouco naquela época. Que outro caso de censura o senhor se lembra que o incomodou bastante? Max Nunes – Um exemplo mais recente, nos anos 1980, aconteceu com o Capitão Gay, interpretado por Jô Soares (programa Viva o Gordo). Foi uma luta colocá-lo no ar. Em Brasília, havia um capitão, gay de verdade, que não ligou, mas a turma que estava com ele queria tirar o quadro do ar porque ele pretendia se candidatar a Governador do Distrito Federal e temia que fizessem referência à sexualidade dele durante a campanha – “Hii, olha lá o Capitão Gay”. (risos) A questão sexual nos seus quadros não era tão presente no humor radiofônico e televisivo quanto a gente vê hoje. Tinha a ver com a censura? Max Nunes – Não. Combato muito esse tipo de programa com nível para baixo. Não gosto muito. Hoje, o palavrão substituiu a inteligência. Por que se diz um palavrão e todo mundo ri? Não sei e não consigo entender. Se tivesse graça, vá lá. Não que seja puritano, mas defendo a graça feita com inteligência e bom humor. Na sua convivência forçada com a censura, além do governo, certamente os seus quadros incomodavam outros segmentos, que se sentiam ofendidos, não? Max Nunes – Claro, claro. Tem até uma história engraçada que me recordo agora. No começo da década de 1950, estávamos todos reunidos num estúdio da Tupi quando, de repente, entrou um sujeito, na hora da gravação, e me disse: “Seu Max, sou funcionário da Petrobras e vim aqui para dizer-lhe que o senhor, no seu programa, tem feito algumas críticas à nossa empresa que são injustas. Gostaríamos que o senhor encontrasse

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DOCUMENTO HISTÓRICO MAX NUNES E O HUMOR QUE BALANÇA, MAS NÃO CAI

ADIR MERA/AGÊNCIA O GLOBO

outra maneira de criticar a Petrobras. Aliás, já estava para vir falar com o senhor há algum tempo e não conseguia encontrá-lo”. Aí, respondi: “Bom, meu rapaz, trabalho numa emissora de rádio que todo mundo sabe onde fica e se o senhor, que é da Petrobras, não consegue me achar, agora fiquei preocupado com outra coisa: como é que sua empresa vai encontrar petróleo no fundo do mar se um funcionário não consegue descobrir um radialista?” (risos). O rapaz ficou muito sem graça e foi embora. Os governantes também buscavam formas mais amistosas de conquistar sua simpatia? Max Nunes – Tenho aí guardados convites que me foram feitos pelo Presidente Figueiredo, chamando-me para ir a Brasília conversar com ele. Não fui, claro. Mas fiquei imaginando: se fosse um empresário que precisasse conversar com o Presidente, teria de esperar uma eternidade e talvez nem conseguisse agendar uma audiência com ele. Então, como eu era da televisão, ele me chamava para uma aproximação, um almoço. Chico (Anysio) acabou indo, e daí nasceu aquela personagem dele, a velhinha Salomé, que conversava com o Presidente pelo telefone à noite. O convite só ocorreu no Governo Figueiredo? Max Nunes – Sim, foi quando nossos quadros começaram a ser liberados pela censura. Lembro-me de que a primeira piada liberada para um de nossos programas, e que já estava dando pinta de que teríamos uma abertura política, era assim: um garçom chegava com várias garrafas de uísque e perguntava para o cliente: “O senhor prefere um ‘presidente’ ou um ‘passaporte’ (marcas de uísque famosas na época)?” (risos). Isso aconteceu quando fazíamos O Planeta dos Homens. Quando o senhor se transferiu para a Rede Globo? Max Nunes – Na segunda metade dos anos 1960. Na Globo, a primeira coisa que fiz com o Jô foi Faça Humor, Não Faça Guerra. Depois vieram Satiricom, O Planeta dos Homens e Viva o Gordo. Vamos por partes. Faça Humor, Não Faça Guerra era um programa que não sofria influência direta do rádio? Max Nunes – Sim, nada tinha a ver com o rádio. Somente o Balança Mas Não Cai, lançado originalmente na Rádio Nacional, acabou aproveitado na televisão. Fizemos uma primeira versão que durou quatro anos, na Globo, entre 1968 e 1971 – depois, foi revitalizado entre 1982 e 1983. Nessa fase, chegamos a ter mais de sessenta comediantes que se apresentavam ao vivo num palco do estúdio que a Globo tinha no Jardim Botânico. Nos anos 1970, quando a Globo não quis dar continuidade ao programa, o Balança foi transferido para a Tupi, onde ficou no ar por toda a década. Todos os quadros do original do rádio foram formatados para a televisão. É verdade que o senhor tentou convencer Walter Clark a não lançar a versão para tv do Balança Mas Não Cai? Max Nunes – Walter Clark insistiu muito para que colocasse Balança no ar, naque-

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Paulo Gracindo e Brandão Filho interpretaram uma dupla impagável no quadro Primo Pobre e Primo Rico, que marcou época no rádio e na tv durante décadas no programa Balança Mas Não Cai.

le momento em que a Globo estava começando. Mas eu não queria. Dizia para ele: “Aquele programa está enterrado, já faz tanto tempo”. E ele repetia: “Não, vamos fazer de novo, vai dar certo”. A volta da turma do edifício mais pirado do Rio fez tanto sucesso que virou programa de guerrilha pela audiência: se a Tupi tinha um programa em tal horário que estava batendo a Globo, esta deslocava o Balança para concorrer com o tal, exatamente como faz o SBT hoje contra a Globo. Um dia, o Jota Silvestre chegou para mim e disse: “Vou desistir de fazer programas para a Tupi porque tem uns programas aí que derrubam a gente do horário, não levam meu programa a sério”. É mais ou menos como faz o Ratinho agora, que chega e derruba os outros programas. O rato está terrível. O que o senhor pensa desse rato? Max Nunes – Sobre o rato é o seguinte: tem muito programa de baixaria, mas esse rato que está aí é inteligente, não é bobo, não. Ele é mais vivo que muitos. É um tipo de Chacrinha, mas esse rato que está aí não é trouxa, não. Como assim? Max Nunes – Acho que ele é um bom comunicador, é sagaz e creio que vai durar por um bom tempo. Claro que o programa dele é um horror, mas como bom comunicador, daqui a pouco ele vai começar a se ajeitar. Voltando ao Faça Humor, Não Faça Guerra, o título certamente tem a ver com o clima político da época? Max Nunes – Sim, havia um slogan sobre a mobilização pacifista nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã, que dizia: “Faça amor, não faça guerra”. Foi importante e teve muita repercussão, principalmente para Jô Soares, que marcou sua estréia na Globo. Ele

fez muito sucesso com a Norminha, que era uma cantora. Ele deu um show. Sua parceria com Jô Soares já dura mais de três décadas. Como se conheceram? Max Nunes – Eu já conhecia Jô de nome, no começo dos anos 1960. Ele namorava a Terezinha Austregésilo, que, por acaso, era a estrela de uma peça minha chamada De Cabral a JK. E Jô, num belo dia, apareceu na minha casa acompanhando ela. Ele entrou já reclamando da invasão dos Estados Unidos por um abacaxi enorme e garantindo que estavam atirando suco de abacaxi para todo lado. Então, logo que o vi já imaginei: esse camarada é bom, não tem jeito, vai dar certo na televisão. Essa brincadeira do abacaxi tinha a ver com sua peça que estava em cartaz? Max Nunes – Não, não tinha a ver não. Era uma performance dele, que queria ser divertido e entrou brincando. E assim nos conhecemos. Acabei me tornando padrinho dos dois casamentos dele. Quando surgiu a primeira oportunidade de vocês trabalharem juntos? Max Nunes – Como disse lá atrás, eu tinha um programa na Tupi que se chamava Boate de Ali Babá e os 40 Garçons. Então, escrevi um quadrinho para ele. Era algo bem bobo, apesar de ele dizer sempre que fui eu quem o levou para a televisão no Rio. Que nada, era uma bobagem de quadro. Depois fui para a Globo e lá ele me apareceu, num belo dia, montado numa moto e voltamos a trabalhar juntos. Começamos com Faça Humor, Não Faça Guerra, depois Satiricom, O Planeta dos Homens... Com Jô Soares, o senhor deu início a uma série de personagens criados para se en-

caixar no tipo humorístico dele. O senhor tem idéia de quantos tipos criou para Jô? Max Nunes – Em números exatos não sei, mas foram vários. Não fui somente eu quem criou personagens para Jô. Criei alguns, o próprio Jô criou outros e Hilton Marques, que trabalhava com a gente, criou tantos outros. Lembro-me de que o primeiro tipo que bolei para ele, já no Planeta dos Homens, foi aquele quadro do “macaco está certo”. Ah, antes teve também a Norminha. Eram tantos tipos criados por nós três que não me lembro quem imaginou qual. Na verdade, todos esses programas eram basicamente os mesmos, só mudávamos os nomes e alguns tipos. Aí, criávamos alguns novos todos os anos para dar mais fôlego. Dessas experiências nasceram Querias, Zé da Galera... Zé da Galera marcou época porque comentava os jogos do Brasil durante a Copa do Mundo apenas algumas horas depois do final de cada partida. Era um humor curioso, instantâneo, não? Max Nunes – Com Jô, investimos na crônica humorística na tv, como Zé da Galera, que aconselhava o treinador da seleção brasileira de futebol a voltar para casa, a fim de evitar vexame em outras plagas. Ele era um torcedor de botequim. Dizia isso depois de uma série de críticas bem fundamentadas sobre o desempenho da equipe. Deu tão certo que chegávamos a gravar o quadro num pequeno intervalo de horas entre o fim da partida e a exibição do programa. Desse modo, era possível ver Zé da Galera comentando o jogo que ocorrera no mesmo dia. Fizemos assim nas Copas de 1982 e 1986, quando o torcedor vibrou e chorou com a desclassificação do Brasil. O que Satiricom trazia de diferente em relação a seu antecessor? Max Nunes – Praticamente nada. Só mudávamos os tipos. Fazíamos apenas algumas reformulações para dar fôlego ao horário. Ficaram apenas os nomes dos mais evidentes, mais marcantes ao público, como o Capitão Gay ou “Não me comprometa”. O último desses programas de humor, Viva o Gordo, trazia como diferencial o fato de centralizar apenas na figura de Jô Soares? Max Nunes – Sim. Todos os outros eram com Agildo Ribeiro, que saiu da Globo. Como é o seu processo de criação de humor? Max Nunes – Creio que é preciso ter um certo dom para a coisa, não é? Nessas tarefas de criação de texto, tudo surge pensando, pensando. Não tem esse negócio de que acontece assim: ah, vi um tipo na rua que merece virar um personagem de humor. Pode até acontecer assim, mas é raro. Por exemplo, o Reizinho surgiu de uma história que li num jornal, de que um membro da Academia Brasileira de Letras tomou um táxi, e o motorista, ao vê-lo com aquela roupa galante, aquele fardão pomposo, perguntou-lhe: “O senhor é de alguma escola de samba?”. E o imortal respondeu secamente: “Não!”. Aí, o sujeito perguntou se ele era fulano de tal. Veio o mesmo não. Por fim, o curioso perdeu a paciência e perguntou: “Sois rei?”. Aí, ao saber da história, peguei o bordão e


comecei a pensar num tipo que acabaria no Reizinho, que sempre repetia esse bordão: “Sois rei?”. Como surgiu o quadro Primo Rico e Primo Pobre do Balança Mas Não Cai? Max Nunes – De uma conversa com (Paulo) Gracindo. Um dia, ele me falou que tinha um primo rico, mas que era muito sovina e, toda vez que ele ia pedir alguma coisa a esse primo, ele vinha com uma história muito triste.

tano com todos os coros que havia no Rio de Janeiro. Juntou todo mundo e fez uma revista, e não dava nada de público, ninguém aparecia para ver. Só rendia algo no sábado e no domingo, mesmo assim com muita dificuldade. Então, alguém chegou e disse: “Pega aí alguns esquetes e vamos mudar o nome do espetáculo para Vai Quebrar”. Pois não virou um sucesso de público? É assim, às vezes um detalhe, um nome, um bordão que faz a coisa pegar.

O senhor saberia explicar por que seus tipos alcançam tanta longevidade e as No seu processo de criação, quando o sepessoas ficam repetindo seus bordões nhor pensa num tipo, imagina sempre por décadas, como aquele “tem pai que algo que terá identificação pelo público? é cego”? Qual é o truque para fazer um personaMax Nunes – Quando a gente cria, em gem pegar? alguns casos, desconfia que vai fazer sucesMax Nunes – Olha, nunca podemos saso. Balança Mas Não Cai, por exemplo, eu desber quando o sucesso vai acontecer. Se alconfiava que faria sucesso. Mas havia ouguém pudesse saber o que vai se tornar sutros que lançávamos e simplesmente não cesso, essa pessoa estaria rica. Vou contar funcionavam. Fiz um programa na Globo uma história que me foi passada pelo Almichamado Uau!, que não pegou. Tinha direrante (Henrique Foreis Domingues, apresentação de Augusto César Vannucci. Esse prodor e produtor de rádio), que dizia respeito à grama eu desconfiava que realmente não pesua decisão de deixar de gravar marchas de garia. Na televisão podemos perceber os fiCarnaval. Ele disse que tinha combinado de ascos muito no caso das novelas. gravar, pela primeira vez, uma música de Carnaval com uma orquestra, composta por A Praça É Nossa, apresentada aos sábaLamartine Babo. Era o “Hino do Carnaval dos pelo SBT, tem algum tipo criado pelo Brasileiro” (“salve a morena...”). Então, marsenhor? caram o dia da gravação com um grupo enorMax Nunes – Não, nunca escrevi para A me de músicos, e estava todo mundo animado, preparando-se para começar a gravar, Praça É Nossa. quando entrou a dupla Jararaca e Ratinho dizendo que haviam combinado uma gravaMas o programa chegou a ressuscitar ção coincidentemente para o mesmo horáalgum quadro seu? rio. A música se chamaria “Mamãe Eu QueMax Nunes – Tem um quadro do teleforo”. Aí, o pessoal da gravadora chegou para ne, que o sujeito chega e diz “Alô, Bicudo”, eles e disse: “Olha, vocês no desculpem, mas sempre ao lado de um valentão que está brihouve uma confusão de horário e imaginem gando com a namorada. O sujeito, muito que estamos gravando agora a maior marinoportunamente, fica falando ao telefone cha da história do Carnaval brasileiro, é uma como se estivesse fazendo comentários socoisa linda, vamos marcar a sessão de vocês bre a vida desse casal e isso sempre gerava para outro dia”. Almirante, que estava ali no confusão. Eu fazia um tipo assim na Maycanto, chegou e disse: “Não, não, espere aí, rink Veiga. para que eles não tenham de voltar depois, a gente dá um jeito de gravar hoje mesmo”. Como o senhor vê hoje grandes humoPois bem, ensaiaram, mas Almirante disse ristas, como Agildo Ribeiro, afastados que estava muito curta a música, teria de dar da televisão? (Quando essa entrevista foi pelo menos dois minutos e inventou uma realizada ainda não havia o programa Zorfrase: “Ô meu filho, o que você quer? Eu ra Total, da Rede Globo, que marcou a volta quero mamar”. Então, parde Agildo à emissora) tiram para a gravação. Eles Max Nunes – As emisso“Esse negócio de tocaram a introdução, o soras estão boicotando os prodizerem por aí que gramas humorísticos, não lista desafinou, mas não fazem humor quiseram parar porque titenho dúvida disso. Esse gênham pressa. Toca, toca, alnero de atração ainda é vimoderno é bem guém ordenou. E gravaram. ável, dependendo do tipo de relativo. O que Conclusão: “Mamãe Eu programa que se faz. Casadianta modernizar seta & Planeta, por exemQuero” foi parar nos Estado Unidos como um granplo, tem mostrado isso. os programas se de sucesso. Não assisto porque passa o público não ri?” na terça-feira, quando esE hoje pouca gente sabe tou em São Paulo gravano que é o “Hino do Cardo o Programa do Jô. Portannaval Brasileiro”, que, apesar do nome to, não sei como eles estão indo. Os rapazes pretensioso, não funcionou junto ao do Casseta são muito simpáticos. Lembrogosto do público. Correto? me que eles foram lá no Jô e me pareceram Max Nunes – Pois é, correto. Nesse mesmuito simpáticos. O Bussunda chegou para mo Carnaval aconteceu algo parecido tammim e disse: “Ô Max, você está prejudicando bém com Castro Barbosa, que queria gravar a gente lá na Globo”. E eu: “Como assim?”. uma música que ele achava que estouraria Ele respondeu: “É que a gente chega lá para no Carnaval, mas só deu “Mamãe Eu Querenovar contrato e eles perguntam quanto ro”. Então, essa história mostra o quanto o nós queremos ganhar e quando dizemos, eles sucesso é imprevisível. Certa vez, um emprerespondem: ‘Ah, isso nem o Max Nunes sário montou um espetáculo no João Caeganhava!’” (risos). Com certeza, eles ganha-

vam pouco lá. Tenho visto por aí gente falando bem deles.

não ofender as diferenças físicas e sexuais das pessoas.

Voltando ao boicote das emissoras ao humor, por que os humorísticos perderam tanto espaço? Max Nunes – Não sei bem como funciona isso na cabeça de quem pensa a programação. Creio que a emissora escolhe uma direção a seguir e vai por ali. Talvez esses programas não sejam muito baratos. Os humorísticos como fazíamos na Globo não eram nada baratos, com grande elenco, vários cenários, guarda-roupa.

O que mais o irrita, Max? Max Nunes – Poucas coisas me irritam, e uma delas é a burrice. No dia em que inventarem uma vacina contra a burrice...

E o que é uma pessoa burra? Max Nunes – Você tem como bom exemplo o nosso Presidente da República, que é um sujeito culto, mas é burro. Você não acha? Cada vez que ele abre a boca ninguém agüenta as bobagens que saem dali. E o pior é que ele vai ser “O Brasil está reeleito mesmo nas eleições cheio de gênios deste ano (1998).

O humor poderia ser uma alternativa à discuincompreendidos e, tida queda na qualidade da programação? definitivamente, não Politicamente, o senhor Max Nunes – Exatatem simpatia por algum estou entre eles.” partido? mente. E lhe digo mais: a baixaria que está aí ainda Max Nunes – Não, não vai piorar muito, porque as acredito em partidos. Nesse sentido, já tive ou vi experiências terríclasses D e E assistem muito a esses programas, e os anunciantes vão optar por essa veis. O sujeito pode ter um partido interesprogramação. Nenhuma fábrica de piano sante, como o PT (Partido dos Trabalhadores), mas acaba desacreditado porque as pesvai ficar anunciando em Ratinho, não é? soas que fazem parte dele ficam o tempo O senhor tem idéia do que poderia ser todo brigando. Nessa área política, tenho a impressão de que no Brasil ainda não nasfeito para melhorar os programas? Max Nunes – Isso tem a ver com o grau ceu um estadista. de educação do povo. Mas devem existir Nunca tivemos um? Fala-se que Getúprogramas alternativos que tentem melhorar um pouco o que estão fazendo aí. Agolio Vargas teria sido o único estadista ra, não entendo por que um sujeito passa uma brasileiro... Max Nunes – O Getúlio é o seguinte: tenho ou duas vezes de canal e vai ficando, vendo aquilo. Um dá um bofetão em outro, a musobre ele várias experiências para contar. A lher grita com o vizinho ou com o ex-mariprimeira delas foi a Revolução de 1930, quando meu pai sofreu e quase foi morto do e depois acaba tudo em pancadaria. Creio que isso acabe resistindo por pouco tempo, quando empastelaram o jornal onde ele traporque vira repetição. Mas, por enquanto, balhava. Acho que, no caso dele, pode-se separar o bom e o mau Getúlio. Foi um dideve ficar como está. Nesse aspecto, acho o rádio muito mais criativo, muito marcantador que fez uma série de coisas positivas te. Tínhamos outros tipos de programa, com e negativas. Quando ele voltou nos braços do povo, em 1950, fiz a seguinte reflexão: não outro nível, para todas as classes sociais. A televisão, não. Parece sorvete ou futebol: ou vou votar nele porque não dá, mas por dené de chocolate ou é de creme. tro vou até torcer porque já está velho e está voltando pelo voto do povo. E pode fazer um Depois de cinco décadas fazendo rir, bom governo e se reabilitar. Enfim, ele tinha como o senhor definiria seu tipo de mais ou menos uma cara de estadista. humor? Max Nunes – Não tem muita discussão Mudando radicalmente de assunto, em sobre isso, não. Esse negócio de dizerem por relação à vaidade, como o senhor encara o fato de seus personagens serem aí que fazem humor moderno é bem relativo. O que adianta modernizar os programais conhecidos que o criador? mas se o público não ri, não acha graça? Max Nunes – Encaro isso tranquilamente, sem grilos. Agora, por causa do prograMuitas vezes se faz um tipo de humor que ma do Jô, como tenho aparecido de vez em não é engraçado. quando, sou até mais conhecido. Anteontem, estava na rua e chegou uma senhora O senhor sempre trabalhou com temas perto de mim e disse: “Ah, eu o conheço, o específicos, já satirizou heróis, brincou senhor faz o Programa do Jô, como é o seu com a vaidade feminina. Essas são as nome?”. Eu disse: “Max”. E ela: “Ah, vou suas marcas? declamar para o senhor um poema que fiz Max Nunes – Sim, precisamos imaginar para a minha netinha, no seu ouvido”. Isso, algumas coisas para desenvolver e trabalhar no meio da rua. Então, evito muito apareem cima, certo? Sobre o que vou escrever? cer para não ter de passar por uma dessas. Sobre a mulher? Sobre o casamento? É preCom o negócio de lançar esses livros, andei ciso imaginar. Por falar nisso, casamento é dando umas entrevistas e aparecendo um a história daquele sujeito que quer tomar pouco também. Meu negócio mesmo é traum copo de leite e toma uma vaca. (risos) balhar atrás das câmeras. Interessa que seja conhecido pela direção que faço na televisão. O senhor já foi acusado alguma vez de Mesmo entre os que escrevem, sou mais ser preconceituoso por causa dos tipos conhecido, né? Digo isso sem nenhuma que criou? vaidade, entende? O Brasil está cheio de Max Nunes – Não, nunca. Já disseram que gênios incompreendidos e, definitivamente, fazíamos quadros meio machistas. Sempre não estou entre eles. tive uma série de cuidados e predicados para

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VIDAS

Max Nunes, o doutor da alegria P OR C ELSO S ABADIN

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Além do rádio e da medicina, Max dedicava-se também ao teatro, para o qual escreveu 36 peças, incluindo os grandes sucessos Nonô Vai na Raça e Aperta o Cinto. Em 1952, deixa a Rádio Nacional e retorna à Tupi com status de estrela, ganhando mais e com um único programa para escrever: Uma Pulga na Camisola.

Conciliava os estudos com o trabalho na Rádio Tupi, onde escrevia os programas A Queixa do Dia, Ninguém Rasga, Dona Eva e Seu Adão e O Amigo da Onça. Em 1948, no mesmo ano em que se forma médico, é contratado para integrar a equipe do Programa Manoel Barcelos, da Rádio Nacional. Sem abandonar a carreira artística, especializou-se em Cardiologia, e, contrariamente a inúmeros artistas e intelectuais que jamais chegam a exercer as profissões nas quais se graduaram, Max não apenas foi um destacado cardiologista durante mais de 30 anos, como chegou a dirigir a seção de Ipanema do Instituto Brasileiro de Cardiologia. O rapaz prova, na prática, que bom humor faz bem ao coração. Na Rádio Nacional, foi um dos principais criadores do programa humorístico Balança Mas Não Cai, que marcou a história do gênero ganhando mais tarde versões para o cinema, teatro de revista e a televisão. Irradiado (como se falava na época) às 20h30 das sextas-feiras, Balança Mas Não Cai foi o celeiro de inesquecíveis tipos cômicos que perduraram durante décadas na cultura popular brasileira.

Com “tanto tempo” disponível, passa também a redigir colunas para os jornais Tribuna da Imprensa (de 1954 a 1955) e Diário da Noite (de 1954 a 1960).

Mas certamente um dos grandes marcos de sua carreira foi mesmo Balança Mas Não Cai, nascido na Rádio Nacional e adaptado para a televisão, pela primeira vez, na Globo de 1968. Em 1972, o programa chegou a ter uma versão produzida pela Tupi, retornando dez anos depois à sua emissora de origem. Além dos clássicos Primo Pobre (Brandão Filho) e Primo Rico (Paulo Gracindo), Balança Mas Não Cai também forjou, através do personagem Peladinho, o bordão “Mengo, tu é o maior!”, que foi definitivamente incorporado pelo próprio clube. Abrindo os anos 1970, pegando carona no slogan hippie “Faça Amor, Não Faça Guerra”, a Globo lança outro programa que marcaria época: Faça Humor, Não Faça Guerra, comandado por Jô Soares e Renato Corte Real. Na redação, Max Nunes, Haroldo Barbosa e o próprio Jô, com quem inicia uma parceria que duraria até o final de sua vida. Com piadas curtas e cortes rápidos, Faça Humor, Não Faça Guerra marca uma evolução na linguagem dos programas humorísticos da televisão brasileira, até aquele momento ainda muito atrelados à linguagem radiofônica, de onde vários deles se originaram. A jovem cantora Norminha (interpretada por Jô Soares) e a dupla de malucos Lelé e Da Cuca (Jô e Corte Real) foram alguns dos personagens marcantes do programa, que foi líder de audiência das noites das sextas-feiras de 1970 a 1973. Em 1973, investindo num tipo de programa humorístico de proposta um pouco mais sofisticada, a Globo pega emprestado o título de um filme de Fellini e lança Satiricom, ou “A sátira do comportamento humano. O Homem em todas as dimensões, e diante de todos os seus problemas”, como o ator Antonio Pedro anunciava na própria abertura do show. Uma abertura cujos créditos iniciais destacavam: “Um programa de Max Nunes e Haroldo Barbosa”. Satiricom permaneceu no ar até 1975. Na segunda metade dos anos 1970, Max Nunes continua integrando o time de redatores da Globo, quer escrevendo o seriado A Grande Família, quer colaborando em especiais ou, ainda que menos intensamente, no novo O Planeta dos Homens, programa humorístico que optou por uma equipe totalmente renovada de redatores. ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO

Talvez o nome Max Nunes, falecido aos 92 anos, no último dia 11 de junho, não seja rapidamente reconhecido pelo grande público. Mas os nomes dos personagens que ele criou e desenvolveu provocam sorrisos imediatos com apenas uma breve menção. Capitão Gay, Carlos Suely, Primo Pobre e Primo Rico, Reizinho, Gandola e vários outros são tipos inesquecíveis indelevelmente marcados no imaginário de milhões de brasileiros. Carioca de Vila Isabel, Max Newton Figueiredo Pereira Nunes nasceu em 17 de abril de 1922. Costumava dizer, entre orgulhoso e fanfarrão, que muitas coisas importantes aconteceram no Brasil naquele ano: “O centenário da Independência, a Semana de Arte Moderna, o episódio dos 18 do forte, a criação do Partido Comunista... e eu”. O humor veio do berço. Seu pai, Lauro Nunes, era jornalista, humorista, e escrevia esquetes para a Rádio Mayrink Veiga sob o pseudônimo Terra de Sena. Desde criança, Max acostumou a ter sua casa freqüentada por artistas e intelectuais. E como se tudo isso não bastasse, tomou gosto pela música e pelo canto através de longas caminhadas pelo bairro, que fazia com um vizinho muito especial: Noel Rosa. Com tantas influências, começou a participar de programas de rádio e concursos musicais desde muito jovem. Na Rádio Guanabara, chegou a ser apelidado de “Gargantinha de Veludo”. Venceu um concurso de canto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, deixando em segundo lugar ninguém menos que Paulo Fortes, que mais tarde se tornaria um dos maiores cantores líricos do País. Como compositor, assina, junto com Laércio Alves, a autoria da clássica marcha de carnaval Bandeira Branca, imortalizada na voz de Dalva de Oliveira. Em depoimento ao projeto Globo Memória, Max conta: “Na época da Segunda Guerra Mundial, eu escrevi um soneto e fui mostrar ao meu pai. Ele pegou, leu, e me falou: tudo bem, mas olha lá fora. Tem uma fila enorme pra comprar arroz e feijão, mas ninguém faz fila pra comprar soneto, não”. O rapaz ficou dividido, pois ao mesmo tempo em que o conselho paterno lhe sugeria uma profissão mais lucrativa, Max, mal saído da adolescência, já era roteirista do programa Barbosadas, apresentado por Barbosa Jr. na Rádio Nacional, e desenvol-

via até um roteiro cinematográfico para o filme E o Mundo Se Diverte, de Watson Macedo. Resolveu batalhar nas duas frentes. Sem abandonar a carreira artística, entrou na Faculdade Nacional de Medicina da antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Da rádio para a tv

A televisão só acontece na vida de Max Nunes a partir de 1962, quando cria, na Excelsior, os programas My Fair Show e Times Square, ambos misturando com talento os consagrados estilos dos musicais norte-americanos com o teatro de revista brasileiro. Dois anos depois, em 1964, é contratado pela Globo como roteirista (junto com Haroldo Barbosa), do programa Riso Sinal Aberto, que permaneceu no ar até 1967. Na emissora do Jardim Botânico, e sempre ao lado de Haroldo Barbosa, Max Nunes escreveu Bairro Feliz (1965 e 1966) e TV0-TV1 (1966 a 1969), apresentado nas noites das quintas-feiras por Paulo Silvino e Agildo Ribeiro. TV0-TV1 foi o primeiro programa humorístico da televisão brasileira a parodiar outros programas de tv, o que influenciou os posteriores TV Pirata (1983) e Casseta & Planeta, Urgente! (1992).

Sólida parceria

Em 1981, solidificando ainda mais sua parceria e amizade com Jô Soares, Max


DIVULGAÇÃO/REDE GLOBO

passa a ser o principal redator do programa Viva o Gordo, totalmente comandado pelo humorista. Um dos personagens mais marcantes desta fase é o Reizinho, inspirado numa história real, segundo conta Jô Soares: “Aconteceu que um acadêmico da Academia Brasileira de Letras, que eu não me recordo o nome, estava atrasado para uma solenidade e tomou o táxi vestido com o fardão da Academia. O motorista do táxi estranhou aquela vestimenta toda, e teve uma hora que ele não agüentou e perguntou: ‘Sois rei?’. Em cima disso, o Reizinho foi criado, eu o fazia de joelhos, para ficar pequenininho. O visual foi inspirado no personagem dos quadrinhos” [The Little King, de Otto Soglow, publicado pela primeira vez em 1931, e traduzido no Brasil como Reizinho]. O bordão do Reizinho era uma pergunta que ele fazia aos seus súditos: “Deste povo que eu amo e desta terra que eu piso, o que eu sou, o que eu sou, o que eu sou?”, ao que todos respondiam: “Sois Rei”. A graça ficava por conta do suposto “engano” que Reizinho cometia sempre, um ato falho que o levava a perguntar: “Deste povo que eu piso e desta terra que eu amo...” Abordando temas políticos com o cuidado necessário para a época, Max Nunes cria também para o programa Viva o Gordo um personagem que na verdade não

“Deste povo que eu piso e desta terra que eu amo...”: Jô Soares caracterizado como o Reizinho, um de seus personagens de maior destaque.

tinha nome, mas ficou conhecido como Gandola. Tratava-se de um homem sempre em busca de favores especiais, que lhes eram, num primeiro momento, negados. O sujeito então tirava um cartãozinho do bolso e informava, em tom ameaçador: “Você não está entendendo. Quem me

mandou aqui foi o Gandola”. E os favores lhes eram imediatamente concedidos. Após um ano e meio de sucesso do personagem, alguém “descobriu” que a palavra gandola se referia a um tipo de traje militar, e a censura proibiu o quadro. Com muito sucesso, Viva o Gordo fica em cartaz na grade da Globo até dezembro de 1987, quando se transfere para o SBT. Evidentemente, Max vai junto. Na emissora de Silvio Santos, a dupla faz o humorístico Veja o Gordo e, posteriormente, Jô Soares Onze e Meia, que realiza o antigo sonho de Jô de comandar seu próprio programa de entrevistas. Os textos de abertura que Max Nunes escrevia para o programa eram verdadeiras preciosidades do humor, e várias das rápidas intervenções cômicas que Jô fazia durante as entrevistas vinham diretamente do ponto eletrônico colocado em seu ouvido onde, do outro lado, estava Max. Ambos permanecem no SBT até 2000, quando retornam à Globo rebatizando o Jô Soares Onze e Meia como Programa do Jô, que permanece no ar até hoje, embora sem o mesmo brilho de antes. Profissionalmente ativo até o fim, Max Nunes faleceu vítima de infecção generalizada advinda de uma queda onde fraturou a tíbia. Deixa quatro filhos: as atrizes Maria Cristina e Bia Nunes, Maurício e Sílvia.

“Vote em mim” Um texto de Max Nunes sobre Eleições “Você foi eleito? Eu, não. Em matéria de eleições, nunca mais vou me meter. Fiz comício, pintei faixa, fui contra a corrupção. Levei sopapo, bolacha, me chamaram de ladrão. E no fim não sou eleito? Essa não! Falei em mesa redonda, quadrada, retangular. Falei em mesa de pôquer, de bar, de sinuca, de bilhar. E no fim não sou eleito? É de amargar! Mandei fazer bandeirinha nas cores verde e amarela: ‘Vote em mim’, numa caixinha. Beijei gente na favela. Discursei, falando alto, que em mim tivessem fé, que eu vou botar asfalto no Morro do Jacaré, e a turma não me quer? Gritei que o petróleo é nosso, pra ver se agitava a massa, li trechos de Ruy Barbosa, um dos orgulhos da raça, e no fim não sou eleito? Isso tem graça? E todo mundo dizia: ‘é em ti que eu vou votar, manda a cédula em teu nome’. Eu mandava um pacotinho, e eles punham num cantinho, que é pra anotar telefone. Mas o pior vem depois, e não tem explicação. Na hora da votação, foi uma zorra total, foi uma zorra sem fim. Foi tamanha confusão, que nem eu votei em mim”.

Grandes tiradas de Max Nunes O Brasil precisa explorar com urgência a sua riqueza, porque a pobreza não agüenta mais ser explorada.

O que leva o Brasil à falência não é o fato de muitos roubarem pouco. É o fato de poucos roubarem muito.

O recibo, o reconhecimento de firmas, o fiador, o depósito e o desconto em folha são provas insofismáveis de que ninguém confia na honestidade de ninguém.

Personalidade é aquilo que uma pessoa tem quando não está precisando do emprego.

comer-lhe a carne, come-lhe o espírito. Fabricam automóveis que dão mais de duzentos e depois só permitem que andem a oitenta.

Freud explica pelo menos uma coisa: o número absurdo de divãs que se vendem no mundo. Inventa a bomba e depois fica arranjando conferências para que ela não seja atirada.

É através dos mais rigorosos inquéritos que se chega à conclusão de que todo mundo é honesto.

Já se foi o tempo que a união fazia a força. Hoje a União cobra os impostos e quem faz força é você.

O grande mal do divórcio é que permite ao homem casar-se pela segunda vez.

Se as mercadorias do contrabando são mais baratas porque estão fora da lei, logo o que encarece tudo é a lei.

Se antes já era difícil fazer um filme sobre anões, agora com o Cinemascope é que ficou inteiramente impossível.

Duplicata é essa coisa que sempre vence. Nunca empata.

Nossos filhos não são problemas. Problema são os filhos que dizem que são nossos.

O casamento é o único jogo que acaba mal sem que ninguém ponha a culpa no juiz.

Evolução do casamento: Mulher, me dá um beijo. – Mulher, me dá um abraço. – Mulher, me dá uma folga.

Houve um tempo no Brasil em que ninguém tinha dinheiro. É hoje.

Quem pede a palavra nem sempre a devolve em condições.

Desfalcada a seleção da Grécia. Acertaram o calcanhar de Aquiles.

Situação internacional é a coisa mais bemeducada que existe. Quanto mais os povos se ofendem, mais delicada ela fica.

Os anatomistas dividem o corpo humano em três partes. Os motoristas de lotação em muito mais.

Boa dona de casa é aquela que, no fim do dia, está com o corpo moído de tanto ver a empregada trabalhar. Os líquidos e os biquínis tomam a forma do corpo que os contém.

Em Brasília quem não é da panelinha é da marmita.

O pára-quedas é o único meio de transporte que, quando enguiça, o sujeito chega mais rápido.

O casamento é como a pessoa que quer tomar um copo de leite e compra uma vaca.

Padre: Meu filho, por que você não aparece na minha igreja? Bêbado: Porque lá é o senhor quem bebe.

Anda tudo tão caro que, hoje, até quem desdenha não quer mais comprar.

O eleitor, obrigatoriamente, tem que ser qualificado. O candidato, não.

A prova de que o balé dá sono na platéia é que os artistas entram sempre na ponta dos pés.

Uma pessoa só pode ter certeza de que está realmente milionária quando os parentes começam a desejar que ela morra.

O caqui não passa de um tomate diabético.

Mesmo que tivesse toda a inteligência que lhes falta, algumas pessoas ainda seriam burríssimas.

É muito fácil fazer linguiça: basta tirar a tripa de dentro do porco e botar o porco dentro da tripa. O porco só é nocivo a quem, em vez de

Há uns casais que se detestam tanto que não se separam só pra um não dar esse prazer ao outro. Espeto é ser professor de geografia no Japão. Toda vez que acontece um terremoto, ele tem que estudar tudo de novo.

Pólvora é uma substância negra muito empregada na demarcação de limites entre as nações. Os homens casadoiros se dividem em três categorias: os polígamos, os bígamos e os chateados.

Na verdade, desde o tempo de Tiradentes que andamos com a corda no pescoço.

O grande erro dos que juntam dinheiro para se casar é que juntam o dinheiro e se casam mesmo.

No Nordeste, a seca é tão braba que são as árvores que correm atrás dos cachorros.

O jipe é o maior esforço feito pelo homem para chegar à mula mecanizada.

O orçamento é um modo de a gente se aborrecer antes e depois das despesas.

Binóculo é aquele instrumento que tem dois olhos numa ponta e a janela da vizinha na outra.

Comprador: ‘Eu gostaria de ver alguns carros de segunda mão realmente bons.’ Vendedor: ‘Eu também’

Tempos de fartura eram os de antigamente. Até os três mosqueteiros eram quatro.

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VIDAS DIVULGAÇÃO

Rubem Alves, pensador de múltiplos talentos P OR P AULO C HICO

Pedagogo. Poeta. Filósofo. Cronista. Escritor. Ensaísta. Teólogo. Psicanalista. Assim era Rubem Alves – ‘Rubem’ mesmo, e não ‘Rubens’, no plural. Apesar do nome em singular, o mineiro nascido em 15 de setembro de 1933 em Dores da Boa Esperança, uma pequena cidade do sul do estado de Minas Gerais, era um ser múltiplo. Por isso mesmo, único. Aos 80 anos, Alves morreu no fim da manhã do dia 19 de julho, em decorrência de falência múltipla de órgãos, segundo o Centro Médico de Campinas (SP). O educador deu entrada no hospital com quadro de insuficiência respiratória devido a uma pneumonia. Ele estava internado desde o dia 10 do mesmo mês, na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Meu pai era rico, quebrou, ficou pobre. Tivemos de nos mudar. Dos tempos de pobreza só tenho memórias de felicidade. Conheci o sofrimento quando melhoramos de vida e nos mudamos para o Rio de Janeiro. Meu pai, com boas intenções, me matriculou num dos colégios mais famosos do Rio. Foi então que me descobri caipira. Meus colegas cariocas não perdoaram meu sotaque mineiro e me fizeram motivo de chacota. Grande solidão, sem amigos. Encontrei acolhimento na reli34

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gião. A religião é um bom refúgio para os marginalizados”, contou certa vez. Tal sentimento de estranheza levaria Rubem a estudar teologia no Presbiteriano do Sul, um dos mais conhecidos seminários evangélicos da América Latina. E isso foi fundamental para forjar o perfil do homem Rubem. Autor de vastíssima obra, com mais de 120 títulos, tornou-se um dos escritores mais célebres da língua portuguesa. Teve livros traduzidos para inglês, francês, italiano, espanhol, alemão e romeno. Em todas as suas formas de atuação, qualquer que seja o idioma, sentimentos como o interesse natural pelo outro, amor e compaixão, foram marcas sempre presentes. “Golpes duros na vida me fizeram descobrir a literatura e a poesia. Ciência dá saberes à cabeça e poderes para o corpo. Literatura e poesia dão pão para corpo e alegria para a alma. Ciência é fogo e panela: coisas indispensáveis na cozinha. Mas poesia é o frango com quiabo, deleite para quem gosta... Busco escrever simplesmente o que me dá na cabeça e no coração, embora ainda me sinta amarrado por antigas mortalhas acadêmicas”. Concluído o seminário, tornou-se pastor de uma comunidade presbiteriana no interior de Minas e se casou com Lídia Nopper, com quem teve três filhos – Sérgio, Marcos e Raquel. Depressa, po-

Em 2010, alguns contos infantis clássicos de Rubem Alves foram adaptados para o universo dos personagens de Mauricio de Sousa.

rém, o pastor tomou consciência de que a sua ousadia evangélica o levava para terrenos difíceis. “Eu achava que religião não era para garantir o céu, depois da morte, mas para tornar esse mundo melhor, enquanto estamos vivos. Claro que minhas idéias foram recebidas com desconfiança”. Em 1963, viaja para Nova York para fazer uma pós-graduação. O Golpe Militar de 31 de março de 1964 o

pega de surpresa, nas vésperas de conclusão do mestrado. Defendida a tese, que tratava da ‘interpretação teológica sobre o significado da revolução no Brasil’, retorna à paróquia de origem, em Lavras. Os próximos anos foram de tensão, devido ao confronto mudo com a ditadura militar. Acusado de ser subversivo, foi listado injustamente entre pastores procurados pelos militares. Como uma espécie de exílio voluntário, aceitou convite para fazer doutorado em Filosofia na Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América do Norte – experiência que durou até 1968. Já doutor, voltou ao Brasil para se despedir da Igreja Presbiteriana e experimentar o desemprego. Em 1969, uma Faculdade do interior (a Faculdade de Filosofia de Rio Claro) acolhe-o. Ali permaneceu até 1974, ano em que finalmente ingressa no Instituto de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde faz a maior parte da sua carreira acadêmica até se aposentar nos primórdios da década de 1990. Ao longo de todo esse tempo, jamais perdeu sua curiosidade. Sempre teve sede de somar e dividir conhecimento. Em 1984, iniciou o curso para formação em Psicanálise. Teve sua clínica até 2004. O contato com os pacientes incrementou seu conteúdo que, transformado em palavras, compôs muitas de suas crônicas sobre o cotidiano. Suas reflexões foram também publicadas em jornais, como na Folha de S.Paulo, da qual foi colunista. Sua mensagem é direta e, por vezes, romântica, explorando a essência do homem e a alma do ser. ‘Ensinar’ é descrito por Alves como um ato de alegria, um ofício que deve ser exercido com paixão e arte. É como a vida de um palhaço que entra no picadeiro todos os dias com a missão renovada de divertir. Ensinar é fazer aquele momento único e especial. ‘Ridendo dicere severum: rindo, dizer coisas sérias’, pregava. Mostrando que esta, na verdade é a forma mais eficaz e verdadeira de transmitir conhecimento. Agindo como um mago e não como um mágico. Não como alguém que ilude e sim como quem acredita e faz crer, que deve fazer acontecer. “Na educação, a coisa mais deletéria na relação do professor com o aluno é dar a resposta. Ele tem que provocar a curiosidade e a pesquisa. Educar não é ensinar Matemática, Física, Química, Geografia, Português. Essas coisas podem ser aprendidas nos livros e nos computadores. Dispensam a presença do educador. Educar é outra coisa. A primeira tarefa da educação é ensinar a ver. Quem vê bem nunca fica entediado com a vida. O educador aponta e sorri – e contempla os olhos do discípulo. Quando seus olhos sorriem, ele se sente feliz. Estão vendo a mesma coisa. Quando digo que minha paixão é a educação estou dizendo que desejo ter a alegria de ver os olhos dos meus discípulos, especialmente os olhos das crianças”, de-


GUILHERME GONÇALVES/ABL

fendia ele. Para este último público, em especial, Rubem dedicou diversos livros infantis, como A Pipa e a Flor e A Volta do Pássaro Encantado. Outros de seus títulos, estes para o público adulto, são Da Esperança (Teologia da Esperança Humana), Protestantismo e Repressão, Por uma Educação Romântica e Variações Sobre a Vida e a Morte. Sobre esta última, chegou a dizer, em entrevista recente: “Eu não tenho medo de morrer... Só tenho pena. A vida é tão boa...”. Como escritor, foi premiado em 2009 com o Jabuti na categoria Contos e Crônicas, assim como recebeu a Menção Honrosa e Excelência em publicação de religião Transparencies of Eternity, em 2012. Em 2013, recebeu o prêmio PNBE – O Educador que queremos, pelo conjunto da obra. Em Campinas/SP, cidade onde morava há décadas, mantinha o instituto que leva seu nome. Além de conservar o acervo do escritor, o Instituto Rubem Alves tem como missão desenvolver programas de apoio e assistência aos educadores; atividades de interação com programas governamentais; cursos e oficinas de cultura e literatura, e produzir materiais de apoio didático. Espécie de fundador da escola que propunha uma reflexão social sobre a teologia, influenciou várias gerações de pensadores. “Conheci Rubem Alves quando ainda atuava como teólogo. Não que tivesse deixado a teologia. Mas ele ampliou seus saberes e sua reflexão sobre o curso da vida e do mundo. Fatores que o tornaram mais que um teólogo. Transformou-se em mestre com pontos de vista originais sobre os mais diversos assuntos. Ele sabia falar poeticamente do prosaico e prosaicamente do poético. No seu mais profundo, Rubem era um poeta. Poeta peregrino pelos vários percursos da vida. E ser poeta é ser elevado à altura do Divino. Pois só Deus e os poetas criam de verdade. Rubem era um poeta criador de sentidos, de imagens e de metáforas que tornam significativa nossa passagem por este mundo. Seus textos comunicam uma aura benfazeja”, disse o amigo e escritor Leonardo Boff, outro expoente da Teologia da Libertação. O corpo do escritor foi velado na Câmara de Vereadores de Campinas, na noite do dia 19 e manhã de 20 de julho. Rubem teve atendido seu pedido de que, depois de cremado, suas cinzas fossem jogadas embaixo de um ipê amarelo. No lugar de discursos ou rezas, no velório foram lidos textos de seus poetas preferidos, como Cecília Meirelles e Fernando Pessoa. A cremação ocorreu no Crematório Primavera, em Guarulhos, em cerimônia reservada apenas a familiares, além de amigos. Estes últimos, por certo, representam, aos milhares, aquilo que Rubem mais soube cultivar em oito décadas de vida.

Ivan Junqueira, poeta e tradutor P OR P AULO C HICO

O mês de julho foi de baixas na cultura nacional, em especial na Academia Brasileira de Letras. Uma delas foi o falecimento, aos 79 anos, de Ivan Junqueira, ex-Presidente da ABL. Ocupante da cadeira de número 37, para a qual foi eleito em 2000, em substituição a João Cabral de Melo Neto, o acadêmico morreu no dia 3 de julho no Hospital PróCardíaco, em Botafogo, Zona Sul do Rio, onde estava internado há um mês – vítima de insuficiência respiratória. No mesmo dia, o corpo do escritor foi velado no Salão dos Poetas Românticos, no Petit Trianon da ABL, até às 15h. Depois, foi sepultado no mausoléu da Academia, no Cemitério São João Batista, também no bairro de Botafogo. Poeta, ensaísta, tradutor e crítico literário, vencedor de importantes prêmios como o Jabuti de poesia por A Sagração dos Ossos (editado pela Civilização Brasileira, em 1994) e O Outro Lado (Record, 2007), Junqueira completaria 80 anos em novembro. Para marcar a data, que coincide com seus 50 anos de carreira literária, sua editora atual, a Rocco, estava planejando a publicação de dois livros inéditos do autor: Reflexos do Sol Posto, coletânea de ensaios; e Essa Música, de poemas. Ambos os lançamentos foram confirmados ainda para este ano. Também em ocasião de seus 80º

aniversário, a Editora Nova Fronteira programou a edição de bolso da premiada tradução dos poemas de T. S. Eliot, de 1981, que mereceu dez edições. Outras obras de Ivan, como Testamento de Pasárgada (2003), antologia crítica da obra poética de Manuel Bandeira, estão no prelo para ganhar novas edições. Nascido no Rio de Janeiro em 3 de novembro de 1934, Ivan Junqueira estudou Medicina e Filosofia na antiga Universidade do Brasil (atual UFRJ), sem concluir nenhum dos dois cursos. Em 1963, começou a trabalhar como jornalista na Tribuna da Imprensa, tendo ainda passado pelas Redações do Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Globo. Como crítico literário e ensaísta, colaborou em todos os grandes jornais e revistas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, bem como em publicações especializadas nacionais e estrangeiras. Sua poesia foi traduzida para o espanhol, alemão, francês, inglês, italiano, dinamarquês, russo e até para o chinês. Foi colaborador das enciclopédias Barsa, Britannica e Delta Larousse, entre outras, além do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, editado pela Fundação Getúlio Vargas. Na Funarte, foi editor da revista Piracema e chefe da Divisão de Texto da Coordenação de Edições, tendo se aposentado no serviço público em 1997. Na Fundação Biblioteca Nacional, foi editor-adjunto e depois editor executivo

da revista Poesia Sempre, no período de 1993 a 2002. Traduziu obras literárias de autores como Jorge Luis Borges, Charles Baudelaire e Marcel Proust, além de peças de teatro como A Tempestade, de William Shakespeare, e Os Justos, de Albert Camus. Atual Presidente da ABL, Geraldo Holanda Cavalcanti lamentou o falecimento do colega. “A morte de Ivan Junqueira é uma grande perda para a Academia. Acadêmico exemplar, ele engrandeceu a Casa à qual serviu durante 14 anos com exação, competência e dedicação. Grande poeta, mestre indiscutível nas artes do ensaio crítico e da tradução literária, deixa um legado que enriquece a nossa tradição e a história literária do Brasil”, resumiu, em nota oficial. O poeta Alexei Bueno, por sua vez, disse que o Brasil perdeu um de seus maiores autores. “Além disso, Ivan era um tradutor de poesia extraordinário, um crítico de fineza rara. Eu perdi um dos meus maiores amigos. São mais de 20 anos de amizade, é muito triste. Perdemos um homem extremamente espirituoso, de humor afiadíssimo, apesar de ter fama de ser fechado”. A escritora Nélida Piñon também se manifestou. “Ivan nos deixa uma lição de comportamento cívico. Era um homem de bem, um brasileiro íntegro que, embora fosse um grande admirador da pátria, não se eximia do senso crítico em relação ao Brasil. Ele deixa saudade pelo intelectual de grande porte que foi”. A morte foi lamentada por Arnaldo Niskier. “Na biografia de Ivan consta, com destaque, o período em que foi um dedicado e competente Presidente da ABL. Nos anos de 2004 e 2005 revelou-se como administrador, a ele se devendo uma ativação inusitada das conferências, além de uma alentada programação de novos livros, dando vida intensa às nossas diversas coleções. Lembrou, na época, o estilo de fazer dos seus tempos de Biblioteca Nacional, quando editou a insuperável revista Poesia Sempre. Era uma referência como publicação de um apurado gosto literário, além da excelência do seu aspecto gráfico. Ivan Junqueira será sempre lembrado pela sua figura profundamente humana, mas também pelos livros que deixou e os próximos que se encontram nas gráficas”. O acadêmico completa: “Ivan fará muita falta à ABL. Não só pela qualidade da sua produção literária, mas também pela preciosa característica da Casa de Machado de Assis, que é a do convívio pleno. Ele era de uma impressionante assiduidade, até mesmo nos momentos em que não queria se render à precariedade da sua saúde. Quando perguntei à sua esposa, depois de 29 anos de companhia, qual a impressão mais forte que Ivan lhe deixara, a sua resposta emocionada foi pronta, testemunhada pelo Presidente Geraldo Holanda Cavalcanti: ‘Foi a paixão pelos amigos. Ele não tinha meias amizades’, disse ela”, pontua. Junqueira deixa viúva a jornalista e escritora Cecília Costa Junqueira, com quem teve o filho Otávio. Ele também deixa os quatro filhos do primeiro casamento: Suzana, Rafael, Raquel e Eduardo. E uma profícua obra que, como destacado por Niskier, “jamais será esquecida”.

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Durante a Copa, faltas graves contra a liberdade de informação

Imagens do protesto

Um vídeo de dois minutos publicado no YouTube pelo jornal A Nova Democracia revela o momento em que o cinegrafista Jason O’Hara cai no chão enquanto um grupo de policiais passa por perto. Um dos PMs vem andando e chuta o rosto e o equipamento do profissional, que fica sem entender a atitude. Pelo menos cinco militares acompanharam a ação do agressor e continuaram andando. O filme tem um corte, mostra alguém

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro-SJPMRJ divulgou, em 14 de julho, um balanço com o número de jornalistas e comunicadores agredidos na cidade desde maio de 2013. O relatório foi atualizado após o incidente ocorrido um dia antes da final realizada no Maracanã, em que pelo menos 15 profissionais sofreram violências enquanto cobriam protestos contra a Copa, realizados na Praça Saens Peña, na Tijuca, Zona Norte do Rio. De acordo com o documento, as forças de segurança pública são responsáveis por 68% dos casos registrados. Dos 105 casos registrados pelo Sindicato, 29% foram praticados por manifestantes e 3% ocorreram por outros, como seguranças e acusados de corrupção em reportagens. “Sabemos que os números podem ser ainda maiores, dada a escassez de registros formais de agressões contra profissionais de imprensa e comunicadores”, disse o SJPMRJ por meio de nota. Segundo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo-Abraji, entre a Abertura e o Encerramento do Mundial, nos dias 12 de junho e 13 de julho, foram contabilizados 38 casos em todo o País de prisões, agressões e detenções envolvendo 36 profissionais da comunicação durante a cobertura de manifestações. O protesto de domingo no Rio de Janeiro teria concentrado o maior número de ocorrências.

Fotógrafo é agredido pela Polícia Militar em manifestação na Praça Saens Peña, no Rio de Janeiro.

sendo socorrido e, depois, um homem, identificado como Jay, dizendo que teve sua câmera GoPro roubada pelas autoridades. “Fui roubado por policiais. Eles estão aqui para me proteger, mas me roubaram”, disse. Já o repórter fotográfico do Portal Terra, Mauro Pimentel, conseguiu registrar quando PMs lançaram golpes com cassetete. Ele foi atingido por três policiais no rosto e na perna. “Eles gritaram: ‘Para trás, para trás’, começaram a bater e jogaram o spray de pimenta. Só que eu estava de máscara e continuei fotografando. Foi quando um PM me deu um chute na perna esquerda. Outro policial me segurou e me empurrou para trás. Só vi o cassetete no meu rosto. O filtro quebrou e a máscara trincou, mas segurou bem a pancada. Se estivesse sem aquela máscara fechada e o capacete estaria, no mínimo, com o nariz quebrado”. Pimentel informou que estava identificado como imprensa, usando capacete com adesivo do Portal Terra e crachá. “Não tinha como fazer confusão”, garantiu. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro condenou as agressões e afirmou que “o Estado brasileiro e o governo

estadual do Rio de Janeiro ignoraram direitos individuais e coletivos de brasileiros e visitantes, assim como cassaram a liberdade de expressão e a de imprensa”. “Tais práticas de Estado caracterizam grave ofensa à categoria e prejudicam a sociedade como um todo. Sem o respeito ao direito à informação, não há garantia de liberdade ou de democracia”, explicou a entidade em texto. A Polícia Militar do Estado determinou a prisão administrativa de quatro policiais suspeitos de agressão e roubo durante os protestos no Rio de Janeiro contra a Copa do Mundo, ocorridos em 13 de julho. Pelo menos 15 profissionais de imprensa foram atacados por PMs na região da praça Saens Peña. Os acusados são soldados e ficarão presos no Batalhão de Policiamento de Grandes Eventos, por ordem do comandante da unidade. Um soldado é suspeito de agredir o cinegrafista canadense Jason O’Hara. Outro é suspeito de ter roubado uma câmera do jornalista canadense. Um terceiro soldado é suspeito de agredir o repórter fotográfico do Portal Terra, Mauro Pimentel. As fotos do jornalista mostram o momento em que o suspeito o agrediu com um cassetete.

Para ONG internacional, jornalistas são os grandes derrotados P OR I GOR W ALTZ

A Ong Repórteres Sem Fronteira-RSF divulgou um comunicado no dia 18 de julho, em que contabiliza 38 jornalistas brasileiros e estrangeiros atacados por policiais e manifestantes durante a Copa do Mundo, entre 12 de junho e 13 de julho de 2014. A organização realiza uma campanha em defesa da liberdade de imprensa no Brasil. Em nota intitulada “Jornalistas são os grandes perdedores da Copa do Mundo”, a RSF afirma que o dia mais violento do Mundial foi o da final, entre Alemanha e Argentina, no Rio de Janeiro (RJ). Segundo a Ong, foram registra36

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ABI critica violação de direitos durante a Copa

dos 15 ataques a jornalistas cobrindo protestos e confrontos com a polícia na capital fluminense. A RSF cita o fotógrafo canadense Jason O’Hara e a repórter da Reuters, Ana Carolina Fernandes, além de Felipe Peçanha e Karinny de Magalhães, do Midia Ninja, entre as vítimas da violência. “Apesar das promessas do governo, os jornalistas não podem sempre contar com a proteção que eles deveriam receber do Estado”, declarou Camille Soulier, chefe da divisão das Américas da Ong. “Solicitamos às autoridades que os atos de violência contra jornalistas por parte de membros da polícia militar não permaneçam im-

punes”, disse Camille Soulier. “Apesar das promessas do governo, os jornalistas nem sempre podem contar com o Estado para a criação de um mecanismo de proteção em nível nacional.” No final de julho, Christophe Deloire, secretário-geral da RSF, se encontrou com assessores da Presidência da República, em Brasília (DF). Os membros do governo disseram que as forças policiais são treinadas para lidar com manifestações pacíficas, mas que não têm controle direto sobre a polícia militar de cada estado. Foi dito ainda que uma entidade pública será criada para monitorar casos de violência contra jornalistas.

A ABI classificou como inaceitável as violações contra a ordem democrática que ocorreram na esteira da Mundial da Fifa. No dia 12 de julho, 28 pessoas, entre jornalistas, radialistas e midialivristas, foram detidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, durante a operação “Firewall 2”, por sua participação em movimentos sociais e, supostamente, por ‘formação de quadrilha’. No dia seguinte, durante a partida final da Copa, a Polícia Militar do Rio reprimiu violentamente uma manifestação e agrediu profissionais de comunicação que cobriam o episódio. A ABI coloca os advogados da entidade à disposição da radialista Joseane Freitas que se encontra detida no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, como se representasse ameaça à sociedade. A Associação, que teve atuação destacada contra a ditadura militar nos anos 1964-1985, exige o respeito aos direitos democráticos constitucionais, que incluem a livre manifestação, e exige a imediata apuração dos responsáveis pelas agressões aos profissionais de comunicação. Tarcísio Holanda, Presidente da entidade, criticou a atitude das autoridades: “Não é possível que o Governo do Estado do Rio e a Presidência da República não tomem providência alguma contra os atos autoritários e arbitrários. O aparato policial vem tradicionalmente investindo contra jornalistas, que estão ali para fazer seu trabalho. Isso é inaceitável”, afirmou o jornalista. Holanda acredita que tais atos são uma ameaça à democracia. “Sem a liberdade de expressão e livre opinião, a ordem democrática está ameaçada”, defende. “Essas prisões são arbitrárias e nos remetem ao pior período dos Anos de Chumbo. A polícia prende a jornalista, mas, em certo momento, deixa escapar o Al Capone que comandava o esquema de ingressos da Copa”, completou Domingos Meirelles, Diretor da ABI. No dia 15 de julho, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro conseguiu uma liminar em habeas corpus em favor da radialista Joseane Freitas, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).


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