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COMO O BICHO SE TORNOU DONO DO CARNAVAL DO RIO Comendo pelas beiradas, com a cumplicidade da Prefeitura, a entidade dos bicheiros implantou seu monopólio nos desfiles do samba. PÁGINA 3

387 FEVEREIRO 2013

ÓRGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

PEPÊ SCHETTINO

PÁGINA 12

TEIXEIRA HEIZER: “EU ABRI MEU CAMINHO A SOCOS” E há 60 anos está nele. PÁGINAS 36

JOSÉ ARMANDO VANNUCCI: A JOVEM PAN SEM SEGREDOS PÁGINA 18

VIDAS FERNANDO LYRA • FRITZ UTZERI • GERALDO GALVÃO FERRAZ • JOSÉ ÂNGELO • CARLOS FELIPPE • CARLOS ALEXANDRE AZEVEDO


EDITORIAL

DESTAQUES

ALCYR CAVALCANTI

ZÉ CARIOCA, 70 ANOS EM 2013. PÁGINA 28 EDITORA ABRIL

03 ESPECIAL - Como o bicho se apossou do filé mignon do Carnaval do Rio ○

08 C ARNAVAL - O bloco da cobertura pede passagem ○

09 R EFLEXÕES - O Estado assassino, por Rodolfo Konder ○

11 A LÍVIO - PGM encerra litígio de 19 anos com a ABI ○

12 DEPOIMENTO - Wilson Figueiredo ○

18 DEPOIMENTO - José Armando Vannucci ○

23 OPINIÃO - Ramificações republicanas, por Fábio Lucas ○

26 L ANÇAMENTO - O doce retrato de uma víbora ○

28 PERSONAGEM - O nosso Zé Carioca, agora setentão ○

30 R ÁDIO - Bendita FM Maldita ○

32 LIVROS - Fotojornalismo épico ○

Djalma, que foi presidente da Escola de Samba Mangueira (sentado), toma conta de um ponto de bicho na porta da Secretaria de Fazenda.

33 L IVROS - A música brasileira, de Darius Milhaud a Luiz Gonzaga ○

INFECÇÃO MORAL

36 DEPOIMENTO - Teixeira Heizer, 80 anos ○

39 E NSAIO - A morte dos vespertinos, há 50 anos ○

42 I MPRENSA - A História que o JT inventou ○

A SOCIEDADE DO RIO DE JANEIRO, e por extensão a do próprio País, habituou-se a considerar natural a presença na organização dos desfiles das grandes escolas de samba do Rio dos comandantes do jogo do bicho, que passaram a deter nesse evento do Carnaval carioca um poderio que excede em muito aqueles desfrutados por figuras que se incorporaram à mitologia da vida carnavalesca da Cidade, como Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela. POR PARTE DOS CHEFÕES DA contravenção tudo se fez de caso pensado, pois a projeção que conquistaram como supostos benfeitores das escolas de samba deu-lhes trânsito fácil junto à mídia, os meios de comunicação nem sempre atentos às normas de ética e moral social, e com isso asseguroulhes o apreço do conjunto da sociedade e, de quebra, homenagens indevidas das autoridades públicas. Não vai longe o tempo em que ocupantes dos primeiros escalões da Prefeitura persignavam-se diante dos estandartes das escolas exibidos pelos chefões que as comandavam. É recente a lembrança disso, que perdurou até que uma magistrada de extrema coragem, a Juíza Denise Frossard, deu um alto-lá e decretou a prisão dos mais destacados capi por delitos que, longe de se limitar à contravenção, compunham extenso elenco de práticas contrárias à lei. 2

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ALÉM DE DAR FOROS DE legitimidade a esses personagens, a transigência com que estes foram tratados promoveu intolerável subversão, com a transferência do poder da administração pública para os dirigentes alçados ao primeiro plano das decisões. A organização do Carnaval deixou de ser direito e encargo da empresa especializada do Município para essa área, a Riotur, e se tornou uma incumbência da Liga Independente das Escolas de Samba-Liesa, a entidade criada pelos bicheiros, a qual foi investida ao longo dos anos, com a cumplicidade da Prefeitura, de poderes que a lei não lhe confere. Com isso sofreram danos irremediáveis os aspectos culturais presentes nas escolas de samba, como assinala em entrevista ao Jornal da ABI um eminente estudioso, o Professor Ivan Cavalcanti Proença, e a isenção nos julgamentos, que desde então favorecem as agremiações dirigidas pelo diminuto círculo de chefões de fato da Liesa. A VITÓRIA DE UMA ESCOLA de raiz no desfile de 2013 do Grupo Especial, a Unidos de Vila Isabel, de Martinho da Vila, não obscurece a gritante realidade que a Cidade do Rio de Janeiro enfrenta: estamos diante de uma infecção moral, uma aberração neste momento em que a sociedade clama em todo o País por moralidade e respeito à ética em todos os campos da vida nacional.

O ESTADO DE S.PAULO

MAURÍCIO AZÊDO

JORNALEIRO VENDENDO O JORNAL DA TARDE EM 1969. PÁGINA 42

SEÇÕES 0 A CONTECEU NA ABI 10 Margarida Pressburger é homenageada ○

11 Ases do atletismo dizem não ao fim do Estádio Célio de Barros ○

24 L IBERDADE DE I MPRENSA Linha do tempo mostra casos de censura no País ○

25 D IREITOS H UMANOS GT de Direitos Humanos realiza sua primeira reunião ○

Comissão da Verdade já identificou 50 agentes que participaram da repressão ○

25 CARTAS DOS LEITORES ○

VIDAS 44 Morrer aos poucos ○

45 Fernando Lyra, o homem que aboliu a censura ○

46 O jornalismo sem barreiras de Geraldo Galvão Ferraz ○

46 Carlos Felippe, José Ângelo ○

47 Fritz Utzeri, a luta perdida ○


VLADIMIRPLATONOW/ABR

ESPECIAL

COMO O BICHO SE APOSSOU DO FILÉ MIGNON DO CARNAVAL DO RIO A Liga Independente das Escolas de Samba-Liesa, entidade criada pelos poderosos banqueiros do jogo do bicho, tornou-se a dona de um negócio que já em 2007 rendia 100 milhões de reais, equivalentes a US$ 50 milhões na cotação atual do dólar: um dos mais rentáveis espetáculos do mundo. P OR A RCÍRIO G OUVÊA N ETO E E DUARDO S Á

A VINCULAÇÃO DA LIESA COM OS CHEFÕES DO BICHO Há algo de podre no reino do samba. Pelo menos na parte do reino que abrange a região da Rua Marquês de Sapucaí, mais precisamente do Sambódromo, onde acontecem desde 1984 os desfiles dos Grupos Especiais e de Acesso das escolas de samba do Rio de Janeiro. E um dos exemplos que justificam a afirmação shakeasperiana feita acima e a deterioração de um dos maiores patrimônios culturais da Cidade Maravilhosa foi a invasão à sede da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) por uma equipe da Corregedoria da Polícia Civil, na operação denominada Dedo de Deus 2, ocorrida pouco antes do Carnaval.

Na sala do Presidente da entidade, Jorge Castanheira, agentes cumpriram mandados de busca e apreensão e recolheram documentos que comprovam a atuação de oficiais da Polícia Militar na segurança interna do Sambódromo no ano passado, contrariando uma portaria do Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, que proíbe policiais civis e militares de trabalharem no controle do acesso à Passarela do Samba. Os nomes dos oficiais – seis coronéis, cinco majores e um capitão – aparecem nos documentos levados pelos corregedores da Polícia Civil como coordenadores e supervisores de segurança da MJC Eventos, uma prestadora de serviços à Liesa. O Delegado Glaudiston Galeano, que comandou a operação, frisou que a Liesa

não é alvo da polícia, mas um local provável para a localização de informações importantes para dar prosseguimento às investigações sobre o jogo do bicho no Estado do Rio de Janeiro “Os capos que controlam – disse – o jogo têm como tradição serem patronos de escolas de samba, que, por sua vez, se submetem à dominação da Liesa. Nosso objetivo era encontrar documentos que possam comprovar envolvimento dessas pessoas com o jogo do bicho”. Em dezembro do ano passado, a Justiça do Rio de Janeiro já havia decretado mais uma vez a prisão da cúpula do jogo do bicho. A Juíza Ana Paula Vieira de Carvalho pediu a prisão de Ailton Guimarães Jorge, de Anísio Abraão David, o Anísio da Beija-Flor, e de Antonio Petros Kalil. Eles foram condenados por corrupção de magistrados e agen-

tes federais e também por formação de quadrilha. No entanto, o primeiro julgamento neste caso foi anulado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Na Operação Dedo de Deus, policiais chegaram a descer de rapel de um helicóptero na cobertura de Aniz Abraão David, apontado pela Polícia como banqueiro do jogo do bicho, em Copacabana, na Zona Sul. Ele não estava em casa. Um mês depois, Anísio foi preso por policiais civis em frente a um laboratório médico, na esquina da Rua Joaquim Nabuco com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Ele não participou neste ano de 2013 do desfile da Beija-Flor, como faz desde que a escola conquistou o primeiro título no Grupo Especial, em 1976, por se encontrar em prisão domiciliar.

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ESPECIAL COMO O BICHO SE APOSSOU DO FILÉ MIGNON DO CARNAVAL DO RIO

Explicações à parte, não se pode deixar de tocar em um assunto que se transforma, pela sua cortina de mistério e silêncio, em uma experiência constrangedora e desgastante para quem tenha a incumbência de entrar nesse reino obscuro e indecifrável das relações entre a Liesa e a Riotur. É que as informações são sempre omitidas, contraditórias e envoltas numa auréola de algo intocável e nebuloso como se estivéssemos lidando com os proibidos e sacrílegos casos de heresia da Idade Média, tendo que passar sempre pelo crivo atento e sagaz da Santa Inquisição. É difícil a apuração dos números, dos balanços e borderôs da venda de ingressos, dos contratos de publicidade e transmissão da TV Globo, dos direitos de imagem, das verbas públicas e privadas, de onde todo esse montante, materializado em milhões e milhões de reais, vem e vai, qual o caminho que segue em seu destino secreto. Parece estarmos cometendo um crime quando falamos sobre o assunto com alguém dessas duas entidades. 4

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ALCYR CAVALCANTI

O MISTÉRIO DOS BORDERÔS E BALANÇOS

ALCYR CAVALCANTI

Mas talvez um detalhe seja mais significativo que a apreensão dos documentos na Liesa e deixa evidente um fato sempre negado e contestado pela direção da entidade: a de que seus integrantes não mantêm nenhuma ligação com o jogo do bicho. Foi a descoberta, quase por acaso, de uma carta escrita à mão e encontrada sobre uma mesa, em uma das salas da Liesa, endereçada ao Presidente Jorge Castanheira, na qual o autor, que assina como João Luiz, pede a intervenção do presidente para favorecê-lo em uma questão com os bicheiros José Caruzzo Escafura, conhecido como Piruinha, e Antônio Petrus Kalil, oTurcão. A carta faz uma revelação contundente: “O senhor e os demais contraventores, exceto o senhor José Escafura, que há anos não respeita e nem faz valer a regra da máfia...”. O texto não deixa dúvidas da parceria. No entanto, a ligação com o jogo ilegal de dirigentes da Liesa não pára por aí; os policiais da Corregedoria da Polícia Civil vasculharam outros 13 endereços no Centro do Rio e encontraram numa central de apuração do jogo do bicho, pertencente ao contraventor Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães (um dos torturadores do regime militar), sete contas de energia elétrica em nome de Castanheira. O que evidencia que o Presidente da Liesa pode ter tido faturas suas pagas por Guimarães. Por sua vez, Jorge Castanheira critica as insinuações de que estaria agindo em conluio com a contravenção na direção da Liesa e diz que entrou na entidade há 28 anos como auxiliar de serviços gerais e que no cargo que exerce recebe cartas sobre os mais variados assuntos. Disse ainda que, por desconhecer a portaria da Secretaria de Segurança, solicitou à MJC que utilizasse nos serviços de acesso ao Sambódromo oficiais da reserva da PM, em função da experiência que possuem. E sobre as contas de luz em seu nome afirmou que de 1987 a 1995 teve uma sala no Rio onde funcionava a Liesa.

Agentes da Polícia Federal cumprem mandados de busca e apreensão na sede da Liesa: Documentos comprovam atuação de oficiais da Polícia Militar na segurança interna do Sambódromo no ano passado, o que é proibido.

“Quanto fatura a Liesa com o Carnaval por ano? Vocês têm esses números aí? Existe uma planilha, um borderô relativo ao evento? Certamente, deve existir ”. Em meio ao claro incômodo que a pergunta provoca, alguém nos chama de lado e quase em sussurro, pedindo para não citar seu nome, revela que um tal Heron que tem um escritório na Rua da Assembléia, 25 e que trabalhou na organização da venda de ingressos da Riotur teria informações a respeito. Ao procurarmos o tal endereço descobrimos que ele não existe. Esse quadro nada carnavalesco pode ser exemplificado no e-mail por mim recebido do jornalista Eduardo Sá, que colaborou nesta reportagem: “Arcírio, pelo tratamento que venho recebendo da Liesa e Riotur, a respeito de algumas perguntas e pedidos de entrevistas feitos por mim, estou desconfiado de que estou sendo enrolado e jogado para escanteio”. E por que tem que ser assim? É a pergunta que pede para ser feita, quase exige que seja feita, de tão evidente que é. Principalmente quando se imaginam os motivos que fazem a Liesa dominar há cerca de 18 anos o Carnaval carioca desde os mínimos detalhes, passando pelos médios e maiores, até explodir no megaevento de luxo, glamour, sensualidade e muito dinheiro do desfile das escolas de samba do Grupo Especial. Na verdade, tudo está sob o controle da Liesa, desde a iluminação até a arrecadação e venda de ingressos, assim como o som e tudo o mais que esteja ligado ao evento. E esse monopólio, tendo sempre no comando pessoas reconhecidamente ligadas ao jogo do bicho, começou em 1995. Tentando mudar esse cenário clandestino de organização de um evento que é um dos símbolos da cultura nacional, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, buscou por diversas vezes criar uma concorrência pública para a organização dos desfiles, fora dos tentáculos da Liesa, porém, inexplicavelmente, não conseguiu. E desde 2010 a proposta de licitação pública não pas-

sa de uma alegoria e vem recebendo nota baixa nos quesitos evolução e harmonia. O Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro chegou a intervir nesse processo da licitação, fazendo exigências que considera cabíveis em procedimentos dessa natureza. E em razão disso, a concorrência teve que ser revista e acabou não acontecendo para não atrasar o cronograma do desfile daquele ano. Em 2009, a Justiça chegou a bloquear os bens do ex-Prefeito e atual Vereador César Maia, por ele ter contratado os serviços da Liga pela quantia de R$ 5,3 milhões. Persistindo no tema, o Prefeito Eduardo Paes afirmou este ano, durante o desfile da noite de sábado das escolas de samba do Grupo de Acesso, no Sambódromo, que vai tentar uma nova licitação pública para organização do Carnaval carioca, fora da área de controle da Liesa. Paes lembrou que, por três vezes, tentou buscar atrair interessados, mas não apareceram candidatos. Ele acrescentou que só não tentou fazer uma licitação no ano passado por restrições do calendário eleitoral. Jornalista esportivo da Rádio Tupi, compositor de samba-enredo da São Clemente e aficionado por Carnaval, Eugênio Leal declara que falar sobre o que se passa nos bastidores da organização dos desfiles da Marquês de Sapucaí “parece assunto proibido”. E prossegue com seus comentários, comentários feitos por quem conhece e vive no samba (juntamente com o futebol) 365 dias do ano: “Ninguém comenta nos fóruns, nenhum dirigente se pronuncia. Engraçado, porque a licitação que o Prefeito Eduardo Paes pretende fazer para administrar o desfile das escolas de samba é o tema mais importante do momento neste nosso universo carnavalesco.” Leal continua: “Desde que Cesar Maia assumiu a prefeitura, em 1993, o Governo municipal repassou à Liesa toda a organização do evento, de tal forma que a entidade passou a ser a ‘dona’ do Carnaval. Mas creio que esta era pode estar chegando ao fim. Não se sabe ainda o que os burocratas da Prefeitura estão preparando para o edital

que vai reger este novo momento do Carnaval carioca. Eles podem propor uma mudança radical ou apenas inserir mais um ‘personagem’ na festa.” Sempre defendi que o Poder Público tivesse um papel mais atuante nessa festa. Não que ele precise ‘colocar a mão na massa’, mas é fundamental que cumpra uma ação reguladora e fiscalizadora. É preciso que a Prefeitura (que na última análise deveria ser o poder do povo) determine como deve ser a festa, definindo diretrizes e filosofias. E que mantenha uma relação profissional com o contratado, cobrando resultados e analisando as contas do evento. Essa particularidade é de suma importância.”

“É NECESSÁRIO REPENSAR TUDO” “Há muita coisa a ser feita para a melhoria do nosso Carnaval. Tanto no aspecto artístico quanto no operacional. Uma parte depende da Prefeitura e outra das escolas de samba. Algumas destas questões foram levantadas por parlamentares nas comissões instauradas tanto na Câmara de Vereadores quanto na Assembléia Legislativa do Estado. Só que tais comissões não resolveram nada e não parecem interessadas em resolver ”, diz Leal. “É preciso que se discuta publicamente o número de escolas em cada grupo e quantas sobem e descem após o desfile, que se debata a constituição dos júris e o formato da avaliação dos desfiles; que se repense o desfile das campeãs que um dia já teve até os blocos e hoje é visto como uma festa VIP das grandes escolas; que se reveja a distribuição de verba pública entre as agremiações de diferentes grupos e que se planeje uma maneira de novamente popularizar junto ao carioca a cultura das escolas de samba.” “Por outro lado, se faz urgente a revitalização do sambódromo e de seus arredores. As áreas de armação e dispersão são vergonhosas. Sujas, mal iluminadas e perigosas, as ruas que cercam a passarela representam perigo para desfilantes, turistas e prestadores de serviço. Não há sinalização (ou é pouca) nos acessos e as distâncias para quem erra o caminho são gigantescas. Lá dentro quem paga caro por um ingresso senta no concreto e corre o sério risco de sair encharcado em caso de chuva (mesmo os que estão nas frisas). Os bastidores dos camarotes também não refletem o glamour de quem gasta fortu-


DIVULGAÇÃO

CARLOSMAGNO

Cabral (esquerda) e Freixo querem tirar a cúpula do jogo do bicho da organização dos desfiles das escolas de samba.

nas para ter mais conforto no ‘maior espetáculo da Terra’. As instalações para a imprensa então... melhor nem comentar.” “Aconteça o que acontecer, é bom lembrar que Liesa, Lesga e AESCRJ vão continuar exercendo papel importante no evento. Elas são as representantes das escolas e vão continuar gerenciando a execução dos desfiles. O que pode acontecer é a entrada de uma terceira empresa para dar um cunho oficial ao Carnaval realizado pelas escolas de samba e trabalhar verbas publicitárias. O que urge acontecer é um situação de mais transparência, pois do jeito que está é que não pode continuar.” “A mudança pode, e deve, ser para melhor. Mas também corre o risco de trazer novos problemas. Afinal, quem entrar vai encarar tudo como um grande negócio exacerbando o caráter mercadológico do qual nós já reclamamos hoje em dia. Por isso, é fundamental que nós, amantes do samba e das nossas escolas, discutamos, debatamos e façamos ver à Prefeitura que ela pode e deve inserir neste edital maneiras de proteger o caráter cultural e popular do Carnaval. A melhor maneira eu não sei qual é, mas se cruzarmos os braços estaremos deixando passar uma oportunidade de ouro de melhorar a nossa festa e, quem sabe, deixando passar sob nossos olhares o decreto para a morte definitiva da maior manifestação cultural do País – e, junto com o futebol, nossa maior paixão.”

AS IDÉIAS DE CABRAL E FREIXO O Governador Sérgio Cabral também se manifestou publicamente sobre a desvinculação da organização dos desfiles das escolas de samba com a cúpula do jogo do bicho: “No Carnaval carioca, a gente precisa cada vez mais tirar esses patronos das escolas da organização dos desfiles. Não resta dúvida de que no desfile, eles são profissionais, mas a gestão administrativo-financeira também tem que ser, para que não fique respondendo a alguém ligado a uma atividade ilegal. Precisamos realmente dar um cunho mais oficial a essa festa maravilhosa da cultura de nossa gente”, concluiu. O Deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ) causou polêmica no mundo do samba e no meio político durante sua campanha à Prefeitura do Rio ao propor que a Secretaria Municipal de Cultura assuma o controle do Carnaval no Sam-

bódromo e só aprove financiamento de enredos de escolas de samba com contrapartida cultural. Ao defender a idéia, ele criticou o enredo de 2013 do Salgueiro, que trata de fama e celebridades e teve o patrocínio da revista Caras. A iniciativa foi interpretada por alguns como censura, mas vêm de Carnavais passados os questionamentos de sambistas aos enredos patrocinados, que, segundo eles, descaracterizam a tradição e tiram a originalidade dos temas. Freixo ainda prometeu, caso fosse eleito, retirar o controle do Carnaval na Marquês de Sapucaí da Liga Independente das Escolas de Samba. Nas escolas de samba as declarações do deputado Marcelo Freixo foram mal recebidas, mas ele teve o apoio do carnavalesco Fernando Pamplona, responsável por uma mudança histórica nos desfiles das grandes escolas, na década de 1960 e por apresentar enredos inovadores que deram vários campeonatos para o Salgueiro. Ele defendeu Freixo: “As escolas se vendem muito barato para os patrocinadores. Entregaram tudo para a Liesa, que faz o que bem entende, inclusive com os contratos comerciais. A coisa entrou numa comercialização tão grande que há cinco ou seis anos eu não vejo mais Carnaval. Que façam essa festa com responsabilidade, transparência e com cunho cultural para resgatar o desfile das escolas de samba, momento único de nosso Carnaval”. O jornalista e letrista de samba Fabio Fabato também saiu em defesa do Deputado Marcelo Freixo e da volta aos enredos desvinculados de contratos comerciais: “A partir de agora, só vamos assistir a enredos sobre Caras, Rock in Rio, Cuiabá, Coréia do Sul, cavalo Manga Larga, Campanha pelo Petróleo? Para mim, tem que ser o seguinte: exaltação direta ou indireta a uma marca, caso de iogurte, por exemplo, não deveria receber dinheiro — disse Fabato, ao lembrar o desfile da Porto da Pedra, que foi rebaixada em 2012, após levar o “iogurte” para a Sapucaí. O que está acontecendo é um absurdo e um retrocesso histórico. Está na cara que não teremos mais os enredos históricos e a Sapucaí vai virar um imenso outdoor sonoro e ambulante.” Irritado com o que chamou de cerceamento ideológico à livre expressão do pensamento, Marcelo Freixo manteve o tom das críticas e voltou a comentar sobre outros enredos: “Dei o exemplo da Ilha de Caras, mas poderia falar dos enre-

dos sobre o Rock in Rio (Mocidade), Coréia do Sul (Inocentes de Belford Roxo), e Cavalo Manga Larga (Beija-Flor de Nilópolis) temas que não têm contrapartida cultural, não ensinam nada sobre nossa história (um dos itens do regulamento da Liesa) e são ostensivamente comerciais”, lamentou. Ele negou ainda que sua proposta seja considerada censura cultural e argumentou que as idéias sobre esse novo e perigoso caminho trilhado pelas escolas de samba saíram de um manifesto assinado por várias personalidades do samba: “Censura seria se eu determinasse o tema. As escolas podem escolher o enredo que quiserem. Mas, para receberem dinheiro público, tem que haver contrapartida cultural. E tem que haver também prestação de contas desse dinheiro, ora bolas! Ou isso é pedir muito? Afinal, nós e a sociedade, que em última análise ajudamos a construir essa festa, temos o direito de saber para onde vai e de que forma são utilizadas as verbas e os contratos comerciais que essas escolas assinam”. Em abril de 2007 a Polícia Federal divulgou a suspeita de indícios de manipulação de resultados no desfile do Grupo Especial daquela ano. As declarações do delegado Emanuel Henrique Balduíno de Oliveira ao programa Fantástico da Rede Globo, provocaram a instalação de uma CPI sobre o assunto na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, presidida pela vereadora Teresa Bergher. Foram analisados todos os contratos e participações realizados pela Liesa e a Riotur. Depois de ouvir todos os envolvidos na organização dos desfiles das Escolas de Samba do Grupo Especial e de Acesso, a CPI chegou à conclusão de que o contrato firmado entre a Liesa e a Prefeitura do Rio de Janeiro para a organização dos desfiles da Marquês de Sapucaí é altamente lesivo aos cofres municipais e bastante vantajoso para a entidade, responsável pela arrecadação e administração de aproximadamente R$ 100 milhões. Ficou constatada a omissão da Riotur na distribuição dos recursos transferidos à Liesa, tanto a título de adiantamento como, no valor de R$ 5 milhões e 200 mil, que eram devolvidos 60 dias após o término do Carnaval sem qualquer correção monetária e juros, a título de subsídio no valor de R$ 5 milhões, importância essa que não possuía nenhum item contratual obrigando que fosse distribu-

ída de forma igualitária entre todas as escolas participantes. Em seu depoimento à CPI, o Presidente da Riotur na época, Luiz Felipe Bonilha, demonstrou total desconhecimento do contrato assinado entre o órgão e a Liesa, incluindo o milionário direito de imagem com a Rede Globo e ignorando completamente de que forma esses recursos eram transferidos para a Liesa. A Presidente da CPI, Vereadora Teresa Bergher, explicou as conseqüências desastrosas desses procedimentos para os cofres do Município: “Nem tudo o que reluz por entre as máscaras e paetês na Passarela do Samba está relacionado ao brilho ingênuo e espontâneo do Carnaval. Por trás dos estandartes e das alegorias, há espaços sombrios, pontos obscuros que reduzem a transparência nas relações entre a Riotur e a Liesa”, disse a Vereadora, acrescentando: “Desde o início de seus trabalhos a CPI deparou-se com erros primários de gestão da maior festa popular da cidade. A maioria relacionada aos exagerados e discricionários poderes da Liesa e pensamos que em vista disso o Poder Público deve assumir de imediato a organização dos desfiles do Carnaval carioca. Esta troca de comando mostra-se exagerada e lesiva quando delega também o poder discricionário de dividir a verba resultante da venda de ingressos de forma desigual entre as agremiações. Vamos imaginar que a Liesa resolva doar 90% da verba transferida pela Prefeitura para uma determinada escola de samba, deixando apenas 10% para as demais. Ainda assim estará cumprindo à risca o contrato. Um acordo dessa natureza, em que uma das partes é o Poder Público, não pode ser negligenciado a esse ponto”. Teresa Bergher termina revelando sua preocupação: “A transferência de competência preocupa porque envolve números significativos que em 2007 já eram em torno de R$ 100 milhões. Na prestação de contas existe rigor apenas nos recursos arrecadados com a venda de ingressos. Quanto ao controle com as demais receitas milionárias, há uma completa e intrigante omissão”.

O PROCURADOR CESÁRIO JOGOU A TOALHA A Juíza Denise Frossard, ex-Deputada federal passou para a história de forma corajosa e intrépida ao condenar os 14 maiores banqueiros do jogo do bicho do Rio a seis anos de prisão por formação de quadrilha, após cinco horas de leitura da sentença. Ao bater o martelo, optando pela pena máxima de seis anos, Frossard aceitou como provas os inquéritos requisitados pela acusação, a quase totalidade deles ainda em andamento. Diante do olhar incrédulo da cúpula da jogatina, a Juíza disse que levara em conta “a intensidade extrema do dolo”. Não chegou a ser uma pena pesada nem tirou os bicheiros de circulação, mas o julgamento de 21 de maio de 1993 foi considerado histórico por golpear a máfia do jogo do bicho onde menos se esperava. O Ministério Público, responsável pela denúncia, só convenceu a juíza porque juntou provas de que a quadrilha agia com estabilidade e permanência.

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ESPECIAL COMO O BICHO SE APOSSOU DO FILÉ MIGNON DO CARNAVAL DO RIO ALCYR CAVALCANTI

ALCYR CAVALCANTI

Acompanhado de um segurança, Castor de Andrade caminha pelas ruas do Rio sem ser incomodado. Ao lado, ele inaugura a Acadêmicos da Rocinha ao lado do Capitão Guimarães e, à esquerda, Luis Carlos Batista.

Ela recebeu no dia 19 de março de 1987 emocionada carta do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Raphael Cesário, em que ele, de forma contundente e sincera, resolve jogar a toalha na luta contra a contravenção no Rio e seu quase invencível poder, expressa na frase que abre o texto e vinda do fundo de sua alma “Pra mim, não dá mais”. Denise Frossard guarda a correspondência como uma relíquia, um troféu também de sua luta contra a criminalidade, embora o desabafo de seu colega não reflita suas atitudes, pois ela foi até o fim em sua luta e acabou colocando os contraventores na cadeia. “Havia – e há – a necessidade de se apurar centenas de homicídios, dezenas de seqüestros, milhares de casos de corrupção. Toda a atual cúpula do jogo do bicho só chegou a ser grande depois de matar e mandar matar, seqüestrar, promover guerras com outros banqueiros, corrom-

per autoridades. Trabalhei em vão durante todo esse tempo. A primeira briga com a polícia foi conseguir a instauração dos inquéritos. A segunda foi tentar unificar os procedimentos. Na terceira – onde fui vencido – foi tentar apurar alguma coisa.” “Para mim não dá mais porque o trabalho é e será em vão. Não dá porque não posso conviver com uma situação onde vejo criminosos sendo recompensados pelos muitos crimes que praticaram. Não dá mais porque falta-me incentivo, faltame vontade. (...). Não dá mais porque é difícil ver criminosos posarem de bons moços. Ante todo o exposto, requeiro a V. Excelência e ao Dr. Procurador-Geral em cuja integridade moral, inteligência, cultura e espírito de justiça tanto confio que, se entender necessário o prosseguimento dos inquéritos, reveja a portaria que me designou especialmente, designando outro colega para ocupar o meu lugar.”

A EVOLUÇÃO ASCENDENTE DA LIESA A entidade dos bicheiros foi comendo o filé mignon pelas beiradas, até assumir o monopólio do grande evento do Carnaval carioca. A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro-Liesa é a principal entidade que organiza o Carnaval carioca. Ela gerencia as atividades e repassa o lucro para as principais escolas. Fundada no dia 24 de julho de 1984, nasceu da dissidência de dez escolas do Grupo Especial que se desmembraram da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro (AESCRJ), atualmente administradora dos Grupos B,C e D. Desde então as escolas promovidas do Grupo de Acesso para o Especial se filiam à Liesa, e as rebaixadas se retiram. Em seu site institucional, a Liesa justifica sua criação como uma tentativa de investir na qualidade do espetáculo, pois os impasses geravam muitos desentendimentos. Ainda de acordo com a entidade, tudo começou com uma conversa entre o então Presidente da Unidos de Vila Isabel, Ailton Guimarães Jorge, com o amigo Castor de Andrade, na época Presidente da Mocida6

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de Independente de Padre Miguel, de onde dias depois saiu a minuta de estatuto esboçada pelo advogado Randolfo Gomes. Aos primeiros presidentes coube manter as escolas filiadas coesas e mostrar ao Poder Público que o Carnaval precisava de mais apoio, pois as agremiações ficaram mais de meio século subordinadas à Prefeitura por causa do pagamento da subvenção – pagamento pela confecção das alegorias e fantasias. Aniz Abraão, conhecido como Anísio da Beija-Flor, fez o Poder Público reconhecer que as escolas de samba eram as principais responsáveis pelo interesse dos turistas pelo Carnaval carioca. Desde 1986 a Liesa e a Prefeitura, informa o site da Liga, passaram a assinar contratos anuais que destinam às escolas de samba direitos na participação na receita da venda dos ingressos. A Liesa arrecada 5% dos contratos em que representa as agremiações do Grupo Especial.

Ainda segundo as informações institucionais da Liga, muitos direitos foram conquistados e outros assegurados graças à organização. A partir daí ocorreram mais investimentos na qualidade do espetáculo e na construção de seu patrimônio, e as escolas passaram a buscar mais patrocínios. O regulamento do desfile foi aperfeiçoado, e suas imagens transmitidas em horário contratado, distribuídas para todo o Brasil e centenas de países, nos cinco continentes. Sua sede foi inaugurada no Centro do Rio em 1993, no mesmo prédio em que a partir de 2004 passou a funcionar o Centro de Memória do Carnaval. A Cidade do Samba, por sua vez, que abriga as unidades de produção das Escolas do Grupo Especial, funciona na Gamboa desde 2005, conforme projeto realizado em parceria com o então Prefeito Cesar Maia. Com vista à adequação da Passarela do Samba para sediar eventos dos Jogos Olímpicos de 2016, foi feita uma reforma nos camarotes da Rua Marquês de Sapucaí, antigo aspitação dos dirigentes da Liesa, para dar lugar a novas arquibancadas, seguindo o projeto original de Oscar Niemeyer. O projeto foi custeado pela Ambev, dona da antiga fábrica da Cervejaria Brahma destombada no local. Sua capacidade foi aumentada de 60 mil pessoas para 72.500, mais um prédio no restante do terreno, inaugurado no dia 12 de fevereiro de 2012.

OS REVESES: INQUÉRITO, PRISÕES, CONDENAÇÕES Mas a trajetória da Liesa não é marcada só por conquistas. Em 2007 a organização viveu a maior crise de sua história, com a prisão de vários dos seus líderes durante a Operação Hurricane, da Polícia Federal. Na ocasião também foram detidos policiais, advogados, magistrados e empresários. A investigação foi iniciada a partir do contrabando de componentes eletrônicos para máquinas caça-níqueis e culminou com a alegação de envolvimento de contraventores na concessão de propinas para facilitar o funcionamento de bingos e bares com máquinas caça-níqueis. A Câmara Municipal do Rio de Janeiro instalou uma Comissão de Inquérito Parlamentar-CPI para apurar as irregularidades, como corrupção e contravenção, mas nada foi provado. Apesar de todos saberem que

a Liesa está ligada à máfia do jogo do bicho no Rio, isto foi considerado natural na cultura do Carnaval e somente agora a impunidade vem sendo combatida. Em 2011 Aílton Guimarães, Aniz Abraão, o Anísio da Beija- Flor, foram presos novamente na Operação Dedo de Deus, da Polícia Civil, por formação de quadrilha e corrupção de magistrados e agentes federais, ambos com sentença de quase 50 anos e multas acima de R$ 30 milhões. A Juíza Ana Paula Vieira, da 6ª Vara Criminal Federal, condenou 23 pessoas em processo semelhante ao que ocorreu em 1993 quando outra Juíza, Denise Frossard, mandou prender 14 contraventores da cúpula do jogo do bicho, entre eles Anísio, Guimarães e Antônio Petrus Kalil, o Turcão. Após a crise de 2009 Jorge Castanheira, que fora Presidente e várias vezes Diretor da Liesa, assumiu o comando da entidade. Sua primeira presidência foi em 1995; em 2012 ele foi reeleito para mais um mandato.

O PRENDE-E-SOLTA DOS CHEFÕES DA LIGA O Delegado Glaudiston Galeano, da Corregedoria Interna da Polícia Civil do Rio de Janeiro, informou que a Operação Dedo de Deus apreendeu diversos objetos e documentos. Após minuciosa filtragem e aprofundamento, deflagrou-se a operação Dedo de Deus 2 com identificação de outros alvos e locais onde a máfia do jogo do bicho atuava. “A Liesa não é alvo ou está sob investigação, no momento, da Operação Dedo de Deus. A busca e apreensão na sua sede teve como objetivo primário localizar possíveis documentos e objetos que vinculassem os alvos dessa operação, reforçando seu envolvimento com o jogo do bicho, sua autoria e robustecendo”, disse. Até o momento, ainda segundo o Delegado, não foi constatada nenhuma relação ilícita da Liga com a Prefeitura do Rio. A investigação está analisando os documentos apreendidos e os computadores e mídias em geral estão sendo periciados com o propósito de identificar outros envolvidos e robustecer a prova contra todos os alvos da operação. “Em relação à Liesa se mostra apressada qualquer vinculação com o jogo do bicho enquanto os documentos e demais elementos de prova não forem exaustivamente analisados”, afirmou Galeano. Explicou Galeano que após a Operação Dedo de Deus Luizinho Drumond, Hélio de Oliveira e Yuri Soares ficaram foragidos aproximadamente três meses, mas conseguiram liminar em habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça determinando a revogação de suas prisões preventivas. Mário Tricano, ex- Prefeito de Teresópolis, outro investigado, ficou preso por algumas semanas e posto em liberdade por decisão do Plantão Judiciário do TJ/RJ. O alvo Aniz Abraão David, por sua vez, foi preso em 11 de janeiro de 2012 e permaneceu preso até às vésperas do Carnaval daquele ano, “ocasião em que conseguiu a extensão dos efeitos do habeas corpus concedido aos demais capos da organização criminosa do jogo do bicho”, informou o Delegado. (Eduardo Sá)


A RIOTUR TENTA, MAS NÃO CONSEGUE FAZER LICITAÇÃO “A Liesa tem o grande ativo do Carnaval”, justifica a empresa. A Assessoria da Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro-Riotur informa que sua parceria com a Liesa é antiga e vem desde a gestão do ex-Prefeito Cesar Maia, que exerceu três mandatos, o primeiro deles a partir de 1993. De acordo com o órgão, “a atual gestão tentou por três vezes licitar a organização do desfile, mas não apareceram interessados. O evento segue sob a organização da Liesa, pois há o entendimento de que a Liga reúne o grande ativo do Carnaval, que são as maiores escolas de samba da cidade, razão da existência do espetáculo, e de que ela realiza um evento organizado e bem-sucedido”. O acordo fixado entre elas é que a cada ano se celebra um novo contrato entre as partes, seguindo as orientações do Ministério Público estadual. A Riotur, no entanto, não forneceu o contrato nem explicou

os critérios adotados na negociação. O Ministério Público estadual, por sua vez, até o fechamento desta matéria, não se manifestou sobre o acordo entre as partes. A justificativa da Riotur é que ela não tem ganhos diretos com venda de ingressos, mas a cidade lucra com o turismo, que tem seu maior pico do ano nos dias de desfiles. Este ano, o Rio recebeu 1 milhão e 212 mil turistas, que, informou a empresa, geraram uma renda de US$ 848 milhões, com ocupação hoteleira na casa dos 90%. Não há repasse para a Liesa e em 2013 cada agremiação recebeu diretamente uma subvenção da Prefeitura no valor de R$ 1 milhão. Em relação às prisões de vários dirigentes da Liga nos últimos anos, a Riotur observou que “todo o relacionamento com a Liesa é tratado na pessoa de seu Presidente, o Senhor Jorge Castanheira”, que não tem problemas com a Justiça. (Eduardo Sá)

CPI DA CÂMARA DEVASSOU O QUE HOUVE EM 2007, MAS NADA ACONTECEU Dois Prefeitos (Cesar Maia e Eduardo Paes) souberam das conclusões. Tudo continuou como antes no quartel de Abrantes. O Carnaval carioca foi tema de uma Comissão Parlamentar de Inquérito em 2007 por suspeita de manipulação do resultado do desfile do Grupo Especial daquele ano. De acordo com a Vereadora Teresa Bergher, que presidiu a CPI, o Relatório Final concluiu que a Prefeitura deveria, por ser um espaço público, fazer a licitação de todos os serviços oferecidos pela Liesa. “O direito de imagem, por exemplo, que sempre foi da Globo. Não tenho nada contra a emissora, mas deveria ter licitação. Naquele ano o responsável pelo som era um diretor da Liesa, o que representa um conflito de interesses. Há também a questão da alimentação. O Carnaval é a festa mais importante da Cidade, mas não tem que ser realizada com dinheiro público, deve ser da iniciativa privada”, afirmou. A Globo, segundo informações do jornalista Fernando Molica, ganhou da Prefeitura R$ 5 milhões para a cobertura do Carnaval deste ano, através da mesma empresa que hospeda o site da Liesa na internet.

Bergher ouviu na CPI contraventores, como Anísio, mas em razão de suas relações com as escolas de samba, pois o jogo do bicho não foi objeto da Comissão. Ela revelou que na época do Prefeito Cesar Maia nada foi feito, apesar de ela ter apresentado um projeto de lei baseado no Relatório Final da Comissão. Com a chegada de Eduardo Paes à Prefeitura, ela se encontrou com o Secretário Municipal de Turismo na época, Antônio Pedro Melo, que havia gostado do projeto e se comprometera a implementá-lo, mas nada aconteceu. Destacou ainda a Vereadora que em 2007 o único benefício da Prefeitura era a participação de 5% na receita da venda de ingressos, que somaram R$ 38 milhões naquele ano. Informada de que atualmente a Prefeitura nada recebe da receita dos ingressos, ela disse que “a situação hoje, então, é mais favorável à Liga do que ao Município”: “Não tenho nada contra a Liesa realizar o Carnaval, mas tem que haver transparência. Além disso, outras empresas podem estar interessadas”. (Eduardo Sá)

UMA LUTA ANTIGA CONTRA DISTORÇÕES, NARRA PROENÇA A Riotur tinha um Conselho de Carnaval, que foi extinto de uma hora para outra, sem explicações. Há aproximadamente 15 anos – a própria Riotur não soube precisar a data exata — foi extinto o Conselho de Carnaval da Riotur, que realizava estudos, palestras e seminários e também julgava as escolas de uma forma independente, segundo seus integrantes, e fazia a premiação sem nenhum apoio institucional. Era composto por pessoas intensamente ligadas ao Carnaval, algumas delas em atividade até hoje, como a professora Raquel Valença, ligada à escola Império Serrano, e Maria Augusta Carvalho, cenógrafa, autora de enredos antológicos da escola União da Ilha. Os membros do Conselho foram indicados e convidados por Hiran Araújo, na época funcionário da Riotur e atualmente Diretor Cultural da Liesa. Seu presidente durante dez anos, em cargo eletivo não remunerado, Ivan Cavalcanti Proença, professor universitário, mestre e doutor em Literatura Brasileira, autor de inúmeros livros sobre cultura popular brasileira e colaborador de obras sobre o Carnaval, conta um pouco da disputa travada dentro da instituição para o bom andamento da festa na apoteose. Ele considera lamentável a descaracterização do Carnaval, que vem do alinhamento ao mercado, fruto também da busca do lucro por parte de sua cúpula. Diz Proença que o Conselho enfrentava todo ano a estrutura do relacionamento da Riotur com a Liesa, até que certo dia saiu no Diário Oficial, sem qualquer diálogo com seus integrantes, a extinção do colegiado. “Demitiram-nos porque a gente estava questionando cada vez mais esse vínculo da Riotur com a Liesa, e o conselho não era remunerado, nem a alegação econômica eles podiam dar. Contava com os melhores estudiosos e pesquisadores de Carnaval. O problema é que tem de haver uma licitação, porque eles vão criando raízes dentro das escolas. Naquela época cerca de 80% do lucro iam para a Liga, não eram da Riotur, como nos foi dito por alguém das finanças. Era um grande negócio. Ao mesmo tempo, viviam um intimismo à sombra do poder, porque visitavam alguns governadores e davam camarotes às autoridades políticas. Criavam um clima favorável à permanência e gestão do Carnaval sem licitação. São eles também que escolhem os jurados, que dão as notas finais dos desfiles.” Todo o material do Conselho foi levado para a Cidade do Samba onde, ainda segundo Proença, autor dos cri-

térios de julgamento de samba-enredo, a Prefeitura também deu dinheiro para sua construção. Esse grande esquema, que envolve a Liesa e o Poder Público, sofreu algum abalo com o indiciamento e a procura de parte de sua liderança pela Polícia, mas é estranha a manutenção dessa engrenagem. É o que ele chama de “reinado”: criou-se uma estrutura que se desvinculou do que se pretendia em relação às escolas de samba. “Luxo, patrocínio, muito dinheiro investido, descaracterização das comunidades e profissionalização, por exemplo, são frutos do modelo de gestão criado nas últimas décadas”, complementou. “Tínhamos um juiz de pista, muitas vezes ele registrava que os componentes não sabiam nem cantar. Gente que vem de todo lugar, desde que tenha grana para comprar as fantasias. Ainda assim acontecem coisas maravilhosas no Carnaval, porque a cultura do povo por ela mesma resiste de alguma forma. Isso acontece no futebol, no cordel, nos folguedos e no Carnaval. Essa cúpula que visa ao lucro é apenas causadora disso, com tolerância dos órgãos governamentais. Alguém acredita que esses líderes da Liga gastem dinheiro por amor à cultura e à escola? Não, quando muito mantêm certa intimidade com o bairro. O lucro é o grande condutor disso tudo.” Proença diz que os estudiosos não conseguem estabelecer um elo que defina uma razão plausível de quando começou aquilo que ele chama de “rendição”, porque desde Pelo Telefone, que foi o primeiro samba, o jogo do bicho já estava presente. A solução apontada por ele é o processo de licitação, que foi anunciado pelo Prefeito mas, diz Proença, “nada mudou até agora”. Na entrega dos resultados do último Carnaval, no dia 13 de fevereiro, havia a mesma estrutura, com a presença de autoridades e o Presidente da Liesa, “só faltaram alguns figurões porque estão sendo procurados e indiciados”. “O problema é que quanto mais passa o tempo vai se criando o mito de que os próprios diretores atuais que sustentam esse sistema sejam capazes de gerar novos mecanismos, com aval, inclusive, de algumas Velhas-Guardas das escolas de samba”, alerta Proença, que defende um trabalho de troca de idéias, de forma clara e aberta, para uma conscientização que não seja de cima para baixo. Nesse sentido, diz, há boa disposição de representantes comunitários. (Eduardo Sá)

JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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VLADIMIRPLATONOW/ABR

CARNAVAL

A Vila Isabel sagrou-se campeã do Carnaval carioca de 2013.

O bloco da cobertura pede passagem Ao todo, quase 1.500 profissionais do País e do exterior cobriram os desfiles do Grupo Especial. P OR I GOR W ALTZ

No mês de fevereiro os olhos do Brasil e do mundo se voltam para a maior festa popular do País. A movimentação de foliões no Rio de Janeiro, Salvador e Recife – as cidades que concentram as maiores comemorações carnavalescas – atrai as atenções do público e exige uma forte organização por parte dos veículos de comunicação para levar às ruas uma legião de repórteres, cinegrafistas, fotógrafos, locutores e produtores. Na capital fluminense, onde acontece um dos mais tradicionais e grandiosos desfiles de escolas de samba, é aparelhada uma volumosa infra-estrutura para receber um contingente de mais de 1,5 mil profissionais de imprensa brasileiros e estrangeiros. A Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro–Riotur informou que até a semana anterior ao Carnaval haviam sido credenciados para trabalhar no Sambódro-

Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

mo da Rua Marquês de Sapucaí 1.154 profissionais da imprensa nacional e 341 do exterior, mas esse número tenderia a aumentar, pois muitos profissionais se cadastraram momentos antes da entrada das escolas na Passarela do Samba. Entre os veículos brasileiros cadastrados para a cobertura, o maior número foi de sites e portais da internet. Ao todo, foram 55 veículos online, seguidos por 43 jornais, 43 rádios, 37 revistas, 11 tvs e sete agências de notícias. Mas o maior número de profissionais de comunicação cadastrados foi o das rádios, que em 2013 investiram pesado na cobertura dos bastidores do carnaval e na contratação de comentaristas, levando 480 comunicadores ao Sambódromo. Entre esses profissionais estava o novato na cobertura da Marquês de Sapucaí Maurício Costa. Em seu primeiro ano na Rádio EBC, esse também foi seu primeiro ano como repórter de Carnaval. Ain-

da com as primeiras escolas entrando na Avenida no domingo de Carnaval, 10 de fevereiro, Costa não escondia que estava se esforçando pra manter o pique para correr atrás de celebridades e personagens emblemáticos do Carnaval. “É muito cansativo, mas é emocionante ao mesmo tempo. Eu acompanhei a Inocentes de Belford Roxo, que este ano está estreando no Grupo Especial, a qual conseguiu terminar o desfile na marca. O esforço dos componentes é algo de que não vou esquecer”, conta. O repórter conta que também ficou emocionado com a resposta do público ao desfile. “Você encontra aqui no Sambódromo pessoas das mais diferentes origens, mas no momento em que uma escola passa na Avenida o sentimento de quem está no Setor 1 [conhecido como o mais popular entre as arquibancadas] e nos camarotes é o mesmo. Naquele momento estão todos unidos, apesar das diferenças”, descreve Maurício Costa. A dimensão do espetáculo impressiona não apenas os focas, mas também quem já tem larga experiência na Sapucaí. Rodney Bandeira de Melo cobre há quase 15 anos o Carnaval da Sapucaí para redes de televisão como Band, Record e CNN e também como profissional independente. Há três anos, o cinegrafista e vídeo-repórter vem à Avenida como correspondente internacional para a agência de notícias chinesa Xinhua. Segundo Rodney, a paixão que movia as escolas de samba há anos vem dando lugar cada vez mais ao profissionalismo. “Hoje o que move esse espetáculo acima de tudo é o business. Não dá mais para colocar uma escola na Avenida apenas com o amor dos integrantes. É preciso técnica, investimento e muita criatividade. Atualmente, o símbolo maior do Carnaval carioca é o trabalho do carnavalesco Paulo Barros, que para mim é um mestre”, analisa Rodney. É o que aponta também o jornalista de O Globo Marcelo Melo, que não foi à Sapucaí para a cobertura mas como jurado do prêmio Estandarte de Ouro, concedido pelo jornal aos destaques do Carnaval carioca. Em seus 20 anos de júri, ele conta que assistiu ao cres-

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha)

Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 - Osasco, SP

Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

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cimento da organização e da técnica em detrimento de sambas que empolguem o público e deixem sua marca na história. “No meu primeiro ano como jurado, em 1993, assisti ao desfile do Salgueiro cujo enredo era Peguei um Ita no Norte, em que os versos do samba ‘Explode coração/ Na maior felicidade’ são cantados até hoje. Desde então, nunca mais houve um samba que contagiasse assim. Por outro lado, temos um desfile visualmente impecável, como o famoso carro do DNA Humano que o Paulo Barros trouxe pela Unidos da Tijuca em 2004", afirma Marcelo. Um olhar estrangeiro

Os carros teatralizados, uma marca do trabalho do carnavalesco Paulo Barros, voltaram mais uma vez esse ano na Unidos da Tijuca. A campeã do Grupo Especial de 2012 trouxe esse ano o enredo sobre a Alemanha, desde a mitologia e o folclore do país europeu até suas contribuições econômicas e culturais ao mundo atual. O desfile deixou impressionado o correspondente do canal alemão ZDF na América do Sul, Andreas Wunn. O jornalista, que mora no Rio e há três anos cobre os desfiles, conta que esse ano foi especial para ele. “Eu acompanhei toda a preparação da escola para trazer esse Carnaval, e mesmo assim foi muito interessante ver como eles conseguiram brincar com todos os clichês do meu país. Foi realmente uma apresentação emocionante”, disse Wunn logo após o término do desfile da agremiação com sede no Morro do Borel. Impressionante também foi o adjetivo usado pela fotógrafa do site do canal francês TF1, Tania Meppiel. Ela veio da França especialmente para a cobertura dos desfiles na Marquês de Sapucaí. Em sua primeira vez no Brasil, ela contou que ficou impressionada com a riqueza de detalhes do desfile do Salgueiro, que trouxe o enredo sobre a fama. “É espantoso, dá vontade de fotografar tudo. Para onde olhamos, vemos algo diferente, surpreendente. Desejo muito voltar no próximo ano, espero que meus chefes permitam isso”, brincou a fotógrafa.

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • FEVEREIRO DE NÃO 2013 ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. O 387 JORNAL DA ABI


REFLEXÕES

O Estado assassino A pena de morte é sempre instrumento dos preconceitos existentes naquela sociedade que a aplica.

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este momento, pessoas estão sendo decapitadas, fuziladas, enforcadas, apedrejadas até a morte, eletrocutadas, eliminadas em câmaras de gás ou por meio de injeções, em mais de 90 países. Desarmadas, indefesas, elas são na verdade, assassinadas. Por quem? Pelo Estado. A pena de morte é um perigoso tumor moral e social. Vamos lancetá-lo. Em primeiro lugar, ela tem sido um instrumento para que os governos invistam contra seus adversários políticos, como está acontecendo na China; ou para que eliminem minorias étnicas incômodas, como ocorre com os curdos, no Irã. Tem servido também para a bárbara punição de mulheres adúlteras, em países muçulmanos. No instante em que abandonamos o princípio de que a vida é intocável, abrimos uma imensa caixa de Pandora, liberando todos os monstros do id social. Ressentimentos, ódios, rancores, mágoas, frustrações, sentimentos de vingança, tudo vem à tona. Resultado: destruímos as bases morais da própria sociedade em que vivemos, empurrando-a para a barbárie. Outro ponto importante: a pena de morte é sempre instrumento dos preconceitos existentes naquela sociedade que a aplica. Preconceitos sociais, preconceitos raciais. Nos Estados Unidos, um levantamento mostra com clareza: nos Estados do Sul, racistas, se um crime é cometido por um branco contra um negro a porcentagem de condenações e execuções é baixa; se o mesmo crime é cometido por um negro contra um branco, é elevada. Um estudo da Anistia Internacional mostra também como funciona a Justiça norte-americana. Exemplo: duas pessoas acusadas exatamente

POR RODOLFO KONDER ELIANE SOARES

pelo mesmo crime podem pegar penas diferentes. Há casos em que uma pega 20 anos de prisão e a outra é levada à cadeira elétrica. Por quê? Porque a pena depende muito de como o processo é encaminhado; às vezes, o agente de investigação, em troca de informações sobre outros delitos, encaminha o caso de maneira benevolente; às vezes, encaminha com rigor. A conclusão: a pena depende do agente de investigação, da composição do júri, do juiz, dos preconceitos locais, do clima criado em torno do caso. Uma verdadeira loteria da morte. E se lá, num país mais civilizado, as coisas acontecem assim, imaginemos como seria aqui... O estudo aponta igualmente a existência de 32 casos de gente inocente executada nos Estados Unidos desde o começo do século passado. O erro judiciário – neste caso, irrecorrível. Ainda há dias,

quatro irlandeses foram libertados pela Justiça inglesa como inocentes; haviam sido condenados como terroristas à prisão perpétua, quinze anos atrás. E se tivessem pegado a pena capital? Mas a pena de morte não ajuda a reduzir a criminalidade? Não; quem diz isso mente. Não contribui em nada para a redução dos crimes, nem da violência. E se matassem seu filho? Respondo sempre que não sei como reagiria, dominado por emoção violenta. Talvez até desse um tiro no criminoso. Mas, como cidadão, teria que responder pelo meu ato perante a Justiça. E cabe, aqui, separar bem as coisas. A justa e humana indignação que me dominaria não pode dominar o Estado, responsável pela elaboração de leis, normas racionais, regras que ajudam a criar uma convivência civilizada entre as pessoas. O Estado tem a responsabilidade pela criação de um mundo mais civilizado, não pode se curvar diante de sentimentos como o ódio ou a vingança. Finalmente, cumpre esclarecer que matar uma pessoa é mais caro do que mantê-la na cadeia para o resto da vida, como mostra um estudo feito pela Suprema Corte do Estado de Nova York. Uma questão eticamente inadmissível, mas frequentemente levantada pelos gigolôs da pena capital. O que a população deseja, na verdade, é uma Justiça ágil e eficiente, leis rigorosas, uma polícia bem aparelhada e íntegra, penitenciárias erguidas de acordo com os padrões mínimos de segurança. Ela quer segurança. Precisa acreditar na lei. Mas sabe também que a desigualdade social é a grande fonte do banditismo e da violência. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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ACONTECEU NA ABI

Margarida Pressburger é homenageada Há quase meio século ela tem atuação destacada na defesa dos direitos humanos. ALCYR CAVALCANTI

P OR C LÁUDIA S OUZA

A advogada Margarida Pressburger foi homenageada no dia 30 de janeiro na Sala Belisário de Souza, localizada no 7º andar do edifício-sede da ABI, em cerimônia organizada por seus amigos e colaboradores, militantes dos direitos humanos. Na abertura do evento, conduzido pela jornalista e escritora Márcia Almeida, teve destaque a trajetória da homenageada, reeleita em dezembro passado membro do Subcomitê para Prevenção da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (SPT), da Onu; vencedora em 2012 do Prêmio Nacional dos Direitos Humanos, na categoria Enfrentamento à Tortura, entregue pela Presidente Dilma Rousseff e pela Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário; e ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil-Seccional Rio de Janeiro. “Estamos aqui reunidos para aplaudir a dedicação de Margarida à causa dos direitos humanos, especialmente o trabalho na Comissão da OAB, da qual tive a honra de participar. A saída de Margarida da Comissão, feita de forma surpreendente, foi uma das razões para este encontro. Escolhemos a ABI para sediar a homenagem por ser a Casa do Jornalista, entidade irmã da OAB na luta contra a ditadura e pelos direitos humanos. Eu, Márcia Almeida, agradeço a Margarida, em nome de toda a equipe da Comissão de Direitos Humanos da OAB, a oportunidade de vivenciar experiências importantes em áreas muito carentes de nossa sociedade.” O advogado e jornalista Antônio Modesto da Silveira, membro do Conselho Deliberativo da ABI e integrante da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, foi o primeiro convidado a discursar. “Conheci Margarida, seu falecido irmão Miguel Pressburger e Dirce Drach, aqui presente, há 49 anos, em meio ao golpe da ditadura em 1964. Esta família foi muito perseguida, mas viveu dentro da mais absoluta ética. Fui advogado do Miguel, assim como Dirce também defendeu dezenas de perseguidos políticos. Com grande satisfação acompanhei o trabalho de Margarida na Comissão de Direitos Humanos da OAB, e vou propor o nome dela para integrar a Comissão de Ética da ABI.” A advogada Camila Freitas falou em seguida a respeito do papel de Margarida Pressburger no combate e prevenção à tortura no Brasil: “Conheci a Dra. Margarida no final do ano de 2007, quando fui convidada por uma colega de faculdade a integrar a Comissão de Direitos Humanos da OAB. Em razão do meu trabalho na área criminal, fui indicada para representar a Comissão dos Direitos Humanos no Conselho da Comunidade. Nessa 10

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Margarida Pressburger: Somos todos formadores de um Exército de Brancaleone

minha primeira experiência em espaços prisionais vivenciei, ao lado da Dra. Margarida, problemas de superlotação carcerária, violência, entre outros. Gostaria de ressaltar o empenho da nossa homenageada na ampliação do diálogo entre a Comissão de Direitos Humanos e as instituições externas à OAB, como a Defensoria Pública, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, e a sociedade civil em geral. Fizemos parte de um esforço muito grande para defender o cidadão independentemente de sua classe social, de sua idade, de seu grau de instrução”. Camila Freitas sublinhou também a contribuição de Margarida Pressburger para a criação do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio de Janeiro: “Este órgão, o único existente no Brasil, recebeu o apoio da Dra. Margarida para a sua atuação, que vem sendo aplaudida pelo Subcomitê de Prevenção à Tortura da Onu. Representantes de vários Estados brasileiros se reuniram, no final de 2012, para trocar experiências no sentido de desenvolver o projeto em todo o País. Aproveito este momento para homenagear também o líder do MST Cícero Guedes, assassinado no último dia 27, em Campos. Fiquei emocionada ao recordar da cerimônia na OAB, na qual ele foi condecorado com a Medalha Chico Mendes, do Grupo Tortura Nunca Mais. É muito triste ainda convivermos com crimes desta natureza”. Deficientes

A promoção dos direitos da pessoa com deficiência, uma das vertentes dos projetos executados pela Comissão da OAB, foi ressaltada pelo jornalista Andrei Bastos:

– Fiquei muito feliz em participar da Comissão da OAB, através da qual foram realizados importantes eventos. No primeiro deles manifestamos a posição dos portadores de deficiência contrária a um projeto de lei que estava em discussão. Em outro grande evento, no formato de audiência pública, discutimos a inclusão de crianças com deficiência no Plano Nacional para a Primeira Infância, que será transformado em política pública em âmbito federal. A partir do debate proposto na Comissão da OAB, que contou com a participação de portadores de deficiência, o texto passou a abranger a área de educação infantil. Agradeço à Dra. Margarida os avanços conquistados. A advogada cigana, Miriam Stanescon, membro da Secretaria Especial de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), assinalou o empenho da homenageada na promoção dos direitos dos povos ciganos no Brasil. – Gostaria de falar sobre a importância da Dra. Margarida para a minha vida. O convite que recebi para fazer parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB teve grande importância para o povo cigano, sempre muito perseguido e excluído. No dia 24 de maio, Dia Nacional do Cigano, vamos lançar o Prêmio Amigos dos Ciganos – PAC. A Dra. Margarida receberá esta premiação antes mesmo do Presidente Lula, que assinou o decreto de criação do Dia Nacional do Cigano em 25 de maio de 2006, em reconhecimento à contribuição da etnia cigana na formação da história cultural brasileira. Coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos de Petrópolis, a pedagoga Eliana Rocha acentuou as ações executadas com Margarida Pressburger em defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de rua e em ambiente prisional, e para a redução dos índices de mortalidade materna. – Realizamos um belíssimo trabalho em todo o Brasil de mapeamento do problema, que resultou na redução dos índices de mortalidade materna. A luta pela justiça e a verdade também foi ampliada pelas iniciativas da Dra. Margarida, cujo nome estamos indicando como membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. As iniciativas de Margarida Pressburger destinadas à defesa dos direitos humanos na área da saúde foram observadas pela advogada Nara Saraiva, que conheceu a homenageada em 1986, quando trabalhava em uma empresa privada. – Cerca de duas décadas depois, nos reencontramos e ela me convidou para atuar na área de direitos humanos. Margarida construiu uma Comissão de Direitos Humanos na OAB que representou importantes segmentos de uma sociedade que se pretende livre, justa e igualitária. Como tenho formação também no setor de saúde, tive o prazer de receber todos os processos desta

área, desde a verificação do atendimento em postos de saúde, vistorias em grandes hospitais, a ações de saúde para mulheres residentes na Vila Mimosa. Empenho

Representante da ong Mães da Cinelândia, Regina Célia da Rocha Maia, mãe de Márcio Otávio, assassinado aos 25 anos, em 1995, por um policial militar que o confundiu com um seqüestrador, recebeu das mãos da Presidente Dilma Rousseff o Prêmio Direitos Humanos 2012, na categoria de Centros de Referências em Direito Humano. Regina frisou a relevância da trajetória da homenageada para a sociedade brasileira: – Conheci a Dra. Margarida por ocasião do assassinato do menino João Hélio, aos seis anos de idade, em 2007, ao ter o corpo arrastado durante sete quilômetros por bandidos que roubaram o carro de sua mãe. Em meio à comoção, procuramos a Dra. Margarida, que convidou três mães vítimas de violência a participar da Comissão de Direitos Humanos da OAB. Muitos anos antes de conhecer a Dra. Margarida, eu já havia participado de inúmeros movimentos contra a violência, mas em nenhum momento encontramos alguém que nos estendesse a mão. Através do empenho da Dra. Margarida e da Comissão dos Direitos Humanos conseguimos dar andamento a processos judiciais que favoreceram familiares vítimas de violência. Tenho certeza de que o seu trabalho terá continuidade na Comissão da Verdade. Após os relatos de Taiguara Souza, representante do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura da Alerj, e de Roberto Gevaerd, do Conselho de Direitos Humanos da Alerj, Margarida Pressburger agradeceu as manifestações de apreço: – Estou feliz pelos convites que recebi da ABI e do Núcleo dos Direitos Humanos da Defensoria Pública, indicando que a luta continua e que não estamos sozinhos. Todas as coisas que falaram sobre mim não poderiam ter sido realizadas sem a participação de vocês. Somos todos formadores de um Exército de Brancaleone, dos Farroupilhas, que lutam por um Brasil sem pobreza e miséria. Uma luta que iniciei há 49 anos contra a ditadura que se instalava. Só quem sofreu sabe o que foram aqueles anos. Hoje, portanto, gosto de ver os jovens que nasceram na democracia lutarem pelo ideal dos direitos humanos. Vamos abrir outras portas, em outros lugares, sem a menor dúvida. O Tribunal de Justiça, que a partir do dia 4 será presidido por Leila Mariano, emérita defensora dos direitos humanos, uma lutadora, apoiará a nossa caminhada. O mecanismo de enfrentamento à tortura no Rio de Janeiro foi reconhecido internacionalmente como o mais efetivo do mundo. A luta continua e o campo de batalha me interessa, seja ele qual for.


ALÍVIO

Ases do atletismo dizem não ao fim do Estádio Célio de Barros

PGM encerra litígio de 19 anos com a ABI

Ato na ABI reúne atletas ameaçados de ficar sem local de treinamento e formação. Entre os participantes Maurren Maggi, a maior atleta olímpica do Brasil. AGÊNCIA O GLOBO

P OR I GOR W ALTZ

A ABI foi o palco em 31 de janeiro de um ato em defesa da história do esporte nacional. A Casa do Jornalista recebeu um manifesto contra a demolição do Estádio Célio de Barros, organizado por atletas e treinadores em parceria com o Comitê Popular Rio Copa e das Olimpíadas, a Federação de Atletismo do Rio– FARJ e a Associação dos Veteranos de Atletismo do Rio de Janeiro–Avat-RJ. Ao final do evento, foi assinado um documento que será encaminhado à Presidente Dilma Rousseff, ao Ministro do Esporte Aldo Rebelo e ao Presidente do Comitê Olímpico Brasileiro – COB Carlos Arthur Nuzman. Parte do Complexo do Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o Célio de Barros é hoje o único estádio de atletismo da cidade. Como consta no planejamento do Governo do Estado, a construção deverá ser demolida para a construção de lojas e de um estacionamento. De acordo com o Comitê Popular Rio Copa e das Olimpíadas, entidade que reúne movimentos sociais, laboratórios de universidades e organizações de defesa dos direitos humanos, a demolição não constava no projeto original da Copa do Mundo e foi incluída unicamente para atender às demandas da iniciativa privada. Para Maurício Azêdo, Presidente da ABI, cujo discurso abriu a cerimônia, trata-se de uma importante luta pela preservação dos bens da cultura esportiva do Rio e do Brasil, que já colheu sua primeira vitória, com a preservação até o momento da Aldeia Maracanã. “O historiador do cinema brasileiro Alex Viany, um dos maiores porta-vozes da cultura nacional, há 40 anos dizia que o Brasil era um país surrealista, em que a realidade briga com a imaginação. E a maneira como estão sendo tratados a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 pelas autoridades é uma prova da coerência dessa observação”, afirmou. “Para sediarmos os eventos, destruímos um dos principais templos do esporte que é o Estádio do Maracanã para a construção de um outro estádio cedendo às imposições colonialistas da Fifa. Além disso, a cidade que se dispõe a sediar os Jogos de 2016 inicia a caminhada nessa direção com a pretensão de demolir seu principal centro de formação de atletas”, comentou o jornalista, mostrando o grande contra-senso: em nome dos Jogos Olímpicos, destrói-se um centro de formação de atletas. Maurício Azêdo recordou a forte tradição da ABI na área do esporte, lembrando que foi em sua sede que ocorreu a criação do Departamento de Imprensa Es-

Procurador-Geral do Município determina a extinção de ações contra a ABI, uma delas ajuizada em 1994.

Atletas lutam contra a demolição do Estádio Célio de Barros: “Estão acabando com nossa história”

portiva–Die pelo jornalista Canôr Simões Coelho, que mais tarde viria a ser o embrião de todas as entidades de jornalistas esportivos do Rio de Janeiro e de todo o Brasil. “A ABI apóia a luta contra essa esfera de decisões irreais, que contrariam o melhor sentimento e o melhor interesse nacional. Essa batalha se arrasta a cada dia mais para as ruas, em atos públicos, em manifestações populares, com o que o País pode ter de melhor, que é sua juventude”, concluiu. O Presidente da Federação de Atletismo do Rio de Janeiro–Farj, Carlos Alberto Lancetta, falou da importância histórica do Célio de Barros, criado em 1954 e onde foi quebrado o único recorde mundial obtido por um brasileiro, o atleta Joaquim Cruz, em 1981. “O Cob defende o legado que as Olimpíadas vão deixar para a cidade, mas que legado é esse? Estão acabando com parte da nossa história. Hoje contamos com o apoio da Confederação Sul-Americana de Atletismo e de todas as associações e federações nacionais do continente, mas o Comitê Olímpico ainda não se manifestou. Gostaríamos de clamar ao Cob, que vai realizar a gestão das Olimpíadas de 2016, que se pronuncie sobre a questão”. Renato Cosentino, representante do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, afirmou que o apelo à Presidente Dilma se deve à dificuldade de diálogo com as esferas municipal e estadual. “Fala-se que o Maracanã precisa tornar-se uma arena multiuso, mas ele já presta múltiplos serviços à população carioca. Ele abriga escola, cultura através da Aldeia Maracanã, esporte, inclusão social. Essa arena está sendo destruída para virar shopping. É isso que está em jogo: a privatização do complexo esportivo.”

Participação dos atletas

O ato contou ainda com o apelo emocionado de atletas e ex-atletas que tiveram suas vidas marcadas pelo Célio de Barros. A velocista Solange Santos, que representou o Brasil em Pequim 2008 e Londres 2012 nos 100m livres e no revezamento 4X100, emocionou-se ao relembrar sua primeira competição no estádio, aos seis anos, quando terminou em sexto lugar. A atleta leu ainda uma carta enviada por Joaquim Cruz, ouro nos 800m nas Olimpíadas de Los Angeles em 1984 e prata na mesma prova nas olimpíadas de Seul, em 1988. O campeão olímpico está nos EUA e não pôde comparecer ao evento. “Não podemos de maneira alguma destruir o único estádio construído para treinamento e competições de atletismo, principalmente na cidade onde será realizada a Olimpíada de 2016 e que está carente de instalações esportivas. Os megaeventos deveriam incentivar a criação de outras instalações e não a destruição das já existentes, onde vários atletas deixaram sua marca e ajudaram a construir a história do atletismo no Brasil”, dizia o trecho da carta. Já Maurren Maggi, ouro no salto em distância em Pequim 2008, representou a Federação Paulista de Atletismo no encontro. “Eu vi meus ídolos competindo no Célio de Barros, como Joaquim Cruz, Robson Caetano, Ademar Ferreira da Silva, entre outros. Estão acabando com nossa história, algo inadmissível, principalmente num momento onde os olhos do mundo vão estar voltados para cá. Não estamos pedindo uma pista nova, apenas estamos pedindo para que não destruam o pouco que temos. Estou aqui perdendo um dia de treino para que esses jovens não percam a vida inteira”, disse Maurren.

Em atenção à exposição feita pelo Presidente da ABI em audiência que a este concedeu, o Procurador-Geral do Município do Rio de Janeiro, Fernando dos Santos Dionísio, determinou à Procuradoria da Dívida Ativa que ajuizasse petições visando à extinção de ações executivas fiscais movidas contra a ABI pelo Município. A determinação do Procurador-Geral, logo cumprida pela Procuradora Chefe da Dívida Ativa, Carmen Lúcia Macedo, encerra uma série de litígios que datam de cerca de 19 anos: foi em 1994 que o Município ajuizou a primeira de uma série de execuções fiscais contra a ABI, a que se seguiram quatro em 1996, uma em 1997, cinco em 1998, seis em 1999 e uma em 2002. A disputa judicial entre a ABI e a Prefeitura do Rio teve início com a decisão do Município de cobrar da ABI, assim como de outros contribuintes, a Taxa de Coleta de Lixo e Limpeza Pública e a Taxa de Serviços Diversos, esta posteriormente suprimida da legislação municipal. O Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais tais tributos, porque tinham como base de incidência a mesma do Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana-IPTU. Em defesa de seus direitos, a ABI ajuizou através do escritório Rômulo Cavalcanti Mota Advogados 21 ações de exceção de pré-executividade, onze das quais foram deferidas pela 12ª Vara de Fazenda Pública do Estado. Pela avaliação da ABI, as dez restantes também seriam acolhidas, pois tinham a mesma fundamentação jurídica, tramitavam pela mesma Vara e seriam julgadas pelo mesmo magistrado. O prolongamento desses litígios vinha causando graves prejuízos à ABI, que não conseguia obter certidão Negativa da Dívida Pública do Município, essencial para a efetivação de contratos entre a Casa e órgãos do Poder Público. Com a decisão do Procurador-Geral Fernando dos Santos Dionísio esse óbice será superado tão logo a 12ª Vara da Fazenda Pública proceda à baixa e extinção dos respectivos processos.

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PEPÊ SCHETTINO

DEPOIMENTO

Aos 88 anos e em plena atividade, Wilson Figueiredo fala de sua trajetória profissional, recorda histórias do Jornal do Brasil, analisa o cenário da imprensa e deixa algumas lições para os colegas mais jovens. Como a de que o jornalismo pode e deve exigir acuidade de idéias. E não pode prescindir do amor ao texto. POR PAULO CHICO F OTOS D IVULGAÇÃO/A CERVO P ESSOAL

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onversar com Wilson Figueiredo é um prazer. Entrevistá-lo, contudo, requer dose extra de atenção. Primeiro, para não perder o fio da meada das histórias que brotam em profusão de sua memória prodigiosa. Acumuladas ao longo de seus 88 anos de vida, elas não são poucas. Nem simplórias. Segundo, porque, vez ou outra, 'seu' Wilson, como costuma ser carinhosamente chamado pelos colegas mais jovens que com ele trabalham na FSB Comunicações, tenta inverter os papéis. Da condição inicial de entrevistado, passa a interpelar o entrevistador. Coisa de instinto. Postura de jornalista que, experiente, sabe elaborar perguntas num misto de provocação e doçura. Do início de sua carreira muito já foi publicado, inclusive em outra entrevista concedida ao ABI Online, no ano de 2006. Nascido em 28 de julho de 1924, na cidade de Castelo, no Espírito Santo, ainda adolescente 'Figueiró' - apelido que lhe foi dado pelo amigo Hélio Pellegrino - adquiriu o espírito de um Estado vizinho. "Me sinto mineiro, pois Minas é um vício. Passou por lá, pega", já declarou. Foi na capital, Belo Horizonte, que ingressou pela primeira vez no ambiente profissional em que transitaria por décadas. Era a Agência Meridional, dos Diários Associados, que funcionava na Redação do Estado de Minas. O ano era 1944. Com talento para a poesia manifestado na juventude, Wilson firmou-se mesmo no jornalismo. Sem exageros, é respeitado e considerado um mestre. Em meio aos mais jovens, rechaça com bom humor o peso da idade. Aliás, faz o percurso de sua casa, no Leblon, até o bairro de Ipanema, onde fica a FSB, quase sempre a pé. "Evito pensar que possa ser o mais antigo jornalista em atividade no País. Há de haver outro desgraçado, e ainda mais velho, por aí", diverte-se. Tamanha bagagem mereceu o devido registro histórico com a edição do livro E a Vida Continua - A Trajetória Profissional de Wilson Figueiredo, lançado em 2011. A obra serviu de base para boa parte da pauta desta entrevista, ao lado de análises sobre o jornalismo atual. Wilson não quer viver apenas de recordar o passado. Olha para a frente. Sobre o Wilson poeta, então pouco mais que um garoto, Mário de Andrade, um de seus inúmeros amigos no universo das letras, escreveu. "Meu caro Figueiró, acabo de ler seus versos. Você já é poeta, mas só não será poeta como constância de sua vida se não quiser. Se, quando você chegar aos 38 ou 40, lembrar que foi poeta e virou funcionário público, 'argentinos' de velhas de estações de águas, ou pai de família só, Figueiró, não bote a culpa na vida, o culpado será você." Se não seguiu carreira literária (será?), Wilson dedicouse de corpo e alma ao jornalismo. Na definição do polêmico Nelson Rodrigues, sempre foi um poeta. Ele estava certo. O 'Anjo Pornográfico' soube enxergar toda a beleza contida no exercício profissional do colega. Pura poesia. Com vocês, 'seu' Wilson.

Jornal da ABI – O que está havendo com o jornalismo? Ou seria melhor perguntar o que não está havendo? Há uma crise de mercado? Wilson Figueiredo – Olha, eu nunca pensei nessa questão... (risos) O que eu sinto é que as pessoas ficaram meio alteradas. Há algumas que acham que acabou o jornalismo – e para essas o jornalismo é apenas o jornal. Para mim, o jornalismo não é

o jornal. Ele já existia mesmo antes de haver o jornal. Ele existia antes disso. O jornal tornou-se veículo de uma coisa chamada jornalismo, que nada mais é do que uma plataforma, um meio de progressão da informação, do andamento das notícias, da difusão das idéias, dos costumes... Eu vi o rádio começar no Brasil. Eu era menino, mas me lembro deste começo, da sua expansão, das pessoas

comprando os aparelhos, que vinham dos Estados Unidos. Só tínhamos estações no Rio e em São Paulo. Também naquela época disseram que o rádio iria matar o jornalismo impresso. Bobagem! Pelo contrário, o jornalismo ganhou foi um aliado... Jornal da ABI – Da mesma forma como disseram que o rádio agonizaria diante da televisão... Wilson Figueiredo – Exatamente. E tudo isso se resolveu naturalmente. Agora essa história se repete com a internet, com a chamada formação em rede. Ou seja, a tecnologia em questão pode até ser nova, mas essa história de fim do jornal impresso é velha pra caramba. Não tem nada de novidade! (risos) E, mesmo na crise, há quem encontre caminhos. Vejo os chamados jornais populares e os considero fascinantes! Antigamente, eles eram cheios de besteira, mas hoje são muito bem feitos, criativos mesmo. Entretanto, são veículos que não abordam com profundidade o noticiário político, que é o que mais me interessa. Mas eles atendem bem a um grande público! Encontraram um nicho de mercado. Jornal da ABI – Mas, como você vê o jornalismo de internet? Wilson Figueiredo – A criação de novos meios fez do jornalismo uma coisa maior do que ele é, e acabou por enriquecer e diversificar a prática. Agora, por outro lado, surgiu o amadorismo, no lugar do profissionalismo. Nesses ambientes há uma tendência que escapa ao princípio do jornalismo, que é a impessoalidade... Jornal da ABI – Hoje, todo mundo tem muita opinião sobre tudo... Wilson Figueiredo – É engraçado isso. Mas já acontecia assim antigamente. Na minha vida profissional, encontrei muitas situações em que empresários buscavam os profissionais de imprensa para que eles escrevessem artigos com as suas opiniões... "Se eu fosse jornalista diria isso e aquilo. Tipo: 'esse ato do governo é um absurdo!' Mas, você sabe, eu sou um empresário, não posso..." Aí, vinha logo a eterna desculpa: uma situação do tipo "eu quero ser Tarzan, mas não sei pular de uma árvore pra outra"... (risos) A imprensa hoje é muito melhor e mais profissional. O jornalista não pode fazer 'o jogo' de um banqueiro ou de um político – o que, você pode acreditar – acontecia abertamente! Nesse sentido, a imprensa melhorou muito. Até a prática de um jornalismo pessoal, em primeira ou terceira pessoa, sempre existiu. Os jornais sempre emitiram opiniões, os articulistas também. Só que agora, com uma tecnologia rica, esse direito foi dado a todos. O que é uma coisa maravilhosa. E perigosa. Jornal da ABI – Não seria possível pensar num equilíbrio? Wilson Figueiredo – Nunca mais o

jornalismo, ou melhor, a informação, deixará de ser pessoal. Vamos precisar de tempo para acomodar isso um pouco melhor, mas não creio que conseguiremos resolver essa questão por completo. Sempre haverá notícia, informações, coisinhas pequenas, futricas, pessoas querendo esculhambar umas com as outras. Oposição e governo são duas coisas que nunca estão satisfeitas! Olha, o que nós temos, mais do que uma crise do jornalismo impresso, é uma crise do jornalismo. E mais do que isso: uma crise de quem lê o jornal... Esse sujeito está meio assustado! Alguns ficaram deslumbrados diante da possibilidade de entrar no jogo, isto é, de produzir 'notícia'. E outros passaram a achar que nos jornais não há muita coisa interessante mais não... Era como se a notícia estivesse perdendo valor. Perceba que os jornais no Brasil nunca conseguiram conquistar um público maior. Um jornal que, há 60 ou 70 anos, tirasse 80 mil exemplares era mais importante do que um jornalão que rode 200 mil nos dias de hoje – afinal, ele era único, estava praticamente sozinho, competindo com um pouco de rádio, quase nada de televisão e zero de internet. Proporcionalmente, os jornais impressos perderam, sim, importância no Brasil. Mas a informação está aí, em maior volume do que nunca. Na verdade, nem damos conta de processá-la. O que mudou, portanto, foi a variedade dos meios de acesso. Jornal da ABI – E quais as tendências do jornalismo para o futuro? Wilson Figueiredo – O jornalismo, creio, ficará cada vez mais específico. O desafio é misturar velocidade com poder de análise. Vai ter que focar na conexão dos fatos, pois eles nunca acontecem isoladamente, não é? Jornal da ABI – Como explicar o fechamento de várias publicações? Só para falar dos mais recentes, tivemos o fim do Jornal da Tarde, do Marca, do Diário do Povo, em Campinas... Vivemos uma crise do jornalismo ou uma crise dos donos de jornal? Wilson Figueiredo – Os donos de jornal, antigamente, não eram negociantes. Eram políticos ou empresários ricos, que buscavam poder. O jornal é um poder. E isso continua a mesma coisa. O jornal não faz ninguém rico; ele dá prestígio ao sujeito para que faça negócios. Outra coisa: jornal não é uma mercadoria que se vende; o jornal é lido. Vou te dar um exemplo para contrastar com a sua pergunta: o Jornal do Brasil deixou de circular na versão impressa, mas sobrevive no ambiente digital. Ele preserva sua marca e, saiba você, tem um bocado de gente trabalhando lá. Parece até que estão contratando mais pessoas. Claro que não é mais 'aquele' JB. O jornalismo é anterior e superior a qualquer formato que se inventar – e eu ainda acho que tere-

mos uma nova plataforma, diferente de tudo que está aí, uma coisa inédita, que ainda não sei o que será. O jornalismo se faz indispensável em qualquer meio e qualquer tempo. A construção do futuro depende do acesso à informação. Jornal da ABI – Falando em acesso à informação, qual sua visão sobre as tentativas de controle sobre a imprensa? Há no ar uma ameaça de volta velada à censura? Wilson Figueiredo – Há apenas três crimes que um jornalista pode cometer, no exercício de sua função: a injúria, a calúnia e a difamação. Todos eles de graus diferentes, mas basicamente a mesma coisa. Tirando os casos graves, como o de ofensas muito pesadas, quase ninguém recorre à Justiça, pois todos nós sabemos o quanto a memória humana é curta. É melhor esquecer, deixar passar, do que alimentar uma controvérsia. E dizem que o jornalismo abusa... Abusa coisa nenhuma! O que mais ajuda a democracia é o jornalismo, é a imprensa livre. As coisas não mudam porque o jornal as publica... Vou dizer uma coisa perigosa! Eu até acho que o jornalismo, hoje, não deixa as pessoas pensarem... A soma de informações descoordenadas é de tal natureza, e tão numerosa, que a maioria das pessoas com quem converso – e que têm acesso a jornais – não consegue processar aquilo que lêem... Mas, veja, o jornalismo vive um momento extraordinário que é o advento da informação. Onde você estiver, ela chega. Não há área proibida, mais. A censura começa a ficar impossível. Você pode até apreender um jornal impresso, mas policiar a internet fica mais difícil... Jornal da ABI – Mas o jornalismo online padece de alguns pecados, não é? Wilson Figueiredo – Ah, sim... Ele vai ficando cada vez mais leviano... Jornal da ABI – Houve, no final do ano passado, o caso em que o blog do Luís Nassif divulgou, com dias de antecedência, o falecimento do Oscar Niemeyer. Depois de noticiar a falsa morte, o próprio Nassif pediu desculpas aos leitores, dizendo que a sua equipe havia embarcado numa nota publicada num site clone de um grande jornal... Wilson Figueiredo – Foi um equívoco, não é? O que fiquei sabendo, neste caso, é que alguém ouviu mal... Correu a notícia de que o Oscar havia sido internado às pressas, depois de que teria alta e acabou voltando para a unidade intensiva... Nesta confusão, alguém se antecipou e cometeu o erro. No jornal impresso, não dá pra fazer isso. Não dá pra tirar a matéria do papel, e depois tentar explicar que publiquei 'isso' porque não havia entendido 'aquilo'. A palavra impressa tem um peso edificante. E demo-

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DEPOIMENTO WILSON FIGUEIREDO Wilson Figueiredo em seu primeiro emprego, na Folha de Minas, em 1953.

lidor. Engraçado como a tecnologia facilitou, mas acabou por acelerar ao limite – ou além dele – todo o processo de produção de informação. A pauta ficou descartável, as informações não são apuradas, os acontecimentos não são desdobrados. Parece que não dá tempo, tudo precisa ir logo pro ar! Veja só o caso dos ministros que seguidamente acabaram afastados do governo da Dilma, numa sucessão de escândalos. Quem mais fala deles? Que fim levaram as denúncias? Depois veio o mensalão, que já teve o auge de exposição e começa a sair de cena. A pauta jornalística acaba sendo atropelada! O jornal impresso tinha, e ainda tem, 24 horas para ser produzido. Até por isso, por esse valor extraordinário da palavra impressa, quero dizer que não tenho medo do que está acontecendo. Veja se é possível, por exemplo, suprimir o livro... Eu não sou pessimista, pelo contrário, sou um otimista. Aliás, se eu não fosse assim seria um velho insuportável. E se, ao ficar velho, você ainda ficar pessimista, está roubado! (risos) Jornal da ABI – E saudosista? Você é? Wilson Figueiredo – O passado é sempre bom, pois dá a ilusão de que você está mais perto da felicidade. Quando falo de um assunto ocorrido no passado, todos os aspectos negativos daquele contexto a vida já eliminou, o tempo se encarregou de curar. Veja o caso do JB. Apesar da tristeza que envolve o fim da circulação da versão impressa, o que ficou mesmo na memória foram os bons momentos. Dentro do JB, passei mais de cinco décadas. Jornal da ABI – Muitos, além de você próprio, já falaram dos aspectos técnicos da famosa reforma do JB. Mas, partindo da sua tese de que os fatos não acontecem isoladamente, gostaria de ouvir uma análise daquele processo, de uma forma mais abrangente, situando o jornal no contexto em que vivia o País... Wilson Figueiredo – Ótimo! O JB começou a sua reforma em 1957. O sucesso do Jornal do Brasil ocorreu pelo fato de ele ter conseguido esperar o retorno do investimento. A empresa tinha caixa suficiente para se sustentar, graças ao que era arrecadado pelos classificados, que era um dinheiro expressivo e que entrava ali na hora. E o retorno não veio só porque o jornal estava bom, mas também porque o momento era bom... A reforma começou em 1957 e levou uns três ou quatro anos para ser concluída, em sua primeira fase. O JB era, até então, um jornal sem público cativo, quase um serviço de classificados. Não era um jornal político, não era nada. E nós apostamos numa leveza editorial. Tudo era publicado com a mão leve. Não tínhamos inimigos declarados, corrente política,

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sive em virtude dos passivos trabalhistas já somados no processo de agravamento da crise. Jornal da ABI – Você permaneceu no JB até quando? Wilson Figueiredo – Eu saí no fim. Depois que o Tanure assumiu o jornal, em 2001, eu trabalhei um pouco com ele... Saí em 2003. Aliás, ele sempre me tratou muito bem. E, até depois disso, permanecemos amigos.

tampouco opinião. Tudo isso, naquele contexto, fez que o JB se expandisse com grande liberdade, tivesse uma grande penetração social, quase sem fronteiras ou obstáculos. Em 1960, tivemos a eleição que elegeu Jânio Quadros para Presidente da República e Carlos Lacerda para o Rio. E o JB seguiu cobrindo todos esses assuntos com a mão leve, sem a paixão e o ódio arraigados, tão comuns aos jornais da época. O jornalismo, até ali, era muito carrancudo, coisa de velho, com linguagem de velho. Todo mundo era tratado como senhor, ainda que fosse para ser esculhambado... (risos) Era uma coisa solene demais. Após sete meses da sua posse, Jânio renunciou. O Brasil revivia a ameaça da década de 1930, quando da instalação do Estado Novo de Getúlio Vargas, que perdurou de 1937 a 1945. A eleição, o governo e, por fim, a renúncia de Jânio reviveram aquele cenário de crise. A economia brasileira mergulhou, então, numa profunda crise, e houve um processo nacional de liquidação dos jornais. Eles foram – quase todos – falindo. O Correio da Manhã acabou. O Diário de Notícias foi para o beleléu. O mesmo ocorreu com a Última Hora. Observe que, quando falamos de fechamento de jornais, não estamos apenas nos referindo a um processo atual... Isso sempre ocorreu! Foi com a derrubada do Getúlio, em 1954, que o JB começou a pensar em sua reforma, que acabou por se consolidar justamente quando outros jornais tradicionais naufragavam. Nessa época, emergiu o JB. O Brasil também se dispunha a uma arrancada histórica, plantada por Juscelino Kubitschek. O salto industrial estava preparado. Havia dificuldades, inclusive políticas, mas o País seguia adiante. O último abalo tinha sido a morte de Getúlio Vargas. Mas estava na medida exata para JK, que fez um bem enorme, em primeiro lugar, aos brasilei-

ros com um governo de resultados visíveis. Deu o toque industrial ao Brasil e acesso do brasileiro ao consumo de bens duráveis, como dizem os economistas. Sem querer, o JB e JK, embora se estranhando em diversos episódios, participaram do mesmo projeto. As mudanças no jornal coincidiram com o salto de modernidade na economia e na indústria. As agências de publicidade já distinguiam o JB, que passou por longos anos absoluto, em vôo de cruzeiro, até acabar. E, quando acabou, já experimentava o declínio há algum tempo, descendo gradativamente. Jornal da ABI – Um jornal não acaba de um dia para o outro... Wilson Figueiredo – Exatamente. É mais difícil acabar do que começar. Não que começar seja fácil, mas acabar é muito mais difícil... O jornal foi minguando, caindo, até que foi vendido. Aí, entra outra lição: jornal não se vende! O jornal é o que é. Ele não pertence ao dono, e sim aos seus leitores, ao seu público cativo. Quem compra o jornal percebe quando o veículo a que ele sempre seguiu perde sua alma. Jornal da ABI – Como se deu a virada na imagem do Jornal do Brasil quando da reforma iniciada no final da década de 1950? Wilson Figueiredo – Antes da reforma, as pessoas compravam o JB por causa dos anúncios e classificados que abrangiam todo o mercado profissional com ofertas de empregos em diversas áreas. Era até mesmo chamado de 'jornal das cozinheiras', no que poderia haver de mais pejorativo nesta classificação. Até nas primeiras páginas havia anúncios de classificados. A idéia era fazer um jornal diferente. Com a reforma, o conteúdo também mudou. Até então, as notícias eram mais serviços do que reportagens. Quando vim para o Rio,

em 1957, passei por diversas Redações. Alguns meses na Última Hora, ainda uma referência política. Passei pela Tribuna da Imprensa. Até que o Carlos Castello Branco me levou ao Odylo Costa, filho, que estava recrutando profissionais justamente para começar a reforma do JB. Que, é preciso dizer, foi feita também muito na base do improviso e da experimentação... A concorrência demorou a reagir. Mas como o JB tinha o monopólio dos classificados, estava com o mercado nas mãos. Os comerciantes faziam fila para comprar um espaço no jornal. Foi assim que empurramos o padrão para salários maiores. Muitas publicações sumiram naquele período pós-1964 pela incapacidade de lidar com a censura. E pela falta de modernização na relação com as agências de publicidade. Jornal da ABI – Para muitos, a venda do JB para o Nelson Tanure – uma figura controversa no meio empresarial – teria ajudado a selar o fim do jornal... Wilson Figueiredo – Não sendo um homem do ramo, ele não podia ter a cabeça do ramo. Um jornal é uma coisa muito subjetiva. Exige um equilíbrio... Jornal da ABI – Ele atuava apenas no campo empresarial, ou intervinha diretamente na linha editorial? Wilson Figueiredo – Ah, não tem como não influenciar na Redação, não é? Todo dono se mete... E o dono do jornal tem que ser do ramo exatamente por isso, para fazê-lo com alguma propriedade. Eu acredito que, de fato, ele queria salvar o Jornal do Brasil. Ele também queria, logicamente, não perder dinheiro. Não era um santo salvador, nem estava ali para fazer milagres. Assumiu o JB como um empresário que aposta num negócio. Só que os custos da empresa não paravam de crescer, inclu-

Jornal da ABI – É possível descrever o seu sentimento ao ver um jornal do porte do JB despedir-se das bancas? Wilson Figueiredo – Já disse algumas vezes que a importância do Jornal do Brasil para mim começou na infância, quando meu pai, lá no interior do Espírito Santo, passou a assiná-lo. Foi doloroso assistir a esse processo de decadência. O jornal foi acabando todo dia um pouquinho nos 20 anos que eu trabalhei lá e foi triste ficar impotente diante daquilo. Mas, em vez de falar da tristeza, eu prefiro falar do que ficou de melhor. E afirmo aqui que nunca soube de um fenômeno igual. Já faz mais de dez anos que ele acabou, ao menos no formato em que havia se consagrado, e anualmente, até hoje, o pessoal da Redação se encontra para um almoço, lá no Leme, na Fiorentina, marcado pela emoção. Só faltam os que já morreram... (risos) É uma profusão de histórias, de risadas, choro... É o retrato de um time. Jornal da ABI – Como explicar o declínio de uma referência jornalística, como era o JB? Wilson Figueiredo – Os jornais tendem a ser casamatas. O sucesso mexe com a cabeça de seus donos – que se sentem invencíveis. A prepotência vem daí. Você pode ver que os grandes jornais que sucumbiram sofreram esse revés porque em algum momento colidiram com o poder. Jornal da ABI – Os Nascimento Brito foram prepotentes? Wilson Figueiredo – O Manuel Francisco foi. E sua principal leitura equivocada foi de que o Brasil tivesse mudado, e não tinha... Aliás, acho que só mudamos mesmo com o fim da ditadura militar... Um jornal tem que manter sua independência de forma crítica e sensata. Não dá para declarar guerra nem prestar apoio absoluto. Veja esta lição histórica: o Getúlio Vargas tinha um jornal que o apoiava, a Última Hora. Ele não atacava o Presidente, pelo contrário, fazia o jogo político do Getúlio. De resto, atacava todo mundo, inclusive os ministros do Getúlio... (risos) E isso não salvou o Getúlio. Ele se matou! Logo depois, a Última Hora começou a morrer também... Um segurou o cadáver do outro... Repare que a reforma do JB, iniciada em 1957 em suas páginas, só foi mesmo concluída em 1973, com a modernização


Odylo Costa, filho e Wilson na Redação do JB na Avenida Rio Branco , em 1958.

ótimo. Sempre foi um homem de talento. Disse a ele que havia achado os desenhos muito bons, mas pedi que voltasse no dia seguinte, pois eu teria que conversar com o Diretor, que estava jantando, para mostrar sua produção... "Tá bom, eu passo aqui mais tarde!", disse o Ziraldo, cheio de vontade de agarrar aquela oportunidade. O Diretor gostou e decidiu contratá-lo logo, até para não haver interrupção na publicação: saía o Borjalo e, quase que de imediato, Ziraldo entrava em seu lugar. Cheguei a fazer um texto de apresentação do novato para os leitores do jornal. "Ziraldo Alves Pinto, guardem bem este nome, que ainda será muito famoso". Escrevi isso ou alguma outra bobagem do tipo, o que deixou o Ziraldo emocionado. Mas, ao longo de décadas, nos encontramos várias vezes e eu sempre mexi com ele. "Ziraldo, você é um sujeito engraçado! Me agradece pessoalmente, mas nunca publicou isso. Nunca deu um depoimento sobre isso, dizendo que fui eu quem te revelou". Sacaneei tanto o Ziraldo com isso que, agora, acho que ele cansou e começou a falar desse episódio... (risos)

do equipamento gráfico para atender às necessidades do novo prédio, localizado na Avenida Brasil, 500. Ali o jornal provou a embriaguez do sucesso. A nova sede era o sinal exterior da opulência. Jornal da ABI – Você citou o fim da ditadura. Como foi trabalhar no período militar, pós-1964? Wilson Figueiredo – O JB era um jornal que estava por baixo, pouco mais de um caderno de classificados, por isso mesmo não tinha nada que travasse ou impedisse sua reforma. O jornal começava a sair do anonimato para se apresentar ao grande público. Neste contexto da reforma, o novo posicionamento político da publicação foi definido, em grande parte, pelo Alberto Dines. A partir do golpe, quase todos os jornais sofriam absurdamente com a censura, num confronto penoso e direto. O JB atuava com certa liberdade, pois sempre que era proibido de publicar algo, dava um jeito de fazê-lo pelas entrelinhas, de forma sutil, inteligente e sem caráter ostensivo. O Jornal do Brasil sabia burlar a censura. Dines foi um chefe de Redação com grande capacidade de pensar, e com o talento de fazer as pessoas pensarem. O JB foi um veículo publicitário competente, uma escola de jornalismo e uma empresa na qual tínhamos orgulho de trabalhar. Não havia limites para o jornalismo. Nós fomos uma espécie de 'urubus da crise' – florescemos num momento em que o País mergulhava nas trevas da ditadura militar. O Estado de S. Paulo também agia assim, mas era uma publicação mais séria, carrancuda... No lugar de uma reportagem censurada, eles publicavam versos de Camões. O JB publicava uma paródia de Camões... (risos) Jornal da ABI – Como foi o processo de saída do Dines? Wilson Figueiredo – Geralmente, chefe em jornal não dura tanto tempo como Dines ficou, acho que por 12 anos. Ele conseguiu equilibrar o jornal. Antes dele, em poucos anos, o JB teve meia dúzia de chefes de Redação. O Alberto Dines era um jovem conhecido, com boas referências junto a escritores e empresários. A sua ida para lá foi fundamental para o crescimento do jornal. Ele teve uma visão que foi correta: atendeu às necessidades de uma empresa que estava voltando ao jornalismo, pois o JB de então, como já disse, era basicamente feito de classificados. E ele soube costurar bem a relação entre a Redação e sua parte comercial. Soube conduzir as reivindicações da Redação junto à direção do jornal, e não só no aspecto salarial, mas na abertura de espaço para inovações, de tolerância, de experimentações, para se contratar mais gente, abrir campo para sobra de energia criativa. E, por outro lado, deixava claro para o pessoal da Redação que os interesses da empresa eram legítimos. Tudo era discutido, até se

achar um foco adequado, que acomodasse a situação como um todo... Jornal da ABI – Mas isso certamente gerou um desgaste... Wilson Figueiredo – Ao longo do tempo, isso cansa, não é? A repetição dos problemas cansa... E ele saiu de uma maneira inesperada para todo mundo e até para ele mesmo. Não foi uma saída negociada. Houve uma divergência, um corte na relação dele com a empresa. E, no campo do jornalismo, pelo menos de imediato, não aconteceu nada demais, não houve conseqüência, pois o Dines já havia deixado tudo definido, consolidado... Jornal da ABI – Como era exercer a função de colunista ou editorialista sob a tensão de atender às expectativas da empresa jornalística? Wilson Figueiredo – Antigamente, um dono de empresa falava diretamente com o dono de um jornal. Hoje isso não acontece, porque se um jornal apóia uma determinada companhia, em um momento de crise empresarial, a imagem do veículo será manchada. Atendendo a um pedido do Dines, assumi uma coluna no primeiro caderno do JB. O contato diário com os diretores do jornal ajudaria a temperar o tom político do espaço, que se chamou Segunda Seção e depois passou a Informe JB. Acabei saindo da coluna em janeiro de 1965, assim que o Castello Branco começou a escrevê-la. Optei por sair após algumas divergências de opinião sobre como a coluna deveria ser. Não queria que fosse um espaço para notinhas ou fofocas. Já a direção do veículo queria que seus colunistas não divergissem da ortodoxia do jor-

“O Jornal do Brasil sabia burlar a censura. Dines foi um chefe de Redação com grande capacidade de pensar, e com o talento de fazer as pessoas pensarem.”

de escola. O Governo via a publicação como um lenço no bolso – não era a sua roupa inteira. Mas funcionava como enfeite social, uma gravata bonita. Era até engraçado, pois quando mudava o Governo era um alvoroço danado, até se encontrar a nova linha editorial de coerência... (risos) Ou seja, podia até mudar a figura do senhor, mas o jornal seguia firme em sua causa. O governismo é uma causa, não é?

nal. Ficou difícil trabalhar daquele jeito. Um colunista não pode se colocar contra a empresa, mas precisa de uma margem de liberdade crítica. Saí da coluna, mas continuei como editorialista e assinando matérias.

Jornal da ABI – Pelo visto, neste caso, era. (risos) Mas e o Ziraldo? Wilson Figueiredo – Ah, sim. Um dia o Ziraldo bateu na Redação, lá em Belo Horizonte. Naquele tempo o profissionalismo estava começando – os salários não eram bons, quase todo mundo tinha mais de um emprego em jornal. Todo mundo já havia saído, já era tarde. E eu ainda estava lá. Era uma quarta-feira, acho. A Folha de Minas havia acabado de perder o seu colaborador, que era o Borjalo, que tinha vindo para o Rio, para trabalhar na Manchete. Ele fazia uma página inteira, nos moldes em que as revistas francesas faziam, com personagens e piadas. E fazia isso muito bem! O Ziraldo viu a notícia da saída do Borjalo, correu para o jornal, entrou da Redação: "Dá licença!". E eu perguntei: "E aí meu filho? O que houve? Qual é o caso?". Ziraldo, do alto de seus 18 ou 19 anos, respondeu: "É que eu vim aqui para substituir o Borjalo". (risos) E eu: "Ah, não diga... Senta aqui pra gente conversar". E ele sentou-se e começou a me mostrar seus trabalhos, daquele jeito dele, de quem se tiver que morrer assassinado é pela frente... Pá, pá, pá! Começou a tirar páginas e mais páginas e a me mostrar tudo. Era um principiante, mas tinha um trabalho

Jornal da ABI – Você foi o responsável pelo lançamento do Ziraldo? Wilson Figueiredo – Fui. Acho que ele está falando nisso agora por uma questão de consciência... (risos) Podia já ter falado há mais tempo. Está falando só agora! A Folha de Minas era um jornal do Governo e, portanto, bastante limitado em sua atuação política. No noticiário, era obrigado a se conter e a tratar da defesa dos interesses do Governo. Aliás, esse caso serve para provar que governo não pode ter jornal, porque isso simplesmente não funciona. A Folha de Minas havia sido fundada por Afonso Arinos como publicação de oposição. Dois anos depois estava quebrada, quando foi vendida para um banco que era apenas o testa de ferro – era o Governo quem a estava comprando. Eu entrei nesse jornal logo depois disso. Estávamos numa democracia, no regime constitucional instaurado em 1946. Entrei em 1949 e lá fiquei até 1957, quando vim para o Rio. E aprendi muita coisa, era uma gran-

Jornal da ABI – Queria começar a falar do livro E a Vida Continua – A Trajetória Profissional de Wilson Figueiredo, lançado em 2011, pela editora Ouro Sobre Azul. Causou surpresa essa obra, pois você sempre teve aversão à idéia de uma biografia... Wilson Figueiredo – Isto foi resultado de um convite que a empresa em que trabalho atualmente me fez. Aqui, na FSB Comunicação, sou muito mais velho que todo mundo. Estou com 88 anos! E aqui é tudo garotada! O próprio dono deve ter uns 20 ou 30 anos a menos que eu. Fui me acomodando aqui e ali, e acabei virando para esse pessoal mais jovem uma espécie de referência. Sou 'o jornalista velho', que tem mais experiência. E aí me perguntam: 'Wilson, como é que a gente resolve este ou aquele problema? Como é que foi mesmo aquela história do Getúlio?'. E aí experimento sempre uma coisa muito boa, que é o jornalismo que traz. Jornal da ABI – Exatamente o quê? Wilson Figueiredo – O jornalismo reordena diariamente o seu modo de ver a própria História. Se você não lembrar das coisas, ou não souber relacioná-las com os novos acontecimentos, de nada valeu. Você ficou pra trás! Eu acompanhei o Brasil desde o Estado Novo – em 1937 eu tinha 13 ou 14 anos, e já lia jornal! Havia um esforço, uma tentativa de mobilização da opinião pública para a Guerra. E o Brasil não estava preparado para entrar nela. Primeiro, pelo fato de que tínhamos um Governo de direita. E havia um veto e uma censura permanentes à imprensa, de forma como não havia como pensar numa democracia por aqui – nem de

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DEPOIMENTO WILSON FIGUEIREDO

esquerda, nem de direita. Não havia debate político. Não havia Câmara, nem Senado, pô! O que houve na época foi uma mobilização estudantil para criar uma opinião favorável à entrada do Brasil na Guerra, quando começaram a ocorrer os afundamentos de navios. E o Brasil não reagia! Eu militei ativamente neste período. Participei de três Congressos da Une – realizados em 1944, 1945 e 1946. Houve, então, uma mobilização, um esclarecimento popular sobre essa questão. Entramos na Guerra. E quando ela já se aproximava do fim, todos já admitiam a idéia de que o Brasil se tornaria uma democracia em pouco tempo. O fim da Segunda Guerra foi bom, sobretudo, porque ninguém ousou pensar em outra coisa que não fosse criar um Estado de legalidade neste País. Essa foi a grandeza daquele momento. O Partido Comunista voltou à legalidade, os partidos de oposição começaram a aparecer... E eu participei de tudo isso, como prioridade pessoal na minha vida. Jornal da ABI – Pois é, Wilson. Você está falando de memória. Eu vou chamar isso de trajetória. Você, em quase sete décadas de atividade, atuou como repórter, redator, editor, colunista, cronista e editorialista. Cobriu o fim do Estado Novo, a Constituinte de 1946, o suicídio de Vargas, os anos JK e as loucuras de Jânio Quadros, chegando a prever, com dias de antecedência, a sua renúncia. Atuou, ainda, nos anos da ditadura, nas Diretas Já e chegou à redemocratização, com a saída de Collor, os tempos de instabilidade política com FHC e Lula. Não lhe parecia um pecado – no mínimo um desperdício – deixar tamanha experiência sem um registro documental, isto é, restrita apenas às suas lembranças? Wilson Figueiredo – Então, um belo dia o Francisco Soares Brandão, sóciofundador aqui da FSB, me chamou e disse: 'Eu tive uma idéia! Publicar um livro sobre a sua vida!". E eu respondi: "Ah, essa não! Não há hipótese, Chiquinho!". Sou arredio, não gosto desta exposição. Na verdade, sou tímido. Eu gosto é de conversar com os amigos. Até que reelaborei a proposta. "Façamos o seguinte. Vamos tratar da minha vida profissional, mas falando das coisas do meu tempo, passando pelos fatos que vi e vivi. Eu colaboro e coisa e tal". Pronto! Ele logo contratou uma empresa para editar o tal livro! Eu fiz algumas exigências. Algumas delas foram cumpridas, outras não... (risos) Jornal da ABI – Como assim? Wilson Figueiredo – Ah, pedi que eu tivesse a última palavra sobre tudo! Mas, claro, eles acabaram fazendo, meio que à revelia, uma espécie de roteiro, uma marcação do tempo, um negócio pequenininho assim bem do

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“Jornal ocupa a cabeça e a vida pessoal. É pior que paixão!” lado da página, onde foi construída uma cronologia da minha vida. Jornal da ABI – Ah, entendi... Acabaram entrando no livro mais coisas pessoais do que você gostaria... Wilson Figueiredo – É, mas nada que comprometesse. Acabei gostando. Acho apenas que o lado pessoal não tinha que entrar na minha biografia, pois ele não tem peso. Se eu tivesse um êxito social extraordinário... Mas eu sou uma pessoa comum. Minha família delirou. Pois os familiares, você sabe, acham que a gente deve se expor. Eu acho justamente o contrário! Mas tudo bem... Jornal da ABI – O jornalista Moacyr Andrade foi o organizador do texto. Você, com suas exigências, deu muito trabalho pra ele? Wilson Figueiredo – Acho que sim... (risos) Se bem que ele não é muito de reclamar, nem de falar. Agora, no dia de lançamento do livro, na Travessa do Leblon, ocorreu algo de curioso. Eu fiquei em pé por quase seis horas, sem sair do lugar, num espaço de dois metros quadrados, cercado de gente por todo o lugar. E o Chiquinho falou: "Não, você não vai dar autógrafos. Isso a gente combina com a pessoa, que ela receberá em casa, depois...". Na verdade, eu teria vergonha de fazer uma dedicatória padrão pra todo mundo: 'Para fulano de tal, com a admiração e o abraço do Wilson Figueiredo'. Não! Para cada um eu teria que escrever algo particular. Sou assim... Sei é que eu quase fui ao inferno no mês de dezembro de 2011, de tanto livro que assinei, com as tais de-

dicatórias personalizadas... Eu quase não me lembro de mais nada daquele período. (risos) Parece que nem vivi... Em janeiro do ano passado minha mulher, Lourdes, tinha que fazer uma operação cardíaca. Teve que adiar para fevereiro, ficou para 2 de março. Ela morreu logo depois, no dia 4. E eu com problemas de coluna! Foi um horror, era o fim da picada! Mas, é o que eu disse: os relatos pessoais não devem pautar a minha vida... Posso até falar aqui, nesta entrevista, mas não há por que isso estar num livro...

tipo de coisa toda. Essa minha experiência é anterior! Quando cheguei à capital mineira, em 1943, tinha 18 anos. Não conhecia ninguém! Fui fazer o científico e caí num colégio chatíssimo. Ia estudar Medicina. No meio do ano, já não agüentava mais. Aí conheci o Sábato Magaldi, o Autran Dourado... E foi assim que passei a viver a literatura. Em 1944 eu conheci o Mário de Andrade, e como eu morava em pensão de estudante fiquei companheiro dele nas saídas noturnas em Minas... E como ele gostava! Falava de samba à beça. Noel Rosa... E eu sabia tudo! Mas quando comecei a trabalhar em jornal, aconteceu o inevitável: o dinheiro me mudou a cabeça. Aí comecei a redesenhar minha vida.

Jornal da ABI – Com o perdão do trocadilho, tamanha dedicação na escrita das dedicatórias parece mesmo coisa de poeta... Wilson Figueiredo – Antes de ser jornalista, fazia versos, queria ser escritor, como todo jovem. Editei dois livros. Depois me arrependi. E jurei que não faria mais. Tinha sido bem acolhido pela crítica. Criei expectativa de que seria escritor. Mas, logo depois, queria sair. A rotina de jornalista era exigente, mas estimulante. Jornal ocupa a cabeça e a vida pessoal. É pior que paixão! Meu primeiro emprego foi na Agência Meridional, dos Diários Associados, na Redação do Estado de Minas, em Belo Horizonte, em 1944. A mudança de rumo profissional se deu também a partir desse emprego que Castellinho me arrumou. No mercado de jornais, tinha um escalonamento. Existia uma categoria que desapareceu, que era o noticiarista, profissional que reescrevia a notícia. Havia o repórter e o redator, que era o mais qualificado. Entrei como noticiarista, e quando recebi o primeiro salário me senti rico, aos 20 anos de idade. Isso foi determinante não para eu mudar da literatura para o jornalismo e, sim, para alterar minha vida. Eu já lia, fazia literatura, já tinha feito revistas, esse

Jornal da ABI – O livro trata do seu talento literário e de sua relação de amizade com quatro grandes escritores, todos mineiros. Nos seus tempos de poeta, você andou na turma de Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Em que medida a convivência com eles definiu sua trajetória profissional? Havia, por exemplo, alguma espécie de pressão para que você se dedicasse apenas à literatura? Wilson Figueiredo – Eu me preparava para o vestibular de Medicina por uma escolha tácita de família, pois nenhum dos quatro filhos homens de meu pai quis seguir a sua profissão. Quando fui morar na tal pensão de estudantes, logo me enturmei com o pessoal da literatura. Esses quatro já marcavam presença nos suplementos literários. Bom, o Otto era mais velho e já trabalhava com jornalismo quando vim para o Rio. O Sabino também já escrevia para jornais. E isso tudo era muito novo, porque o jornalismo antigo era feito por outro tipo de gente. O jornalismo é um exercício literário, também. Não parece, mas é. Eles me estimulavam, mas não tentavam exatamente me fazer apenas um es-

critor, até pelo fato de todos eles, com maior ou menor intensidade, também se dedicarem ao jornalismo. Jornal da ABI – A seu respeito, o polêmico Nelson Rodrigues escreveu: "Geralmente, nós, jornalistas modernos, temos a mania da objetividade, por isso, não enxergamos nada, somos cegos para as evidências mais ululantes. O Wilson, não. É poeta e, como tal, está sempre a um milímetro do delírio". Como recebeu estas palavras? Wilson Figueiredo – Nelson tinha mania de fazer dos amigos, personagens. Fomos ficando amigos. E ele me tornou 'profeta do Fluminense'. Escrevia dizendo que eu garantia a vitória do Flu no domingo toda vez que a anunciava. Só que o Fluminense sempre perdia... (risos) Ele achava que o texto devia ser pessoal. Mas o jornalismo moderno, além de apressado, é impessoal. Você lê uma notícia e não sabe quem a escreveu. Tem um padrão, tem um método técnico. Nelson gostava quando o autor aparecia por trás da matéria. A formação jornalística dele é anterior à guerra. O jornalismo americano, que é o modelo que seguimos atualmente, chegou ao Brasil depois da guerra, no fim dos anos 1950. Em Nelson, tudo se resumia à maneira pessoal de dizer as coisas. Ele era personalíssimo, inconfundível e chegava a ser repetitivo. Era um catador de adjetivos de precisão anormal. Jornal da ABI – Como ocorreu sua formação jornalística? Wilson Figueiredo – No meu tempo, jornalista não tinha diploma, não havia curso específico. Era na faculdade de Filosofia que havia um curso de jornalismo. Como você sabe, eu desisti da Medicina e fui fazer jornalismo. No que comecei a entrar nisso, fui aprendendo. Eu trabalhava com Carlos Castello Branco, trabalhava ao lado dele. É preciso lembrar que no fim da Guerra não existia notícia política no Brasil. E havia


Wilson Figueiredo ao lado do então Senador Fernando Henrique Cardoso, em recepção na casa de José Antonio do Nascimento Brito na década de 1980. Na página ao lado, o jornalista na Redação do Jornal do Brasil no final da década de 1950.

“O jornal precisa do repórter que sai, que vai para a rua e sabe do que está falando – sabe que é uma profissão. Sabe tratar a notícia.”

uma coisa da qual as Redações, depois, se livraram: como não havia notícia local, muito menos em Minas, os jornais tinham colaboradores. E o noticiário era nacional, no sentido de que o Poder Executivo abastecia as Redações com informação de construção de pontes, viagens de ministros... Eu trabalhava com esse material. Sobretudo na altura que entrei pela primeira vez numa Redação, em 1944, os jornais já viviam da

Guerra. De um lado os russos avançavam. Do outro, os ocidentais, americanos, ingleses... A coisa estava avançando aos pouquinhos, a feição do mundo mudando e a liberdade recomeçando. Aos poucos, os jornais tinham mais liberdade para noticiar o que era proibido antes. Até então, era um terror, a censura era violenta! O que eu fazia, nessa época, foi muito bom para mim, supriu a ausência de uma escola de jornalismo. Os jornais

se abasteciam com telegramas, e todos eles chegavam para mim. Eu separava o que era noticiário nacional e internacional, pegava o internacional e juntava cinco, seis agências... O jornalismo era diferente naquele tempo; você tinha menos redatores e mais material. Recebia uma versão da agência e fundia aquilo tudo em uma matéria, com telegramas de 30, 40 linhas, entrevistas. Ao lidar com tudo isso fui aprendendo. Eu estava

na Agência Meridional, que funcionava dentro do Estado de Minas. Por vezes, acho que falta esse tipo de experiência aos colunistas atuais. Temos, por exemplo, o caso de um editor de O Globo, que há pouco ingressou na Academia Brasileira de Letras. Ele desempenha sua função com competência, mas sem um brilho especial no texto... Depois de Minas, já no Rio, trabalhei em O Jornal, outro que desapareceu. Era um dos veículos mais importantes dos Associados, que tinha uma cadeia de mais de 50 jornais. A produção toda era local, não havia como mandar para outro lugar. Tinha que mandar pelo telefone – o que era uma tortura – ou por teletipo que era por código... Um horror! Um atraso total! Essa foi minha iniciação no jornalismo. Jornal da ABI – Qual sua opinião a respeito da polêmica sobre a não exigência do diploma para o exercício da profissão? Wilson Figueiredo – No meu tempo jornalista não tinha diploma. Sequer havia curso. Não tenho uma

opinião dogmática. O jornalismo de hoje só foi possível porque usou como mão de obra jornalistas que fizeram curso e chegaram com o diploma. Essa mania de combater o diploma não quer dizer nada. Talvez alguns precisem disso em um País de precário nível social. Mas o jornal precisa do repórter que sai, que vai para a rua e sabe do que está falando – sabe que é uma profissão. Sabe tratar a notícia. Os cursos de Jornalismo fizeram um bem enorme para a profissão. Acabar com a exigência do diploma, na verdade, apenas desestimula o jovem a estudar. Jornal da ABI – Wilson, aos 88 anos, a vida continua? Wilson Figueiredo – Ah, sem dúvida... Sabe que outro dia me dei conta de que quando eu comecei a trabalhar eu não lia jornal como leio hoje. Hoje sou um leitor muito mais apurado, atento. É que no começo eu tinha uma cabeça cheia de idéias. Hoje eu tenho a mente mais aberta, eu quero saber sobre os problemas da China, do que ocorre lá do outro lado do mundo... (risos) E me permito pensar outras coisas, como organizar uma edição com as minhas poesias produzidas nas últimas décadas – tenho várias delas guardadas, que precisam ser organizadas. Prestes a botar o pé no último degrau antes de chegar aos 90, eu continuo olhando a vida com muito interesse. Ainda tenho muita curiosidade... Você não? Ah, você tem também! Eu vejo que tem...

A vida continua POR F RANCISCO S OARES BRANDÃO

Quando soube que o jornalista Wilson Figueiredo estava deixando o Jornal do Brasil após mais de 40 anos de dedicação, não tive dúvidas: precisava trazê-lo para fazer parte da equipe da FSB Comunicações. Não que fôssemos amigos ou muito próximos. Na verdade, havia estado poucas vezes com ele – lembro-me de termos sido apresentados casualmente num almoço no Copacabana Palace. Mas conhecia sua reputação e admirava seu trabalho, que acompanhei durante muitos anos por meio de minha amizade com o velho Nascimento Brito e com seu filho, José Antônio. A lógica para mim era simples: poder contar com a experiência de tantas décadas de jornalismo do Wilson, então com pouco mais de 80 anos de idade, em prol de nossos clientes e de nossa equipe. Hoje, mais de sete anos depois, tenho certeza de que tomei a decisão correta. Wilson tornou-se uma doce e importante influência para o time da FSB Comu-

nicações, tanto para os jovens quanto para os experientes. Testemunha privilegiada – como repórter, editor, editorialista e cronista – de todos os fatos que marcaram a história deste País desde o fim dos anos 1930, Wilson cobriu o fim do Estado Novo, a esperança da Constituinte de 1946, a tragédia de Vargas, o surgimento de um novo Brasil no período Juscelino, as loucuras de Jânio (dizem que ele foi o primeiro a prever a possibilidade de renúncia do então presidente...), a instabilidade política pré-1964, os anos de chumbo da ditadura, o renascimento da democracia, as agruras da década perdida e a consolidação de nosso jovem regime democrático. Hoje, na FSB, tornou-se um amigo, companheiro e uma fonte de inspiração. Mais do que isso: Wilson é uma peça importante na operação da agência e uma referência permanente para todos nós que temos o prazer de desfrutar da convivência diária com essa figura singular – pelo caráter e pela história de vida.

Tivemos a oportunidade de nos aproximar ainda mais quando surgiu a idéia de fazermos sua biografia para marcar o 30º aniversário da FSB. O projeto surgiu num almoço que realizamos com o jornalista Ancelmo Góis, em setembro de 2010, no restaurante Gero. Logo fiquei entusiasmado com a possibilidade, principalmente quando soube que, por incrível que pareça, ele não havia ainda registrado suas memórias. O resultado foi o livro E a Vida Continua – A Trajetória Profissional de Wilson Figueiredo, lançado oficialmente no dia 1º de dezembro de 2011, na Livraria Argumento, no Leblon. A repercussão foi tanta que o livro ganhou as páginas dos principais jornais brasileiros, incluindo O Globo, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense e O Estado de Minas, em resenhas detalhadas e elogiosas. A festa de lançamento, apesar da chuva fina que caiu sobre o Rio naquela noite, também foi um sucesso. Entre os mais de 400 presentes,

se encontravam personalidades da política, das artes e do jornalismo, como Oscar Niemeyer, Marcello Alencar, Marcílio Marques Moreira, Carlos Heitor Cony, Sábato Magaldi, Villas-Bôas Corrêa, Danuza Leão, Ruy Castro, Francelino Pereira, Jorge Bastos Moreno, Sérgio Cabral, Flávio Pinheiro, Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant'Anna, Chico Caruso, Luiz Paulo Horta, Ana Arruda Callado e Sebastião Nery, além de outras tantas presenças ilustres.

No livro, após relatar suas memórias de tantas décadas de Redação, Wilson fala sobre seu trabalho na FSB e sobre o novo mundo que encontrou no universo da comunicação corporativa. Faço minhas as palavras dele: "Estar no chamado 'outro lado do balcão' foi descobrir que o jornalismo continua a salvo e capaz de múltiplas utilizações e aplicações. Isto é, variam os meios, mas o jornalismo é o mesmo, com diferentes roupagens ditadas pela necessidade". O livro foi a primeira experiência da agência nessa área e marcou de forma inesquecível nosso aniversário de 30 anos. Significou também poder fazer justiça a um dos mais importantes jornalistas deste País e registrar uma parte de tudo aquilo que ele viu em décadas de profissão. Foi também nossa singela forma de homenagear o amigo e companheiro Wilson Figueiredo, que hoje ajuda a construir a história da FSB Comunicações. FRANCISCO SOARES BRANDÃO é sóciofundador da FSB Comunicações.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/ACERVO PESSOAL

DEPOIMENTO

Jornal da ABI – Como aconteceu de você fazer sua opção pelo jornalismo? José Armando Vannucci – Meu pai é músico, ele era do Trio Marayá, trabalhava na Record e se apresentava inclusive nos grandes festivais de música daquela época. Quando terminou essa fase dos festivais e acabaram os musicais, ele foi para a publicidade e começou a fazer jingles. E aí, sempre que meu pai precisava de um garoto para cantar, ele chamava meu irmão, que era mais afinado do que eu. Mas quando precisava falar alguma coisa, era eu que ia. E aquilo foi me envolvendo... eu gostava de acompanhar as gravações no estúdio. Então eu sabia que queria alguma coisa na área de comunicação. A televisão me fascinava. Eu assistia a televisão junto com o meu pai, mas o que me fascinava era a notícia. Assistia a tudo, mas o de que eu gostava era mesmo de programas de entrevista. Jornal da ABI – Com que idade? Vannucci – Uns 12 anos. Jornal da ABI – Isso era pouco usual para uma criança... Vannucci – Eu via tudo. Assistia com a minha mãe e meu pai; todo mundo dormia muito tarde. Jornal da ABI – Sua mãe tinha alguma ligação com a área? Vannucci – Não, foi dona de casa e bancária.

P OR F RANCISCO U CHA E C ESAR S ILVA

Filho do músico Behring Leiros, do Trio Marayá, famoso grupo vocal das décadas de 1950 e 1960, José Armando Vannucci cresceu acostumado ao ambiente de rádio e televisão. Logo, não foi surpresa quando em março de 1990 ele começou a estagiar na Rádio Jovem Pan, ainda no tempo da faculdade. Seu plano era simples: ficar dois anos lá e, depois, começar a trabalhar como jornalista em alguma revista. Mas sua paixão por aquele ambiente falou mais alto. Hoje, 23 anos depois, Vannucci conta com orgulho que passou por todos os setores da rádio e conhece o veículo como poucos. Na Jovem Pan 18

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acumulou experiência profissional trabalhando, tanto nos bastidores quanto em externas ou no microfone. “O jornalista tem que conhecer o todo”, não cansa de dizer. Nesta entrevista ao Jornal da ABI, Vannucci fala um pouco de sua formação; conta como a rádio teve que se reinventar várias vezes desde sua primeira transmissão no Brasil, há 90 anos; lamenta que os empresários da área de comunicação escolham, na maioria das vezes, o caminho mais fácil; e fala também da época em que foi professor e de seu trabalho como jornalista especializado em televisão. Afinal, não é só de fofoca que vive esse veículo.

Jornal da ABI – Tem algum programa que tenha sido uma referência e motivador na sua escolha profissional? Vannucci – Um pouco mais velho eu gostava de assistir às entrevistas de Marília Gabriela no programa Ponto de Encontro, que vinha logo depois da TV Mulher. Chegava da escola a tempo de ver! Eu estava na oitava série. Gostava daquilo, gostava do jeito que ela entrevistava, do jeito que ela saía da pauta e conseguia envolver o entrevistado. Jornal da ABI – Você já falou isso para ela? Vannucci – Não. Fiz algumas entrevistas com ela e cada vez que eu a encontro penso: “Falo ou não falo?”. (risos) Naquele programa ela me ajudou a decidir muita coisa, inclusive a profissão. Tanto é que o que eu mais gosto de fazer é conversar. Eu não sei fazer entrevista. Até quando não estou cobrindo televisão, que é a minha área, quando tenho que fazer Geral ou alguma outra editoria, eu sei é conversar, que é o que a Marília Gabriela sabe fazer e é por isso que ela faz brilhantemente as entrevistas. Ela vai conversando com a pessoa e tira tudo dela. Ela faz grandes entrevistas. E eu gosto disso, dessa troca, do batepapo. Toda a boa notícia começa a partir do que alguém conta. Se você não tiver as melhores perguntas, não vai ter a notícia.


Jornal da ABI – A faculdade o ajudou em sua formação? Vannucci – Na verdade, para mim a faculdade foi mais uma troca de experiências. Não que eu não acredite na faculdade, mas eu vejo muita gente recém-formada com uma base muito ruim. Mas na faculdade eu estava disposto a conversar. O professor que estava me dando aula era mais do que um professor. Era uma fonte de informação. Jornal da ABI – Você começou a trabalhar na rádio antes de se formar? Vannucci – Sim. Quando comecei a trabalhar na Rádio Jovem Pan eu estava no segundo ano da faculdade. Eu queria trabalhar na Pan durante dois anos e depois fazer revista. Precisava dessa experiência de dois anos. Só que eu tive Fernando Vieira de Melo como grande mestre. Em cada reunião de pauta ele dava um show. No final, gostava de trocar informações com os mais novos. Então juntava a vontade de fazer perguntas à curiosidade. Por isso eu acho que a faculdade funcionou mais nessa troca de informações, pois quem está ali para ensinar pode ajudar a lapidar o aluno. Jornal da ABI – Você acha que o aluno tem que procurar logo cedo seu caminho na profissão? Vannucci – Acho que é o aluno quem faz a faculdade. Isso é uma característica minha desde moleque. Eu não posso desperdiçar este momento: desta conversa com vocês eu vou levar alguma coisa para a minha vida e para o meu trabalho. Frases ficarão guardadas e de alguma maneira eu vou usar. Quando vou gravar o Troféu Imprensa com o Sílvio Santos, uma conversa de apenas cinco, dez, minutos que eu troque com ele, vou levar informação suficiente para, meses depois, aproveitar no meu trabalho. E a faculdade vai nesse sentido. Ali existem pessoas que estudaram e estão ali para ensinar. Naquele momento elas sabem muito mais do que o aluno. Então, tem que haver uma troca. E não só o conhecimento acadêmico, que eu posso obter em livros, mas as experiências delas. Eu tinha um professor de diagramação cujas histórias que ele contava sobre os bastidores de uma Redação até o jornal ganhar forma no papel eram fantásticas! Eu levo isso para o resto da vida! Conforme ele ia explicando aquilo, muitas pessoas saíam da aula. Depois ele batia papo com os que ficavam. A faculdade me formou dessa maneira, nessa troca que eu tive. Jornal da ABI – Quando você entrou na faculdade, o Jornalismo foi a primeira opção? Vannucci – Quando eu prestei vestibular, passei na Fiam e na Cásper, e acabei na Fiam porque eu estava um pouco contaminado pela idéia do

meu pai de fazer publicidade. Eu já trabalhava em estúdio e na época se falava muito no laboratório da Fiam, a faculdade era nova... então, minha opção se deu muito por causa dessa tecnologia, da possibilidade de treinar e me lapidar lá. E eu usei muito os laboratórios de tv, rádio, diagramação. Mas quase acabei em publicidade. Eu só reconheço a presença forte do diaa-dia do meu pai agora, que é poeta, escreve. Na época, eu achava que era independente, mas hoje percebo que ele era um espelho, porque desde moleque eu o acompanhei nas gravações, sabia como ele construía um jingle, como surgia a canção no momento da composição, o valor que ele dava para o texto e como aquele texto se transformava em algo musical. Mas eu tentava contestar com aquela rebeldia de adolescente, de ser diferente. A leitura era uma constante em casa e desde pequeno eu sempre dei muito valor ao texto. Como esse texto ganha forma, seja ele a letra de uma música ou um roteiro para cinema, teatro, ou ainda quando vira notícia no jornal, numa revista, na rádio. Isso sempre me fascinou. Jornal da ABI – Você falou que pretendia ficar somente dois anos na Jovem Pan. Este foi seu primeiro emprego? Vannucci – Em grande empresa, foi. Eu tinha trabalhado em jornal de bairro, estagiei em algumas agências, coisas pequenas que um moleque de 17 anos podia fazer. Eu tive um professor de Economia que falava que o ideal na carreira era mudar a cada dois ou três anos. Como não há estágio no Jornalismo, a Jovem Pan oferecia a Rádio-Escuta. Então eu tinha esse plano de ficar na Jovem Pan dois anos e ir para uma revista escrever sobre Economia, que era uma coisa bacana.

Jornal da ABI – Você queria se especializar em Economia? Vannucci – Quando você entra numa faculdade e começa a conhecer mais o jornalismo e vê como funciona, as áreas mais “respeitáveis” são Economia e Política. Mas as pessoas também gostam de entretenimento, gostam de algo que possa levar a alguma reflexão. Eu cubro uma área que normalmente é avaliada como a futilidade da futilidade, que é falar sobre televisão, sobre teatro, cinema, entretenimento. Algumas pessoas até criticam e acham que isso não é cultura, que cultura tem que passar por literatura... Mas tenho um grande retorno porque as pessoas gostam e eu cubro essa área fazendo jornalismo de verdade. Bom, depois de dois anos eu pensei que estava na hora de sair da Jovem Pan, que chegara a hora de fazer revista. Então eu trabalhava meio período na Jovem Pan e fazia revistas empresariais, house-organs, fazia matérias para sindicatos. Mas a Rádio sempre foi me oferecendo coisas mais interessantes. Em dois anos, saí da RádioEscuta e comecei a fazer Jovem Pan Serviços, que eram matérias de consumo. Começava pelo telefonema do ouvinte, que ligava e reclamava de alguma coisa. Foi na época em que surgiu o Código de Defesa do Consumidor. Então a pessoa reclamava que tal lugar não respeitava o consumidor, e eu tinha que transformar numa reportagem aquela reclamação do ouvinte, num boletim com uma sonora, ou duas sonoras. Daí surgiu a possibilidade de ir para o Jornal Mulher, que era no período da tarde e era apresentado pela Maria Elisa Porchat. Ela precisava de alguém para fazer uma série de reportagens diferentes, que nenhum outro repórter queria. E ela me perguntou: “Você topa?”. Eu topei. A pri-

meira foi sobre um acampamento no período de férias, na época que estourou a primeira versão de Carrossel. Ela falou: “Vamos compreender esse fenômeno de uma novela mexicana voltada para crianças”, e isso virou uma série de cinco matérias. Aquilo deu certo, foi caminhando, eu fui para a Produção, depois para a Edição Geral, fiz Chefia de Reportagem. Um belo dia o ‘Seu’ Tuta (Antonio Augusto Amaral de Carvalho, Presidente da Rádio Jovem Pan) me falou: “Estou querendo fazer algo diferente sobre televisão, uma coluna. Eu sei que você gosta, que você assiste, que você conhece as pessoas, a gente não vai bater em fofoca, vai falar do mercado de televisão”. Jornal da ABI – Isso foi há quanto tempo? Vannucci – Faz uns 15 anos. Jornal da ABI – Você havia abandonado a idéia das revistas? Vannucci – Eu já estava contaminado pelo rádio, apaixonado pelo rádio. O rádio é assim. Jornal da ABI – Os veículos especializados que cobrem televisão só estão interessados no supérfluo, na fofoca. Com a força e a qualidade que a tv tem, não há espaço para uma publicação de peso nessa área? Vannucci – Acham que é mais fácil para comercializar revistas de fofoca. É mais fácil mostrar “popozudas”, artistas desfilando em Copacabana, quem passou o final de semana com quem, o BBB... Outro dia eu estava na TV Gazeta conversando com o maquiador, e tinha uma revista Caras. Eu comecei a folhear a revista e parei numa página com quatro notícias sobre artistas, e uma delas falava de um ator que estava

José Armando Vannucci entrevista Paula Toller para o especial de reveillon da Jovem Pan em 2002.

com a namorada na praia usando tablet. E essa era a notícia! O texto trazia a pergunta: “O que o fulano estava pesquisando no tablet e mostrando para a namorada?” Aí desmoraliza. Poderia falar sobre os projetos do ator, o que ele está preparando... Jornal da ABI – Mas por que não existe um veículo que publique assuntos mais profundos? Vannucci – Porque precisa haver alguém com visão. Como o ‘Seu’ Tuta, que me falou: “Eu não quero o fácil, não quero a fofoca”. A Jovem Pan é uma rádio com 24 horas de jornalismo e as pessoas gostam de saber notícias sobre televisão. Mas se entrar nessa de fofoca, desmoraliza. Quando eu comecei a fazer, logo no começo, precisava ter fontes, e o primeiro acesso que tive foi a audiência, que poucas pessoas publicavam na época porque ninguém entendia muito de audiência. Sônia Abrão tinha uma coluna no Diário Popular e, de vez em quando, citava audiência. Percebi que poderia ser um caminho. E comecei a falar daquela guerra entre o Gugu e Faustão toda segunda-feira, consegui fazer amizade com uma pessoa que tinha acesso ao minuto a minuto, que fazia a média, e eu pegava esses dados à uma hora da madrugada. Gravava o boletim meia hora depois para entrar às seis da manhã, e os caras das agências ouviam para saber qual programa deu mais audiência. Aí eu comecei a ver que tinha gente que gostava disso. Então decidi explicar como funciona a audiência para o público. O que representa um ponto de audiência? O que representava, naquele momento, a briga do Gugu com o Faustão? O que o “sushi erótico” representou? Eu poderia só mostrar, ficar só na foto daquela mulher nua no Faustão, com os sushis em cima. Mas o que representa aquilo? Por que se tomou aquela decisão? Qual foi a conseqüência? E comecei a ter retorno de pessoas que diziam: “Bacana você falar disso, botar lente em algumas coisas que ninguém está olhando”. Na mesma época, a Veja começou a fazer um trabalho sério com o Ricardo Valadares, a Folha começou a fazer a coluna dela, com o Daniel Castro, e ficou uma coisa diferente do que existia antes. Jornal da ABI – Não é muito pouco para um País que é conhecido por ter uma das melhores televisões do mundo? Vannucci – Há uma matéria do Daniel Castro, que foi uma palestra da Max Mídia, que dizia que televisão é o terceiro hábito do brasileiro! Só perde para comer e dormir. A televisão é o terceiro hábito... está acima do sexo. Se formos usar as médias que existem, sexo se pratica três vezes por semana em média, enquanto televisão a maioria das pessoas assiste de segunda a segunda. É mais freqüente. Mas eu acho que falta mes-

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Em 2010, quando o apresentador Raul Gil assinou com o SBT, Vannucci o entrevistou no Restaurante Praça São Lourenço, local da coletiva organizada pela emissora.

mo dar essa seriedade. Na TV Gazeta, quando me chamaram para falar sobre os bastidores da televisão, eu disse: “Não vai dar certo falar numa televisão sobre televisão”. Jornal da ABI – Por quê? Vannucci – Imagine uma tv falando de outras tvs. Muitas coisas que eu aponto como erradas nas outras são um problema de todas, do sistema. É comum a elas. A Globo tem um esquema mais industrial, mais profissional, a engrenagem funciona de outra maneira, mas todas têm os mesmos problemas. São humanos comandando, têm os seus interesses, há o interesse da empresa, há muita vaidade. Então, eu achava que não ia dar certo. Tanto que o meu acordo no começo foi fazer só três meses. Eles queriam alguém que falasse de novela e me convidaram para o jantar do Ronnie Von, logo que o seu programa (Todo Seu) saiu do período da manhã e foi para a noite. Aí ele fez lá o jantar e a diretora falou que deu uma química. O Ronnie gostou, e umas duas semanas depois eles me chamaram: “Topa fazer toda semana?” Eu falei “Não vai dar certo”. Mas a gente caminhou. Eu falei que não ia falar da vida das pessoas, quem está namorando com quem. Jornal da ABI – O fato de eles terem escolhido você já não era uma sinalização de que não queriam fofoca? Vannucci – Eles não queriam fofoca. Até porque o Ronnie não é disso. E eu já estou lá há seis anos. Hoje dá audiência, tem retorno de telespectador, tem email, tem anunciante, está bem vendido, e tem mais do que isso. Há a reação das pessoas, que chegam e falam “Eu aprendi a olhar a televisão de outra maneira”. É claro que às vezes me param na rua para saber o que vai acontecer na novela e essa é a parte divertida. É legal contar isso. Mas é legal também respeitar e não contar. Às vezes eu até sei como vai ser o final da novela, mas eu sei o quanto custou para o autor bolar aquele suspense todo. Então, eu dou as pistas, mas tenho que respeitar aquele trabalho. Eu já não dei notícias por não acreditar na fonte, e o fato aconteceu. Porque eu sempre procuro alguém para confirmar a informação e quando não consigo checar não dou a notícia. Eu tenho como princípio só dar uma notícia que eu checo. É claro que, muitas vezes, a minha fonte vai me contar algumas coisas pelo seu filtro, pelo seu interesse. Há gente que tem interesse. Mas eu preciso ter uma confirmação, pois às vezes as pessoas exageram. Isso eu levei para a tv. Porque o bacana da televisão é mostrar como a soma de trabalhos mobiliza as pessoas. Essa é a parte mais bonita da televisão. Jornal da ABI – Acabamos de comemorar 90 anos da primeira

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transmissão de rádio. Quando chegou a televisão, falaram que o rádio ia acabar e não acabou. E agora, com a internet? Vannucci – A rádio está se reinventando. Não só no Brasil, mas no mundo. A rádio se reinventou quando chegou a televisão, se reinventou de novo quando a televisão conseguiu ter a agilidade que a rádio tinha e a produzir com uma condição melhor. E agora, com a internet, a rádio está se reinventando mais uma vez.

deu. Foi parar na Câmara Municipal, tentaram fazer uma lei para definir horários, mas, enfim, não foi para frente.

Jornal da ABI – O rádio tem essa característica de fazer companhia. Vannucci – Hoje em dia a televisão está quase como o rádio. Se você pegar de manhã, todas as tvs, a programação é quase de rádio. Bom Dia São Paulo, Bom Dia Brasil, Ana Maria Braga e o programa da Fátima Bernardes. É tudo estrutura de rádio, para o público ficar ouvindo enquanto faz outras coisas. O rádio antes era seu companheiro, e era sua única fonte de informação instantânea. A televisão demorava para chegar, o jornal só no outro dia; a revista, no final da semana. Hoje, a internet até chega antes, mas o rádio vai lhe dar algo a mais, vai ser a sua companhia. Jornal da ABI – Você não vê sinais de desgaste neste novo século para a rádio? Vannucci – O veículo vai ser obrigado a ter mais mobilidade ainda, ter condições de estar no celular, por exemplo. É até melhor para a gente, porque o AM hoje não pega nas grandes cidades. Tem muita interferência, muitos prédios, o sinal é ruim, mas no celular não teria problema. O celular vem com sintonia no FM, e o AM pode baixar um aplicativo que transforma e você ouve. Mas a essência do rádio, de ser companheiro, vai continuar sendo mais do que nunca. Eu acho que a internet vai prejudicar mais a televisão do que o rádio, porque em alguns lugares você não consegue levar a televisão, por mais que queira, como no carro, que é contra a lei. Tem gente que bota, mas é proibido. A principal informação da televisão está na imagem. E a internet vai pegar o conteúdo da televisão. Se eu perdi na televisão, posso ver na internet depois. Esse é o medo da Globo, de liberar para audiência em demanda. Jornal da ABI – Estamos falando de um novo modelo de negócio para a televisão. Vannucci – Para o rádio também. Jornal da ABI – Você não acha que os empresários da área estão muito conservadores? Vannucci – Acho que todo mundo está tentando prever o que vem aí. Na Copa de 2014, por exemplo, as pessoas poderão assistir aos jogos até pelo celular. As emissoras sabem disso, tanto de rádio quanto de tv. Isso é uma realidade. O mundo mudou.

A gente tem que oferecer algo a mais para o ouvinte, para o telespectador. Ele tem que participar mais. Ninguém mais ouve o rádio sentado. O ouvinte quer participar, passar informação, interagir, porque a internet mostrou que ele pode fazer isso. Está todo mundo com um certo medo. Mas pode pulverizar também, de repente não faturar tanto nos comerciais, mas vender acesso. Porém, mais do que tudo, além da transformação do rádio e da televisão, a internet está transformando tudo, está mexendo até com a profissão de jornalista. Não que o jornalista vá sumir, mas a gente vai voltar a ser muito mais opinativo do que retratista. As coisas que acontecem na rua, que antes precisavam obrigatoriamente de um repórter para contar para outras pessoas, hoje podem ser contadas por um cidadão comum. O registro do fato qualquer um faz. Tanto que hoje as tvs mostram gravação de celular, de alguém que não tem o olhar jornalístico, mas sabe que aquilo é importante e grava, posta num blog, posta na internet. A televisão replica isso. Mas a análise, a opinião, a sensibilidade do jornalista precisam ser mais lapidadas. Aí volta a ter importância a faculdade como troca de experiências, de se ouvir os mais velhos que vivem aquilo e que vão formar os mais jovens. Jornal da ABI – O futebol ainda é um dos principais produtos do rádio, não só o jogo em si, mas também os programas pré e pós jogos. Vannucci – É a opinião... o que vale é a opinião. Vale a opinião do Vanderlei Nogueira. Vale a opinião do Carsughi (Claudio Carsughi).

Jornal da ABI – Não permitir que certa parte da imprensa cubra um evento esportivo exclusivo de uma emissora não é o mesmo que cercear o trabalho do jornalista? Vannucci – Não deixa de ser, mas é a regra do mercado. É a velha luta da Jovem Pan sobre os horários dos jogos de futebol aqui em São Paulo. Tem que esperar terminar a novela! O jogo começa tarde, quase 10 horas da noite! A gente sabe que é tudo longe, os torcedores moram longe e no outro dia precisam acordar cedo. Mais do que isso: houve uma época em que a Federação Paulista limitava o trabalho do repórter no campo. O segredo da transmissão do futebol na rádio é o repórter perto. Porque toda a transmissão da televisão começou com isso. O Dr. Paulo Machado de Carvalho foi um doido que resolveu botar um repórter atrás de cada gol, porque o narrador está olhando de lado, e o repórter vê o lance e dá o detalhe ali. E isso passou para a televisão, com o posicionamento de câmeras. Isso é básico no rádio, o repórter está ali para pegar a reação do goleiro. Claro que ele não vai entrar em campo enquanto a partida está em andamento, mas no intervalo ele tem que entrar no campo para entrevistar os jogadores, pegar a coisa quente, isso é a rádio. E aí foi a briga da Pan que falou que estava sendo cerceada, a gente não podia fazer o trabalho porque impediam o exercício jornalístico. Jornal da ABI – A Jovem Pan conseguiu? Vannucci – No campo pode entrar; existe uma regra sobre os limites, até onde pode, mas alterar o horário não

Jornal da ABI – Quem trabalha em rádio tem que obrigatoriamente acumular funções? Vannucci – Eu acho que todo jornalista, como profissional, tem que passar por tudo. Eu entendo o jornalista como a pessoa que é capaz de transmitir informação, de processar e analisar essas informações e levar até uma outra pessoa, independentemente da mídia. O jornalista tem que saber escrever para jornal, para revista, para internet, tem que saber falar em rádio, em televisão, tem que saber ser o repórter, ter olhar do cinegrafista, tem que ser o editor, ele tem que compreender o todo. Porque não dá para aceitar um jornalista só saber fazer a reportagem de tv, e outro só saber editar. Não. Naquele momento, a função pode ser de editor daquele jornal, mas tem que saber tudo. Acho que poucos fizeram isso aqui na rádio. Passei pela Rádio-Escuta, pela Editoração, Checagem, Produção, Redação, Edição Geral. Editei em dois horários: das nove da manhã às três da tarde, que edita para toda a programação, depois eu fiz a edição das três a meia-noite, para o Jornal da Manhã, que é o nosso carro-chefe. Fiz chefia de reportagem, acumulei com a chefia de produção; dois olhares bem diferentes. Aí vim para a parte de criação da rádio, vinhetas. Esse processo todo fez que eu tivesse uma visão da Jovem Pan como poucos que estão aqui: de compreender a notícia do momento que a gente começa apurar até o momento em que chega para o nosso ouvinte. Eu compreendo o jornalista assim. Tem o trabalho de equipe, mas na hora em que se está fechando uma matéria tem que saber o todo. Mas, às vezes, isso me causa problema. Porque eu fico dando palpites e acabo palpitando demais. Estou há tanto tempo na Jovem Pan porque ela me permite atuar nos bastidores e no microfone. Na televisão, eu faço lá na Gazeta os comentários no programa Todo Seu. Quando vou fazer uma externa, tem um produtor que vai, produz, marca. “Olha, Vannucci, tem que estar tal hora em tal lugar”. Ele já sabe o tempo da matéria, que o bloco já foi previsto pelo diretor. Aqui na Pan eu consigo fazer os dois. Estou lá no microfone, mas estou atrás. Trabalhar nos bastidores é talvez muito mais prazeroso do que no microfone. Bolar um programa inteiro, três horas de programa, o que é que eu vou colocar amanhã; o que eu posso levar das nove e meia da manhã ao meio-dia, que é um horário de serviço e de variedades. Criar isso é gostoso. Mas transmitir isso no microfone também é bacana. Jornal da ABI – A cobertura da teledramaturgia também sofre o


Entrevista gravada nos bastidores do programa Eliana, do SBT, para a Jovem Pan Online.

cerceamento que se observa no futebol? Vannucci – Sim. Lá atrás era muito mais fácil para tudo. As pessoas eram mais desarmadas, a concorrência era outra, a Globo estava muito à frente, o SBT estava acomodado no segundo lugar, então era mais fácil, as pessoas contavam mais. Hoje as empresas criaram estruturas de departamentos de comunicação muito eficientes, estratégias mesmo. E foram orientando, cada vez mais, os executivos, os produtores, os diretores, os artistas, colocando filtros. Hoje é muito difícil pegar uma informação. O cara vai pensar três vezes antes de passar, a não ser que ele tenha algum interesse. Aí veio a competição da Record com o SBT. Hoje eles fazem reuniões – e eu não acho errado – em que orientam a todos os profissionais o que eles podem fazer nas redes sociais, no trato com a imprensa e com o público. Jornal da ABI – Todas elas? Vannucci – Todas. A Globo é a mais eficiente nisso. O Boninho até fala mais, mas quando tem projeto, como o The Voice, ele só começou a abrir informação quando já estava certo, contratos assinados, tinha data, tudo planejado, verba. Porque se ele fala quando está negociando, a Record poderia ir lá e comprar antes. Jornal da ABI – Acontece algum tipo de espionagem? Vannucci – Acontece. Mas aí foge do jornalismo. Já aconteceu de eu pedir informação sobre uma novela e me falaram que iriam mandar a cópia do capítulo se eu mandasse um valor. Aí saiu do jornalismo. Porque tem uma máfia disso. Não é ator, não é produtor, mas numa indústria imensa; se pagar, consegue. Hoje já não tem tanto, porque a Globo também foi atrás disso. Jornal da ABI – É interessante a capacidade de a televisão ser notícia para si mesma. Ela cria os produtos e os programas para falar deles. Vannucci – É a grande mídia. O rádio, em volume, é maior. Há mais emissoras, o rádio é mais presente, está em todas as cidades brasileiras, o rádio é imbatível. A tv exerce essa magia e ainda faz que Fernanda Montenegro, Tony Ramos, Tarcísio Meira, Cleyde Yáconis, esses grande atores, cheguem em lugares em que o teatro jamais chegará. A Fernanda não vai conseguir passar por todas as cidades para mostrar o talento dela no teatro, mas a televisão, apesar de todos os filtros e limitações, do produto comercial que é, ainda consegue botar a Cleyde Yáconis no meio da floresta amazônica. O povo assiste e tem acesso ao trabalho de alguém muito talentoso. Eu aprendi que falar de novela muitas vezes não é falar do que vai acontecer na novela, mas discutir como aquilo está se refletindo nas pessoas. A magia dis-

alguém querendo saber o olhar daquele jornalista sobre aquele fato.

so envolve as pessoas. Dá para sair da novela do Manoel Carlos e discutir doação de medula óssea, violência contra a mulher. A Glória Perez fala de tráfico de mulheres. O folhetim vai entreter, vai contar a mesma história de Romeu e Julieta, e só no último capítulo eles vão ficar juntos. É tudo igual. Mas entram temáticas que se pode discutir e lá no meio do Brasil alguém está discutindo. Jornal da ABI – Não fica um pouco padronizado? Se não existe uma televisão regional forte, a cultura local é influenciada por valores do Sudeste. Vannucci – É uma questão comercial. Poderia haver uma tv local melhor se o empresário de lá decidisse investir nisso. Mas para o afiliado é mais cômodo colocar todos os programas, todas as novelas, todos os noticiários da matriz. Jornal da ABI – Os empresários tratam a televisão de maneira leviana? Vannucci – Eles ficam no mais fácil. Você vende mais revistas se tiver uma mulher bonita e sexy na capa. Mas o público gosta do que tem qualidade e do que é seu. Por exemplo, Gabriela é a história nossa, que vem da literatura, feita com uma fotografia maravilhosa, boas interpretações, com texto interessante, ousada em alguns momentos. Algumas cenas de sexo poderiam ser excluídas, mas eles até carregaram nisso para dizer que agora pode mostrar o que naquela época não podia. Porque a obra do Jorge Amado tem esse calor. O apelativo funciona durante um momento, mas depois desaparece. O público gosta de ouvir o seu sotaque. Ele quer saber o que acontece no seu bairro. Imagine o cara que mora no interior de São Paulo. Ele quer saber de sua cidade, e talvez o jornalista dali, que fala e luta por ele, que mostra os problemas de sua região, tenha um valor muito maior para ele do que o William Bonner. Para o anunciante dali, talvez um programa feminino regional tenha um peso muito maior do que o da Ana Maria Braga. Porque

aquela será uma apresentadora falando para aquela cidade. Jornal da ABI – Não é um equívoco tentar ser um espelho da Globo? Vannucci – Quando a Record traçou o objetivo de ser a primeira emissora, ela fez uma pesquisa sobre o que o público queria ver. E tudo o que o público gostava de assistir era da Globo. Então eles resolveram fazer um espelho da Globo, que num determinado momento funcionou, porque ela conseguiu fazer o Jornal da Record dar audiência, começou a fazer uma dramaturgia parecida com a da Globo e conseguiu ter audiência com isso. Mas depois, o próprio público rejeitou esse espelho, porque na hora que você tem duas coisas meio parecidas você fica com a original. O SBT tem a sua cara, tem um jeito latino de fazer tv. Já a Record não ficou com uma identidade. Jornal da ABI – A TV Manchete, quando foi lançada, não precisou imitar a Globo para ter qualidade. Vannucci – No melhor momento dela, que foi na dramaturgia, com o Pantanal, ela fez um tipo de novela que a Globo não faria. Jornal da ABI – O que você acha do telejornalismo? Vannucci – Assim como o rádio, o telejornalismo está numa fase de transição, buscando um novo jeito. O telejornal não funciona mais como a única fonte de informação. O Jornal da Cultura e o Jornal da Gazeta já mudaram, estão mais opinativos. Hoje, o telejornal tem que oferecer algo a mais, uma análise, uma reportagem maior. Aí quando você olha a Globo News, principalmente no período da manhã, os telejornais são apresentados sem gravata, às vezes com camisa pólo e blazer, mostram que num canal que é só notícia o jeito de transmitir a notícia mudou. Não é mais aquela coisa formal. Jornal da ABI – Não é jornalismoespetáculo tratar a notícia como ponto de Ibope?

Vannucci – Não. É claro que o objetivo final é conquistar audiência, mas, mais do que isso, a gente tem que procurar como se comunicar com as pessoas. Se esta conversa tivesse acontecido 15 anos antes, eu estaria aqui de terno e gravata, você também, nós estaríamos numa posição mais rígida na cadeira. Hoje a gente se permite trocar idéias de outra maneira. Então, acho que o telespectador mudou, ele assiste televisão de outra maneira. Não que ele queira alguém dando risada no telejornal ou que aquilo se transforme num programa de auditório. Mas o telejornal pode buscar um elemento de revista eletrônica. Como o Bom Dia Brasil, um dos melhores telejornais. Ali as notícias são apresentadas na bancada, em outros momentos os apresentadores saem, sentam, cruzam as pernas, conversam sobre futebol, fazem análise de economia, voltam e dão as notícias mais sérias. O Bom Dia Brasil consegue fazer isso muito bem, sem desrespeitar a notícia. Não faz circo, mas em alguns momentos a coisa fica descontraída e mais agradável. O Jornal da Gazeta faz a mesma coisa. Há o noticiário básico aqui, na hora em que vai conversar sobre esporte vai para lá. Consegue ter os dois elementos funcionando sem transformar a notícia no espetáculo. O que eu acho que não dá, pois o resultado é desastroso, é pegar a notícia e jogar num formato que ela não deve ter. Como aconteceu com os programas de auditório. Naquela guerra entre Gugu e Faustão, a produção começou a buscar no jornalismo um dos elementos de audiência e se transformou em espetáculo. Então, vimos o que a equipe do Gugu acabou aprontando ali. Isso não funciona e é errado. No telejornal é diferente. O SPTV, na hora do almoço, pode ser apresentado sem gravata, porque não é um âncora de terno e gravata que passará credibilidade. A credibilidade está na história daquela equipe e daquela emissora, e de como a notícia é tratada. O importante é saber que, naquele momento, a notícia precisa ser tratada com respeito. Porque tem

Jornal da ABI – Você tinha um blog de bastante sucesso vindo da rádio e que acabou virando um site: o Parabólica. Como foi essa transposição para a internet? Vannucci – O Parabólica começou como uma coluna na rádio, no Jornal da Manhã e no Jornal de Serviços. Eu pegava dez notícias e as colocava como numa coluna de jornal. Entrava no ar e só depois entrava na internet, com algumas outras notícias que eu acrescentava. No sábado e no domingo eu fazia alguma coisa só para a internet. Ficou assim um ano mais ou menos. Aí mudou a direção da internet e a nova diretora falou que deveria ir para um blog. Mas eu sempre fui resistente, porque acho que a coluna é mais jornalística que o blog. Mas me convenceram de que aquilo tinha valor, e aí eu aprendi a fazer o blog. Porque o blog não tem compromisso de colocar tantas notícias. Você põe um texto e pronto. Mas o retorno foi bacana. O que eu falo de retorno não é o click, é a repercussão, o quanto quem está do outro lado me provocava com alguma pergunta, discordando de alguma opinião. E quando a gente viu, o blog tinha conteúdo de site. E a gente organizou como um site. Ele tem essa mistura. Mas o engraçado é que o que funciona é a opinião. Só a informação não dá tanto clique. Jornal da ABI – O jornalismo diário e o telejornalismo, agora com a internet, têm que ter opinião de credibilidade. Mas não se vê muito isso. Por quê? Vannucci – É o vício do mais fácil. Durante muito tempo a gente ficou naquele negócio de que a gente tem que dar a notícia e não ter opinião. A notícia não pode ter opinião? Pode. Porque a reação do leitor vem da opinião, até para discordar. Jornal da ABI – E a vaidade do jornalista na tv não diminui sua credibilidade? Vannucci – Fiz um texto sobre algumas coisas que me incomodavam no segmento do jornalismo em que atuo. O título é “A vaidade da televisão contaminou a imprensa que se diz especialista”. Porque a televisão é vaidosa por natureza. É claro que nós, como jornalistas, temos a vaidade de querer ser o primeiro a dar a notícia. Mas ultimamente o jornalista está vaidoso demais. Ele não pode acreditar que seu olhar é o único e verdadeiro, não pode se achar dono da notícia. A notícia está aí, e tem que ser checada; por mais que eu confie na minha fonte, tenho que ouvir mais para confirmar aquela história. Ultimamente, o que você vê é a vaidade, o jornalista se achando mais importante que a notícia, se achando o centro do mundo. E se a gente não souber controlar isso, a coisa se perde. O importante fica

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REPRODUÇÃO

DEPOIMENTO JOSÉ ARMANDO VANNUCCI

ARTE

Em 2003, Vannucci recebeu Maria Rita nos estúdios da Jovem Pan para edição especial do Show da Manhã.

passou para ela, e ela nos deu uma entrevista de quase meia hora. A Pan foi a primeira a informar da internação da Elis Regina, porque o Verani (Francisco Verani) estava subindo a Rebouças e viu a Elis no carro ao lado. Reparou que ela estava caída e pensou que ela estava vindo de um show, cansada. Aí o carro dela subiu e fez uma conversão proibida para entrar direto no Hospital da Clínicas. No ato, ele falou para o motorista da viatura: “Vira!” e entrou praticamente junto. Isso é jornalismo. Hoje o repórter deixaria para ligar depois, para fazer a checagem depois.

em segundo plano. Eu não preciso falar que conversei com o Boninho para saber sobre o The Voice. O bom jornalista tem a notícia e o seu público sabe que para ter aquela notícia ele teve acesso a alguém. Não é preciso usar o “eu”. Jornal da ABI – Você já foi professor, não? Vannucci – Durante dez anos eu dei aula de Redação num curso para locutores na Rádio Oficina, aqui na Aclimação. Lá é como o Senac. Só existem duas instituições que formam locutores com DRT no Brasil: o Senac e a Rádio Oficina. Fui para substituir um amigo meu; a coordenadora – com quem eu tinha estudado na faculdade —, falou para eu terminar a turma, depois me chamou para mais uma e, ao todo, fiquei dez anos. Foi a parte mais gostosa de minha carreira, porque eu pegava moleques apaixonados por rádio. E acho que é essa a obrigação de quem viveu um pouco mais: tentar mostrar para eles que a rádio é muito mais que o microfone. Porque os caras que entram em rádio só pensam no microfone. Se for numa faculdade de Jornalismo, você vai ver metade das menininhas com a cara da Sandra Annenberg, e a outra metade com o cabelo da Patrícia Poeta. Porque ser jornalista hoje é quase como ser “artista”. Jornal da ABI – Você aproveitou algum aluno seu? Vannucci – Na Jovem Pan há alguns. Mas eu sempre deixei muito claro que, apesar de eu chefiar toda a produção, eu não contrato. Qualquer contratação é feita pelo Diretor de Jornalismo. A Jovem Pan é muito clara e centralizada. Eu só dava o telefone e eles se viravam. Eu dava aulas de Redação no curso de Locução. Eram só quatro aulas, e a quinta era prova. Eu não dava aula de Português. Eu mostrava o caminho, e cada um tinha que se aprimorar, ver dicionários; eu aprimorava a técnica deles. A segunda aula era prática: escrevia, escrevia. Na terceira eu tirava todo mundo da sala e levava para

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a rua. Essa era a melhor aula. Delimitava um quarteirão, desta até aquela esquina, e dava 20 minutos para eles encontrarem uma notícia. Eu contava uma história de Fernando Vieira de Melo, que foi meu grande mestre. Ele dizia que o lugar do repórter é na rua porque é lá onde acontece a notícia. Precisa rodar, olhar e achar. E eu levava isso para os alunos. Eles podiam conversar com quem estivesse passando, podiam entrevistar, só não podiam bater na porta da casa de ninguém, porque a aula era à noite. Eu ficava no meio deles, conversava, orientava, e muitos diziam que não tinha notícia. Eu repetia o que o Fernandão falava na Redação: “Roda!”. Calçada suja, carro na contramão, buraco na rua, ausência de placas, o céu está lindo, cortaram a árvore; as pessoas podem não reparar, mas o jornalista precisa reparar! Na quarta aula a gente montava um jornal e, na última aula, a Rádio Oficina queria que eu ocupasse as três horas de aula com uma provona, mas eu fazia uma prova curta e depois eles apresentavam um trabalho em grupo: todos tinham que fazer um jornal de rádio de 20 minutos. De vez em quando, eu separava e cada um fazia um jornal de cinco minutos: era um exercício. E eu conseguia mostrar para esses garotos que estavam se formando como locutores o que há por trás da rádio. Porque todo mundo acha que é fácil falar, mas tem que apurar a notícia, tem que observar. Muitas vezes é difícil. Eu lembro que quando fechava o tempo a gente já ligava para o aeroporto para ver se estava funcionando. Isso, essa nova geração de internet perdeu. Ninguém olha mais para o texto, ninguém anota mais nada. Eu lembro uma época em que ator não tinha assessor de imprensa. A gente descobriu que a Fernanda Montenegro estava em São Paulo. Chegou uma repórter, a Ana Maria Penteado, e disse: “Acho que vi a Fernanda Montenegro ali na Augusta, entrando numa loja de roupas”. A gente achou na lista telefônica o telefone da loja, ligou, a vendedora confirmou que a Fernanda estava lá,

Jornal da ABI – Que tipo de programa você gostaria de fazer numa rádio? Vannucci – Um programa de troca de idéias. Não aquela troca de idéias chata, em que fica um lado falando e o outro não. Isso já tem, não é nada inovador. Porque a rádio, a televisão, o jornal, não têm mais muito o que inventar. As coisas estão aí, você só consegue dar um desenho diferente. Talvez amadurecer um pouco os quadros que eu tenho aqui, juntar num programa em que eu conseguisse mostrar a comunicação não só pela tv, mas com tudo interligado. Um programa transmídia, mas numa mídia só. Que mostre como publicidade, televisão, internet, tudo isso afeta as pessoas e usar tudo isso para trazer informação. Jornal da ABI – Apesar de você evitar o culto à personalidade, é inevitável, por estar na televisão, estar integrado no grupo das celebridades. Como é a sua relação com os fãs? Vannucci – É engraçado isso. Eu já ouvi desaforos. Tem gente que acha que eu sou puxa-saco da Globo, outros que eu sou da Record, que eu ganho do Silvio Santos, enfim, não dá para agradar todo mundo. Mas do jeito que eu lido com a informação, eu não sou “o artista”. Sou um jornalista que foi ali conversar, e ponto final. Fui fazer o meu trabalho. É claro que vem gente conversar no shopping, às vezes quando estou almoçando. Nesses meus vinte e tantos anos de trabalho já atendi muito ouvinte, mas é estranho inverter o papel. Jornal da ABI – Você gosta do termo “crítico”? Vannucci –Não, eu sou só um jornalista que fala sobre televisão. Uma vez eu participei de um debate com o Daniel Castro e, na hora nos apresentaram assim: “José Armando Vannucci, crítico de tv da Rádio Jovem Pan e da TV Gazeta; Daniel Castro, jornalista especialista em televisão”, e ele falou: “Não, eu não sou especializado em televisão porque não fiz nenhuma pós, eu sou um jornalista que busca informações e tenta fazer um jornalismo honesto”. E eu acho que é isso que eu faço também.

Nosso Victor Meirelles Injustiçado pela República, esse catarinense foi um dos maiores documentaristas da nossa História. P OR PAULO RAMOS DERENGOSKI

Victor Meirelles nasceu em Nossa Senhora do Desterro – hoje Florianópolis – em 1832. Aos 15 anos seguiu ao Rio de Janeiro para estudar na Academia Imperial de BelasArtes, que se impressionou com um trabalho seu sobre a capital catarinense. Estudando a fundo técnicas da pintura, ganhou o primeiro Prêmio de Viagem à Europa, onde, visitando quase diariamente o Louvre, se apaixonou pela pintura histórica de David. E foi lá que construiu uma de suas obras-primas: a Primeira Missa no Brasil, em 1861, aceita no Salão de Paris, fato inédito até então para um artista brasileiro. Voltando ao Brasil, foi nomeado professor catedrático de pintura histórica da Academia Imperial, cargo que exerceu, trabalhando noite e dia, até 1890. Seu quadro Moema (1863, ao lado) é um dos clássicos da visão indigenista brasileira. Mas foi com a Guerra do Paraguai, com os painéis gigantescos Passagem do Humaitá e Combate Naval do Riachuelo, que sua imaginação alcançou vôo de águia nas alturas, sem ouvir o grasnar dos vermes que o criticavam, justamente pela criatividade espantosa. De certa forma, Victor Meirelles conseguiu paralisar o tempo, congelar os laços históricos, transformando-se num clássico à altura dos maiores mestres. Em 1875 começou a pintar a monumental Batalha dos Guararapes, grande saga da emancipação nacional, até hoje lembrada pelos que têm dentro de si a chama do patriotismo. Dedicou-se também a paisagens e retratos, sendo clássicos O Juramento da Princesa Isabel, que hoje está no Museu Imperial de Petrópolis, e o Retrato de D. Pedro II. Antes de morrer ainda iniciou a execução de um cilindro giratório gigantesco que permitiria ao espectador imóvel contemplar vários pontos da Cidade Maravilhosa. Talvez por ter sido condecorado por Dom Pedro II foi menosprezado pela República, tendo mesmo sido demitido da cátedra. O pintor do equilíbrio, do rigor no levantamento dos detalhes, passou a ser ignorado. Mas foi ele que nos deixou um dos maiores legados como documentarista de nossa História, justamente num período em que a mesma carecia de testemunhas oculares. Atraído pelo detalhe, fascinado pela cor, a obra do catarinense – que morreu na solidão da genialidade – merece ser reconhecida no mundo todo como um dos pontos altos da arte maior. Para ele toda homenagem é pouca. Jornalista e sócio da ABI, radicado em Lages, SC, Paulo Ramos Derengoski é membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.

REPRODUÇÃO


OPINIÃO

Ramificações republicanas Considerações sobre a nossa evolução político-institucional desde Vargas, a partir de 1930, aos dias atuais. POR FÁBIO LUCAS

No dia da eleição municipal de São Paulo (outubro de 2012), dei com uma entrevista televisiva de Chico de Oliveira (um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores; mais tarde dissidente, desligado da agremiação), concedida a Kennedy Alencar. Cientista social de elevado conceito na Usp, postulou que o PT se tornara, na prática, grupo de centro-direita, enquanto o Partido Social Democrático Brasileiro se posicionara na extrema-direita. Perguntado sobre personagens do quadro político brasileiro, indicou Getúlio Vargas como verdadeiro estadista. Quanto a Juscelino Kubitschek, manifestou menor entusiasmo, pois talvez se enquadrasse no perfil de um empresário ousado. A meu ver, a República do Brasil, até 1930, representou continuidade do período imperial, com suas virtudes e seus defeitos. Não escapou do mandonismo patriarcal de uma economia pouco diversificada, apoiada no trabalho escravo. Monocultora na produção e exportação do café, seus líderes constituíram a elite da Economia e da Política, mormente nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Getúlio Vargas adotara um esquema protecionista, contraposto ao livre-cambismo dominante. Tentou ampliar a participação do salário na composição da Renda Nacional. Enfatizou a classe média urbana, mesmo evitando escapar ao domínio do estamento rural, reacionário, conservador por excelência. A grande falha do período Vargas fora a inibição à vida política e ao exercício da cidadania. Sonhou com a modernização autoritária. Quando voltou ao poder pela via eleitoral, teve que enfrentar rude oposição, palmilhada de conspiradores e de grupos golpistas apoiados externamente pelas multinacionais e seu braço armado, o poderio do sistema industrial-militar, tão fustigado e temido pelo general Eisenhower, chefe das Forças Aliadas que venceram a Segunda Grande Guerra. Vejamos outras personagens. No auge da Guerra Fria, tomou posse do governo o Presidente João Goulart, graças à resistência nacional comandada por Leonel Brizola. O aparato informativo instalado no Brasil moveu implacável campanha contra as Reformas de Base propostas por João Goulart, demonizando o Presidente. O ponto mais sensível do Programa assentava-se na Reforma Agrária, que pretendia dar cunho social à propriedade e à exploração da terra, tentando abolir a tradição de privilégio do latifúndio, desde as concessões de sesmarias do período colonial. A CIA montara vários organismos de apoio a lideranças golpistas operantes no País.

Infiltrados na mídia e nos quartéis (das Polícias e das Forças Armadas), operou-se a derrubada do Presidente mais democrata do período republicano. Presidente em cuja administração não se verificou uma vez sequer prisão de qualquer trabalhador por motivo político. Disso falávamos durante a posse da Diretoria da União Brasileira de Escritores (UBE/SP), 2012, em conversa com o Ministro do Trabalho daquela época, Almino Affonso, que ainda hoje se orgulha de sua gestão. É difícil, passado o tempo, sacudir de nossas Forças Armadas o ranço da herança escravagista, quando as patrulhas existentes eram mantidas pelos senhores patriarcais para sufocar resistências e punir os rebeldes. O governo mais realizador do período republicano foi indiscutivelmente Juscelino Kubitschek. Discute-se se o seu Programa de Metas teria provocado desequilíbrios setoriais estimuladores de incontrolável inflação. Melhor ponderar sobre o velho tema do homem e suas circunstâncias. Sem os investimentos alemães e europeus, atraídos por JK, a dependência do País em relação aos Estados Unidos teria reduzido o Brasil a uma republiqueta de bananas. Como Getúlio Vargas tivesse estimulado a iniciativa interna, mediante providências protecionistas, mantidas no seu período ditatorial, foi com JK que o Brasil experimentou, pela primeira vez no período republicano, a entrega do poder ao candidato do partido de oposição. Não obstante gozar de ampla popularidade e de controle, no âmbito do Congresso Nacional, de confortável maioria de representantes, não se deixou embalar por sugestões continuístas. Passou o governo ao Presidente Jânio Quadros e cuidou da volta no próximo pleito. Deste modo, creio eu, faltou ao corajoso analista de Política conceder as devidas credenciais a JK, como o pioneiro Presidente da República a cumprir seu mandato sem dar seqüên-

cia a manobras continuístas. Mais do que Getúlio, legou uma lição de prática democrática. O que espanta, na sucessão de eventos políticos da História pátria, é a inabalável permanência do substrato patrimonial da fundação do País. O legado português, do poder rural assentado sobre as bases escravagistas, cristalizou hábitos de convivência ornados de ostensiva exibição de privilégios, de inclusões e exclusões inexplicáveis. Ainda hoje parece que vivemos um clima de senzala, não obstante um dilúvio de leis e de pronunciamentos retóricos dizer o contrário e abrir-se em lisonja aos excluídos. As mutações cobiçadas, por mais enfáticas que se tornem as proclamações públicas, destinam-se ao silêncio. Lembremonos do movimento “Diretas Já”, capitaneado pelo Governador Franco Montoro e puxado pelo Governador Tancredo Neves. A população brasileira não percebeu as sutis articulações da classe dominante, as mesmas que apoiaram o golpe militar: empresas multinacionais, latifundiários metidos no agronegócio, industriais que formaram a clientela dos financiamentos privilegiados. Como fantasmas incorpóreos, deixaram a seus agentes, já assentados no poder, a tarefa da “saída” honrosa. Fez-se até a nova Constituição, com a originalidade de os “constituintes” não se demitirem após a elaboração do caudaloso texto constitucional, já que, convocados, deveriam dar como concluída a sua função. Aliás, seria de desejar que nos Atos de Disposição Provisória constasse a proibição de elegerse, por duas legislaturas, qualquer cidadão que tivesse colaborado com a ditadura, em cargos e representações de 1º, 2º e 3º escalões. Somente assim poderíamos ter a renovação política do Brasil, com maior circulação de lideranças. Mas o que se viu é que os mesmos quadros da ditadura passaram a dar a feição à “nova democracia”. Esta que aí está. JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Linha do tempo mostra casos de censura no País O instrumento que a aplica: o Poder Judiciário.

Entidade denuncia aumento da impunidade O Instituto Internacional de Imprensa (IPI), com sede em Viena, divulgou comunicado no dia 18 de fevereiro alertando para a crescente impunidade de crimes contra jornalistas no Brasil, e defendeu a aprovação do projeto de lei (PL 1078/2011) que federaliza a investigação dos crimes contra profissionais de imprensa. A matéria aguarda parecer da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados. “A impunidade está alimentando um círculo de violência contra os

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poucos repórteres que se atrevem a tocar em temas delicados como o tráfico de drogas e a corrupção”, declarou Anthony Mills, Diretor do IPI. No comunicado, a entidade cita as mortes dos jornalistas Paulo Rocaro e Luiz Henrique Georges, no início de 2012, em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul. “Os crimes não foram esclarecidos. O Brasil é um dos países mais perigosos para jornalistas. Os assassinatos aumentam, mas a habilidade de se fazer justiça diminui”, destacou Mills.

Violência no Peru e Paraguai O jornalista Juan Carlos Yaya Salcedo, 35 anos, da Rádio Max, na cidade Imperial, no Sul do Peru, foi baleado na perna no dia 6 de fevereiro quando se dirigia para o trabalho em uma motocicleta. Apresentador do noticiário Sin Escape, com uma hora de duração, Juan Carlos, que está hospitalizado, disse ao Comitê de Proteção ao Jornalista(CPJ) que percebeu um carro azul, ocupado por pelo menos três homens, atrás de sua motocicleta e em seguida ouviu dois disparos; um deles o atingiu na perna e perfurou o tanque de gasolina da moto. O veículo teria fugido em disparada após os tiros. Salcedo, que trabalha na imprensa peruana há 12 anos, afirmou que nunca recebeu ameaças, mas acredita que o ataque pode estar relacionado à recente reportagem sobre supostas irregularidades na construção de um prédio e uma piscina pública na cidade de Nuevo Imperial. Parentes do repórter apresentaram queixa na polícia contra o atentado. “A minha segurança e a de minha família estão em perigo”, disse Salcedo. Para o Coordenador sênior do Programa das Américas do CPJ, Carlos Lauría, o crime revela a situação da imprensa no país: “O atentado contra Juan Carlos Yaya Salcedo ilustra os perigos enfrentados no interior do Peru e destaca a necessidade de as autoridades agirem de forma decisiva para impor a lei. As autoridades devem realizar uma investigação completa para identificar os agressores e processá-los”. Dados do CPJ apontam que um jornalista morreu em 2011 por denunciar esquemas de corrupção governamental e que outros dois

DIVUÇGAÇÃO/CPJ

Embora a liberdade de expressão seja um direito fundamental garantido constitucionalmente, a via judicial tem se mostrado um meio eficaz de inviabilizar o funcionamento de veículos informativos, especialmente os pequenos, e de calar a crítica de jornalistas e blogueiros no Brasil. Uma linha do tempo produzida pelo Centro Knight para o Jornalismo nas Américas mostra que apenas em 2012 o País registrou 16 casos em que os tribunais foram utilizados como instrumentos de censura. A linha do tempo Censura togada no Brasil (que pode ser visitada neste link: goo.gl/ XX2BD) é uma ferramenta interativa criada para o acompanhamento dos episódios de censura ocorridos desde o início de 2012 e será continuamente atualizada. Os números já registrados evidenciam que estes não são casos isolados e constituem uma verdadeira ameaça à liberdade de expressão e de informação no País. A maioria das investidas judiciais busca a retirada de conteúdos publicados por veículos informativos e parte de autoridades públicas. Muitas são bem-sucedidas, principalmente em primeira instância. É o caso, por exemplo, do jornal digital Século Diário, do Espírito Santo, obrigado por uma juíza a tirar do ar cinco publicações — três reportagens e dois editoriais — sobre a atuação de um promotor de Justiça. Também por determinação judicial, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul (RS), precisou retirar da internet reportagem sobre uma investigação do Ministério Público sobre compra de votos; a imprensa de Campo Mourão (PR) foi impedida de mencionar o nome da candidata eleita à Prefeitura da cidade. Casos mais graves envolvem pedidos de indenização que podem significar o

atestado de óbito de alguns veículos. Foi o que ocorreu com o jornal Já, mensário de bairro de Porto Alegre (RS), que circulou por 26 anos e encerrou suas atividades após ser condenado a indenizar por dano moral a mãe do ex-Governador gaúcho Germano Rigotto Contudo, não é só o revés judicial que ameaça as atividades de jornalistas, blogueiros e veículos. Enxurradas de ações em um mesmo período e contra um único alvo, como as direcionadas ao site Congresso em Foco e ao jornalista Fernando Pannunzio, tornam inviável a participação em todas as audiências e o pagamento dos custos das representações na Justiça. Ainda sem completar o primeiro bimestre, 2013 já conta com dois episódios emblemáticos. O primeiro é a condenação de Lúcio Flávio Pinto, um dos jornalistas mais respeitados do Brasil, a pagar uma indenização de R$ 410 mil ao empresário Romulo Maiorana Júnior por publicar uma reportagem sobre as empresas de comunicação do autor. O segundo é a denúncia criminal do Ministério Público de Sergipe contra o jornalista José Cristian Góes por um texto ficcional postado em seu blog no Portal Infonet. O assédio judicial é apontado como o principal entrave para a liberdade de expressão no Brasil por organismos internacionais como a Sociedade Interamericana de Imprensa-Sip e a Freedom House. Ele também contribuiu para o mau resultado do Brasil no ranking de liberdade de imprensa da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RSF): ele ocupa o 108º lugar entre 179 países após seu segundo ano sucessivo de queda. Em resposta a este cenário, o Conselho Nacional de Justiça criou, em novembro do ano passado, o Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade de Imprensa uma comissão para acompanhar os processos judiciais que envolvem a liberdade de expressão.

Carlos Lauría: Autoridades precisam impor a lei.

repórteres foram assassinados em circunstâncias ainda não esclarecidas.

NO PARAGUAI Também no dia 6, Marcelino Vázquez, 54 anos, proprietário da rádio Sin Fronteras 98.5 FM, foi assassinado em frente à emissora, localizada em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, perto da fronteira com o Brasil. De acordo com testemunhas, dois homens armados abordaram Vásquez por volta das 19h, e fizeram os disparos à queima-roupa. De acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteira(RSF), o crime deve estar ligado ao trabalho da vítima: “A Sin Fronteras FM se dedica principalmente à difusão de música, mas também transmite programas de opinião e informação que não fogem de nenhum assunto. Sem dúvida, Marcelino Vázquez pagou por essa audácia”.


DIREITOS HUMANOS

CARTAS DOS LEITORES

GT de Direitos Humanos realiza sua primeira reunião Para começar seu trabalho, encontro decide analisar 50 casos de crimes contra jornalistas. Representantes de organizações ligadas à comunicação defenderam mais rigor na apuração de crimes contra jornalistas, durante a primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre Direitos Humanos dos Profissionais de Jornalismo no Brasil, realizada no dia 19 de fevereiro na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O grupo deve começar em abril a analisar denúncias de violência e ameaças sofridas por profissionais de comunicação e a desenvolver mecanismos de proteção a eles. Composto por representantes do Governo e entidades ligadas aos direitos da comunicação, o grupo, criado em outubro do ano passado por resolução da Ministra Maria do Rosário, é vinculado ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). “Na próxima reunião as entidades vão apresentar casos de jornalistas que estão sendo ameaçados”, disse o representante do Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação Social, Gésio Passos, um dos convidados da reunião inaugural. O GT vai analisar as denúncias de ameaça ao exercício profissional dos comunicadores e encaminhá-las aos órgãos competentes, além de acompanhar os desdobramentos. Inicialmente devem ser analisados cerca de 50 casos, envolvendo ameaças, seqüestros e homicídios. O Grupo terá seis meses para concluir os trabalhos. O prazo pode ser prorrogado por mais seis meses. Participaram do encontro também os jornalistas André Caramante e Mauri Konig, que recentemente deixaram o

País por sofrer ameaças. Caramante, que é repórter do jornal Folha de S.Paulo, passou a receber ameaças após publicar artigo em que questionava os métodos usados pela Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar-Rota. Uma delas foi postada pelo Comandante Paulo Adriano Lopes Telhada, o Coronel Telhada, em sua página no Facebook: “Quem defende bandido é bandido também. Bala nesses safados”. O jornalista ficou fora do Brasil durante três meses com a família. Konig, que trabalha no jornal Gazeta do Povo, do Paraná, passou a ser ameaçado depois que publicou reportagens sobre casos de corrupção na Polícia Civil daquele Estado. Investigação federalizada

Entidades nacionais ligadas à comunicação defenderam a federalização da investigação como possível solução para o problema. “A federalização da apuração de crimes contra jornalistas vai diminuir a impunidade,” disse a representante da Federação Nacional dos Jornalistas-Fenaj, Maria José Braga. A mesma opinião foi expressada pelo representante da Federação Interestadual dos Trabalhadores de Radiodifusão e Televisão-Fitert, José Antônio Jesus da Silva. Ele defendeu que a medida seja estendida aos radialistas e demais comunicadores. “Nos últimos anos, pelo menos dez radialistas foram assassinados por conta da atividade”, lembrou. As organizações também citaram o projeto de lei nº 1.078/2011, que transfere para a esfera federal a responsabilidade de apurar os crimes cometidos

contra jornalistas no exercício da atividade. Desde 2011 o projeto está parado na Câmara dos Deputados, aguardando parecer da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. Estrutura insuficiente

O Delegado da Polícia Federal Delano Cerqueira Bunn, integrante do GT, argumentou que é preciso investir mais na estrutura da PF antes de se pensar na federalização das investigações. Ele também ressaltou que, mesmo com problemas, é preciso reforçar a competência dos órgãos de apuração locais, avaliando caso a caso. “O efetivo da Polícia [Federal] é formado por 10 mil policiais, não conseguiríamos atuar em todos os casos. O melhor é que vários órgãos possam investigar essa questão,” ponderou. Bunn defendeu ainda que os casos mais emblemáticos sejam encaminhados para o Ministro da Justiça, que tem, por lei, a prerrogativa de determinar a federalização da investigação ainda que as situações sejam avaliadas caso a caso. PEC 37, uma ameaça

A Procuradora federal Luciana Marcelino Martins também defendeu a investigação por diferentes instituições. Ela chamou a atenção para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, que trata da restrição do poder de investigação do Ministério Público. “Se isso acontecer, vamos correr o risco de que muitas investigações feitas pelo MP sejam consideradas ilegais pela Justiça,” observou.

Comissão da Verdade já identificou 50 agentes que participaram da repressão Eles serão intimados a depor; se não comparecerem, responderão por crime de desobediência. MARCELO CAMARGO/ABR

Rosa Cardoso: O uso da violência permitiu um Estado sem limite repressivo.

A Comissão da Verdade informou no dia 25 de fevereiro que já identificou dezenas de pessoas, entre militares e civis, que participaram da repressão durante a ditadura. Já foram realizadas 40 oitivas. Os convocados que não comparecerem podem ser processados por desobediência. “Já identificamos várias dúzias, não foram duas ou três, de membros da repressão. Com nome, RG e endereço”, disse Guaracy Mingardi, assessor do Grupo da CV que trata da estrutura da repressão, coordenado por José Paulo Cavalcante. A advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, coordenadora do Grupo Golpe Civil Militar de 1964, afirmou que os pri-

meiros levantamentos sugerem que cerca de 50 mil pessoas foram presas em 1964 no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco. “O uso dessa violência permitiu ao regime militar construir o estatuto de um Estado sem limite repressivo. Com as seguintes conseqüências: inoculou a tortura como forma de interrogatório em quartel militar, a partir de 1964; fez da tortura força motriz da repressão praticada pelo Estado brasileiro até pelo menos 1976; possibilitou ao Estado executar atos considerados inéditos em nossa História política, como a materialização de atos de tortura, assassinato, desaparecimento e seqüestro”, disse Rosa Cardoso.

PARABÉNS

• Caros,

Agradeço o recebimento sistemático do Jornal da ABI aqui na Redação do JC, ao mesmo tempo em que parabenizo toda a equipe pela qualidade do material publicado. A pauta, os textos, as fotos, a parte gráfica, com farto material – inclusive a utilização de quadrinhos –, todos juntos dando um gosto pra lá de especial à leitura. Muito grato a todos da equipe. abraços Ciro Carlos Rocha

EDITOR DE POLÍTICA JORNAL DO COMMERCIO, RECIFE- PE

RUBEM BRAGA

• Obrigado pelo belo jornal em homenagem ao nosso Rubem Braga, Abraço amigo Affonso Romano de Sant'Anna • Caros Maurício e Francisco,

Acabei de receber – e ler – o exemplar do Jornal da ABI que traz reportagem sobre Rubem Braga. Fiquei feliz por ver o amigo baiano Carlos Ribeiro ser entrevistado sobre o lado combativo de Rubem Braga, sua tese de doutorado, que cita várias vezes, como fonte de pesquisa, o meu primeiro livro sobre o assunto: A Traição das Elegantes pelos Pobres Homens Ricos – Uma Leitura da Crítica Social em Rubem Braga. Infelizmente, não tenho, no momento, exemplares em Fortaleza para enviá-los à ABI... mas me senti citada, ainda que indiretamente, através do trabalho do Carlos. Gostei bastante da matéria. E me chamou atenção o trabalho do Augusto Massi sobre as reportagens de Paris. Por coincidência, a minha tese de doutorado, que será publicada ainda este ano, é sobre crônicas escritas em Paris, no ano de 1947, também inéditas em livro. Interessei-me em falar e conhecer mais de perto o escritor e professor Augusto Massi. Vou procurar na Internet e entre os amigos de Cachoeiro e da família Braga para ver se o localizo. Depois de 4 livros escritos sobre Braga, minha paixão continua intacta – e cresce, ao reler O Cronista Apaixonado. Muito grata por ter citado meu último livro ao fim da matéria. Ando lutando aqui pelos outros 50% de patrocínio do livro via Lei Rouanet, com apoio do Affonso Romano, e as entrevistas e artigos em tantos jornais, certamente, irão me auxiliar nessa empreitada, tão difícil para um jornalista, que é a de vender seu próprio trabalho na captação de recursos. Grata e parabéns pela matéria. Ana Karla Dubiela

AGRADECIMENTOS

• Muito obrigado pela remessa do Jornal da ABI, onde li tudo sobre Rubem Braga e outros assuntos. Um senhor Jornal! Raymundo Farias de Oliveira ESCRITOR E PROCURADOR DO ESTADO APOSENTADO

• Recebi o número 386 do Jornal da ABI, que me surpreendeu pela quantidade e qualidade dos textos. Antonio Possidonio Sampaio ESCRITOR E ADVOGADO

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O doce retrato de uma víbora

GUTO COSTA/AGÊNCIA O GLOBO

LANÇAMENTO

Documentário sobre Joel Silveira, dirigido por seu amigo Geneton Moraes Neto, resgata a produção brilhante de um dos maiores jornalistas do País. Ao mesmo tempo, propõe reflexões sobre o exercício da profissão. P OR P AULO C HICO

A

gosto de 2010. Jornal da ABI, edição 357. Numa longa entrevista, Geneton Moraes Neto fala sobre a missão de sua profissão. “Acho que o jornalismo deve produzir informação, para o consumo imediato. E memória, que será consumida a longo prazo”. Pois é possível afirmar, sem medo de errar, que o repórter da Globo News segue firme em seu intento. Em 29 de janeiro foi lançado no espaço Oi Futuro, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, o documentário Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lembranças, que retrata em cerca de 90 minutos a trajetória de Joel Silveira, um dos maiores jornalistas brasileiros, que faleceu aos 88 anos, em 15 de agosto de 2007. A produção, a primeira do gênero do canal de notícias das organizações Globo, teve sua estréia na televisão no dia 2 de fevereiro. Impressiona no filme a grande quantidade de entrevistas de Joel gravadas por Geneton. Algumas, para exibição em programas. Outras, para uma espécie de arquivo particular. Fazia tempo o jornalista da Globo News montava mais um de seus famosos dossiês. “Digo que ganhei um prêmio na loteria do jornalismo: tive a chance de conviver durante 20 anos com aquele que era chamado de ‘o maior repórter brasileiro’. A diferença de idade era grande: quase 40 anos. Mas ficamos amigos íntimos. Diante de Joel, freqüentemente me comportei como repórter, não como amigo. Assim, gravei horas e horas de entrevista, em áudio, e também em vídeo. Não deixei que a amizade ofuscasse minha mania de perguntador. É o que digo: sou do Partido dos Perguntadores do Brasil. Diante de uma figura como Joel – que foi correspondente de guerra, conviveu com

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gente como Graciliano Ramos e conheceu Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Juscelino e João Goulart, entre tantos outros – eu tinha a ‘obrigação moral’ de fazer perguntas e apertar o botão do gravador. A memória de tanta coisa que vi e ouvi naquele apartamento da Rua Francisco Sá, em Copacabana, foi salva”. Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lembranças não é exatamente um documentário, como o próprio autor faz questão de esclarecer. É mais do que isso. Trata-se, indisfarçadamente, de uma ação entre amigos – embora isso nada lhe subtraia em valor jornalístico. E em sua importância para jornalistas. “Eu diria que o filme é quase uma ‘crônica’ de uma longa amizade. Mas os textos e as falas de Joel podem despertar a atenção de estudantes de Jornalismo, o que já seria grande coisa. O importante é que esta garrafa lançada ao mar chegue a quem se interessa pelo assunto. Ou seja: por jornalismo. Pretendo percorrer cursos. É hora de refazer algo que tanto se fazia nos anos 1970: o chamado ‘circuito universitário’. Por que não? Gosto desta política de ‘guerrilha’. Não tenho ilusões de grandeza ou delírios megalomaníacos. Se o filme, exibido numa sala qualquer numa universidade, abrir os olhos de um mero candidato a jornalista para o fato de que o jornalismo pode ser, sim, algo vívido, interessante e arrebatador, já me darei por satisfeito”. Geneton acredita que se o documentário fosse lançado apenas em salas de cinema, certamente teria uma carreira modesta, como acontece com tantas outras produções do gênero. “É provável que ficasse em cartaz em horários ingratos. Exibido numa televisão, ainda que

por assinatura, atinge um público que jamais atingiria se ficasse restrito a um pequeno circuito de salas”. Mais do que produzir memória, é preciso fazê-la circular. “Este filme traz o Joel para a era audiovisual. Apresenta este jornalista para as novas gerações. Sem esse registro, com o tempo, a história perde a noção da dimensão desses personagens. Eu dou aula de Jornalismo e tenho o prazer de apresentar, de vez em quando, aos meus alunos as facetas do trabalho do Joel, que é uma pessoa da qual essa garotada das novas gerações não tem muito conhecimento. Quando conhece, fica maravilhada. O documentário vai ajudar muitos jovens a conhecerem esse mestre. O Geneton é um levantador de personagens, um grande contador de histórias. Um jornalista de muita sensibilidade, que conheceu de perto o Joel e o entrevistou por diversas vezes”, disse Arthur Dapieve, colunista de O Globo e uma das muitas personalidades presentes ao pré-lançamento. A proximidade entre Geneton e seu ‘biografado’ marca o compasso do filme. Fato que foi percebido, e enaltecido, pelos espectadores. “Achei excelente, muito pessoal, com um traço próprio do diretor. Um filme verdadeiro, que parte de um experimento de vida comum, com base na amizade entre os dois. Não é um filme inventado! É um retrato da vida. Se há um caminho para um bom documentário, é esse!”, declarou o poeta Ferreira Gullar ao Jornal da ABI. “O Joel era de fato um arquétipo do que o grande repórter de hoje deve ser. Naquele tempo as coisas eram movidas mais por ressentimentos pessoais e brigas paroquiais. Joel nunca foi assim. O Brasil começa a fazer uma coisa boa. A doença

de Alzheimer, que acometia este País, está ficando menos aguda. Há mais memória, e menos esquecimento”, festejou o diplomata Marcos Azambuja. Ao mesmo tempo em que mostra a formalidade de Geneton nas gravações – referindo-se a Joel sempre como ‘senhor ’, como se mal o conhecesse – o filme deixa transparecer, em sua edição, a profunda amizade existente entre entrevistador e entrevistado. O jornalista conta como venceu, no processo de edição, o desafio de achar o ponto exato entre distanciamento jornalístico e admiração pessoal. Por vezes, confessa, teve medo de soar piegas. “Sempre tive esse temor, é claro. Digo, num texto no documentário, que de vez em quando ouço o ruído inconfundível das patas de uma fera roçando a porta dos fundos: é o cão da subliteratura querendo entrar. Mas não tive tantos pudores... Escrevi na primeira pessoa, por exemplo. Algo que, em situações ‘normais’, não faço. Neste caso do Joel, não havia motivo algum para me manter distanciado. Não faria sentido fazer uma biografia ‘fria’, como se não tivesse convivido com ele por duas décadas”. A relação entre ambos foi enriquecedora. “Há coisas que ficam: a devoção incondicional ao ofício de repórter, por exemplo. Era algo que sempre tive. Com Joel, este traço pode ter se acentuado. Digo – brincando – que sou a única pessoa que conheço que rasgou dinheiro, pelo menos em sentido figurado. Tive perdas por abrir mão de cargos de chefia. Mas não trabalho para ganhar dinheiro. Entre minhas prioridades, o dinheiro ocupa a septuagésima oitava posição. Meu sonho não é ter carro do ano, comprar roupa de grife, ter cartão de crédito estrelado ou


viajar para Miami. Estou fora! Assim, minha taxa de arrependimento por ter abandonado cargos de chefia é zero vezes zero vezes zero, elevada ao cubo. Fazer jornalismo, para mim, sempre foi botar o ‘pé na estrada’, tentar ver o que se esconde além do horizonte da Redação, conhecer personagens, fazer perguntas, observar, duvidar e tentar relatar – da maneira mais fiel e mais atraente possível – o que vi e ouvi. A compulsão de sair da Redação, aliás, foi o que me fez procurar o próprio Joel Silveira, para uma entrevista que marcou o início de nossa convivência, parceria e amizade. Ninguém me pediu para fazer. Fui por minha conta.”

que fez com que textos de altíssima qualidade, como os de Joel, virassem ‘peça de museu’ – e não moeda corrente nas páginas dos jornais? Pode-se dizer: não há tantos Joéis, não há tantos Rubens Braga. É claro que não há! Talentos assim não aparecem a cada quinzena... São raros, raros, raros. Mas é verdade, também, que a ‘ditadura da objetividade’ tornou o terreno pouco propício para o florescimento de talentos capazes de produzir um jornalismo minimamente autoral. O texto empobreceu. Falo como consumidor. Não quero ter a pretensão de ficar ‘pontificando’ sobre a prática do jornalismo. Vou morrer dizendo: o texto jornalístico ficou árido como uma paisagem marciana. Não quero virar um dinossauro rabugento, mas fico chocado quando leio alguém escrever ‘o óculos’, no singular. Ou uma matéria com cinco parágrafos começando com ‘segundo ele’. Não haveria outra maneira de redigir uma entrevista? Deus do céu! Lutar por um jornalismo melhor é, sempre foi e será uma maneira de lutar por um Brasil menos medíocre.”

briand devido a seu estilo ferino – não era homem de guardar mágoas. Nem ressentimentos. “Ele não era chamado para escrever nos grandes jornais, mas era sempre homenageado. Ganhou um prêmio importante da Academia Brasileira de Letras e recebeu homenagem no Prêmio Embratel, entre tantas outras. Tinha humor e auto-ironia que o protegiam contra eventuais mágoas. Uma víbora não iria ficar chorando. Pelo contrário. Iria rir do mundo. Sempre contava a cena que resume tudo e todos: Nelson Rodrigues uma vez, na Redação, ficou contemplando, em silêncio, a imagem de Joel – que datilografava ferozmente um texto, como se fosse salvar o mundo. Depois de alguns minutos, Nelson pronunciou apenas uma palavra: ‘Patético!’. E foi embora. É isso: ‘patético’. Não existe palavra melhor para definir o absurdo geral.” O filme traz ainda luxuosas participações especiais. A narração dos textos de Geneton foi feita pelo cantor Raimundo Fagner. “Convidei-o porque não sou um bom narrador. Nunca fui. A essa altura do

DIVULGAÇÃO/ACERVO PESSOAL

ter registrados seus pensamentos e atuação. “É claro que há um punhado de gente que poderia ser retratada em documentários. São tantos! Elio Gaspari, nossa ‘Greta Garbo’; Mino Carta, por ter participado de momentos importantes da imprensa brasileira moderna. O fato de fazer documentários não chega a ser uma novidade para mim. Fiz cinema Super-8 nos anos 1970, no Recife. Houve um movimento forte lá. Naquele tempo, eu nem sonhava em trabalhar em tv. Eu poderia ter feito cinema, mas, por mil motivos, terminei fazendo telejornalismo. Agora, posso juntar as duas pontas: afinal, fazer documentário é uma maneira de fazer jornalismo em cinema. Por que não? Estou cumprindo, na mediOnde foi que o da do possível, a tarefa a que me impus, e jornalismo se perdeu? que você recordou no início desta matéria: Em poucas palavras, antes da exibição produzir memória. É minha maneira – de Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lemprecária, acidentada, mas sincera – de dar branças, o jornalista falou sobre a necessiuma contribuição, mínima que seja, ao dade de um resgate histórico. “Joel provanosso jornalismo.” va que é possível casar jornalismo com liPor fim, uma provocação. Conhecendo teratura. Precisamos deixar de lado esse tão bem o Joel, e seu humor pra lá de pecucomplexo quanto ao texto jornalístico, de liar, como Geneton acredita que ele teria que se trata de algo menor. Os reagido à exibição prévia do dorelatos de Joel sobre a guerra, cumentário? O que teria dito assim como os de Rubem Braga, Joel Silveira na noite de 29 de são iguais ou melhores que os do janeiro? “Fiz alguns livros. PreGay Talese, ou de qualquer oufiro não fazer lançamentos. É tro grande nome do jornalismo um fabuloso exercício de masoamericano. E, engraçado, eles quismo ficar ali, numa mesa, fizeram o chamado ‘novo jornapreocupado em não se esquecer lismo’ antes mesmo dos amerido nome de ninguém e, além de canos. Para combater a sublitetudo, produzir dedicatórias que ratura, que é uma vocação enorrecompensem o sacrifício de me dos jornalistas, inclusive quem foi até a livraria. Nem minha, os jornais estabelecepreciso falar na possibilidade, ram uma ditadura da objetividasempre presente, de que ninde. Penso que, no ambiente de guém se dê ao trabalho de apacrise em que vivem, talvez seja recer. De qualquer maneira, imaesta uma boa hora de retomar gino que Joel ficaria satisfeito de aquele jornalismo autoral que ver, na tela, o resultado de tantas Joel fazia.” conversas, entrevistas que fiz Geneton diz que Joel não com ele. Mas não posso deixar de chegou a ser desencantado com lembrar uma manifestação da ‘vía profissão. “Pelo contrário: dibora’. Quando lançamos o livro zia que a imprensa brasileira tiNitroglicerina Pura, preferimos Apesar da diferença de idade, Geneton e Joel Silveira se tornaram amigos íntimos: “Ganhei um prêmio na loteria do jornalismo” nha evoluído bastante, o que é não fazer noite de autógrafo. Eu verdade. Nunca ouvi dele um disse a Joel: ‘Vai sair matéria nos lamento contra o fato de não ser chamado Um dos momentos mais tocantes do filcampeonato, não vou aprender a recitar jornais, é melhor a gente não fazer ’. Joel: a escrever com regularidade em algum dos me são as lembranças de Joel Silveira sobre textos. Queria uma voz que soasse nor‘É melhor não fazer noite de autógrafo nossos grandes jornais. Mas ele sabia que, a cobertura da Segunda Guerra Mundial. Ao destina – Joel é natural de Lagarto, no porque, senão, ela pode aparecer !’. Perno fundo, era considerado uma espécie de mesmo tempo em que dizia ter envelhecido estado de Sergipe –, mas não tivesse nem guntei: ‘Ela quem?’. E Joel: ‘Ela! Ela! A es‘relíquia’. Os jornais deveriam ter convocadez anos durante os dez meses em que estea entonação jornalística nem o peso de pécie humana! É melhor ficar em casa!’, do Joel para escrever perfis, memórias, seja ve na Itália, é impossível negar que foi exaum ator. Fagner topou na hora. Fico agraele respondeu”. o que for. O fato de não o terem feito é um tamente esta experiência radical que forjou decido, porque ele correu um ‘risco’. Mas Garrafas ao Mar: A Víbora Manda Lemcrime de lesa-imprensa. Com toda certeza, o jornalista que viria a ser. “Este período não deu tudo certo. A narração ficou contida, branças começa com imagens aéreas do logo apareceria um editor entediado, com poderia deixar de ser marcante. Indepensóbria, na medida”. O pensamento e as fraRio de Janeiro, acompanhadas de uma uma tesoura numa das mãos e uma metradentemente das marcas pessoais, há um ses de Joel – o documentário está replecanção de exaltação à Cidade Maravilholhadora de fuzilar matérias em outra, para detalhe importante na atuação de Joel como to delas, todas geniais – ganharam vida na sa – uma fórmula clássica condenada pelo dizer: ‘ah, não, não existe espaço para este correspondente: já nos primeiros textos, na interpretação de dois atores. “Poder conpróprio Joel Silveira. Tal opção do diretor, tipo de coisa...’ Que eu me lembre, o último chegada a Nápoles, transparecia esta mistura tar com Othon Bastos e Carlos Vereza foi de desafiar abertamente o gosto do perjornal a publicar, com alguma freqüência, feliz entre jornalismo e literatura. Joel era um luxo. Nada foi gratuito. Othon remesonagem central nos primeiros minutos textos de Joel foi a Gazeta Mercantil, no um caso raro que conseguia dosar as duas te a Gláuber Rocha, um dos meus ídolos de exibição, arrancou risos da platéia. Da início dos anos 2000", lembra Geneton, que coisas. Quando veio para o Rio, o sonho do cinematográficos. Vereza, todos lemmesma forma, Geneton fez descumprir segue em sua análise. jovem Joel, como ele dizia com bom humor, bram, conseguiu o milagre de se transforoutra máxima de Joel. “A função do repór“O grave disso tudo é o seguinte: texera simplesmente o de se tornar o maior mar em Graciliano Ramos nas telas, na ter é ver a banda passar. Não é fazer partos brilhantes, como os que Joel enviou escritor do Brasil e ganhar o Prêmio Nobel versão cinematográfica de Memórias do te da banda”, decretou o velho jornalista, da guerra na Itália para o Brasil, ou aquede Literatura. Por uma questão de sobreviCárcere. Tanto um quanto o outro internuma de suas famosas frases. Esta foi, inles em que ele descreve, por exemplo, uma vência, desembarcou no jornalismo. Mas – pretariam bem todos os textos selecionaclusive, escolhida para fazer parte do maentrevista frustrada com Getúlio Vargas de certa forma – jamais deixou de fazer litedos para o filme. Mas Vereza terminou terial de divulgação do filme. Pois bem, na ou as feições de um menino morto duranratura. A realidade pode ser bela matériaficando com os relatos mais ‘graves’ de sessão de lançamento do documentário te uma revolução na Colômbia, dificilprima para a criação de textos literários”. Joel, enquanto Othon ficou com a maia seu respeito, Joel não viu a banda pasmente encontrariam espaço nos nossos oria dos textos mais irônicos”. Apesar de ‘esquecido’ pelos principais sar. Não estava presente. Ele foi a própria jornais de hoje. Fica a pergunta: onde a Geneton lança no ar os nomes de ouveículos do País, Joel – ou a ‘víbora’, apebanda! E mostrou a todos que, mesmo de receita desandou? Que desgraça foi esta lido que lhe foi dado por Assis Chateautras figuras do jornalismo que mereciam longe, sabe fazer barulho... JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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PERSONAGEM

O NOSSO

ZÉ CARIOCA, AGORA SETENTÃO P OR C ELSO S ABADIN

6 de fevereiro de 1943. Há 70 anos estreava nos Estados Unidos o desenho animado Alô, Amigos, produzido pelos estúdios de Walt Disney. Junto com ele, fazia também seu début nas telas de cinema um simpático papagaio trajando paletó amarelo, chapéu palheta, gravata borboleta, e tocando cavaquinho: Joe Carioca. No Brasil, Zé Carioca. O desenho de apenas 42 minutos de duração (tecnicamente, sequer é considerado longa-metragem) vinha carregado de uma importância estratégica muito maior do que as crianças da época poderiam supor. Disney, sempre afinado com as diretrizes oficiais do Governo norte-americano, criou e produziu Alô, Amigos como peça de propaganda da chamada “Política da Boa Vizinhança”, pela qual os Estados Unidos tentavam seduzir as nações latinas para que elas não sucumbissem aos ideais nazifascistas, por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Estreitando laços culturais e afetivos entre os países latinos e o american way of life, os Estados Unidos tentavam assim não apenas garantir a adesão latina para o lado dos aliados, como também, e principalmente, solidificar o extenso mercado consumidor de México, América Central e América do Sul, num momento em que o mercado europeu estava debilitado. Não por acaso, Alô, Amigos é o único filme em toda a história da Disney que estreou antes na América do Sul: no Rio de Janeiro, em 24 de agosto de 1942. O desenho animado é resultado de uma espécie de “missão diplomática” que levou um grupo de artistas norte-americanos para conhecer a América Latina. O próprio Walt Disney fez parte do grupo. A viagem faria bem ao desenhista/empresário, que naquele momento enfrentava uma onda de greves em seu estúdio. Ele desembarcou no Brasil em 16 de agosto de 1941 e imediatamente se encantou com as dimensões da floresta amazônica, já que a primeira escala foi em Belém. Diz a lenda que foi na capital paraense que ele ouviu Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, que mais tarde faria parte da trilha sonora de Alô, Amigos. Parada seguinte: Rio de Janeiro, três dias depois. Incensado pela mídia, 28

JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

Disney posa ao lado do Presidente Getúlio Vargas, participa de eventos, e coordena sua equipe de quase 20 artistas que saem pela então capital federal desenhando seus pontos turísticos mais significativos. Uma celebridade internacional visitando o País, somada à natural tendência de parte da imprensa em produzir

Zé Carioca esteve presente no número 1 de O Pato Donald. Abaixo, a primeira revista do Zé Carioca.

REPRODUÇÃO

O papagaio verde e amarelo criado por Walt Disney atravessa sete décadas de peripécias e chega aos nossos dias como o malandro de bom coração e divertido.

factóides, aliada à necessidade da indústria hollywoodiana de criar mitos, acabou inevitavelmente produzindo uma série de informações que jamais saberemos serem ou não verdadeiras. Consta, por exemplo, que num evento promovido pelo Comitê Brasileiro de Estudos de Produções Cinematográficas Interamericanas, no Hotel Glória, Disney ouviu uma série de piadas de papagaio, ficou fascinado com a importância da ave no imaginário popular brasileiro, e ali decidiu criar o Zé Carioca. Outros dizem que a inspiração veio do sambista Paulo da Portela, que Disney conhecera ao visitar a escola de samba Unidos da Portela. Há também quem defenda a tese que Zé Carioca foi inspirado num guia turístico da comitiva de Disney, enquanto outros atribuem a vestimenta do papagaio a um certo Dr. Jacarandá, figura conhecida das ruas cariocas, nos anos 1940. Atribui-se ainda ao cartunista J. Carlos (José Carlos de Brito e Cunha) uma certa influência que ele poderia ter sobre os traços do personagem. Afinal, sua obra era apreciada por Disney, que chegou a convidá-lo para trabalhar em seus estúdios. Versões mais românticas imaginam o próprio Walt, solitário em seu quarto de hotel no Rio de Janeiro, criando o personagem num pequeno pedaço de papel qualquer. Esta é mais difícil de crer. Criado, enfim, o carioquíssimo papagaio, sua voz é “entregue” a um dublador paulista: José do Patrocínio Oliveira, mais conhecido como Zezinho, músico nascido em Jundiaí, irriquieto, falador, brincalhão, que teria sido indicado a Disney por influência direta de ninguém menos que Carmen Miranda. A Academia de Ciências e Artes Cinematográficas de Hollywood, encarregada de anualmente premiar os melhores filmes e talentos do cinema, acabou levando Alô, Amigos talvez um pouco a sério demais, e em 2 de março de 1944 lhe outorgou um improvável prêmio Oscar de... Melhor Documentário. Com o sucesso, Zé Carioca acabou estrelando também Você já foi à Bahia? (The

Three Caballeros), em 1944, ao lado do Pato Donald e do galo mexicano Panchito. No filme, o Brasil é representado pelo segmento Baía, onde Zé Carioca e Donald dançam com Aurora Miranda em Salvador. Zé participou ainda do antigo programa de TV Disneylândia, fez aparições especiais em Uma Cilada para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit?), de 1988, e nos seriados animação OK Mundongo do Mickey (Mickey Mouse Works) e O Point do Mickey (House of Mouse). Primeiros passos

Fora do mundo do cinema e dentro do mundo dos quadrinhos, as histórias de Zé Carioca eram desenhadas e publicadas originalmente nos Estados Unidos. Em seu livro Para Reler os Quadrinhos Disney, Roberto Elísio dos Santos classifica os primeiros anos de Zé Carioca nas hqs como “Fase Americana” do personagem. É onde ele assume contornos de um sem-teto malandro e de caráter pouco confiável. Na história O Rei do Carnaval, de dezembro de 1942, o quadrinista Carl Buettner mostra Zé Carioca se fantasiando de assaltante para tentar entrar, sem convite, no baile de Carnaval do Cassino da Urca, para ali tentar seduzir uma bela sambista de traços inspirados em Carmen Miranda. Trata-se da primeira história em quadrinhos de Zé Carioca produzida especificamente para o formato gibi, e não mais como tira de jornal. Ela foi publicada na edição 27 da revista Walt Disney’s Comics and Stories, e saiu pela primeira vez no Brasil na edição de número 8 de Pato Donald, em 1951. Também com os traços de Carl Buettner, mas com roteiro de Chase Craig, a história A Volta dos Três Cavaleiros marca a estréia em quadrinhos do trio Zé Carioca, Panchito e Donald. A trama ridiculariza as maneiras irreverentes da dupla latina, cujos hábitos extravagantes constrangem Donald junto aos seus conterrâneos norte-americanos. De acordo com Roberto


O traço despojado de Canini (acima) deu ao Zé Carioca um jeito mais brasileiro. À direita, o personagem em sua primeira história em quadrinhos.

A revolução de Canini

imaginário coletivo. E Zé Carioca pega carona nesse ufanismo, ganhando o seu próprio gibi em 10 de janeiro de 1961, ainda que, de certa forma, pegando a carona do amigo de sempre: não existe efetivamente “uma edição número 1” da revista Zé Carioca, que começa a circular como edição especial do Pato Donald número 479. Pato Donald e Zé Carioca passam então a se alternar semanalmente (o que acontecerá até 1985), seguindo a numeração original do gibi do pato americano. Como é duro se desvencilhar da matriz! A Abril, porém, subdimensionou a necessidade de novos roteiros e novos artistas para manter a produção de um gibi quinzenal. Sem conseguir suprir a demanda, as primeiras edições vinham recheadas de imprecisões geográficas, com o Zé, que é carioca, circulando pelos paulistaníssimos Estádio do Pacaembu ou Parque do Ibirapuera. Além disso, roteiros norte-americanos criados para Mickey ou Donald começaram a ser adaptados para o personagem brasileiro, o que proporcionou estranhas historietas de conteúdo híbrido, como Zé Carioca e Pateta perseguindo João Bafode-Onça. Foi assim que nasceram, por exemplo, os sobrinhos-papagaios Zico e Zeca, que entram nas tramas adaptadas EDITORA ABRIL

Victor Civita segura uma folha de impressão com um dos primeiros números da revista O Pato Donald, de 1950, com o Zé Carioca novamente na capa da publicação: presença constante nas revistas Disney da editora.

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A ascensão do papagaio

A ascensão de Zé Carioca como personagem representativo da cultura brasileira coincide com o início da queda daquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-latas”. Campeão mundial de futebol em 1958, berço da Bossa Nova e do Cinema Novo e palco da construção de uma novíssima capital desenvolvimentista, o Brasil conhecia um inédito momento de autoestima em seu

para substituir Chiquinho e Francisquinho e/ou Huguinho, Zezinho e Luisinho. Zé perde totalmente sua personalidade. O universo zecarioquense se transforma num balaio de gatos. Ou de patos. Aos poucos, contudo, a situação se normaliza, e Zé vai reassumindo seus contornos verde-amarelos. Na história Um Festival Embananado, de Waldyr Igayara de Souza e Izomar Camargo Guilherme (1968), a ação acontece num brasileiríssimo festival de música popular, semelhante aos que, na época, faziam muito sucesso na TV Record.

EDITORA ABRIL

Elísio, Zé Carioca e Panchito são retratados neste gibi como “estrangeiros arruaceiros não acostumados com a civilização”. Percebe-se então um início de “esvaziamento” da Política da Boa Vizinhança, nesta história publicada em 1944 nos Estados Unidos e 10 anos depois no Brasil. Com o tempo, a popularidade de Zé Carioca ultrapassou fronteiras. Em 1949, o papagaio participou do gibi de produção italiana O Inferno de Mickey, de Guido Martina e Ângelo Bioletto, que só viria a ser publicado no Brasil em 2010, no volume 13 da coleção Clássicos da Literatura. Na Espanha, Zé Carioca era uma das figurinhas dos chocolates Lloveras, populares naquele país no final dos anos 1940. A trajetória do simpático louro mudaria radicalmente de rumos a partir da fundação da Editora Abril, em 1950. Mas mesmo em seu País, teoricamente, “natal”, Zé Carioca só estrearia na nova editora pegando carona nos gibis do Pato Donald, onde aparece desde a primeira edição. E logo consegue seu espaço. Entre 1950 e 1956, o papagaio marca presença em 57 capas do Pato Donald, grande parte delas assinada pelo argentino Luis Destuet, artista egresso da subsidiária portenha da Abril. Em 1952, protagonizou nos gibis do seu colega pato oito historietas chamadas Zé Carioca Mostra o Brasil, onde passeava pelo País em companhia de Mickey, Pluto & cia. Em janeiro de 1955, também desenhada por Destuet, A Volta de Zé Carioca retrata o personagem contracenando com personalidades da boemia carioca. A história saiu na edição 165 de Pato Donald.

Contudo, o personagem, malandro e totalmente avesso ao trabalho, começa a esbarrar nos preceitos do chamado “Código de Ética”, uma auto-regulamentação que as grandes editoras brasileiras de quadrinhos – Editora Gráfica O Cruzeiro, Ebal, RGE e Editora Abril – haviam criado, com inspiração do Comics Code norte-americano, para, digamos, “moralizar ” as tão combatidas hqs. O código dizia, por exemplo, que “as histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos e exaltação das virtudes sociais e individuais”. Onde encaixar um papagaio vagabundo neste contexto? A resposta passaria necessariamente pelo bom humor. E é onde se encaixa o trabalho de Renato Vinicius Canini. Explicando: em 1969, Waldir Igayara e Izomar Camargo Guilherme passam a se dedicar à recém-criada revista Recreio, dirigida pela escritora Ruth Rocha, e direcionada ao público infantil. Assim, as histórias de Zé Carioca começam a ser desenhadas primeiro por Carlos Edgard Herrero e mais tarde por Canini. O desenhista gaúcho, com seus traços abertamente pessoais e despojados, foi responsável por uma verdadeira revolução do personagem. Em parceria com o argumentista Ivan Saidenberg, Canini ampliou o universo de Zé Carioca, desenvolvendo a fictícia Vila Xurupita, a amizade com o urubu Nestor, e os temas marcadamente brasileiros. A primeira trama desenhada e escrita por Canini foi O Leão que Espirrava, onde surge o empreendedor e responsável Zé Paulista, como contraponto ao primo carioca. Em Os Heróis São Modestos, primeira história da dupla Saidenberg-Canini, surge o vilão João Ratazana. Também são desta fase O Grande Festivaia (que satiriza Roberto Carlos, Waldick Soriano e Chico Buarque, entre outros) e Fora do Sério (brincando com o então apresentador da TV Tupi Flávio Cavalcanti). Foi o auge do personagem. A partir dos anos 1980, novos artistas se somam à criação das histórias de Zé Carioca. Entre eles, Roberto Fukue, Euclides Miyaura (o Chin), Moacir Rodrigues, Luiz Podavin e Gérson Teixeira. A Vila Xurupita ganha ainda mais personagens, como Zé Galo, Átila, Pedrão, Afonsinho, e os vários primos do Zé Carioca, cada qual homenageando uma região do Brasil: Zé Queijinho, Zé Jandaia, Zé Baiano e Zé Pampeiro. Em junho de 1981 chega às bancas a primeira edição especial com o personagem: Zé Carioca Especial 20 Anos, trazen-

do uma seleção das melhores histórias destas duas décadas. Zé Carioca passa a ter histórias publicadas também na Itália, na Holanda e em vários outros países. Alternando a periodicidade de suas revistas entre semanal e quinzenal, ele se revela um personagem de grande popularidade, capacidade de se reinventar e, conseqüentemente, longevidade. Em 1996, aparece na tv apresentando o quadro Disney Club, dentro do programa TV Colosso, da Rede Globo, e no ano seguinte a consagração máxima para um herói eminentemente carioca: transforma-se em sambaenredo. A escola de samba Acadêmicos da Rocinha entra no Sambódromo do Rio de Janeiro cantando A Viagem Fantástica do Zé Carioca à Disney. A virada do milênio trouxe a globalização e, com ela, diversas crises econômicas igualmente globalizadas. Por questões financeiras, a Editora Abril opta por terceirizar o trabalho de seus artistas, que, por sua vez, organizam-se em estúdios e passam a vender suas obras também para outros licenciados da Disney, principalmente o dinamarquês Egmont Group. Artistas brasileiros e europeus trabalham cada vez mais em parceira. Por aqui, destacam-se os talentos de Fabrício Grellet, Carlos Motta e Dave Santana. As tramas do Zé Carioca acompanham o momento: em Gol Contra, por exemplo, a trama é a corrupção no futebol, que leva o time da Vila Xurupita para a oitava divisão, enquanto A Pegadinha remete ao programa de TV Domingão do Faustão. Em 2007, o parque temático Epcot, no Walt Disney World, relançou o passeio de barco no pavilhão do México trazendo de volta Zé Carioca, Donald e Panchito. Agora, comemorado seus 70 anos, Zé Carioca ganha uma nova e inédita história em quadrinhos, o que não acontecia há 12 anos: Um Crocodilo no Rio, com arte e roteiro de Fernando Ventura. O bom e velho papagaio está totalmente desvencilhado das políticas norte-americanas responsáveis pelo seu surgimento. Brasileiro, malandro, de bom coração e sempre divertido, ele pode, sim, continuar “trabalhando” (palavra que detesta) para a Disney, mas longe de significar qualquer “esforço” (outra palavra que odeia) de boa vizinhança naqueles distantes tempos de guerra. A guerra hoje é pelo mercado, um conflito em que as principais armas são a criatividade, o jogo de cintura e a capacidade de se reinventar a cada nova dificuldade. E isso o nosso herói verde e amarelo tem de sobra.

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RÁDIO

Bendita FM Maldita

lamas, Legião Urbana, Plebe Rude, Capital Inicial, Kid Abelha, Blitz, Barão Vermelho, Titãs, Ultraje a Rigor, RPM, Engenheiros do Hawaii… Ao menos não do modo que os conhecemos hoje. Sem a rádio, e sem sua parceria prática e espiritual com o Circo Voador, armado primeiramente no Arpoador e depois na Lapa, o BRock teria tido mais dificuldades para se afirmar na sensibilidade pátria”, escreveu Dapieve.

Edição especial do livro de Luiz Antonio Mello festeja os 30 anos de surgimento da Fluminense FM, rádio que abriu espaço para o rock brasileiro e mudou o perfil das emissoras jovens.

Do céu da audiência ao inferno comercial

P OR P AULO C HICO

Ela não está mais no ar. Mas nem por isso foi esquecida. Na verdade, acaba de receber uma homenagem com o lançamento da edição comemorativa de 30 anos de A Onda Maldita – Como Nasceu a Fluminense FM. Apontada e reconhecida como a rádio que abriu as portas para o rock no Brasil e ajudou a mudar os costumes e a cultura das até então sisudas estações de freqüência modulada, a emissora de Niterói tocava o que a juventude queria ouvir. E, mais do que isso, de forma direta ou indireta, também transmitia o que os jovens precisavam dizer naquele momento, em que a sonhada abertura política dava as caras, após mais de duas décadas de ditadura militar. “A Fluminense FM nasceu quando eu e meu amigo/irmão Samuel Wainer Filho, o Samuca, tragicamente morto num desastre de carro, estávamos de plantão em Redações. Ele no Jornal do Brasil, eu na Rádio Jornal do Brasil, onde durante muitos anos trabalhei. O ano era 1981, domingo de plantão parado, em maio, eu e Samuca começamos a conversar. Samuca era ansioso, muito ansioso, e lá pelas tantas disse ‘vamos fazer um programa de rádio, numa FM’. Eu amo este veículo. Eu sabia que o Grupo Fluminense, dono de jornal e rádios, tinha acabado de instalar um transmissor novo e naquele domingo mesmo liguei para a casa do então superintendente. A partir daí, passo a passo, detalhe por detalhe, segundo por segundo, está tudo no livro. Acertos, vitórias, erros, vacilos, não poupei nada nem ninguém, especialmente a mim mesmo e os assassinos da rádio”, conta o jornalista Luiz Antonio Mello, autor do livro, mentor e diretor da emissora em seu auge. A edição especial de A Onda Maldita chega ao mercado pela Nitpress, editora de... Niterói. “Este lançamento comemora as três décadas do surgimento, na manhã de 1º de março de 1982, da rádio que revolucionou o dial e consagrou o rock brasileiro. O Luiz Antonio optou pela Nitpress porque somos a única editora do Estado focada em cultura fluminense. Embora fosse uma rádio cosmopolita, que, como ele diz, tocaria e faria sucesso em qualquer parte do mundo, a Maldita estava inserida no nosso contexto cultural. Era feita em Niterói, por niteroienses, mas sem qualquer ranço de bairrismo”, avalia Luiz Antônio Erthal, que comanda a editora. Vale lembrar que, com alguma dose de exagero, a cidade foi chamada de ‘Liverpool brasileira’ nos anos 1970 pela proliferação de inúmeras bandas. “Niterói tem, de 30

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Graças a emissoras como a Federal AM e a Eldo Pop, criada por Big Boy nos anos 1970, descobriu-se que haFOTOS DIVULGAÇÃO via um enorme segmento de ouvintes querendo ouvir rock, blues e afins no Brasil. Sob o ponto de vista de audiência, a Fluminense FM não foi uma proposta arriscada, mas o mercado publicitário não reconhecia naquela época o valor da emissora. “A meu ver, rock não é apenas um gênero musical, mas sobretudo uma postura existencial, política, social, e isso assustava o mercado publicitário, na época muito reacionário. Por isso, Fluminense FM, Eldo Pop e Federal não foram adiante, por falta de suporte, apoio. Foi preciso que a abertura política se transformasse em democracia de fato e de direito e o Rock Acima, parte da equipe da rádio: Da esquerda para direita, Selma Vieira, Selma Boiron, Alex Mariano, Cristina Rabello, in Rio, que teve a Maldita Liliane Yusim, Monika Venerabille e a jornalista Carla. Atrás aparecem Aramis de Lemos, Paulo Sisinno e Hilário Alencar. Na frente, Luiz Antonio Mello, Carlos Lacombe e Joubert Martins. Abaixo, Samuel Wainer Filho, o Samuca. como parceira, surgisse no horizonte para que o merfato, essa tradição, embora a audiência da cado publicitário reconhecesse o valor do Maldita fosse difusa. Mas, segundo a Marock também como excepcional alavanca ria Juçá, nos tempos do Rock Voador, 30% de vendas, de negócios”, disse Luiz Antoda freqüência do público do Circo Voador nio Mello ao Jornal da ABI. – tradicional ambiente de shows voltados O clima da época é descrito com precipara o público jovem e que tinha uma parsão pelo autor na página 64 do livro. “No ceria total com a Maldita, formando uma Brasil de fevereiro de 1982, o rock ainda espécie de irmãos siameses – vinha de Niera visto como coisa de drogado perdido. terói. Acho que a cidade foi o cenário perIsso foi cruel para o nascimento da Flumifeito para essa história que marcou o rock nense, especialmente para a área comercinacional”, recorda o publisher da Nitpress. al da emissora. Não sei se por coincidênA editora lançou a edição comemoracia, mas dois dias depois de uma primeira tiva do livro no dia 5 de dezembro, na Sala visita de ‘cortesia’ de dois inspetores da de Cultura Leila Diniz, da Imprensa OfiPolícia Federal, surgiram técnicos do Dencial, a apenas dois quarteirões da sede do tel, uma espécie de polícia da mídia eletrôGrupo Fluminense de Comunicação, palco nica. Foram fazer ‘checagem de rotina’. De dos acontecimentos narrados com paixão fato, checaram a torre, um computador e em primeira pessoa pelo criador da emischamado freqüencímetro e também os sora, famosa também por abrir espaço para cinzeiros na sala de produção. Não havia as mulheres à frente da locução, com um bagana nenhuma. Essa coisa de associar o time formado por nomes como Cristina rock às drogas, orgias, era comum”. Rabelo, Cláudia Cid, Selma Boiron, Jussara Apesar das dificuldades de se viabiliSimões e Mylena Ciribelli – a mais conhezar como negócio, a Fluminense FM era cida delas, com carreira televisiva na área um fenômeno de audiência e comandade esportes, com passagem pela TV Globo va a juventude no Rio de Janeiro – o livro e atualmente na Record. O jeito feminidamental para se firmar no cenário munarra episódios de festas superlotadas, no despojado de conduzir o microfone e sical. O sucesso junto ao público mexeu inclusive com uma invasão à casa de shows o grito de guerra “Maldita!” tornaram-se com o mercado, e diversos clones da FluCanecão na festa de dois anos da estação. as marcas registradas da rádio. minense começaram a pipocar, não só no Episódios que ilustram bem o poder de Em poucos meses a audiência pulou de Rio de Janeiro, como Brasil afora. Estava, fogo da emissora junto ao seu público quase traço para as primeiras posições no assim, pavimentada a estrada para a excativo. Esteve no ar por 12 anos, passou Ibope. Pelos seus estúdios passaram granplosão das bandas nacionais. pela faixa AM e ainda tentou um retordes astros internacionais e as mais imporO escritor e crítico de música Arthur no às FMs, mas sucumbiu diante de um tantes bandas do rock nacional, que tiveDapieve, que assina a orelha do livro, afirmercado em transformação. “Saí da rádio ram na emissora fluminense a base funma que “sem a Maldita não haveria Paraem abril de 1985, portanto não posso res-


A Rádio Fluminense FM tinha um time de belas locutoras: Monika Venerabille, Edna Mayo, Liliane Yusim, Cristina Carvalho, Selma Boiron e Selma Vieira, em foto feita um dia antes da estréia. À direita, Liliane e Mylena Ciribelli apresentam o show de aniversário da rádio, no Canecão, que chegou a ser invadida pelos fãs (abaixo à esquerda). Na outra foto, a platéia durante um show da rádio no Clube Monte Líbano.

ponder com exatidão sobre as causas de seu fechamento. Mas não há dúvida de que foi falta de apoio comercial. Não adianta ser genial se não há profissionais que vendam. Van Gogh morreu na miséria, pois não tinha um bom gerente de vendas. Hoje, qualquer projeto, ao nascer, já deve ter uma forte estrutura de venda para não morrer na praia”, avalia Luiz Antonio Mello, que aponta ainda outro fator fundamental para o desaparecimento das emissoras dedicadas ao rock: a crise do próprio gênero. “Há uma crise de mercado, sem dúvida. O rock brasileiro voltou à sua condição de fenômeno de periferia. Sucesso em pequenos guetos, grupos, mas está lá, firme. Infelizmente não temos uma boa rádio para divulgar e consagrar os novos nomes, mas eles existem e estão tocando por aí.” Como será que Luiz Antonio Mello vê as emissoras FMs jovens dos dias de hoje? “Não sei exatamente por que, mas há uma forte tendência em desqualificar o chamado público jovem. Voltamos à mesma condição de imbecilização do início dos anos 1980, o que é lamentável. Parte do mercado ainda vê o jovem como um mamífero alienado, que só quer saber de beber cerveja, falar besteira e cultuar o asneirol vago da Comunicação. O respeito à inteligência de boa parte deste público foi uma das razões do sucesso da Flu-

minense FM. As rádios jovens de hoje, francamente falando, são, para mim, inaudíveis, mofadas, velhas”, condena ele, que aposta. “Costumo dizer que se criarmos uma FM hoje e dermos uma leve atualizada na programação musical da rádio que entrou no ar em 1º de março de 1982, colocando locutoras com o perfil semelhante, em seis meses essa emissora estaria em terceiro lugar. Certeza absoluta!”. Os jornais da época deram ampla e constante cobertura à novidade que surgia. “Logo no início, em 1982, o Jornal do Brasil começava a registrar cartas de leitores elogiando a programação da rádio. Foi o jornal que cobriu com matéria de página inteira, no Caderno B, a olimpíada de fliperama do Barra Shopping. A revista IstoÉ descobriu a rádio através de reportagem da Regina Echeverria. A Folha de S.Paulo, pegando pelo vanguardismo, também deu uma excelente cobertura à Maldita, assim como O Globo, Última Hora, O Dia e jornais de fora. Isso foi mais que fundamental para que a imagem da emissora se consolidasse, e tenho muito que agradecer a meus coleguinhas”, registrou Luiz Antonio Mello. Doces lembranças de uma amizade

Além das locutoras já citadas, o início da Fluminense FM contou com a participação vital de outros profissionais, como os radi-

alistas Amaury Santos e Sérgio Vasconcellos, Carlos Lacombe, craque na área de promoções, e o Dr. Alberto Francisco Torres, Presidente do Grupo Fluminense, que viabilizou a emissora e, talvez contaminado pela coragem da juventude daquela equipe, bancou decisões arriscadas, como o desrespeito à Censura federal, ao noticiar em abril de 1984 a votação da Emenda Dante de Oliveira, no Congresso Nacional, apesar da proibição constante do ato assinado pelo Presidente João Baptista Figueiredo.

Luiz Antonio Mello faz questão de apontar a torcida dos profissionais de outras emissoras – concorrentes que, regras de competição de mercado à parte, admiravam o ousado projeto. Eram, quase todos, também ouvintes. A lembrança, por parte do autor, das preciosas dicas de locução dadas pelo então já experiente Eliakim Araújo revela apenas uma das muitas manifestações espontâneas de apoio recebidas pela turma da rádio (Ver depoimento de Eliakim enviado especialmente para o Jornal da ABI). Delicioso também é o resgate dos bastidores de visitas de artistas dos mais diversos perfis, como o mitológico Serguei e o místico Gilberto Gil. Além de um aborrecido Gonzaguinha. Quando questionado pelo Jornal da ABI sobre a passagem mais tocante de A Onda Maldita, Luiz Antonio Mello não titubeia. “Acho que foi o momento em que o saudoso Samuel Wainer Filho e eu fomos apresentar um programa de rádio ao Grupo Fluminense, em maio ou junho de 1981 e nos foi oferecida a rádio toda. Esse momento foi a ponta do iceberg. Outro aspecto que o livro aborda é a amizade entre as pessoas que formavam aquela equipe, todas envolvidas num sonho real e se empenhando na busca pela perfeição. Isso eu não vi em lugar nenhum por onde passei.” A relação com Samuca era, de fato, muito especial. Fator evidenciado por ou-

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RÁDIO BENDITA FM MALDITA DIVULGAÇÃO

Carlos Lacombe e Luiz Antonio Mello em 1983, na sala de produção da rádio.

tro trecho do livro, no qual Luiz Antonio Mello narra o momento em que o amigo, mergulhado num ambiente de incertezas e inseguranças naturais, decide afastar-se do projeto. “Enquanto a rádio crescia na minha cabeça, sentia que ele continuava preocupado. Um dia, já no final de agosto de 1981, ele se abriu. Disse que ia voltar para o JB, que não estava gostando de respirar rádio o dia todo e etc. Acertamos, emocionados, que ele seria o padrinho da rádio. Ele topou, deu um desabafo de lágrimas e foi embora. Sem olhar para trás. Quando cheguei em casa, tinha um recado dele na minha secretária eletrônica: ‘Sou seu fã, Mello’. Telefonei para a casa dele e devolvi na secretária: ‘Eu também sou seu fã, Samuca’, disse”. Já para o final da obra, Mello descreve o forte impacto da notícia da morte de Samuel Wainer Filho, então repórter da TV Globo, em 29 de junho de 1984. O forte tom de emoção, que marcou toda a história da Fluminense FM, está presente nestas e em outras diversas partes de A Onda Maldita. E ajuda a fazer do livro um relato jornalístico diferenciado. “Há um público enorme ansioso por conhecer a história da rádio. A Maldita ocupa o imaginário das novas gerações, que ouvem seus pais falarem sobre ela. E o livro, narrado na primeira pessoa pelo Luiz Antonio Mello, trata dos acontecimentos com uma dose de emoção cavalar. Embora o lançamento dessa edição especial tenha sido recente, já está tendo uma ótima aceitação e procura.

Temos recebido pedidos na nossa livraria online dos Estados Unidos e de outros países”, festeja Luiz Antônio Erthal. As últimas das 250 páginas da edição são destinadas a depoimentos de personalidades. Estão lá músicos como Roberto Frejat, Roberto Menescal e Sérgio Baptista, a produtora Maria Juçá, e os críticos Jamari França e Tárik de Souza, entre outros. “A rádio teve papel único e revolucionário ao abrir espaço para a música mais-que-independente, que lá chegava na forma de fitas autoproduzidas e artesanais, sem passar sequer na porta das gravadoras. A combinação Fluminense/Circo Voador atraía multidões para assistir até seis grupos novos numa mesma noite. As gravadoras e a mídia é que corriam atrás dos músicos, ao contrário do que ocorre normalmente. Os Paralamas, por serem filhos deste movimento, fizeram durante anos campanha para que todas as rádios, principalmente as do interior, tivessem seu ‘horário Fluminense’ pelo menos uma vez por semana, o que, sem dúvida, contribuiria muito para a renovação do cenário musical”, escreveu Herbert Vianna. Pois é. Mesmo fora do dial, a Maldita, de certa forma, permanece no ar, na memória dos seus contemporâneos e na curiosidade latente daqueles que não a conheceram. Um público carente de uma rádio que os escute. Jovens que, por meio do livro de Luiz Antonio Mello, podem compreender melhor aquilo que perderam. Na Fluminense, todo dia era dia de rock, bebê!

A S LEMBRANÇAS DE E LIAKIM A RAÚJO

“A rádio fez um sucesso estrondoso” “Meu trabalho de palpitar na locução das jovens locutoras da rádio foi mínimo; pra ser sincero, quase insignificante. Treinei muitos locutores para as Rádios JB AM e FM, a Fluminense estava em ótimas mãos. Preferi dar força ao Luiz, quando ele me contou sobre o projeto pioneiro e corajoso. O que posso dizer é que conheço o Luiz Antonio Mello desde o dia em que ele chegou foca na Rádio Jornal do Brasil para fazer reportagem de rua. Rapidamente aprendeu o ofício e se tornou um dos melhores. Mas era pouco para ele. O que sempre me chamou a atenção no Luiz foi seu espírito inquieto, sempre buscando fazer mais do que o convencional. Lembro que em 1980, quando a JB-AM implementou seu sistema “all news”, precursor das atu-

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ais rádios que “tocam notícia”, criamos uma novidade. O repórter chegava da rua com a matéria e ia ao estúdio conversar com o locutor/apresentador sobre o que acabara de apurar. Esse diálogo era muito interessante e funcionava como uma espécie de complemento da matéria ao vivo, no estúdio. E mais uma vez o destaque era o Luiz Antonio, que chegava cheio de gás, pronto para deixar o ouvinte completamente por dentro do assunto, na visão do repórter que cobriu a matéria. Devo dizer que eu, no estúdio, adorava dialogar com o Luiz quando ele chegava da rua. Juntar o espírito inquieto e revolucionário do Luiz com o de outro da mesma estirpe, o Samuca, só podia dar naquele sucesso estrondoso que foi a Rádio Fluminense.”

Página dupla da reportagem “Uma tragédia brasileira – Os paus-de-arara”, de Ubiratan de Lemos e Mário de Moraes. Abaixo, Gregório Bezerra, preso político em João Pessoa. Foto de José Medeiros.

Fotojornalismo épico Agora em versão impressa, o melhor da cobertura fotográfica da revista O Cruzeiro em seu apogeu. P OR F RANCISCO U CHA

Depois de alguns adiamentos, finalmente foi lançado o livro As Origens do Fotojornalismo no Brasil: Um Olhar Sobre O Cruzeiro, que é o resultado impresso da exposição de mesmo nome já exibida no Rio de Janeiro e que fica em São Paulo até o dia 31 de março no Instituto Moreira Salles. Mais do que um simples catálogo, a obra apresenta em suas 336 páginas um retrato precioso sobre a história do fotojornalismo brasileiro nas décadas de 1940 a 1960 a partir do material publicado na revista O Cruzeiro. Organizado por Helouise Costa, docente e pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo-Mac-Usp, e Sergio Burgi, coordenador do acervo de fotografia do IMS, o livro apresenta, em dez capítulos, uma completa pesquisa sobre a revista, com artigos assinados por Fernando Morgado, Fernando de Tacca e Flávio Damm, além de Helouise e Burgi. As fotos que ilustraram as lendárias e, muitas vezes, premiadas reportagens ganham um merecido destaque no maior capítulo da obra: A Grande Reportagem ocupa quase dois terços do livro e suas 208 páginas são subdivididas em seis partes, cada uma dedicada a um assunto específico: A Temática Indígena, A Imprensa e as Artes, A Política Entre o Público e o Privado, Flagrantes da Vida Urbana, O Povo Brasileiro e Olhares Itinerantes. Também neste capítulo são reproduzidas várias páginas impressas das famosas foto-reportagens de O Cruzeiro, para que o leitor possa fazer uma comparação entre as imagens originais e o resultado final impresso na revista. A obra reúne alguns dos mais notáveis fotógrafos da imprensa brasileira. E não podia ser diferente, já que O Cruzeiro era a mais importante publicação da época, com um elenco de profissionais de dar inveja, tais como José Medeiros, Jean Manzon, Pierre Verger, Marcel Gautherot, Luciano Carneiro, Salomão Scliar, Indalécio Wanderley, Peter Scheier, Henri Ballot, Ed Keffel, Roberto Maia, Mário

de Moraes, Eugênio Silva, Carlos Moskovics, Flávio Damm e Luiz Carlos Barreto. Acompanha a publicação um mimo para os leitores: um caderno fac-similar de 16 páginas com reprodução de duas reportagens. ÚltimasHoras no Brasil foi escrita por David Nasser, com fotos de Jean Manzon, e As Duas Faces da Libertação de Cuba, tem texto e fotos de Luciano Carneiro. Para acompanhar o lançamento do livro, o IMS lançou um site sobre o assun-

to que pode ser visitado em ims.com.br/ ocruzeiro. Nesse endereço, o público poderá assistir a vídeos, ler alguns dos textos publicados no livro e ver em boa resolução uma seleção de fotos memoráveis. Lançada no final de 1928, a revista O Cruzeiro tinha como meta “colocar-se como a mais completa e mais moderna publicação do gênero produzida no Brasil”, como prometeu em seu primeiro editorial. Promessa cumprida nos anos seguintes, O Cruzeiro não parou e no início da década de 1940 começou uma reforma gráfica que iria dar espaço às fotoreportagens de Jean Manzon, recémcontratado. Outros bambas da imagem foram chegando. Mas foi a partir de 1947 que a revista deu o grande salto de qualidade, ao passar a investir em matérias de cunho social e humanista.


LIVROS

A música brasileira, de Darius Milhaud a Luiz Gonzaga As impressões do músico francês sobre sua viagem ao Rio em 1917 e os choros compostos por Gonzagão para execução em sanfona. POR JOSELIA AGUIAR

ACERVO JOSÉ RAMOS TINHORÃO/INSTITUTO MOREIRA SALLES

Às vésperas do Carnaval de 1917, o jovem compositor francês Darius Milhaud chega “num escaldante dia de verão” ao Rio de Janeiro, “cidade de encanto potente”, como vai logo notar. Ocupará o cargo de secretário do poeta e diplomata Paul Claudel, chefe de uma missão da França na banda de cá dos trópicos. E, como parte de suas atribuições, visitará o circuito cultural, seus salões e concertos, convivas e compositores. A coincidência da data não podia ter sido possível: naquele ano, o samba começava a substituir o tango e o maxixe, ao mesmo tempo em que aportavam as novidades musicais francesas, de Debussy a Satie, ao menos para a apreciação de uma elite intelectual bastante atenta. Da descoberta da música de talentos como Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá, ao impacto de ouvir por toda parte aquele que entraria para a história como o primeiro samba gravado, Pelo Telefone, de Donga, nada deixou escapar o assistente de Claudel. São Paulo, que também visitou, vivia uma experiência musical diversa – em reação aos estrangeirismos que tomavam conta do País, cultivavam-se os ritmos caipiras, com certa nostalgia. Por dois anos, o rapaz escutou com ouvidos atentos, de pesquisador e criador, melodias e ritmos que seriam determinantes em sua formação – mais tarde vai se tornar uma das personalidades mais influentes na música do século 20. Quando retornou a Paris, vai compor, como resultado de suas andanças sonoras por um “Brasil que tanto amou”, o incrível Le Boeuf sur le Toit, uma peça sinfônica bastante complexa e de vanguarda, constituída a partir de uma antologia do que escutou por aqui. O nome, surreal e jocoso, traduz para o francês O Boi no Telhado, título de uma canção de Zé Boiadeiro, pseudônimo de José Monteiro. Para tornar a experiência mais inusitada, a composição seria usada como trilha sonora para uma farsa encenada por Jean Cocteau em 1920 – uma história que, curiosamente, não se passa no Brasil, mas nos Estados Unidos. Com o sucesso do espetáculo, um empresário

resolveu usar o mesmo título numa boate, freqüentada por artistas e intelectuais parisienses. Tornou-se depois franquia internacional, sem que qualquer um dos autores – Milhaud, principalmente – recebesse crédito ou pagamento. Darius Milhaud assim se recordaria, anos mais tarde, de como criou a obra que o alçou a um lugar de prestígio na música erudita francesa: “ainda tomado pelas lembranças do Brasil, reuni algumas melodias populares, tangos, maxixes, sambas e até um fado português, e as transcrevi com um tema de rondó, repetitivo, entre cada par de melodias. (...) Acho que o caráter dessa composição a tornaria mais do que apropriada para acompanhar um dos filmes de Charlie Chaplin”. Foi para lembrar o cineasta e humorista inglês que escolheu o subtítulo, Fantasia Para o Cinema”. Em sua peça musical, utiliza canções de quinze compositores. Dois deles eram mencionados, Nazareth e Tupinambá. Outros doze, não. E foi assim que identificar as várias citações da colagem, um total de 24 composições, assim como seus respectivos autores, passou a ser tarefa a que se lançaram gerações de musicólogos – e enfim chegou-se à lista completa. Essa história saborosíssima de Darius Milhaud no Brasil, as tantas influências que recebeu e a música brasileira da época encontram-se em O Boi no Telhado – Darius Milhaud e a Música Brasileira no Modernismo Francês, organizado por Manoel Aranha Corrêa do Lago, também autor de dois dos seis ensaios reunidos no volume, que sai pelo Instituto Moreira Salles. Assinam os demais textos a historiadora francesa Anaïs Fléchet, a pesquisadora norte-americana Daniella Thompson, o musicólogo italiano Vincenzo Caporaletti e o então embaixador-poeta Paul Claudel. Como parte da obra, há um cd com duas faixas: na primeira, escuta-se uma gravação da partitura sinfônica de Milhaud com a Orquestra da Ópera de Lyon, regida pelo norte-americano Kent Nagano; na seguinte, há um arranjo da mesma partitura para formação de choro, criado por Paulo Aragão e gravado pela Caldereta Carioca.

Os choros de Luiz Gonzaga

Obra que também recupera parte da história musical do Brasil das primeiras décadas do século 20, Luiz Gonzaga – Tem Sanfona no Choro, que Marcelo Caldi organiza para o Instituto Moreira Salles e a Funarte, chegou quase ao mesmo tempo nas livrarias, como parte das homenagens ao centenário do Rei do Baião. Reúne as partituras de 22 choros para sanfona criados por Luiz Gonzaga ainda no começo de sua vida artística. Em importância, equivalem, segundo Caldi, “às composições de Pixinguinha para flauta, de Ernesto Nazareth para piano, de Waldir Azevedo para o cavaquinho e Jacob Bittencourt para o bandolim”. O cd que acompanha o livro vai levar o leitor a concordar. O ângulo é pouco conhecido, mesmo para os que acompanharam a carreira do compositor, que saiu de Exu, em Pernambuco, para o Rio de Janeiro em 1939, aos 27 anos. Vai ganhar a vida apresentandose como calouro em programas de rádio e, depois, gravando vários discos de 78 rotações pela RCA Victor. No repertório, foram cerca de 40 músicas instrumentais de sua autoria, entre choros, polcas e valsas. Somente em meados da década de 1940, ao gravar Baião, adotou a nova

moda, para se consagrar com seu chapéu e gibão, cantando e tocando sanfona, acompanhado de triângulo e zabumba. Os grupos regionais existiam desde a década de 1920, mas a sanfona era rara. Como lembra Fernando Gasparini num dos textos incluídos no volume, Luiz Gonzaga, “embora não tenha sido o primeiro a gravar sanfona no choro, é referência inaugural para a maioria dos sanfoneiros que fizeram tradição no gênero”, uma lista que inclui de Orlando Silveira a Dominguinhos e Sivuca. A magia de Gonzaga, explica Gasparini, consistiu em “traduzir para a urbanidade o sotaque e as melodias desse pequeno instrumento de recursos limitados, mas tão criativamente explorados pelos que fazem a festa nos bailes e forrós da roça. Como gênero tipicamente urbano, o choro, por sua vez, encontra na sanfona uma forma de se expandir para as paisagens rurais”. Gasparini lembra também que Gonzaga foi “caso singular na história da música brasileira de virtuose que emplaca uma carreira de cantor ”, pois “se dependesse dos diretores artísticos das gravadoras e rádios, sanfoneiro jamais cantaria, já estava de bom tamanho ser comercializado como instrumentista”.

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CINEMA

As armas de Hollywood Nesta seleção de filmes, a presença de atores renomados como James Stewart, Joan Crawford, John Wayne, Spencer Tracy, Edward G. Robinson e Bette Davis. CONFISSÕES DE UM ESPIÃO NAZISTA (CONFESSIONS OF A NAZI SPY, 1939)

Direção de Anatole Litvak. Com Edward G. Robinson, George Sanders, Paul Lukas.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

UMA AVENTURA EM PARIS: JOHN WAYNE, JOAN CRAWFORD E REGINALD OWEN.

Combatendo Hitler com luzes e câmeras Caixa com dvds inéditos no mercado de vídeos domésticos apresenta seis filmes antinazistas especialmente indicados não apenas para aficionados, mas também para o pesquisador de História. P OR C ELSO S ABADIN

Certa vez o ator Paulo José declarou que “o cinema é um assunto tão sério que deveria ser tratado como caso de segurança nacional”. Foi aplaudido. A afirmação de fato se justifica, mas está longe de ser uma novidade. Já faz muito tempo que o cinema norte-americano faz de seus filmes verdadeiros manifestos políticos, vendendo para o mundo o seu famoso “way of life”. Um dos casos mais marcantes do cinema a serviço da política pode ser comprovado com o bem-vindo lançamento Hollywood Contra Hitler, distribuído pela Versátil. Trata-se de uma caixa com três dvds contendo seis longas-metragens produzidos entre 1939 e 1944, todos com um claro objetivo em comum: alertar a população dos Estados Unidos contra o perigo do nazismo, para assim obter apoio popular, caso o país decidisse entrar na Segunda Guerra Mundial. Como de fato veio acontecer. Na época, nenhuma mídia era mais eficiente que o cinema para a conquista da opinião pública. A televisão ainda não existia, e as salas de cinema nos Estados Unidos vendiam durante a década de 1940 a impressionante quantidade de 60 milhões de ingressos a cada semana. Considerando-se que a população norte-americana girava então em torno de 140 milhões de habitantes, é como se todo e qualquer habitante dos Estados Unidos, sem exceção, fosse às salas de exibição duas vezes por mês. Quando as notícias sobre a possibilidade de um novo conflito mundial come34

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çaram a circular pela Europa, no início dos anos 1930, era evidente que os donos do poder e da política começaram a visar este imenso público e as melhores formas de influenciá-lo. Embora a Segunda Guerra tivesse sido deflagrada na Europa em setembro de 1939, com a invasão da Polônia por tropas de Hitler, os Estados Unidos só entrariam efetivamente no conflito em dezembro de 1941, após o ataque japonês à base havaiana de Pearl Harbor. Assim, de 1933 – ano em que Hitler assume o poder na Alemanha – até 1941, travou-se pelo mundo inteiro uma forte batalha ideológica que contrapunha os ideais nazistas aos libertários. Na época, o Brasil da ditadura getulista inclusive flertava com a direita nazifascista, mas a pressão norte-americana fez o País entrar na Guerra do lado aliado. Hollywood insuflou-se contra o nazismo muito antes que Washington. E nem poderia ser diferente, já que historicamente os grandes estúdios cinematográficos norte-americanos foram fundados e comandados por judeus, e a exacerbada valorização dos arianos em detrimento às demais etnias sempre foi uma das principais bandeiras de Hitler. O cinema americano não poderia ficar calado e começou a produzir seus panfletos filmados. Os seis filmes da caixa Hollywood Contra Hitler eram até agora inéditos em vídeo doméstico no Brasil e não foram lançados sequer na época do velho VHS.

Considerado como o primeiro filme abertamente antinazista produzido em Hollywood, a obra levanta uma questão interessante e baseada em casos reais: a existência de grupos abertamente simpáticos ao nazismo dentro dos próprios Estados Unidos, o que, vale a pena lembrar, não era ilegal naquela época. O roteiro teria sido inspirado em relatos do agente secreto Leon G. Turrou, cujo nome não consta nos créditos por motivos óbvios (afinal, o agente era secreto) e o fato de o filme ter sido totalmente escrito e produzido antes mesmo do início oficial da Guerra gerou grande insegurança por parte de vários profissionais do mercado, que ainda não sabiam exatamente em qual lado se posicionar. Marlene Dietrich, por exemplo, sondada para atuar no filme, preferiu não fazê-lo, pois era alemã de nascimento. Havia também rumores de que os simpatizantes do nazismo sabotariam a produção e retaliariam os familiares de quem dela participasse. Mas quando o assunto é Hollywood, é praticamente impossível dissociar a realidade da lenda. De qualquer maneira, o filme foi (obviamente) proibido na Alemanha e também em vários países latino-americanos. Na trama, agentes do Governo de Hitler infiltrados em território americano cooptam um ingênuo pai de família para que ele investigue informações militares sigilosas. Embora tematicamente forte, cinematograficamente o filme torna-se

transmitir sua mensagem ideológica: Joan Crawford e John Wayne. A trama segue a pouco inovadora (mas sempre eficiente) fórmula de mostrar como Paris era maravilhosa antes da ocupação nazista e como ela se torna um inferno sob o comando de Hitler. Antes da invasão, um belo e rico casal francês faz planos para o casamento, que promete ser dos mais concorridos da cidade. Porém, após a chegada dos invasores (marcada com impactantes cenas reais), os sonhos desmoronam e dão lugar aos pesadelos. Entra em cena a figura de um jovem piloto aliado (John Wayne) que acaba não tendo função muito definida na história, e parece ter sido colocado no filme mais pela popularidade do astro que o interpreta. O diretor Jules Dassin construiria depois uma produtiva carreira, com mais de 20 longas. Ele faleceu recentemente, em 2008, aos 97 anos. A então desconhecida Ava Gardner aparece como figurante nas cenas de uma loja de roupas.

TEMPESTADES D’ALMA (THE MORTAL STORM, 1940)

Direção de Frank Borgaze. Com James Stewart (acima), Margaret Sullavan, Robert Stack, Robert Young, Bonita Granville.

pobre ao abrir mão de toda e qualquer sutileza narrativa para favorecer o didatismo panfletário. O que é compreensível para uma obra cuja proposta é muito mais catequética que artística. O diretor Anatole Litvak mais tarde realizaria Decisão Antes do Amanhecer, Na Cova das Serpentes, Anastasia, Tudo Isso e O Céu, e Uma Vida Por um Fio, entre outros.

Provavelmente o melhor da caixa, o filme mostra um respeitado professor universitário que vive tranquilamente com a família e os amigos numa pequena cidade dos Alpes (tudo rodado em estúdio, pois a época era de contenção de recursos). Numa certa noite de 1933, durante a animada comemoração de seu aniversário, chega a notícia: Adolf Hitler acabara de ser escolhido o novo líder da Alemanha. A novidade entusiasma a ala mais exaltada da festa (comandada por Robert Young, protagonista do antigo seriado de tv Papai Sabe Tudo) e enche de preocupações os mais moderados, principalmente o jovem estudante interpretado pelo sempre ótimo James Stewart. Em pouco tempo, as idéias nazistas se infiltram na cidade, transformando amigos de infância em inimigos mortais, destruindo carreiras, amores e vidas. Um belo retrato do poder destrutivo da intolerância e do preconceito, venham eles de onde vierem, estejam a serviço de quem estiverem. É marcante a cena dos alunos da juventude hitlerista que se revoltam após o professor afirmar que não há diferenças biológicas entre o sangue ariano e o sangue de qualquer outra raça. Robert Stack, que mais tarde protagonizaria o seriado de tv Os Intocáveis, faz uma discreta porém marcante interpretação.

UMA AVENTURA EM PARIS

HORAS DE TORMENTA

(REUNION IN FRANCE, 1942)

(WATCH ON THE RHINE, 1943)

Direção de Jules Dassin. Com Joan Crawford, John Wayne.

Direção de Herman Shumlin. Com Bette Davis, Paul Lukas.

Mais palatável ao grande público, e não por isso menos político, Uma Aventura em Paris se apóia em dois atores de forte empatia junto às platéias para

O mais fraco da coleção, Horas de Tormenta retoma o tema dos espiões nazistas infiltrados nos Estados Unidos. Fala de um casal que retorna a

DOROTHY TREE E GEORGE SANDERS: CONFISSÕES.


LEMBRANÇAS SUELY AVELLAR/EDITORA JOSE OLYMPIO

Uma rua chamada Rubem Braga Evocações em torno de uma ruazinha que não o homenageava. SPENCER TRACY E JESSICA TANDY: A SÉTIMA CRUZ.

Washington após passar vários anos lutando clandestinamente contra ditaduras européias, e passa a ser chantageado por um colaborador nazista. O filme tem roteiro dos grandes escritores Dashiell Hammett e Lillian Hellman (casados na vida real), a partir da peça escrita por eles próprios. Cinematograficamente, porém, não funciona: perdido entre o excesso de diálogos e subtramas mal resolvidas, Horas de Tormenta acaba valendo muito mais pelo seu aspecto histórico. Concorrendo como “zebra”, Paul Lukas ganhou o Oscar de melhor ator naquele ano, superando Humphrey Bogart em Casablanca (por sinal, outro filme antinazista).

A SÉTIMA CRUZ (THE SEVENTH CROSS, 1944)

Direção de Fred Zinnemann. Com Spencer Tracy, Jessica Tandy, Hume Cronyn. Bem antes de dirigir os clássicos Matar ou Morrer e A Um Passo da Eternidade, Fred Zinnemann realizou este denso drama de guerra sobre um grupo de sete prisioneiros que fogem de um campo de concentração. Narrada sob o ponto de vista de um homem morto (recurso que seria festejado como “novidade” seis anos depois, em Crepúsculo dos Deuses), a trama acompanha a dolorida trajetória de um deles (convincentemente vivido por Spencer Tracy), que se submete a humilhações físicas e morais em sua luta pela sobrevivência. No elenco, as presenças de Agnes Moorehead (que anos mais tarde ficaria mundialmente conhecida como a irascível sogra de James Stephens no seriado A Feiticeira) e Jessica Tandy (personagem título de Conduzindo Miss Daisy).

OS FILHOS DE HITLER (HITLER’S CHILDREN, 1943)

Direção de Edward Dmytryk. Com Tim Holt, Bonita Granville. Fechando a caixa, volta o tema de pessoas que se distanciam e amores que morrem por causa da intolerância política. O filme enfoca principalmente o radicalismo da Juventude Hitlerista em sua fé cega e obsessiva pela supremacia ariana. É neste cenário de guerra que um jovem alemão e uma garota americana vivem sua tragédia shakespeariana que resvala em Romeu e Julieta. A direção é de Edward Dmytryk, que ironicamente após a Guerra acabou preso por outro movimento de intolerância política: o macartismo. Acusado de comunista, Dmytryk denunciou seus colegas cineastas em troca da liberdade, o que praticamente acabou com sua carreira. Curiosamente, Os Filhos de Hitler foi um grande sucesso de público, tornando-se a maior bilheteria do ano (perdeu apenas para Aventureiro da Sorte, com Cary Grant). O filme é o único desta coleção a explicitar o fato histórico de que as origens da Segunda Guerra são encontradas no final da Primeira, quando o Tratado de Versalhes humilhou a Alemanha, engendrando a vingança que explodiria poucos anos depois, em mais uma comprovação de que a História é um processo cíclico.

P OR P INHEIRO J UNIOR

Na subida do bairro de Fátima, em Niterói, há uma rua chamada Professor Rubem Braga. Eu tinha prováveis 23 anos. O agora centenário (se vivo fosse) Rubem Braga talvez já passasse dos 43. Encontreio por acaso em Ipanema, onde por força de umas reportagens o jornal me mandara morar num hotelzinho simpático que não mais existe – o Hotel Ipanema. Rubem parecia andar sem rumo. Ou melhor, vagabundeava como gostava de dizer e fazer. Disse-lhe um oba! como cumprimento, paramos na calçada da Farme de Amoedo e ele, me sabendo conterrâneo, não fugiu da conversa mole que acabei levando para o lado de coisas das nossas Cachoeiro e Niterói: – Aquela Rua Rubem Braga lá de Niterói é por sua causa? É em sua homenagem?... Ele era colega jornalista, o mais badalado cronista, escritor dos bons e a pergunta tinha procedência. Principalmente para ele, aluno do renomado Salesiano Santa Rosa, diplomado em tempos anônimos e que teria voltado ao colégio como professor por necessidade do chamado vil metal. Aquela lei que proíbe dar nome de rua a personalidades vivas ainda não existia. Mas para mim importava era que Rubem – simples ginasiano em Niterói ou bacharel em Belo Horizonte com direito a lecionar – se fazia todo merecedor da homenagem. E tinha sentido que o Bairro de Fátima, por sua bisonhisse algo roceira, homenageasse o “sabiá da crônica”, cultivador de “pé de milho”, pois uma das suas principais ruas leva o nome de Raul Pompéia, também jornalista e escritor que ganhou fama rivalizada com a de Machado de Assis por seu romance-colegial O Ateneu. É verdade que a ensimesmada tristeza de Raul Pompéia o levara a dar um tiro no peito... que Rubem nunca fizesse o mesmo! Mas e daí? O Rubem me olhou com olhos grandes como se tentasse adivinhar possíveis fantasias ou troças em minha pergunta e disse: – Sabe que você é o segundo camarada que me faz essa pergunta? E ficamos por aí. Tempos depois li uma crônica dele, não me recordo se no Correio da Manhã, no Diário de Notícias, Diário Carioca ou no Jornal do Brasil, não sei. Era uma crônica respondendo a um leitor que lhe escrevera protestando contra a apropriação que ele pretensamente fazia ao posar como a celebridade que dava nome à

Rua Professor Rubem Braga. A crônica era uma delícia de simplória e doce ironia. Rubem se desculpava da confusão, se dizia um pobre e humilde cronista, quem era ele para merecer tal honraria?... Era realmente um sério gozador. Ou um gozador sério. Antes desta crônica sair voltei a encontrar Rubem Braga nos arredores do Hotel Ipanema. Minha barba estava escandalosamente por fazer e ele que tinha naturalmente a barba apontada para lhe acentuar a falsa e talvez deliberada sisudez, embora de bigode bem aparado, até podia me orientar a respeito de barbeiros em ruas para mim quase desconhecidas – eu, morador de Niterói. – Você conhece um barbeiro aqui por perto? – perguntei. Ele continuou sério. Parecia meio gago quando respondeu: – Tem um ali mais na frente que é um bamba. Faz uma barba que é um carinho de mulher... Segui a indicação dele. Achei logo o salão. Sentei na primeira cadeira vazia bem na entrada. Aliás, a única vaga, embora houvesse outros clientes à espera. Estranhei um pouco, mas enfim. Não demorou para eu poder juntar a indicação do Rubem com a cadeira tão disponível. O barbeiro ajeitou realmente com delicadeza a toalha sobre meu peito e se afastou, voltando com uma felpuda fumegante que, um pouco à distância, lançou certeiro em meu rosto. Assustado, agredido e escaldado me movimentei para fugir mas o barbeiro já estava de navalha em punho sobre mim e mal ensaboara meu rosto dera início à raspagem encarniçada. Mesmo de cara quente fiquei frio à espera do fim da provação. Já na rua e barbeado pus-me a matutar: – Será que o Rubem quis me pregar uma peça? Será que já passara por essa e agora se divertia transferindo seu susto para mim?... E quantos outros ele encaminhara para ser escaldado? Ou será que se vingava daquela pergunta idiota sobre a rua que homenageava um professor e não um cronista? Em um dos meus livros – A Última Hora (Como Ela Era) – falo da ojeriza que o velho Braga tinha por planejamento de jornal às altas horas que ele gostava de dedicar a prazeres e amores. Noutro livro – Aventuras dos meninos Lucas-Pinheiro – lembro coisas de Cachoeiro de Itapemirim relacionadas com Rubem e seu irmão Newton Braga. O irmão foi diretor da Rádio Cachoeiro – “a Princesinha do Sul”, como rezava o slogan criado pelo Newton.

É verdade que me esbarrei muito pouco com Rubem quando trabalhava em Última Hora, onde ele pisava pouco e quando o fazia era à procura de Moacir Werneck de Castro, seu amigão. Mas atribuir esse distanciamento a uma briga com Samuel Wainer por causa de um namoro com Bluma, mulher de Samuel, parece lenda boba. Afinal quem fugiu do romance foi ele. E ao que se contava em UH, Samuel nem ligou para o namoro ou para a alegada fuga do rival para Porto Alegre, estando Bluma grávida... dele? Pois uma certa Topaze já ocupava tanto os sentimentos de Samuel como uma coluna de cinema em UH. Tal como Zora Braga o fizera também como crítica de cinema. Samuel era vidrado em cinema e reservava esses nobres espaços em seu jornal para as mulheres que lhe arrebatassem a cena sentimental. Só Danuza Leão escapou. Tempos depois da fuga de Rubem, sem causa e efeito comprovados, Bluma morreu de câncer – a “doença insidiosa” e então impronunciável. Chorou-a muito a amiga Clarice Lispector. Pois falar de Bluma era falar de Clarice. E foi depois disso que aconteceu o elogio de Rubem a Clarice. Um elogio catártico? Uma truncada sublimação? Era o ti-ti-ti da época. Disse ele numa revista: “O estilo literário que eu gostaria de ter é o da Clarice Lispector”. Clarice, a grande amiga – e protetora-confidente – de Bluma Wainer. Mas, como se sabe, casado mesmo o Rubem só foi com a Zora Seljan. Ele, um homem raro de tantas paixões. E volúvel como uma “borboleta amarela” perdida em Copacabana, para usar a doce criatividade do cronista. Seu último emprego – pouca gente sabe disso – foi no jornal de Niterói O Fluminense, sendo eu Chefe de Redação. Escreveu Rubem exclusivas crônicas durante não muito tempo. Enjoou, aborreceu-se, a doença na laringe apertou. O diretor de programação Oséias Carvalho, seu vizinho na Barão da Torre, em Ipanema, que o havia contratado para O Flu ficou consternado com sua desistência. Era muito amigo dele, gostava dele, achava-o engraçado, um fora-de-série: – Mas Rubem, eu vou em sua casa, pego a crônica, se for preciso mando passar a limpo no jornal, te entrego o pagamento na mão... Não teve jeito. Pouco antes disso, Moacir Werneck de Castro me contou que Rubem fizera uma cirurgia das mais delicadas e que denunciava o quanto o cigarro estragara sua saúde: – Tirei um pedaço de carvão deste tamanho do pulmão – explicou ele a Moacir. Otto Lara Resende tinha um complemento ainda mais sinistro para esse fim: – Rubem estava em São Paulo e foi registrar em cartório a autorização para a cremação que ele pretendia. Quem é o defunto?, perguntou o tabelião. E Rubem, impassível: Está falando com ele! Era 1989. Ele foi cremado, ano seguinte no Rio, a 20 de dezembro. Em 2013 comemoramos o seu centenário. E é difícil não pensar como ele encararia tamanha mas justa carga de eternidade? Pinheiro Junior é jornalista e Conselheiro da ABI.

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DEPOIMENTO

TEIXEIRA HEIZER, 80 ANOS

FRANCISCO UCHA

“ABRI MEU CAMINHO A SOCOS” A fecunda trajetória de um profissional que brilhou nas onze: jornal, revista, rádio, televisão, magistério. P OR C LÁUDIA S OUZA

Um dos jornalistas mais antigos em atividade, Teixeira Heizer, 80 anos, celebra seis décadas de carreira na imprensa e destacada contribuição ao jornalismo esportivo no rádio, tv, jornais e revistas. O perfil criativo, inovador e solidário é aplaudido por colegas de várias gerações, companheiros da trajetória multimídia, síntese de dedicação e respeito ao jornalismo. Jornal da ABI – Você nasceu em 16 de dezembro de 1932 e desde 1953 trabalha como jornalista. Como foi o início da carreira?

Teixeira Heizer – Nasci em São Fidélis, interior do Rio de Janeiro, mas passei a infância e a juventude nas cercanias de Leopoldina, em Minas Gerais. Costumo dizer que abri caminho a socos, porque a vida não é fácil para um homem do interior, principalmente quando vem para a capital do Rio de Janeiro, que nessa época representava um mundo cheio de singularidades. As famílias do interior, sobretudo as mais pobres, que queriam crescer, se esforçavam para formar entre os filhos um advogado e um médico. Estudei em escolas religiosas porque eram gratuitas e vim para o Rio de Janeiro com o objetivo de prestar o vestibular para Direito, na Universidade Federal Fluminense (Uff). As provas eram orais e escritas e as bancas formadas por catedráticos, homens de grande saber. Concorri com muitos candidatos para apenas 50 vagas. Nesta fase eu estava começando a trabalhar na Rádio Continental como locutor. Confesso que nunca pretendi ser locutor, mas desejava muito conseguir um espaço. Jornal da ABI – Como surgiu a oportunidade de trabalhar na rádio?

Teixeira Heizer – Eu tinha um colega chamado Hilton Santos, que era locutor da Continental. Ele perguntou se eu queria fazer um teste. E lá se vão 60 anos. Eu ia a qualquer lugar onde se oferecia um teste, independente da atividade. Comecei na função de locutor comercial, lendo anúncios. Dizem que na época eu tinha um 36

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vozeirão. Além disso eu imitava todo mundo. Onde havia uma perspectiva de êxito eu embarcava. Naquele tempo o fator primordial para trabalhar em rádio era a voz. Lutei muito para fazer uma boa voz. Jornal da ABI – Em que nomes do rádio você buscou inspiração para se aperfeiçoar?

Teixeira Heizer – Tive grandes mestres como Oduvaldo Cozzi, locutor de excelente cultura, o que era fundamental. Ele era um gaúcho que tinha estudado literatura. Posso citar também Sérgio Paiva e Waldir Amaral, que foi meu colega na faculdade de Direito. Nós nos tornamos grandes amigos e compadres. Waldir batizou a minha filha e eu fui padrinho do casamento dele. Em determinada época, além de trabalharmos juntos, chegamos a dividir um apartamento. Ele era um homem muito talentoso. Em 1962, quando estávamos retornando da cobertura da Copa do Chile, percebi uma ponta de lágrima nos olhos dele. Waldir não tinha gostado de sua transmissão e sentiu-se inferior aos outros locutores. Sentados no Restaurante Alcazar, em Copacabana, combinamos que no dia seguinte eu o ajudaria com técnicas de respiração e pontuação de texto. Ele passou a utilizar uma espécie de compêndio para transmitir desta forma. Quando a jogada era na área da defesa ele articulava um tom de voz, já na intermediária ele assumia outro tom. Quase chegando na área adversária, Waldir mudava a entonação. Desta forma, ele dominou as transmissões esportivas e se tornou um grande locutor brasileiro. Aprendi muito com ele. Na

abertura de transmissões usávamos textos com pinceladas de poesia. Na Holanda, por exemplo, eu abria a transmissão para o Waldir dizendo que a partida se desenvolveria sobre canteiros de tulipas. Quando estávamos na União Soviética, eu dizia que o Brasil estava jogando como se driblasse girassóis. Jornal da ABI – Nessa época você também já trabalhava em jornal?

Teixeira Heizer – Sim. Eu trabalhava no Diário da Noite e na Rádio Continental. Pouco tempo depois, montei a Rádio Continental do Recife, em Pernambuco, onde também trabalhei na Fábrica de Discos Mocambo. Eu me meti a trabalhar com músi-

ca e, com um gravador enorme nas costas, ia pra beira do rio ouvir os pescadores. Nunca fui um homem estagnado. O pouco êxito que obtive na minha carreira profissional se deveu à minha inquietação, à vontade de fazer as coisas, como destacou Ferreira Gullar no jantar dos meus 80 anos. Jornal da ABI – Como você normatizava as diferentes rotinas no jornal e na rádio?

Teixeira Heizer – No jornal eu me adaptei ao uso das normas e estabeleci que a linguagem deveria ser substantiva; e no rádio, adjetiva, emocional. Nesse sentido, acabei influenciando o trabalho de alguns colegas. Eu também tinha uma mania de ir à noite para os bares conver-


sar com pessoas que sabiam escrever, como Rubem Braga, Fernando Lobo, pai de Edu Lobo. No início eu era aquele chato que se sentava à mesa deles, mas com o tempo acabei sendo acolhido. Rubem Braga, o maior cronista do Rio, felizmente se tornou meu amigo. Eu sempre voltava para casa pensando nas coisas que ele havia me ensinado. Antônio Maria também foi um grande mestre. Compositor e poeta, era dono de um texto maravilhoso e de inspirações fantásticas. Certa vez, após uma discussão em casa, a mulher dele decidiu ir embora. Antônio Maria recorreu a todos os artifícios possíveis para ela voltar, mas não teve sucesso. Muito amargurado, gravou uma música em acetato e enviou para a esposa junto com uma rosa. A canção dizia o seguinte: “Guarda a rosa que eu te dei/ Esquece os males que eu te fiz/ A rosa vale mais que a tua dor/ Se tudo passou, se o amor acabou/ A rosa deve ficar/ Num canto qualquer do teu coração/ O amor reviverá/ Guarda a rosa que eu te dei/ Esquece os males que eu te fiz/A rosa vale mais que a tua dor ”. Jornal da ABI – Qual foi o resultado dos versos?

Teixeira Heizer – Meia hora depois a mulher estava de volta em casa (risos). Quem é que agüenta uma parada dessa?!! Antônio Maria tinha músicas lindas, como Manhã de Carnaval, que diz: “Manhã, tão bonita manhã/ De um dia feliz que chegou/O sonho seu surgiu/E em cada cor brilhou/Voltou o sonho então/Ao coração/Depois deste dia feliz/Não sei se outro dia haverá/É nossa manhã tão bela afinal/Manhã de Carnaval/La ra ra rara/ Canta o meu coração/A alegria voltou/Tão feliz/A manhã desse amor”. Gosto muito também de A Valsa de uma Cidade, que para mim representa um hino do Rio de Janeiro. “Vento do mar e o meu rosto no sol a queimar, queimar/Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar/Rio de Janeiro, gosto de você/Gosto de quem gosta/Deste céu, deste mar, desta gente feliz/ Bem que eu quis escrever um poema de amor/ E o amor estava em tudo o que vi/ Em tudo quanto eu amei/E no poema que eu fiz/Tinha alguém mais feliz que eu/O meu amor/Que não me quis”. Outro dia ouvi o Frevo nº1 do Recife, que diz: “Não adianta se o Recife está longe/E a saudade é tão grande/Que eu até me embaraço/Parece que eu vejo/Walfrido Cebola no passo/ Haroldo, Padilha, Colaço/Recife está perto de mim/Parece que eu vejo/Walfrido Cebola no passo/Haroldo, Padilha, Colaço/ Recife está perto de mim/Recife mandou me chamar”. Eu tive o prazer de acompanhar Antônio Maria na volta dele ao Recife, depois de mais de 20 anos no Rio de Janeiro. Organizaram uma grande recepção no aeroporto, com direito a tapete vermelho e centenas de pessoas para homenageá-lo. Desci as escadas do avião logo atrás dele. No meio daquela multidão toda avistei um camarada com uma cabeça enorme e perguntei: “Antônio Maria, aquele ali seria o tal Walfrido Cebola, da música?”. “É claro, porra!!!” (risos). Jornal da ABI – Quais mudanças afetaram a imprensa e o cenário cultural ao longo de seis décadas?

em 1965, entre Brasil e União Soviética, no Maracanã. Na época, ainda não existia tecnologia que permitisse as transmissões ao vivo, que só foram possíveis a partir da Copa do Mundo do México (1970). Para exibir o jogo, tive a idéia de gravar a partida em filmes, em partes, e enviar os rolos para serem montados rapidamente na emissora. Fiz a narração por cima das imagens já editadas, e a partida foi exibida pouco depois do seu início.

Teixeira Heizer – Hoje em dia você sai para se divertir, mas não existe aquele clima poético dos encontros. Ninguém se encontra com Chico Buarque, com Edu Lobo. Você não vai mais ao bar, não vê mais as pessoas. Dou o nome a isto de sinistra decadência. Tivemos os anos maravilhosos da imprensa nas décadas de 1940 e 1950. Em 1960 enfrentamos a ditadura, a maldade. Nos anos 1970 e 1980 convivemos com a decadência, a juventude se tornou preguiçosa. Hoje nos restou a tecnologia, a mecanização. Não sou contra os avanços, mas acredito que eles devam apenas complementar a rotina.

Jornal da ABI – Atualmente você continua trabalhando em televisão. Como observa a evolução do veículo?

Jornal da ABI – Como você convive com os avanços tecnológicos?

Teixeira Heizer – Recentemente me pediram um texto sobre o Garrincha. Escrevi da forma que sempre fiz durante toda a minha vida. Quando eu cheguei na tv, todos bateram palmas. Eu já vi ator ser aplaudido, mas jornalista aplaudido para mim é novidade. O pessoal gostou tanto que decidiu replicar o texto na internet. Já recebi vários telefonemas. Acredito que isso tenha acontecido porque se perdeu muito o cuidado ao escrever, o gosto pela leitura e em conseqüência pelo texto. Não existem mais professores na área de Comunicação como Nilson Lage. Lecionei na Facha, na Gama Filho e na Puc, com destaque para as cadeiras de Jornalismo Impresso I e II. Criei laboratórios para a prática do jornalismo e sempre privilegiei no conteúdo disciplinar as questões sociopolíticas do Brasil e do mundo. A formação humanista é essencial para o jornalista. Jornal da ABI – Quais fatores teriam determinado a falta de interesse pela leitura e a escrita?

Teixeira Heizer – Quando eu comecei a carreira a imprensa carioca reunia 34 jornais impressos. Atualmente só há dois. A ditadura sufocou a imprensa. A TV Excelsior, por exemplo, acabou completamente sufocada, restando apenas um anúncio da farmácia da esquina. Quando eu saí da emissora não tinha nem câmera. A direita foi um algoz muito poderoso naquela época, além do imperialismo dos Estados Unidos. Eles apertavam as multinacionais, que interrompiam os patrocínios e anúncios. Não sobrava nem o comercial da farmácia da esquina. Jornal da ABI – Você trabalhou nas Redações dos jornais O Estado de S. Paulo, O Dia, Diário da Noite, Última Hora, Diário de Notícias e Correio Fluminense; nas revistas Veja, Placar, Mundo Ilustrado; nas Rádios Continental, Globo, Nacional, Empresa Brasileira de Notícias; nas emissoras de TV Continental, Excelsior, Tupi, Nacional de Brasília, Globo, Sport TV; na Rio Gráfica Editora e Editora Abril. Entre tantos veículos, qual você destacaria em sua trajetória profissional?

Teixeira Heizer – O Estadão foi muito importante na minha carreira em razão da postura de seriedade dos donos, e não apenas pela posição política do veículo. A família Mesquita era conservadora e acabou perdendo tudo, mas nos deu espa-

ço para combater a ditadura. O pessoal do Correio da Manhã também era ótimo. Jornal da ABI – Com que tipo de veículo você mais de identificou, entre rádio, tv e impresso?

Teixeira Heizer – Gostei mais do rádio porque a comunicação é rápida, direta e atinge as áreas mais longínquas do Brasil. Em 2012 ministrei duas palestras em Manaus. A segunda palestra foi realizada em uma universidade que reunia alunos do interior do Amazonas, pertencentes às populações ribeirinhas. Eles conversaram comigo sobre assuntos relacionados à minha trajetória profissional como se fôssemos íntimos. Desde os primeiros anos da minha carreira o rádio nos levou a todos esses lugares. Na década de 1950 era possível fazer uma transmissão de futebol com poucos recursos. A televisão se tornou muito popular atualmente, mas naquela época servia a um público mais sofisticado. Já o rádio perdeu muita audiência nos últimos anos, assim como caiu o número de leitores de jornais, mas não significa que o jornalismo impresso vai acabar. Ele faz parte da comunicação social de um povo e oferece ferramentas para a reflexão. O jornal impresso e a internet vão se complementar.

Jornal da ABI – Entre os momentos marcantes de sua carreira estão as coberturas dos Jogos Pan Americanos de Chicago, em 1959, quando foi noticiado em primeira mão, para a TV Continental, o assassinato do remador brasileiro Ronaldo Duncan Arantes; dos títulos mundiais do Santos, na década de 1960, e da Copa do Mundo do Chile (1962), quando a Seleção Brasileira de Futebol comandada por Garrincha conquistou o segundo título mundial. Já na televisão, que momentos você ressaltaria?

Teixeira Heizer –Tive a oportunidade de participar do primeiro telejornal da TV Globo, o “Tele Globo”, exibido entre 1965 e 1966, ao lado do jornalista Hilton Gomes e da atriz Natália Thimberg. Também ajudei a planejar a primeira transmissão de um jogo de futebol na TV Globo,

Teixeira Heizer – No estúdio eu faço os campeonatos internacionais, especialmente o francês. Morei na França na década de 1990 durante alguns anos e tenho familiaridade com a língua. Na época participei de transmissões para emissoras estrangeiras, como a BBC, de Londres; Wrul, dos Estados Unidos; e Nacional, de Lisboa. Trabalhei muitos anos em televisão, que ocasionalmente pagava melhor do que o rádio. Tive bons contratos em agências de publicidade quando redigi o programa Noite de Gala. Eu ganhava em um programa quatro vezes mais do que o salário mensal. A agência Midas pagava bem os profissionais de alta qualidade, como Maurício Sherman, Geraldo Matheus, Geraldo Cazé. Até hoje sinto saudades do que fazia e do dinheiro que ganhava (risos). Não podemos continuar com os produtos que temos atualmente. Gosto de ver as produção da TV Senado e TV Câmara, que demonstram a busca por uma melhor formação cultural no Brasil. Com isso, o público ficará mais exigente e os veículos de comunicação precisarão se adaptar. Jornal da ABI – O jantar organizado em homenagem aos seus 80 anos foi marcado pela presença de jovens profissionais da imprensa. As novas gerações precisam se adaptar a modelos alternativos de produção jornalística?

Teixeira Heizer – Eu tenho um carinho muito especial pelas novas gerações. Sou uma espécie de conselheiro para os mais jovens. Tenho muito cuidado com as questões relacionadas aos estudos, à formação do hábito de leitura. Sempre recomendo que freqüentem os sebos, durmam menos uma hora por dia e vejam menos televisão em prol da leitura, parte integrante da vida de um bom jornalista. Marina Heizer, minha neta, é uma jovem repórter da Tupi. Converso com ela sobre as questões determinantes para a profissão, como a dignidade e a grandeza humana, dedicação, leitura e empenho pessoal. O nosso mercado é muito pequeno e para vencer é preciso lutar, sem jamais pisar em ninguém.

Jornal da ABI – Além do trabalho na imprensa esportiva, quais são as suas atividades?

Teixeira Heizer – Gosto muito dos trabalhos de redator que venho fazendo em editoras. Posso trabalhar em casa e conciliar com a rotina do jornalismo esportivo. Nas horas de lazer vejo filmes antigos.

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DEPOIMENTO TEIXEIRA HEIZER

Conheço todos os atores, sei a hora exata em que o mocinho vai sacar a arma e o diálogo da próxima cena. Também mantenho o hábito da leitura. Pablo Neruda, por exemplo, mexe com a nossa alma, nos obriga a pensar, assim como Ferreira Gullar em Dentro da Noite Veloz. Prezo muito os amigos como Ferreira Gullar, Maurício Azêdo, Jesse Jane e Colombo Vieira de Souza. Trabalhei com Azêdo no jornal O Estado de S. Paulo, sucursal do Rio, na época da ditadura. Ele teve um papel preponderante na História do Brasil e é um militante exemplar, voltado à alegria da liberdade. Hoje somos felizes, mas os momentos que ficaram para trás foram muito sofridos e alguns exigiram mais coragem. Hoje em dia ninguém têm idéia do que sofreram e sentiram homens e mulheres que lutaram contra a ditadura. Outro dia fui a um jantar na casa de Jesse Jane e Colombo Vieira de Sousa. Conheci-os

ainda jovens quando, juntamente com os irmãos Fernando e Eraldo Palha Freire, companheiros da Aliança Libertadora Nacional - ALN, seqüestraram um Caravelle da Cruzeiro do Sul que partiu do Galeão, Rio de Janeiro, para Buenos Aires. Em troca do resgate de 34 passageiros e sete tripulantes a bordo, pretendiam exigir a libertação de 40 presos políticos e seguir para Cuba. Entre os presos políticos estava o pai de Jesse Jane, também militante da ALN. Tropas da Aeronáutica, comandadas pelo Brigadeiro Burnier, invadiram o avião e Jesse e seus companheiros acabaram presos e barbaramente torturados. Eraldo Palha Freire foi ferido na troca de tiros, e mesmo assim conduzido a interrogatório. Morreu três dias depois no Hospital da Aeronáutica. Ninguém imagina que garotos eram esses, que valentia, que coragem em defesa da liberdade de todos nós.

ACERVO SPORTV

Garrincha, dono de um estilo lúdico Antigos companheiros, como o poeta Ferreira Gullar (acima) e o colunista Renato Maurício Prado e o editor Eucimar de Oliveira (à direita), juntaram-se a jovens profissionais admiradores de Teixeira Heizer no jantar comemorativo dos seus 80 anos. Antes dos comes-ebebes, Teixeira dirigiu uma saudação a tantos amigos, que ele recebeu um a um (abaixo), citando-os pelos nomes, numa prova do carinho que tem por todos. O Sportv, canal onde ele trabalha, fez questão de documentar os encontros.

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P OR T EIXEIRA H EIZER

Aquele mulato de jeito barroco, meio desconjuntado, não despertou qualquer suspeita aos elegantes Tsareev e Kuznettsov, naquela tarde comum em Nya Ullevy – Gotemburgo – na loira Escandinávia. Que esperassem para ver as pernas retorcidas para o mesmo lado, mais parecendo dois tacos de golfe, quando começassem a mover-se, ardilosamente, em alucinante velocidade! Ao apito final do francês Maurice Guigue, a perplexidade iria apossarse dos 50 mil suecos e, particularmente, daquela abobalhada defesa arrombada duas vezes por Vavá e eliminada da Copa de 1958. A partir dali, sucederam-se as quedas de Gales, França e da anfitriã Suécia, esta testemunhada pelo próprio rei escandinavo, curvado diante do monarca da bola, dono de um estilo lúdico, jamais visto nos gelados campos suecos. Garrincha era assim. Tudo que o envolvia tinha um toque de alquimia. Se Pelé era o deus, ele era o demônio. Daí, o inferno da vida de seus marcadores. Os soviéticos treinavam homens para arremessálos ao espaço. E conseguiam. Êxito para anular Garrincha, entretanto, era missão impossível. Nem para

eles, nem para ninguém, afinal, futebol não se nutria de quimeras. Villegas, Puskas, Pachim, Norman, Rodriguez e dezenas de outros mundo afora aceitaram o desafio e se ridicularizaram como se participassem de uma opereta bufa. No Brasil, rastejaram a seus pés Altair, Coronel, Jordam e mil outros de igual nomeada. Técnicos, os mais renomados de todos os quadrantes da terra, conspiraram com estratégias intrincadas para conter seus dribles irreais, infrutiferamente. O rapazola ingênuo, de Raiz da Serra, o “Torto”, como zombeteiramente era chamado nos idos de 1957 em General Severiano, já laureado em 1958, repetiu seus êxitos na Copa do Chile em 1962, mas teve seus sonhos malogrados em 66, em Liverpool, quando viu diluir-se sua alegria de jogar e de viver . O sexo desregrado e o álcool em escala desmedida empurraram o menino do futebol lúdico para a tragédia melancólica cuja morada final foi a sarjeta miserável de um subúrbio qualquer ”. (Texto escrito por Teixeira Heizer para o Canal SporTV em 20 de janeiro de 2013 sobre o jogador falecido 30 anos antes.)


ENSAIO

A morte dos vespertinos, há 50 anos Mudanças tiraram o francês das Redações e deram lugar ao “falar americano”. Como os matutinos enfrentaram a corrida às rotativas. P OR P INHEIRO J UNIOR

Na Redação do extinto vespertino Última Hora (UH) o colunista João Pinheiro Neto citava John Maynard Keynes, o teórico capitalista da moda (1950/60) e novamente em evidência nos tempos atuais: – In the long run we are all dead. Com a frase que se tornaria famosa – “No longo prazo estaremos todos mortos” –, Pinheiro Neto parecia prognosticar não o fim apocalíptico do capitalismo, mas a morte da edição vespertina do jornal diário que contingências econômicas e tecnológicas estavam condenando naquele momento a uma apressada e requentada metamorfose jornalística. Não houve, porém, um súbito desaparecimento. Os vespertinos foram definhando. E sumiram acometidos do que o repórter político Homero Paiva chamava de “caquexia jornalística”. Nada poderia ter sido mais marcante e ao mesmo tempo tão pouco perceptível. Por isso não há documentação nem testemunhos concretos para se afirmar que a desnutrição mortal dos vespertinos – a caquexia – ocorreu (ou foi mais notada) precisamente a tal dia ou tal mês de meio século atrás. Porque na verdade eles desapareciam de forma lenta e sem comunicado. Quando reapareciam, o faziam de repente em sincopado movimento de ausência e presença. Com edições que variavam visualmente na capa com discretos símbolos para destacar uma tiragem/impressão mais recente e pretensamente mais atualizada. Isso era de pouca percepção para o leitor. Como circulassem à tarde/noite/madrugada, os claudicantes vespertinos pareciam tropeçar no próprio e amplo espaço que não conseguiam preencher a contento do leitor assediado cada vez mais pelo atraente crescimento dos destaques jornalísticos na TV. Assim o desinteresse começou a se manifestar nas tiragens destinadas a esse vaie-vem enfraquecido. Por consequência ou mesmo como determinante, também o suporte econômico ficou cada vez mais arredio, expulsando anúncios das páginas cujos textos de Redação – as matérias – se apresentavam como meras repetições de notícias já estampadas pelos matutinos. E, de certa forma, desatualizadas instantaneamente pelos esforçados telejornais.

Foi então que sobreveio a descoberta nos primeiros anos da agitada década de 1960: a solução não era parar com as edições vespertinas; era correr para tê-las renovadas e bem diferenciadas dos matutinos por mais tempo nas bancas. E assim fazer que as remessas de exemplares também pudessem alcançar aviões que se destinavam a centros urbanos distantes ou menos próximos com potenciais leitores interessados em atualizadas notícias e reportagens. Principalmente novidades cariocas, já que o Rio de Janeiro deixara de ser a Capital Federal em 1960, mas era ainda a Capital Cultural. Leitores mais distantes e mais exigentes de informações extra-rádio e extra-tevê – público do próprio Sudeste, do Sul e Nordeste – poderiam ainda compensar financeiramente a deserção de compradores nas bancas locais. Esse movimento de descentralização de circulação provocou o fortalecimento de sucursais nos Estados. E determinou a criação de edições regionais completas com Redações próprias como as no-

Havia charges em profusão nos vespertinos. Vários desenhistas começaram nesses diários: Nássara, Lan, Jaguar, Octavio e até aqueles que, algumas vezes, não assinavam suas artes, como esta caricatura de Ademar de Barros.

Antes do domínio de O Globo, Diário da Noite e Última Hora, A Noite predominou como o vespertino “do governo”.

tabilizadas pela rede nacional de Última Hora – um diário por excelência vespertino. Até se render, na década de 1960, à edição única matutina que seria eventualmente atualizada com seguido(s) clichê(s), alterando o mínimo de páginas possível. Corrida contra o tempo

Descoberto o que estava na cara, começou a corrida generalizada para fazer que os vespertinos chegassem o quanto antes nas rotativas. As impressoras estavam sempre ociosas entre as rodagens. Mas poderiam ficar armadas e receber o vespertino recuado para horas folgadas e estratégicas da manhã: – ...”au matin et ne pas l’après-midi”(?) – como passou a exigir o então Diretor de Redação João Etcheverry. Orientado pelo dono Samuel Wainer, ele botou o vespertino de UH para rodar às 7h da manhã. “E não mais à tarde”. Naquele momento-chave, início de 1960, Etcheverry era o homem-forte à frente do vespertino-UH. Era ele um lendário francês sem sotaque. Diziam-no excoronel da Legião Estrangeira. Embora fosse ele registrado como brasileiro nato, à semelhança de seu companheiro Samuel Wainer. E Etcheverry, ao usar o “idioma natal” para dar ênfase e solenidade à “descoberta” naquele momento de busca de maiores tiragens, parecia conferir sobrevida à língua da intelectualidade jornalística. Idioma requintado e elitizado, com fetiche de conhecimento e pendores literários, mas que já perdia a cena para a rápida e pop universalização do inglês. Aliás, do “linguajar americano” com direito de cidadania internacionalizado pelos comics – as nossas hqs. E globalizado estapafurdiamente na imprensa através de intraduzíveis manuais de máquinas importadas. Afinal nossas rotativas, linotipos, equipamentos de esteriotipia, má-

quinas fotográficas e até a maioria de nossas máquinas de escrever eram importados. Dos Estados Unidos. A queda do francês cultural e a ascensão do inglês tecnológico como fonte de inserção internacional, embora acompanhassem – como ponto de referência – a lenta agonia dos vespertinos, eram sintomas evidentes de que os americanos ditariam inovações gráficas e normas diferentes de redação. Dos textos comandados pelo lide, por vezes anódino e esterilizado, à composição eletrônica a frio, tudo em breve seria computadorizado e em ofsete de múltiplas cores e gradações gráficas. Seriam conquistas que logo engrossariam o paradoxo da exiguidade de tempo, de público e de área geográfica ou demográfica para os vespertinos. Sem falar na então desconhecida internet, que, no entanto, já espreitava o mundo jornalístico “arrastando as correntes digitais para encarcerar a mídia impressa”, diria José Louzeiro com seu mediúnico dom de escritor-repórter. Mas a noite era deles

Desde que surgiram vigorosamente nas décadas de 1930 e 1940, os vespertinos vendiam mesmo era à noite. A noite era só deles. No entanto invadiam a madrugada para atender a forçados noctívagos e boêmios errantes. Quando então, cavalheirescamente, cediam lugar aos matutinos já no fim da madrugada. E recolhia-se o encalhe-vésper como papel velho para fábricas de papelão, quitandas e peixarias. Em geral, por saírem às ruas em horas “menos conspícuas”, os vespertinos eram mais livres, leves e abertos para abrigar diversões, frivolidades, comportamentos sociais, folhetins, intrigas políticas, desavenças familiares ou corporativas, crimes pouco apelativos... e sensacionalismos! Raramente havia necrológios. Mas havia charges em profusão: Augusto Rodrigues, Nás-

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ENSAIO A MORTE DOS VESPERTINOS, HÁ 50 ANOS

sara, Lan, Jaguar, Octavio e tantos outros se criaram nos vespertinos. Como se popularizaram as instigantes previsões astrológicas. Os consultórios sentimentais... Entretanto, considerados portadores de notícias do dia – da madrugada ou da manhã –, ou de fatos que estavam ainda acontecendo, o que se pode dizer de concreto sobre a morte dos vespertinos e o cinquentenário desse falecimento coletivo, é que foi não exatamente um infausto acontecimento. “Com choro e vela” como manda o figurino dos velórios. Constituiu-se o passamento dos vespertinos numa enrustida tragicomédia. Raras exceções não comemoraram como o fizeram editores, redatores e repórteres que ralavam em “horário de ladrão”, segundo o cinismo do repórter especial Clodomir Leite, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Porque os repórteres, redatores e editores da madrugada não eram criminosos e como não merecessem a pena de trabalho forçado em hora normal de sono e descanso, os profissionais vespertinos em massa respiraram aliviados em liberdade quando, afinal, os donos dos jornais foram desistindo. E se renderam também sem lamentação – ou desemprego notável – à inutilidade das edições vespertinas que pararam de dar lucro. Na verdade, davam prejuízo. Lucro com romantismo

Foi uma experiência não apenas romântica de uma era jornalística que perseguia lucro sem desprezar a aventura. O retrovisor do tempo mostra essa paisagem alegre, mas sofrida, de noticiaristas, plantonistas, telefonistas, repórteres, copidesques, colunistas, editorialistas e secretários de Redação e de oficina, gráficos e jornaleiros. É difícil não associar o quadro cinquentenário à observação de um personagem de Érico Veríssimo, redator principal e cronista da Revista do Globo de Porto Alegre. Dizia o personagem – o jovem desenhista Vasco de Música ao Longe e Saga – que “para melhor se admirar uma paisagem é importante nos colocarmos à distância dos detalhes”. O quadro dessa época áurea foi desenhado na segunda metade da década de 1940 e durante os anos 1950. Duros tempos em que o País embarcou numa guerra mundial, voltou da Europa vitorioso, derrubou o ditador Getúlio Vargas, reconduziu-o democraticamente ao Poder, chorou quando ele se matou, elegeu o desenvolvimentista Presidente JK, viu fundar Brasília e dobrou-se a uma nova ditadura de militares e civis ressentidos. Os fatos eram chocantes, sensacionais, mas pareciam prenunciar paradoxalmente a desaceleração não apenas política, mas também histórica. Por que tais fatos tão marcantes não indicariam também a exaustão dos veículos que testemunharam e noticiaram, quase sempre às pressas, tantos dramas e tragédias? “Uma informação atrás da outra”

Os vespertinos também não surgiram 40

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da noite para o dia em datas facilmente identificáveis. É claro que o noticiário da Segunda Guerra Mundial (1939/1945), embora sob censura militar rígida, acabou por conquistar a estressante virtude de habituar o leitor a buscar nos jornais “uma informação atrás da outra” sobre os fronts na Europa, Ásia e África. Rádio como informação confiável naquela época, nem pen-

ador Assis Chateaubriand, quando já não era nem matutino nem vespertino: circulava em horas incertas e não sabidas. Independente de fatores extra-liberdade de expressão – caso do Diário da Noite – é claro que a ditadura imposta em 1º de abril de 1964 fuzilou um jornal seguido ao outro, censurando as notícias mais importantes e enforcando a dispo-

na primeira página e em uma página interna quando a intensidade dos acontecimentos vinha a exigir. Os clichês que atualizavam o matutino eram montados no fim da madrugada ou nas primeiras horas da manhã. Para manter-se atualizada e contornar/superar deficiências técnicas de rotativas ultrapassadas, Última Hora chegou a manter colunas na primeira página intituladas Zero Hora e, depois, Primeira Hora. O objetivo era conseguir mobilidade suficiente para mostrar ao leitor suas edições sempre jovens e atualizadas pelo menos na aparência. Estrategicamente, as novas notícias eram trocadas e renovadas na medida em que as bancas precisassem ser reabastecidas se o chamado “repasse” se esgotasse. O que era raro. Diário da Noite X A Noite

Com A Noite, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Diário Carioca, Jornal do Brasil, O Dia, A Notícia, O Mundo, O Radical, O Paiz, Tribuna da Imprensa, Jornal do Commercio, O Jornal e Diário da Noite, aconteciam situações bem diversas dos vespertinos já referidos. Pois os próprios títulos desses jornais poderiam caracterizar o que por certo eles pretendiam ser – matutino As duas edições da Última Hora: a matutina, com o galo ao lado do logotipo do jornal, e a vespertina. ou vespertino. sar! Afinal acreditava-se que os inimigos, A Noite, obviamente, destinava-se a um nibilidade das agências publicitárias. Mas os quintacolunas, tinham onisciência e público noturno. Era distribuído por volta tanto O Globo como Última Hora só vieram onipresença. Quanto à tv, como se sabe, esdas 17h às bancas e aos famosos pequenos a caracterizar suas edições definitivatava longe de deixar o domínio dos rojornaleiros da Fundação Darcy Vargas – mente matutinas quando constataram, mances de ciência-ficção ou as fantasias a Casa do Pequeno Jornaleiro. O alvo nípouco antes do golpe de 1964, que só sudos quadrinhos interplanetários. tido de A Noite era o público que ia para biriam (ou manteriam) as vendas em banOutra certeza consequente do impaccasa após o trabalho ou frequentava bacas se antecipassem as rodagens vespertito das notícias de guerra é que o interesse res, restaurantes e boates em altas horas. nas mais ou menos para os mesmos horápor multiedições diárias de jornais acenCom alguma esperteza, mas se arriscanrios que cumpriam os autênticos e tradituou-se no Brasil como influência da imdo a perder recentíssimos acontecimencionais matutinos. Era fácil concluir – e prensa na Europa. Foi uma influência que tos, o Diário da Noite rodava cerca de uma não se sabe por que demoraram tanto – que se fez possível quando os jornais europeus hora antes (16h) – “para ganhar leitor ”. E sem se converter também em matutinos se consideraram libertados. Principalmenestampava sempre sobre seu característiou produzir edições também matutinas – te porque na Paris de pós-guerra os diárico papel esverdeado (até que virou tablóios auto-intitulados vespertinos estavam os chegavam a ter quatro, cinco edições, fade) garrafais manchetes apelativas para perdendo tempo precioso de acesso aos leizendo vibrar as ruas. Vibração política empolgar os mesmos leitores do competitores nas horas-chave da manhã. com hora marcada e sempre ansiosamendor noturno. te aguardada. O hoje moribundo FranceUma competição doméstica Já O Dia era só matutino. Mas um maSoir – agora limitado a um site na internet tutino que se fazia na contramão dos traFoi assim que a partir de 1960, ou mes– estava à frente dessa vibração. Quem podicionais jornais da manhã. Curiosamente mo antes, os vespertinos foram recuanderia imaginar que o órgão desafiante da circulava na véspera. Às vezes o “jornal de do cada vez mais na hora do fechamento ocupação nazista viria a ser comprado em amanhã” podia ser encontrado ao anoitee de rodagem da edição. E acabaram por 2008 por um miliardário russo e logo reducer de “ontem”. A certa altura converteuencenar a curiosa e doméstica condição zido a uma pífia versão eletrônica? se no jornal de maior circulação no País. de competidores entre eles próprios, emFaçanha, aliás, nem tão difícil assim, pois bora carregassem a mesma logomarca que a tiragem média dos jornais mal ultrapasOs grandes vespertinos cariocas oferecia como distinção apenas indicasava meia centena de milhares de exemplaNo Rio destacaram-se como vespertições como “Primeira Edição” e “Segunda res. Isso quando conseguia a façanha em nos mais recentes os jornais O Globo, DiEdição”. Ou, como no caso de Última Hora, função de um grande acontecimento. Mas ário da Noite e Última Hora. Antes desta a edição matutina carioca trazia a marca se o fato e suas versões e consequências tríplice predominância nas bancas, A de um galinho cantando na primeira ediNoite pontificara como “vespertino públiexacerbassem emoções – como foi o suição e de uma moeda estilizada com o precídio de Vargas – a tiragem de um vesperco”, isto é, do Governo. Pois era “patrimôço de venda na edição vespertina. Foi tino privilegiado pelo apoio da e à vítima nio da União”. Tal como a Rádio Nacional. então que aconteceu o inevitável: os vesneste caso, podia explodir em edição de Depois da tríplice predominância, ou ao pertinos se aproximaram tanto da hora de 800 mil cópias. Isso aconteceu excepciomesmo tempo, surgiu A Notícia. Os três prifechamento/rodagem dos matutinos que nalmente com Última Hora. E nunca mais meiros diários mantiveram edições vesnão mais foi possível fugir da fusão em se repetiu nem com UH nem com qualpertinas como veículos principais por uma edição naturalmente matutina e úniquer outro jornal nacional. mais de uma década até o decorrer de 1963. ca. Desta forma, passou-se a fechar esta maJá o Diário da Noite viu-se arrastado à conPara alcançar a liderança na circulação tutina única o tão tarde quanto possível, – à semelhança dos rápidos tablóides de dição de tablóide em 1959. E após lenta de zero a uma da madrugada, obedecendo hoje –, O Dia se especializou em sensaciagonia morreu em 1964, junto com seu crià programação de segundos ou mais clichês


onais fatos policiais objetiva e sinteticamente narrados. E estabeleceu preço de venda do exemplar tão baixo – alguns centavos – que o jornal podia ser descartado ao fim de 60 minutos de leitura ou à espera de uma condução para casa. Exatamente como os tablóides de agora. Tudo compensado também pela sempre limitada quantidade de páginas. O preço de capa já pagava o custo do papel, mesmo importado do Canadá ou Finlândia. O maior adversário de O Dia foi a Luta Democrática (1954/1980) fundado pelo Deputado Natalício Tenório Cavalcânti, que explorava a própria fama de pistoleiro. A Luta não narrava apenas crimes com espantosas manchetes que podiam ser engendradas pelo mestre do sensacionalismo à flor da pele – Carlos Vinhaes. Veiculava também sexo barato. E, em determinado momento, lançando mão de giriologia chula. No que acabou sendo seguido pela A Notícia no desespero da sobrevivência. A Notícia, da mesma empresa de O Dia – propriedade dos governadores Antônio de Chagas Freitas (RJ) e Adhemar de Barros (SP) – ao ser refundada em 1950 tinha que correr nos calcanhares do Diário da Noite e de A Noite. Embora fosse um vespertino autêntico até a morte. A Notícia funcionava como uma espécie de “segunda edição” de O Dia, estampando “suites” (continuações) de coberturas exclusivas realizadas pelo matutino da empresa.

na, que teve o Clarín como grande vespertino até ser atingido pelo fenômeno-tv. Mas em matéria de tiragem o Brasil nunca conseguiu acompanhar, nem de longe, a grande circulação dos jornais europeus, com milhares e até milhões de exemplares diários.Como acontece com o Bild, que vende até hoje mais de 4 milhões todos os dias, dentro e fora da Alemanha.

Junto com a arquiinimiga Última Hora, a Tribuna protagonizou a máxima importância da mídia impressa – o Quarto Poder! – na História (moderna) do Brasil em momentos decisivos da década de 1950. Foram momentos que motivaram notícias e interpretações em ângulos opostos e antagônicos. Um debate que “mexeu e remexeu no fundo da política”, como jamais acontecera desde a Revolução de 1930, segundo Manoel Gomes Maranhão. Diretor-condômino do diário O Jornal do Rio de Janeiro – matutino líder dos Diários Associados mas sem liderança nas bancas – o Doutor Maranhão, como era tratado, dizia ainda que, “se houve algum momento em que a imprensa brasileira fez lembrar os jornais durante as revoluções americana e francesa, foi este da briga Tribuna X UH”. Maranhão completava afirmando que sem a imprensa não teria havido as duas revoluções. Por afinidade, “sem a Tribuna e UH, Getúlio não teria se matado, JK não teria assumido a Presidência e o golpe de 1964 não se consumaria”.

Finalmente completou-se o fenômeno americano quando a grande imprensa dos EUA se apresentou como paradigma de um mundo que se globalizava rapidamente. Os jornalões, com o The New York Times e o Washington Post à frente, embora sem tiragens monumentais, cresceram repletos de anúncios. Como se fossem catálogos comerciais. O Brasil já estava parando de “falar francês” e começou logo a “falar americano”. Estava nascendo aqui a grande imprensa-empresa representada hoje pelo O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo. É preciso dizer ainda que os vespertinos sempre viveram “ à sombra” dos matutinos. Evidentemente essa espécie de comensalismo só existiu quando o vespertino aderiu à edição matutina, invertendo ou antecipando horários na Redação. Por isso os “vespertinos aderentes” passaram a dispor de equipes menores. E custos menos significativos. Principalmente porque o grosso dos vespertinos era criado e produzido pela Redação maior que já trabalhava durante o dia para realizar o matutino, tendo o vespertino apenas como consequência. Em última análise, foi mesmo por injunções de economia de produção que os vespertinos acabaram. Aguçou esta necessidade de contenção o notório fato de os vespertinos remanescentes estarem acossados cada vez mais pelo poder da imagem e da instantaneidade da tv. O que restou da sobrevivência dos vespertinos pode estar presente nos tablóides atuais. Que parecem se apoiar no sensacionalismo surreal, na permissividade dos tempos perdidos e no ínfimo preço de seus exemplares. Os leitores dos tablóides de agora são também mais imediatistas e menos exigentes. Público mais sofisticado e melhor aquinhoado é o que persegue a recente edição vespertina digital Globo a Mais, com “circulação” a partir das 18h. Tendo o iPad como veículo de total portabilidade, a Infoglobo – empresa das mídias impressa e eletrônica com a marca O Globo – baseia-se nas experiências americana e britânica do NYT e do Financial Times. Além da instituição do conteúdo pago via internet, a Infoglobo também correria atrás de novos tempos de redução – ou extinção? – do papel impresso. De ampliação – ou domínio completo? – do jornal digital. Mas tal como no samba de Dona Ivone Lara, os herdeiros de Roberto Marinho, cauteloso homem de jornal, quem sabe não teriam avisado aos ministros do seu império para “pisar neste chão devagarinho”?

Chega a imprensa-empresa

Quanto à Tribuna da Imprensa, foi sempre um matutino com cara e alma de vespertino. Sem ser, porém, um Diário Carioca. E que viveu em função das campanhas de seu diretor e dono – o tribuno Carlos Frederico Werneck de Lacerda.

Os autênticos matutinos

Correio da Manhã e Diário de Notícias eram exemplos de matutinos autênticos. Tradicionais, bem mais volumosos e visualmente mais sérios que os vespertinos, traziam maior número de seções assinadas e opinativas com destaque para editoriais. Assim foram através dos anos. Porque assim queriam Niomar Moniz Sodré Bittencourt e Ondina Ribeiro Dantas, as damas que herdaram dos maridos-donos um e outro matutino. Já o Jornal do Brasil (JB), caracterizado por anúncios classificados até na primeira página, custou a se modernizar. Quando o fez, o JB dominou o público dos matutinos por muitos anos sempre na linha do Correio da Manhã e do Diário de Notícias. Propriedade do Conde Ernesto Pereira Carneiro e depois da viúva-herdeira Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro – a Condessa –, instituiu-se o JB também como matutino autêntico. Porém menos conservador no visual e no conteúdo. O que o aproximou em técnica e bom gosto do Diário Carioca de José Eduardo Macedo Soares – o J.E. Macedo Soares. Ágil no texto e na diagramação, o Diário Carioca era igualmente matutino. Porém um matutino disposto a inovar, sendo o precursor do lide no Brasil, com paginação e conteúdo que o projetavam a meio caminho dos vespertinos. Os menores e menos influentes O Paiz, O Radical e O Mundo eram também matutinos. Mas sem “convicção”, pois O Mundo e O Radical tardavam – e até falhavam – em chegar às bancas. A concorrência era numerosa e impiedosa demais e eles foram os primeiros a deixar a arena sem participar da epopéia vespertina.

No Rio, o Diário da Noite foi um dos vespertinos que mais se destacou. Mas, no final da década de 1950 viu-se arrastado à condição de tablóide, e após lenta agonia morreu em 1964, junto com seu criador Assis Chateaubriand.

As rádios não eram ameaça

Diário Carioca e Correio da Manhã: matutinos que introduziram diversas inovações na imprensa carioca.

Diferentemente de segundos clichês ou segundas edições tachadas de Extra, quando ocorria fato relevante em hora “imprópria” para matutino ou vespertino, os vespertinos cumpriram a tarefa da notícia levada ao público o mais próximo possível da hora em que estava acontecendo. Nunca chegaram a ser muito ameaçados pelo rádio, sujeito às limitações das transmissões que não podiam se afastar da objetividade e da rapidez, carecendo ainda da ausência de imagens. Por isso, quando a tv apareceu na década de 1950 e em seis anos deixou de ser o meio-mensagem por excelência – misteriosa e futuristicamente cantado por Marshall McLuhan – e se aperfeiçoou para se converter na coqueluche-mensagem-diversão, acabou por dominar a mídia pré-internet. Então a tradicional mídia impressa teve que se virar. E buscar forças no aprofundamento dos fatos com pesquisas, investigações e denúncias. Tudo como se fossem livrosrelâmpagos ao alcance das massas. A formação de opinião e a voz do leitor ampliada nas seções de cartas também marcaram a transformação do jornal pós-tv e imediatamente pré-internet. O Brasil dos jornais vespertinos acompanhou a tendência mundial representada pelos poderosos Le Monde e Le Figaro e os históricos France-Soir e Le Parisien. Tendência manifestada também na Argenti-

José Alves Pinheiro Junior é autor de A Última Hora (Como Ela Era), entre outros livros sobre jornalismo. É Conselheiro da ABI e membro da Comissão de Ética do Sindicato de Jornalistas do Estado do Rio de Janeiro.

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IMPRENSA O ESTADO DE S.PAULO

Fundado em 1966, o jornal fechado no fim de 2012 mudou a imprensa no País, com ousadia gráfica e editorial que lhe rendeu importantes prêmios. P OR GONÇALO JÚNIOR

O fim do paulistano Jornal da Tarde em 31 de outubro passado não pode, do ponto de vista histórico, ser visto apenas como mais um diário que desaparece na chamada Era Digital. Dos seus 46 anos de vida, o JT, como era mais conhecido, teve importância relevante pelo menos nas suas duas primeiras décadas, quando se tornou fundamental para a modernização da imprensa brasileira, tanto no aspecto visual e gráfico quanto de conteúdo. Era tão ousado e singular que nenhum outro o copiou inteiramente para não parecer semelhante demais. Mas absorveram-se diversos elementos que lhes renderam tantos prêmios nacionais quanto internacionais em toda a sua trajetória. Um exemplo disso foi usar a capa como um panfleto jornalístico, misto de supervalorização da imagem e do fato com elementos literários, como a poesia e a prosa. Uma linguagem gráfica que claramente contrastava com o visual quase padronizado dos jornais da época. A leitura que o JT fazia de uma tragédia tinha a capacidade de síntese que nem o editorial nem a charge conseguiam passar. Como se fosse capaz excluir qualquer aspecto político ou ideológico tão explícito na imprensa de modo geral. Era uma sensação apenas. Um sentimento. Uma dor. Em 1982, por exemplo, fez história ao retratar em toda a capa a imagem de um garoto aos prantos com a camisa da Seleção Brasileira, após a eliminação da Copa do Mundo, na Espanha, para a Itália. No rodapé, apenas a data: “Barcelona, 5 de julho de 1982”. Outra primeira página histórica trazia o ex-Presidente da República Jânio Quadros – em foto de página inteira – visivelmente embriagado. Em 1983, publicou uma série de caricaturas do político Pau42

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lo Maluf em que seu nariz crescia a cada edição, por causa dos prejuízos provocados na Paulipetro em sua gestão como governador. Ousou mais ainda quando trouxe uma grande imagem sem manchete ou uma em que quatro assuntos eram apresentados com o mesmo destaque e a manchete pedia “ajuda” ao leitor: “Escolha aqui a sua grande manchete”. Por tudo isso, suas capas históricas já foram expostas no Museu de Arte de São Paulo-Masp. O primeiro número do jornal chegou às bancas em 4 de janeiro de 1966, resultado de um capítulo da História da Imprensa pouco conhecido, porém importante. Sua equipe foi formada com parte das Redações da Folha de S. Paulo e da revista Quatro Rodas, que migraria para O Estado de S. Paulo, em 1965, juntamente com Mino Carta, com o propósito de fundar o novo diário do grupo: o Jornal da Tarde. Durante aquele ano, alguns como Mylton Severiano trabalhariam simultaneamente na Quatro Rodas e n’O Estado de S. Paulo. Sua função era de redator e copy do caderno esportivo dominical, junto com Rolf Kuntz, Miguel Jorge, Guilherme Cunha Pinto e Luciano Ornellas. Passaram a fazer parte da mesma equipe Murilo Felisberto e Carlos Brickman, que exercitavam no suplemento uma espécie de balão de ensaio para o Jornal da Tarde, que seria lançado no começo do ano seguinte. Apesar de sisudo, o Estado não criou resistência contra o estilo das matérias da turma de Felisberto, com seus lides (parágrafos de abertura) rococós, tidos como sofisticados, ainda mais para um caderno de esportes. Era uma revolução no jornalismo que se iniciava dessa forma. Sua proposta editorial era oferecer ao público jovem um vesperti-

no inovador na diagramação e na linguagem. Na prática, rompia com a tradição do sisudo Estado, do mesmo grupo. Seu editorial de estréia pregava um “estilo vibrante, irreverente” de jornalismo para “atingir um público diferente daquele que normalmente lê apenas matutinos, cujo estilo deve ser, forçosamente, mais pesado e prolixo”. Segundo o editor, o Jornal da Tarde seguiria para a mesma luta, “em defesa da liberdade, que é o fim do Homem na sua vida terrena”. O novo diário traria uma série de inovações editoriais. Os temas de suas reportagens mostravamse mais próximos dos leitores. A cidade, o lazer e o noticiário policial ganharam atenção e passaram a merecer tanto destaque nas manchetes quanto os fatos nacionais e internacionais. A cobertura das façanhas do Bandido da Luz Vermelha nas casas da grã-finagem paulistana, por exemplo, tornou-se uma sensação no

primeiro ano de circulação e ajudou a popularizar o jornal. Ousadia editorial

Na reportagem, Mino Carta buscou valorizar a visão pessoal do repórter, além de lhe dar trânsito livre para fazer textos mais literários. Por adotar a linha de ser um diário “de personagens”, ajudou a construir e a manter a imagem dos novos nomes da música popular brasileira que surgiam. Sua ousadia editorial, no entanto, provocou uma série de críticas entre os próprios jornalistas. Em especial, os mais experientes e veteranos. Chegou a ser ironizado por supostamente procurar um “estilo de vida” e não simplesmente informar o leitor com os fatos do dia-a-dia. Muito próximo do formato jornalístico de revista Quatro Rodas, o JT tinha também um caráter experimental que permitia ao repórter ou ao redator manifestar a criatividade no texto e no conteúdo da informação, mesmo dentro dos limites dos manuais de redação que normalmente se encontrava na grande imprensa. Sua cobertura revelava que o tratamento dado ao fato jornalístico deveria passar por um processo de enriquecimento de detalhes, mesmo na correria da imprensa diária. Assim como na revista da Editora Abril, que criara seis anos antes, Mino estabeleceu que as matérias do jornal devessem ampliar as simples notícias de poucas linhas, de modo a aprofundar o fato no espaço e no tempo. E isso precisava ser feito em interação com a abordagem estilística. À frente do jornal estavam, junto com Mino, Murilo Felisberto e Ruy Mesquita. Mino tinha dinheiro e liberdade para contratar os melhores profissionais e experimentar ao máximo, sem se prender ao tradicionalismo da casa. Sua equipe inicial de repórteres incluiu, entre


Por decisão de Murilo Felisberto, que substituiu Mino Carta na direção do jornal, o JT foi o primeiro jornal brasileiro a possuir oficialmente um editor de fotografia, Milton Ferraz. Foi ainda o primeiro jornal latino-americano a adotar a ecologia como causa, feito reconhecido pela Comissão das Nações Unidas para o MeioAmbiente e Desenvolvimento. A fotografia do JT também tinha time respeitável:

chegavam até o (restaurante) Gigeto velho da Rua Nestor Pestana e a Praça Roosevelt, que o futuro cineasta, também mineiro, Antônio Lima, contemplava, extasiado, enquanto amanhecia. ‘Que cenário, que puta cenário!’ Mal sabia eu que, agora, na Marginal Tietê (para onde a Abril se mudou pouco depois), ia enfrentar os turbulentos gaúchos Paulo Totti, Severo, Dias Lopes, Hélio Gama, Caio Fernando Abreu – enfim, dois times de futebol falando ‘bá tchê, que bom que tá’”. Na experiência de fazer matérias, reportagens e artigos, esses jovens e desbravadores jornalistas inventavam, testa-

Ao mesmo tempo, Mino incentivou o jornalismo investigativo, com a adoção de um código de ética marcado pela repulsa ao autoritarismo do regime militar e à manipulação de políticos e empresários. A primeira manchete do jornal, “Pelé casa no Carnaval”, veio da matéria de Hamilton Almeida Filho (Haf), recém-chegado da matriz do Jornal do Brasil, no Rio, para a sucursal de O Cruzeiro, em São Paulo.

Osvaldo Palermo, Reginaldo Manente, lvo Barreto, Domicio Pinheiro, Antônio Lucio, Araki e Appi. Foi reforçada com a chegada, quando o jornal já circulava, de Geraldinho Guimarães, Amilton Vieira, Osvaldo Maricato e Zé Pinto. “Então, eles, os mineiros, foram chegando. Primeiro Kleber de Almeida e Luciano Ornelas, menininhos, acho que tiveram de conseguir licença especial para viajar. Depois, se não me engano, Carmo Chagas.” Como disse Ivan Ângelo, observou Sérgio Pompeu, os mineiros tinham “um textinho bom” para o que se pretendia: “um vespertino diferente”. “Tinham mesmo, só que enchia o saco explicar que onde o texto dizia ‘aquela lagoa’ no caminho de Santos, era para dizer Represa Billings; aquela praça com um parque infantil era Praça da República; aquela ponte sobre o Anhangabaú, Viaduto do Chá; e que Praça da Catedral, Praça da Sé. Sabiam escrever, esses mineiros. Não sabiam mais nada. Conheciam o jornal, o Copan, onde moravam, e a galeria Metrópole, onde se dessedentavam no Jogral e no Sandchurra”. “Às vezes, com direito a Chico Buarque, Gilberto Gil, Paulo Vanzolini, o próprio Paraná, falecido dono do falecido Jogral.” Em linha reta, de acordo com Pompeu, a turma de Minas Gerais vivia num raio de seis quadras, da Rua Major Quedinho à Avenida Ipiranga com a Praça da República. “Quando deixei o jornal, dois anos depois, levado pelo Mino Carta para a futura Veja, então chamada de ‘Projeto Baco’, os mineiros, sempre em silêncio, já

vam, arriscavam. Aos poucos, as fotos quebraram todos os formalismos das capas dos demais jornais – chegaram a ser diagramadas em página inteira, como se fossem cartazes – e, internamente, havia uso e abuso de ilustrações e dos desenhos de humor. Na reportagem policial, estabeleceu o fim do jargão e estimulou a busca por histórias no estilo de contos e romances policiais. Nesse sentido, uma oportunidade para surpreender o leitor e a concorrência aconteceu quando mobilizou todo mundo para trabalhar na cobertura da trágica tromba d’água de Caraguatatuba, no verão de 1966 para 1967. Depois de aproximadamente três meses de chuvas quase ininterruptas, no início da tarde do dia 18 de março, um sábado, segundo relatos da época, uma avalanche de lama, pedras, milhares de árvores inteiras e troncos desceu das encostas da Serra do Mar, pelo vale do Rio Santo Antônio (que nasce na serra e deságua no mar, atravessando a cidade), arrastando tudo o que havia pela frente, inclusive a ponte, deixando mais de 200 mortos. Depois, o jornal produziu um suplemento inteiro dedicado ao primeiro transplante de coração feito no Brasil e na América Latina, na manhã de 26 de maio de 1968, no Hospital das Clínicas da Usp, pelo professor Euryclides de Jesus Zerbini (19121993). Ele e uma equipe médica operaram o lavrador matogrossense João Ferreira da Cunha (João Boiadeiro), de 23 anos, que tinha uma avançada doença do miocárdio e insuficiência cardíaca. Ele morreu de rejeição imunológica 28 dias depois.

duraria até 1974. No primeiro ano de circulação do jornal, uma ousada manchete escancarava as pretensões do regime militar em calar a mídia. Em 23 de dezembro de 1966, publicou: “Ditador quer calar a Imprensa”. Em 1968, o Governo Militar quis impedir a publicação de uma matéria sobre a crise no Congresso Nacional que culminaria no AI-5. O diretor Ruy Mesquita reagiu e ligou para questionar a medida, o que gerou reação da Polícia Federal, que bloqueou a saída do jornal pela Rua Major Quedinho. Os agentes anunciaram: “Pode rodar, mas distribuir não vai.” Não imaginavam que os pacotes estavam saindo pela Rua Martins Fontes, oposta à Major Quedinho, por outra esteira, e, assim, chegou às bancas – para serem recolhidos pouco depois. Por iniciativa de Ruy Mesquita, a partir de 1970 notícias censuradas foram substituídas por receitas de culinária que não funcionavam, não apenas como maneira de protesto, mas também porque nem sempre a receita completa cabia no espaço deixado pela censura. A fase inicial, considerada por Ruy Mesquita como “a mais brilhante” da História do jornal, encerrou-se em meados dos anos 1970, quando o JT teve de restringir seus gastos e não pôde mais investir apenas em poucos assuntos importantes, além de planejar grandes reportagens. Assim, perdeu o jeito de revista. Nesse período, deu destaque em especial a assuntos econômicos, quando a concorrência explorava somente aumentos de preços e salários. O JT investiu na cobertura do “milagre econômico”, pregado pelos militares,

outros, nomes que depois se destacariam no jornalismo brasileiro, como Fernando Moraes, Raimundo Pereira, Ivan Ângelo e Marcos Faerman – que entrou algum tempo depois. Ao invés dos diagramadores e diretores de arte, o editor estabeleceu que os próprios editores ficassem obrigados a desenhar suas páginas. Sérgio Pompeu recordou duas décadas depois que havia o núcleo inicial fundador do jornal formado por Mino Carta, o redator-chefe; Hamilton Almeida Filho, o HAF; Fernando Semedo, Tão Gomes Pinto, Ulysses “Uru” Alves de Souza e o próprio Pompeu. “Veio o primeiro minei-

Tereza Monteiro e Lucia Fragata, únicas mulheres da Redação. Logo veio outra, Valéria Wally.”

ro, Murilinho Felisberto. Estávamos empenhados nos números zero do Jornal da Tarde. Nosso milionário elenco (larguei meu emprego no Banco do Brasil) foi enriquecido com o pessoal da sucursal paulista do JB: Carlinhos Brickman, Rolf Kuntz, Miguel Jorge, Laerte Fernandes, Evaldo Dantas Ferreira.” Entraram também os que ele chamou de “lobos solitários”: o pernambucano Fernando Portela e o jundiaiense Sandro Vaia, que mandou uma carta a Ruy Mesquita pedindo emprego e conseguiu. O mesmo aconteceu com José Roberto Guzzo, que teria dito ao comando do jornal: “Se não arrumar emprego aqui, largo tudo, vou ser advogado. Não tenho mais saco para trabalhar na Última Hora e no Médico Moderno”. Da Folha de S. Paulo vieram Renato Pompeu (irmão de Sérgio), Emílio Matsumoto, Sergio Oyama e Otoniel Santos Pereira. Notícias Populares contribuiu com a dupla Percival de Souza e Vital Battaglia. O mercado, acrescentou Sérgio Pompeu, estava bom e competitivo, com uma guerra de jornais e de Redações brilhantes: Realidade versus Jornal da Tarde, Editora Abril versus Estadão. “Disputavam a gente, palmo a palmo, cruzeiro a cruzeiro. Eles nos levaram José Carlos Marão, quase conseguiram Murilinho e andaram conversando comigo. Erro quando digo eles: eram Paulo Patarra, Zé Hamilton, Serjão de Souza, Carlos Azevedo, Myltainho, Mercadante, Narciso. Eram gente como nós, da mesma turma, da raça dos jornalistas a qual pertenciam também as senhorinhas

Fotografia e ecologia

Luta contra a censura

Nos primeiros anos, como qualquer grande jornal da época, o JT amargou com a censura prévia em sua Redação – que

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VIDAS

IMPRENSA A HISTÓRIA QUE O JT INVENTOU

Morrer aos poucos Carlos Alexandre foi preso e torturado com apenas um ano e oito meses. Depois que soube disso, teve um trauma. Aos 40 anos, matou-se. POR L UCIANO MARTINS C OSTA

No dia seguinte ao atentado de 11 de setembro, uma capa em página dupla. Em junho de 2009, uma foto ocupando a primeira página deu mais impacto à manchete sobre a morte de Michael Jackson.

e a primeira crise do petróleo, em 1973, mesmo sob pressão da censura. Em 1974, criou a seção de Economia, coordenada por Celso Ming, com reportagens especiais sobre temas específicos. Ming ganhou um Prêmio Esso, com matéria sobre a falência da Previdência Social. Em junho de 1981, período de grande instabilidade econômica no País, foi lançada a seção Seu Dinheiro, sobre finanças pessoais, inicialmente chamada de Entenda Economia e publicada em uma página, sob a responsabilidade de Luís Nassif. Em 4 de agosto de 1982, Nassif lançou o suplemento Jornal do Carro, sobre veículos, com 16 páginas, que se tornaria uma marca na história do diário até o fim. Declínio e fim melancólico

Como o título dizia, o JT circulou nos primeiros 22 anos por volta do fim da manhã. Em 1988, por causa da piora no trânsito da cidade nesse horário, que prejudicava a distribuição, passou a sair pela manhã, juntamente com os outros jornais. Nessa época, já apresentava problemas de caixa: não tinha assinaturas e era deficitário. Uma reestruturação da empresa fez o jornal sair do vermelho um ano depois e chegou a vender 190 mil às segundas-feiras. No final da década de 1990, porém, o declínio era evidente, o jornal amargava queda importante nas vendas. O Grupo Estado se empenhou ao longo dos anos 2000 na recuperação de mercado do diário. Buscou uma imagem de publicação de leitura mais fácil e ágil e defensora do leitor e do cidadão. Em 5 de abril de 2006, o JT passou por sua última grande reforma gráfica e passou a dar mais destaque à prestação de serviços. A circulação média diária nesse ano subiu em 6,8%, passou de 44,5 mil, em dezembro de 2006 para 47,5 mil um ano depois. Mesmo assim, ocupava o último lugar entre os cinco maiores jornais paulistanos. Dois anos depois, a direção decidiu concentrar as vendas apenas na Grande São Paulo, suspendendo a circulação no interior e em outros Estados, a não ser por algumas cidades específicas. Até que, em 44

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meados de outubro de 2012, uma suposta mensagem de correio eletrônico interna vazou e chegou a sites especializados em mídia. Circulou, então, a informação de que o jornal deixaria de circular em 2 de novembro – ironicamente, dia de Finados. O rumor começara a correr alguns dias antes, quando o telemarketing do Grupo Estado passou a informar que a empresa decidira suspender as vendas de novas assinaturas do diário. A empresa, entretanto, desmentiu publicamente a informação, embora sem dizer o motivo da suspensão das assinaturas. Mesmo assim, o comunicado continuou a ser transmitido. Na tarde do dia 23 de outubro, em assembléia realizada na calçada da sede do Grupo Estado, a Redação do Jornal da Tarde decidiu decretar estado de greve. Uma audiência de conciliação no Tribunal Regional do Trabalho foi marcada para o dia 29. Nessa data, porém, o Grupo Estado emitiu nota oficial, confirmando o encerramento das atividades do JT, com a última edição programada para 31 de outubro. E assim aconteceu.

O técnico de computadores Carlos Alexandre Azevedo morreu no sábado 16 de fevereiro após ingerir uma quantidade excessiva de medicamentos. Ele sofria de depressão e apresentava quadro crônico de fobia social. Era filho do jornalista e doutor em Ciências Políticas Dermi Azevedo, que foi, entre outras atividades, repórter da Folha de S.Paulo. Ao 40 anos, Carlos Azevedo pôs fim a uma vida atormentada, dois meses após seu pai ter publicado um livro de memórias no qual relata sua participação na resistência contra a ditadura militar. Travessias Torturadas é o título do livro, e bem poderia ser também o título de um desses obituários em estilo literário que a Folha de S.Paulo costuma publicar. Carlos Alexandre Azevedo foi provavelmente a vítima mais jovem a ser submetida a violência por parte dos agentes da ditadura. Ele tinha apenas um ano e oito meses quando foi arrancado de sua casa e torturado na sede do Dops paulista. Foi submetido a choques elétricos e outros sofrimentos. Seus pais, Dermi e a pedagoga Darcy Andozia Azevedo, eram acusados de dar guarida a militantes de esquerda, principalmente aos integrantes da ala progressista da Igreja Católica. Dermi já estava preso na madrugada do dia 14 de janeiro de 1974 quando a equipe do Delegado Sérgio Paranhos Fleury chegou à casa onde Darcy estava abrigada, em São Bernardo do Campo, levando o bebê, que havia sido retirado da residência da família. Ela havia saído em busca de ajuda para libertar o marido. Os policiais derrubaram a porta e um deles, irritado com o choro do menino, que ainda não havia sido alimentado, atirou-o ao chão, provocando ferimentos em sua cabeça. Com a prisão de Darcy, também o bebê foi levado ao Dops, onde chegou a ser torturado com pancadas e choques elétricos. Depois de ganhar a liberdade, a família mudou várias vezes de cidade, em busca de um recomeço. Dermi e Darcy conseguiram retomar a vida e tiveram outros três filhos, mas Carlos Alexandre nunca se recuperou. Aos 37 anos, teve reconhecida sua condição de vítima da ditadura e recebeu uma indenização, mas nunca pôde trabalhar regularmente. Aprendeu a lidar com computadores, mas vivia atormentado pelo trauma.

Ainda menino, segundo relato da família, sofria alucinações nas quais ouvia o som dos trens que trafegavam na linha ferroviária atrás da sede do Dops. Para não esquecer O jornalista Dermi Azevedo poderia ser lembrado pelas Redações dos jornais no meio das especulações sobre a renúncia do Papa Bento 16. Ele é especialista em Relações Internacionais, autor de um estudo sobre a política externa do Vaticano e doutor em Ciência Política com uma tese sobre igreja e democracia. Poderia também ser uma fonte para a imprensa sobre a questão dos direitos humanos, à qual se dedicou durante quase toda sua vida, tendo atuado em entidades civis e organismos oficiais. Mas seu testemunho como vítima da violência do Estado autoritário é a história que precisa ser contada, principalmente quando a falta de memória da sociedade brasileira estimula um grupo de jovens a recriar a Arena, o arremedo de partido político com o qual a ditadura tentou se legitimar. A morte de Carlos Alexandre é a coroa de espinhos numa vida de dores insuperáveis, e talvez a imposição de tortura a um bebê tenha sido o ponto mais degradante no histórico de crimes dos agentes do Dops. A imprensa não costuma dar divulgação a casos de suicídio, por uma série controversa de motivos. No entanto, a morte de Carlos Alexandre Azevedo suplanta todos esses argumentos. Os amigos, conhecidos e ex-colegas de Dermi Azevedo foram informados da morte de seu filho pelas redes sociais, por meio de uma nota na qual o jornalista expressa como pode sua dor. A imprensa poderia lhe fazer alguma justiça. Por exemplo, identificando os integrantes da equipe que na noite de 13 de janeiro de 1974 saiu à caça da família Azevedo. Contar que Dermi, Darcy e seu filho foram presos porque os agentes encontraram em sua casa um livro intitulado Educação Moral e Cívica e Escalada Fascista no Brasil, coordenado pela educadora Maria Nilde Mascellani. Era um estudo encomendado pelo Conselho Mundial de Igrejas. Contando histórias como essa, a imprensa poderia oferecer um pouco de luz para os alienados que ainda usam as redes sociais para pedir a volta da ditadura. Texto publicado no site do Observatório da Imprensa. O título é da publicação original.


Fernando Lyra, o homem que aboliu a censura

te dia, aos 75 anos, do político e ex-Ministro da Justiça, o pernambucano Fernando Lyra, figura da maior importância na resistência democrática, sobretudo nas ações que culminaram com a reconquista das liberdades no País, em 1985. Enfrentando problemas cardíacos, nos últimos 15 anos, agravados com complicações no seu sistema urinário, ele esteNomeado Ministro da Justiça no Governo Sarney, o parlamentar pernambucano derrubou ve internado no Instituto do Coração-Inlogo após assumir o sistema instituído em 1973 pelo seu antecessor Alfredo Buzaid. cor, em São Paulo, durante várias semanas, e não resistindo à grave situação a FERNANDO RODRIGUES/AGÊNCIA O GLOBO POR C LÁUDIA SOUZA que chegara veio a falecer. Filho de uma família de políticos, formou-se em Direito pela FaculdaEm abril de 1985, três meses após assude de Caruaru (turma de 1964), indo mir o Ministério da Justiça, para o qual fora exercer sua profissão no Recife, onde indicado pelo Presidente eleito Tancredo envolveu-se nos movimentos e Neves e nomeado pelo Presidente José ações contra a ditadura militar. Sarney, o Deputado Fernando Lyra aboliu Um dos fundadores do MDB a censura instituída no regime militar, em em Pernambuco, entrou na vida 1973, por um de seus antecessores, Alfrepública para disputar uma cadeira do Buzaid. Com esse ato, Lyra abriu camina Assembléia Legislativa, no pleinho para que logo depois a Assembléia to de 1966, elegendo-se deputado Nacional Constituinte incluísse na nova estadual. Graças à sua combativiCarta Constitucional disposição que veda dade e coragem no enfrentamenexpressamente qualquer forma de censuto do regime autoritário, fez agresra política, artística e ideológica. siva campanha, no pleito de 1970, Nascido no Recife e formado em 1964 conquistando minha adesão e um pela Faculdade de Direito de Caruaru, enorme empenho meu para ajudáMunicípio onde sua família tinha granlo a se tornar um dos nossos reprede prestígio político, Lyra morreu em 14 sentantes na Câmara Federal. de fevereiro, aos 74 anos, no Instituto do Pessoa fraterna e sempre aberta Coração-Incor, em São Paulo, no qual Um momento histórico da redemocratização: Fernando Lyra, ladeado por Antônio Houaiss (à esquerda), Darcy Ribeiro e Pompeu de Souza, anuncia o fim da censura no Brasil. ao diálogo e à negociação, Fernanestava internado desde 5 de janeiro, com do Lyra tinha como outra de suas quadro de insuficiência cardíaca congesinigualáveis características manter uma dade de imprensa. Ele não se curvou para tiva grave e infecção sistêmica. no ministério –, contou que nunca deipostura sempre democrática ao tratar das deixar de lado seus ideais. Exemplo de hoO velório foi realizado no dia 15, no xou de tê-lo como conselheiro político. questões mais delicadas e divergentes. mem público e também exemplo de homem Plenário da Assembléia Legislativa de “Fernando Lyra foi um político de Um dos criadores e líderes do Grupo totalmente dedicado à família”. Pernambuco, com a presença de dezenas princípios, que fazia política com objetiAutêntico, do MDB, teve uma trajetória de políticos pernambucanos e muitos vos, com propósitos, não com interesses Presidente lamenta das mais ricas, exercendo vários mandaamigos, que também acompanharam o menores. Ele sabia onde queria chegar e Para a Presidente Dilma Rousseff a tos de deputado federal e foi coordenador enterro, transcorrido em clima de emosua primeira meta sempre foi a democramorte de Fernando Lyra representa uma político na campanha de Tancredo Neves ção no Cemitério Morada da Paz, no cia, uma vez que começou na política grande perda para a democracia brasileira: rumo ao Planalto em 1985. Município de Paulista. combatendo o regime militar. Foi um “Primeiro Ministro da Justiça da redemoAtingiu seu apogeu ao ser nomeado “Ele fez política com paixão. Marcou grande articulador político e tinha a hacratização, Lyra foi o responsável pelo fim Ministro da Justiça, cargo no qual teve sua geração e outras também. O Brasil bilidade necessária para se chegar aos da censura oficial, passo fundamental na participação decisiva em eliminar os perde um grande pernambucano, um objetivos propostos. reconquista da liberdade de expressão no absurdos implantados pela ditadura mihomem feliz, sempre lutando pela demoCristovam Buarque lembrou ainda País. Exímio articulador, Lyra foi um dos litar-civil e se tornou um dos responsáveis cracia”, disse o Governador de Pernamque, como Ministro, Fernando Lyra parexpoentes da formação da Aliança Demodiretos pela reconquista da legalidade do buco, Eduardo Campos. ticipou de decisões que mudaram o País, crática. Teve atuação relevante na AssemPartido Comunista Brasileiro. João Lyra Neto, Vice-Governador de como o fim da censura e a adoção do bléia Nacional Constituinte e represenNos seus mais de 40 anos na vida púPernambuco, irmão de Fernando Lyra, famultipartidarismo. “Com imensa generotou com brilho os eleitores de Pernambublica, exerceu seu último mandato parlalou sobre o legado político e o papel do exsidade em nenhum momento Fernando co na Câmara dos Deputados por 28 anos. mentar até 1998, quando não mais quis Ministro na História do Brasil: “Ele foi um Lyra colocava seu interesse pessoal na Em nota, o ex-Presidente Lula afirmou disputar eleição, acentuando que seu esgrande lutador pela liberdade e importanfrente do interesse do grupo ao qual ele que o ex-ministro simboliza um importilo de atuação não tinha mais espaço no te peça no processo de redemocratização pertencia, fosse um partido político, fostante referencial político no Brasil: “FerCongresso. do Brasil. Na eleição de Tancredo Neves se o grupo dos seus amigos”. nando Lyra foi um grande pernambucaDesde 2003, passou a presidir a importeve a missão de garantir a liberdade de Associaram-se à homenagem, em aparno e brasileiro que lutou de forma incantante Fundação Joaquim Nabuco (Funimprensa e lutou para a manifestação do tes, os Senadores Vital do Rêgo (PMDBsável para o avanço da democracia: “Tive daj), órgão do Ministério da Educação. pensamento livre em nosso País. Um dos PB) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP). o prazer de estar ao lado dele muitas veChocado com a notícia de seu desapamaiores legados que ele deixou, além de sua zes ao longo de sua bela trajetória e tamResistência recimento, em meu nome pessoal e do correção, foi o compromisso com o povo bém no Governo, quando presidiu a FunO Presidente nacional do Partido PopuDiretório Nacional do PPS, transmito à brasileiro e a luta pela liberdade”. dação Joaquim Nabuco”. lar Socialista (PPS), Deputado federal viúva, filhos e netos e aos seus irmãos e Raquel Lyra (PSB), sobrinha do ex-MiRoberto Freire(SP) divulgou comunicado, demais familiares nossos mais fraternos nistro, acentuou na trajetória do tio o forLembrança de Buarque em nome do partido, sobre a importância pêsames e os melhores sentimentos de talecimento do ideal democrático: “Ele foi O Senador Cristovam Buarque (PDTde Fernando Lyra na resistência democráuma paz de espírito para que resistam à um exemplo de pessoa que conseguiu parDF) apresentou requerimento de hometica e nas ações pela conquista das liberdaimensa perda de ente tão querido. ticipar de um processo tão importante na nagem a Fernando Lyra. O parlamentar, des. Foi este o teor da declaração do PPS: Brasília, 14 de fevereiro de 2013, (a) redemocratização do País. Lutou pela demoque ingressou na política pelas mãos do “Fernando Lyra: Uma enorme perda Deputado federal Roberto Freire, Presicracia para que pudéssemos estar aqui hoje ex-Ministro – foi seu chefe de gabinete O Brasil está de luto com a morte, nesdente nacional do PPS.” falando nas tribunas, nas rádios, com liberJORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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VIDAS

O jornalismo sem barreiras de Geraldo Galvão Ferraz

José Ângelo, o pernambucano do Espírito Santo

Morto no Carnaval, filho da musa do modernismo Patrícia Galvão (Pagu) se destacou como um dos mais importantes críticos de arte e inventivos editores da imprensa nacional nos últimos 40 anos. REPRODUÇÃO UNISANTA

P OR G ONÇALO J UNIOR

Quando conheci pessoalmente o jornalista Geraldo Galvão Ferraz, em maio de 1998, havia marcado uma entrevista na Redação do Suplemento Feminino, do jornal O Estado de S.Paulo, onde trabalhava como editor. Kiko, como era carinhosamente conhecido por familiares e amigos, trabalhava cercado de mulheres e pautava todas elas para escreverem sobre o mundo das mulheres. Também editava seus textos, sem qualquer dificuldade. De cultura vastíssima, conhecia também a alma feminina como poucos e parecia tranqüilo ao cuidar do tradicional caderno. Era um cavalheiro, um homem doce, gentil, que conquistava qualquer um pelo aperto de mão seguido de um sorriso afável e largo. Eu fazia uma reportagem para a Gazeta Mercantil e ele conversou comigo por três horas sobre os difíceis anos da ditadura militar. Paciente, Kiko recordou-me fatos de 25 anos antes, quando ele havia feito solitariamente uma revolução nas histórias em quadrinhos no Brasil como editor do gibi Grilo, da editora Art & Comunicação, proibido de circular pela ditadura militar em agosto de 1973, por causa dos quadrinhos de artistas de vanguarda que ele havia lançado no País e chocado a censura: Robert Crumb (Mr. Natural), Guido Crepax (Valentina), Wolinski (Paulette), Pfeiffer, Schultz (Peanults) e muitos outros. Na época, a revista fazia parte de uma cooperativa de jornalistas que militava contra o regime militar e editava também Bondinho, o jornal que se tornou o porta-voz da contracultura em São Paulo. Desde então nos falamos diversas vezes, em eventos ou por telefone – a última, há dois anos, quando ele editava a revista literária Cult. Kiko tinha 72 anos e morava em São Sebastião, interior paulista. Sofria de diabetes e hipertensão, foi internado e não resistiu a uma septicemia na noite da sexta-feira, 9 de fevereiro, início de Carnaval. Editor inovador, crítico de literatura, cinema e quadrinhos – tornou-se um dos primeiros jornalistas do País a escrever regularmente sobre o tema, repórter para grandes matérias de fôlego e dono de um estilo refinadíssimo de escrever, sem rebuscamento, porém, Geraldo Galvão Ferraz era do tipo de profissional raro em sua área, desprovido de preconceito, daqueles que gostam de todas as formas de arte, eruditas ou populares, sem rotulá-las 46

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Em 2012, Geraldo Galvão Ferraz organizou a exposição que comemorou o centenário de Pagu, sua mãe.

com algum preconceito. Pedantismo passava longe de sua máquina de escrever e, depois, do seu computador. Justo ele, filho de um casal dos mais eruditos da literatura e do jornalismo brasileiros – era o caçula do jornalista Geraldo Ferraz e da jornalista e escritora Patrícia Galvão, musa do movimento modernista das décadas de 1920 e 1930 e uma das pioneiras da emancipação da mulher no Brasil. Kiko trabalhou nos primeiros tempos do Jornal da Tarde – foi um de seus fundadores, na década de 1960 –, nas revistas Veja, Playboy e IstoÉ, entre outros, onde exerceu várias funções, de repórter a editor. Recentemente, cuidou por um bom tempo da revista Cult. Deixou os livros Ferramenta de Progresso (Câmara Brasileira do Livro) e A Empolgante História do Romance Policial (Nova Cultural) – o tema era uma de suas grandes paixões. Foi co-autor de Viva Pagu – Fotobiografia de Patrícia Galvão, ao lado de Lúcia Maria Teixeira Furlani. Coordenou ainda o site www.pagu.com.br e o Centro de Estudos Pagu Unisanta. “Ele entendia de vários assuntos e escrevia sobre eles com propriedade, era dono de um texto delicioso”, contou Luiz Zanin, de O Estado de S.Paulo, que trabalhou com Kiko no início dos anos 1990, no Caderno 2, sob comando de José Onofre e Marta Góes, numa época bastante criativa do jornalismo cultural, segundo ele. Os dois estiveram juntos também num projeto de suplemento cultural que acabou não saindo por causa do Plano Collor, que confiscou a poupança e os

recursos de todos os brasileiros em março de 1990. “Estavam juntos na jogada, além de Kiko, Zé Onofre, Peninha, Ruy Castro, José Castello, Moacir Amâncio e eu. As reuniões, meio clandestinas, eram na casa de Ruy Castro, que então morava em São Paulo. Queríamos fazer o melhor suplemento de cultura do mundo, mas acabou não dando certo”, recordou Zanin. Segundo ele, o colega tinha humor, “outra qualidade brasileira que também está se perdendo.” Lúcia Maria Teixeira Furlani, biógrafa de Pagu e Presidente da Universidade Santa Cecília (Unisanta), em entrevista ao portal da instituição, afirmou que o falecimento do amigo e jornalista cultural foi muito sentido. “Um grande jornalista, editor de alguns dos principais veículos do Brasil e que também chegou a ser coordenador do Centro de Estudos Pagu Unisanta. Kiko foi um grande amigo, desde nosso primeiro contato, em 1988, quando lancei meu primeiro livro sobre Pagu. Ele me entrevistou para a revista Cláudia, da qual era editor, e, a partir daí, participamos de muitos projetos juntos. Ele me chamava carinhosamente de Miss Lucy. Ele explicou que, como nos romances policiais, Miss Lucy era a identidade da detetive que desvendava o passado da mãe, elucidando a verdade e os fatos escondidos ou deturpados durante tanto tempo.” Para Lúcia Maria, inteligente e dono de grande conhecimento, Kiko tinha sempre uma observação perspicaz sobre os fatos da vida e da cultura, o que se refletia em seus textos.

O jornalista e Conselheiro da ABI José Ângelo da Silva Fernandes faleceu em decorrência de problemas cardíacos e pulmonares no dia 16 de janeiro. O sepultamento de José Ângelo, que presidia a Associação EspíritoSantense de Imprensa - AEI e o Sindicato das Empresas de Jornais, Periódicos, Revistas e Similares no Estado do Espírito Santo - Sindjores, aconteceu no dia 17 de janeiro, no Cemitério Jardim da Paz, no Município de Serra, Espírito Santo. Ângelo Fernandes nasceu no Município de Serrinha, em Pernambuco, em 18 de novembro de 1940. Antes de se dedicar ao Jornalismo, foi jogador de futebol em Pernambuco e em Minas Gerais, com passagem pelo AméricaMG. Em Vitória, Espírito Santo, para onde se mudou, fundou o Sindjores, em 1996, e a editora Talismã Gold, da qual era diretor. Filiado à ABI desde 2007, José Ângelo teve atuação destacada no Conselho da ABI e na Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, de que era membro.

Carlos Felippe, o esportista A ABI perdeu em 12 de dezembro um dos mais ativos membros do seu Conselho Deliberativo e de sua Comissão de Sindicância: o jornalista Carlos Felippe Meiga Santiago, que se destacou na atividade profissional por sua competência na cobertura esportiva. Filiado à ABI desde 1971, Carlos Felippe teve passagens pela TV Tupi e pelos jornais O Globo, Jornal dos Sports, Diário de Notícias, O Jornal, Correio da Manhã e Última Hora, onde foi colunista. Ele foi ainda um dos fundadores da Associação dos Cronistas Esportivos do Rio de Janeiro-Acerj. Santiago fora internado em julho para uma cirurgia na coluna, mas devido a uma série de intercorrências permaneceu internado durante 165 dias. Em sua carreira, atuou ainda como assessor de imprensa do Estado do Rio de Janeiro, na década de 1980, e fez parte do Comitê de Imprensa da Assembléia Legislativa do Estado. Carlos Felippe era membro da Comissão de Sindicância da ABI, que tem entre outros encargos a apreciação de propostas de filiação à Casa. Ele deixa esposa, Célia Regina, e os filhos Marcelo e Márcio Santiago.


Fritz Utzeri, a luta perdida BERG SILVA/AGÊNCIA O GLOBO

O jornalista e escritor Fritz Utzeri, de 68 anos e que dedicou mais de 50 anos de sua vida ao jornalismo, morreu no dia 4 de fevereiro no Rio, após três anos de luta contra um tipo raro de linfoma. Fritz nasceu na cidade de Timmendorferstrand, no norte da Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, sob o nome de Fritz Carl, herdado do pai alemão morto pela explosão de uma bomba durante a guerra na Polônia. Em 1952, aos sete anos de idade, mudou-se para o Brasil com a mãe e o padrasto. Como jornalista, começou como repórter estagiário do Correio da Manhã, mas foi no Jornal do Brasil que despontou, em 1968. Ao longo dos anos, foi repórter especial do Jornal do Brasil e correspondente nas cidades de Nova York e Paris. De Paris voltou para o JB e, em seguida, trabalhou como editor de Ciência e Tecnologia da TV Globo, onde, mesmo depois de sair, participou da edição especial do programa Globo Repórter sobre o Caso Riocentro. Com Heraldo Dias, com quem cobriu o episódio, ajudou a desvendar o desaparecimento e assassinato do Deputado Rubens Paiva. Fritz trabalhou, também, como Diretor de Comunicação da Fundação Roberto Marinho e foi Editor de Opinião de O Globo e colunista do site ABI Online. Foi autor dos livros Aurora (ficção) e Dancing Brasil (crônicas) e editou o seu blog “Montbläat”.

O amigo de Timmendorferstrand P OR S ERGIO F LEURY

De médico e louco todos nós temos um pouco, diz o ditado. Médico ele já era, formado pela Uerj com opção pela Psiquiatria, profissão que não chegou a exercer e que abandonou para ser jornalista. Louco alguns pensavam que era, pelo jeito vibrante de ver e dizer as coisas. Na verdade, ele era um grande boa-praça, um amigo, uma figuraça que conquistava as pessoas pela maneira simples, inteligente e direta de se comunicar com a vida. Por onde passou usou seu jeito informal de ver os problemas que, de uma forma incomum, rápida e precisa, procurava resolver. Era um descomplicador de coisas, inclusive da própria história iniciada há 68 anos na cidade de Timmendorferstrand, província de Sleswig Holstein, Norte

da Alemanha, um “balneário ipanemense”, como sempre comparou. Ele nasceu Fritz Carl, nome herdado do pai alemão que não chegou a conhecer porque morreu em sua motocicleta com side car na explosão de uma bomba durante a guerra na Polônia, no dia 11 de setembro de 1944, quatro meses antes do seu nascimento (10 de janeiro de 1945). Sua mãe Elza, italiana, já tinha fugido para o Norte da Alemanha, como fizeram todas as mulheres grávidas naquela época de guerra. Certamente essa aventura foi a primeira de suas muitas estórias de vida! Com dois anos de idade veio para a América Latina com a mãe, direto para Assunção, Paraguai. Ao Brasil chegou com sete anos (1952) indo morar no bairro paulista de Higienópolis, mais precisamente na Rua São Vicente de Paula, 152. Mas não parou ali: veio para o Rio de

Janeiro, foi para Lima (Peru), La Paz (Bolívia), Santiago (Chile) e Buenos Aires (Argentina), acompanhando a mãe e o padrasto italiano Otello, que na verdade o criou e se meteu a montar fábricas e hidroelétricas pelo continente latinoamericano. Dessas andanças latinas pegou o hábito de entremear expressões em espanhol – um dos cinco idiomas que dominava - no meio de suas animadas conversas. De volta ao Rio, foi morar na Tijuca, anos 1960/1970, época em que o bairro ainda era aprazível. Foi na então bucólica Avenida Paulo de Frontin, repleta de flamboyants, que passeava com a namorada Liège, depois sua mulher por mais de 50 anos, e com a qual teve dois filhos, Ana e Pedro (de quem teve um casal de netos, Gabriela-Gabi e André). A troca da Psiquiatria pelo jornalismo no ano de 1967/68 lhe rendeu um co-

mentário que fez parte do seu folclore: “Se continuasse médico e fosse para uma cidadezinha do interior, abrisse um consultório, colocasse o diploma na parede e na porta o nome D r.Fritz, ficaria rico e famoso. Iam me confundir com o médium”. Como jornalista, começou repórter estagiário do Correio da Manhã, época em que viveu uma de suas ótimas histórias. Um dia entrou no elevador da revista Manchete, na Glória, junto com o dono Adolpho Bloch, que, pensando falar com um dos seus jornalistas, gritou: “O senhor está demitido por não usar gravata”. Fritz com seu ar debochado retrucou: “Ora, isso é impossível, eu não sou seu funcionário!” E saiu gargalhando “a la Fritz”... Ao naturalizar-se brasileiro, em 1970, de Fritz Carl, registrado na rebuscada certidão de nascimento alemã, passou a chamar-se Federico Carlo Utzeri. Mas ele já era mesmo o Fritz Utzeri, nome com o qual se firmou nas funções de repórter especial do Jornal do Brasil e de seu correspondente nas cidades de Nova York (1982/1985) e Paris (1985/1989). De Paris voltou para o JB, mas foi logo convocado para ser o editor de Ciência e Tecnologia da TV Globo, onde mesmo depois de sair matou as saudades do telejornalismo ao participar da edição especial do programa Globo Repórter sobre o Caso Riocentro, assunto por ele apurado junto com o falecido repórter Heraldo Dias e que rendeu à equipe do JB o Prêmio Esso de Jornalismo. Com o companheiro ainda ajudou a desvendar o caso do desaparecimento e assassinato do Deputado Rubens Paiva. No período 1991/1995 trabalhou como Diretor de Comunicação na multinacional de telecomunicações Alcatel, mas a vida na Ponte-Aérea o deixava longe da família e dos seus brinquedinhos: as coleções de trens elétricos, de livros – era um leitor voraz –, de antigos lps e cds, de carros em miniatura e os de verdade, como um MG 1966, original, que conservou por anos na garagem junto a um Karman-Ghia e a um Alfa Romeo ‘Spider”. Trabalhou também como Diretor de Comunicação da Fundação Roberto Marinho e Diretor de Redação do JB na fase semifinal da edição impressa. Escreveu os livros Aurora (ficção) e Dancing Brasil (crônicas) e editou o seu blog “Montbläat”. Nos últimos três anos lutou bravamente contra um raro linfoma (câncer nos gânglios) que nem um transplante de medula e remédios experimentais lhe deram a confortável sobrevida sem dor. Até nesse período muito difícil sua fome de informação aliada à memória privilegiada fazia que esse germano-ítalo-carioca sempre tivesse um “causo” a contar. Era imbatível em cultura geral ou na do tipo inútil, do gênero “você sabia”? Pudera: para quem nasceu em Timmendorferstrand nada lhe era impossível, inclusive “desaparecer” nesta manhã deixando uma profunda saudade em todos nós. Esse era o nosso amigo Fritz. JORNAL DA ABI 387 • FEVEREIRO DE 2013

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