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3 A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DEVER DE INDENIZAR DO ESTADO

3 A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DEVER DE INDENIZAR DO ESTADO

3.1 Breve histórico da responsabilidade civil do Estado

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Inicialmente, antes de proceder à análise do Recurso Extraordinário 580.252/MS, convém abordar sucintamente acerca da evolução da responsabilidade civil do Estado. A primeira teoria adotada, conhecida como “Teoria da Irresponsabilidade”, remonta à época dos Estados absolutistas, na qual a figura do Monarca confundia-se com o próprio Estado, bem como o poder estatal era encarado como divino, ideias que deram origem ao postulado de que o rei não podia errar (“the king can do no wrong”)95 . Para esta tese, não seria possível responsabilizar o Estado pelos atos de seus agentes, sob pena de colocá-lo no mesmo nível dos seus súditos, pondo em xeque a ideia de soberania. A partir do século XIX, sobretudo com o advento das Revoluções Liberais e o surgimento do Estado de Direito, a tese da irresponsabilidade foi superada, iniciandose a fase da responsabilidade civil do Estado com fundamento na culpa dos agentes públicos, baseada nos princípios do Direito Civil. Esta, inicialmente, procurou distinguir os atos praticados pelo Estado em atos de império e atos de gestão. Os primeiros seriam aqueles impostos unilateral e coercitivamente aos administrados, regidos por um direito especial, que, em virtude da posição de supremacia do Estado, não possibilitavam a responsabilização deste. Os últimos, por sua vez, seriam os praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, cuja responsabilização seria possível, acaso comprovados a conduta oficial, o dano, o nexo de causalidade e a culpa do agente público96 . Posteriormente, ganhou destaque a teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva, a qual buscou equiparar a responsabilidade do Estado à dos particulares, de modo que aquele só indenizaria os prejudicados, uma vez

95 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. 6. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. 96 Alexandre, Ricardo; DEUS, João de. Direito Administrativo. 4. ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.

provado que o agente público agiu com dolo (intenção) ou culpa (imprudência, negligência ou imperícia)97 . No âmbito das teorias publicistas, segundo a qual a responsabilidade estatal não poderia ser regida pelos princípios do Código Civil, surgem as seguintes: teoria da culpa do serviço98 e teoria do risco, esta subdivida nas modalidades risco administrativo e risco integral. Segundo a primeira, que procurou afastar a ideia de culpa do agente público, para que houvesse a responsabilidade civil do Estado, bastaria à vítima comprovar que o serviço público não funcionou, funcionou atrasado ou funcionou mal. Sendo assim, ao invés de provar que o agente público agiu com dolo ou culpa, bastaria comprovar a culpa da Administração Pública, a qual é presumida diante destas três hipóteses. Por fim, formulou-se a teoria do risco, lastreada na ideia de que a atuação estatal envolve um risco de dano, que lhe é inerente, em virtude de suas numerosas e variadas atividades. Ademais, em virtude de sua posição de supremacia, que lhe assegura poderes e prerrogativas, o ente estatal naturalmente gera riscos aos particulares, não obstante realize suas atividades a fim de atender os anseios destes. Desse modo, se todos se beneficiam das atividades administrativas, eventuais danos causados devem ser igualmente compartilhados entre a coletividade99 . Para essa teoria, abandona-se a ideia de culpa, invocando-se o chamado nexo causal ou nexo de causalidade entre a ação/omissão administrativa e o dano sofrido pela vítima. Em outras palavras, demonstrado o nexo de causalidade, o Estado deve ressarcir100 . Conforme mencionado, a teoria do risco se apresenta nas modalidades risco administrativo e risco integral. No risco administrativo, não há responsabilidade civil genérica e indiscriminada, na medida em que encontra limites101. Com efeito, admite as chamadas causas excludentes de responsabilidade do Estado, quais sejam: culpa da vítima, culpa de terceiro e caso fortuito/força maior.

97 Alexandre, Ricardo; DEUS, João de. Op. cit. 98 Também conhecida por teoria da culpa administrativa, teoria do acidente administrativo ou teoria da culpa anônima do serviço público. 99 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 21. ed. – Belo Horizonte: Fórum, 2018. 100 MEDAUAR, Odete. Op cit. 101 GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo - 11. ed., rev. e atual. - São Paulo, Saraiva, 2006. apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo – 32. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018.

No risco integral, por sua vez, estas não são admitidas, atribuindo-se ao Estado o papel de “segurador universal”, o qual deverá responder pelos danos eventualmente causados, independentemente da ocorrência das circunstâncias que normalmente seriam consideradas excludentes de responsabilidade, cuja aplicação é restrita a situações excepcionais. Hodiernamente, contudo, prevalece a fase da responsabilidade civil objetiva do Estado, dispensando a vítima de comprovar a culpa (individual ou anônima) para receber a reparação pelos prejuízos sofridos, bastando que comprove certos requisitos, os quais serão delineados mais adiante.

3.2 A responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro

A Constituição Federal de 1988 disciplina a Responsabilidade Civil do Estado em seu artigo 37, §6º, o qual diz:

“As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Pelo teor do dispositivo constitucional supra depreende-se que o ordenamento jurídico pátrio adota, como regra, a teoria da responsabilidade objetiva em relação às pessoas jurídicas de direitos públicos e das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos, bem como a responsabilidade pessoal e subjetiva dos seus agentes públicos. Conforme pondera Rafael Carvalho Rezende Oliveira, a responsabilidade civil do Estado apoia-se em dois fundamentos importantes: teoria do risco administrativo e repartição dos encargos sociais102 . A teoria do risco administrativo, conforme explicitado anteriormente, pressupõe que a atuação estatal envolve um risco que lhe é inerente, logo atribui-se ao Estado a responsabilidade pelo risco criado pela sua atividade administrativa, tendo por base os princípios da equidade e da igualdade.

102 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 562/563; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 504-507, apud OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Op. cit.

Ainda segundo a doutrina de Rafael Oliveira, tomando como base o princípio da isonomia, a adoção do princípio da repartição dos encargos sociais relaciona-se ao fato de que a coletividade, verdadeira beneficiária da atividade administrativa, tem o ônus de ressarcir aqueles que sofreram danos em razão dessa mesma atividade103 . Causado o dano, o Estado responde como se fosse uma empresa de seguro em que os segurados seriam os contribuintes que, pagando os tributos, contribuem para a formação de um patrimônio coletivo104 . Sobre a temática, Carvalho Filho, citando os ensinamentos de Cavalieri Filho, acrescenta:

“Em tempos atuais, tem-se desenvolvido a teoria do risco social, segundo a qual o foco da responsabilidade civil é a vítima, e não o autor do dano, de modo que a reparação estaria a cargo de toda a coletividade, dando ensejo ao que se denomina de socialização dos riscos – sempre com o intuito de que o lesado não deixe de merecer a justa reparação pelo dano sofrido”105 .

Há, ainda, a teoria do risco integral, igualmente abordado alhures, segundo a qual o Estado assume integralmente o risco oriundo das atividades por ele desenvolvidas ou fiscalizadas, sem que se possa alegar excludentes do nexo de causalidade, característica que a diferencia da teoria do risco administrativo. Ressaltese que tal teoria é aplicada apenas de forma excepcional no âmbito jurídico brasileiro – danos ambientais e nucleares, e.g. –, pois, do contrário, estabelecer-se-ia uma socialização de danos inevitáveis ao Poder Público, ao arrepio da ordem constitucional vigente. Atualmente, portanto, a regra no ordenamento jurídico pátrio é a responsabilidade civil objetiva do Estado, de índole extracontratual106, prevista no art. 37, § 6º, da CF, informada pela teoria do risco, cujos pressupostos encontram-se abaixo elencados.

3.2.1 Pressupostos

103 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Op. cit. 104 CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1970, v. 8, apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. Ed. 30. Rev. Atual. e Ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 105 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. Malheiros, 5. ed., 2004. apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. 106 Diferentemente da responsabilidade contratual, que pressupõe um vínculo negocial específico e a inexecução do Estado no bojo deste, a responsabilidade extracontratual está relacionada aos danos causados pelo ente estatal a terceiros, aos cidadãos em geral.

A principal característica da responsabilidade objetiva é a desnecessidade da comprovação do elemento subjetivo, a culpa. Portanto, para que reste configurada a responsabilidade civil do Estado, basta que estejam presentes três elementos: o fato administrativo (conduta), o dano e o nexo causal. Nesse sentido:

(...) a responsabilização do Estado requer apenas: conduta oficial, existência de dano (patrimonial, moral ou estético) e nexo causal. Não importa se houve culpa do agente público ou se a Administração Pública praticou um ato lícito ou ilícito. Para a responsabilização civil do Estado é necessária apenas a coexistência dos três elementos citados107 .

O primeiro pressuposto é o fato administrativo, consubstanciado numa conduta comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, atribuída ao Poder Público, do qual se depreende que o Estado responde pelos danos que os seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros, ainda que atue fora de suas funções, mas em razão dela108 . O segundo deles é o dano, que nada mais é do que uma lesão a determinado bem jurídico da vítima, podendo ser material (patrimonial) ou moral (extrapatrimonial). O primeiro ocorre quando o fato atinge o patrimônio do indivíduo, enquanto o segundo relaciona-se à esfera interna do lesado, causando-lhe sofrimento. Logo, o sujeito é civilmente responsável quando sua conduta provocar dano a terceiro, independentemente se material, moral ou estético. Di Pietro acrescenta que somente se pode aceitar como pressuposto da responsabilidade objetiva a prática de ato antijurídico se este, mesmo sendo lícito, for entendido como ato causador de dano anormal e específico a determinadas pessoas, rompendo o princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais. Por outras palavras, ato antijurídico, para fins de responsabilidade objetiva do Estado, é o ato ilícito e o ato lícito que cause dano anormal e específico109 . O terceiro e último pressuposto é o nexo causal, que pode ser conceituado como a relação de causa e efeito entre a conduta estatal e o dano. Nesse sentido, é preciso demonstrar que o prejuízo sofrido originou-se de um fato administrativo imputável ao Estado.

107 ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito administrativo. Op. cit. 108 Saliente-se, por oportuno, que, diferentemente da responsabilidade do ente estatal que é objetiva, a responsabilidade dos agentes públicos é pessoal e subjetiva, sendo imprescindível a comprovação da culpa. 109 DI PIETRO, Maria Sylvia. Op. cit.

No tocante a este último pressuposto, cumpre elucidar que a responsabilidade civil objetiva informada pela teoria do risco administrativo, adotada como regra em nosso ordenamento jurídico, admite a existência das chamadas causas excludentes do nexo de causalidade. São elas: fato exclusivo da vítima, fato de terceiro e caso fortuito ou força maior. Por meio destas, o Estado pode eximir-se da responsabilidade nas ações indenizatórias, acaso demonstre o rompimento do nexo causal. Nessas situações, rompido o nexo de causalidade, não há ato ou fato administrativo imputável ao Poder Público, não se podendo responsabilizá-lo, desta forma, por eventos exclusivamente atribuídos à vítima, ao terceiro, ou à natureza, bem como por aqueles imprevisíveis ou previsíveis, mas de consequências inevitáveis. Por fim, preenchidos os pressupostos supramencionados, quais sejam: conduta, dano e nexo causal, patente a caracterização da responsabilidade da Administração, que deverá indenizar o lesado pelos danos sofridos, não havendo necessidade de investigar se a conduta administrativa foi, ou não, permeada pelo elemento culpa110 .

3.3 Responsabilidade Civil por Omissão: responsabilidade objetiva ou subjetiva?

O Estado poderá ser responsabilizado civilmente em razão de danos causados a particulares decorrentes de ação ou omissão. Quando a conduta é comissiva, a responsabilidade é objetiva e regida, como regra, pela Teoria do Risco Administrativo, restando configurada quando presentes os pressupostos acima delineados, quais sejam: a conduta, o dano e nexo causal. Todavia, em casos de atuação omissiva estatal, faz-se mister distinguir se a conduta omissiva constitui fato gerador da responsabilidade civil, uma vez que somente quando o Estado se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano, é que será responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos111 . Nesses casos, a doutrina e a jurisprudência divergem sobre a natureza da responsabilidade civil. Há 3 entendimentos. A primeira posição entende tratar-se de

110 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. 111 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo, Malheiros, 17. ed., 2004. p. 447. apud CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.

responsabilidade objetiva, na medida em que o art. 37, §6º, da Constituição Federal não faz distinção entre ação e omissão, conforme defende Hely Lopes Meirelles112 . Para a massiva doutrina brasileira, entretanto, a responsabilidade Civil nesses casos será a subjetiva, com a necessidade de alegação e demonstração do elemento subjetivo culpa lato sensu (culpa ou dolo). Para os defensores desta posição, o Estado responde desde que o serviço público não funcione, quando deveria funcionar; funcione atrasado; ou funcione mal, aduzindo ainda que o art. 37, §6º, da CF teve o objetivo de restringir a sua aplicação às condutas comissivas. Nesse sentido, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Diógenes Gasparini, Lúcia Valle Figueiredo e Rui Stoco113 . Por fim, a terceira corrente diferencia a omissão genérica da omissão específica, afirmando ser subjetiva a responsabilidade no primeiro caso, e objetiva no segundo. Nesse sentido: Guilherme Couto de Castro e Sergio Cavalieri Filho114 . Imperioso destacar que o Supremo Tribunal Federal, atualmente, adota esta última posição, fazendo distinção entre omissão genérica e específica. Vejamos:

“Diante de tal indefinição, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem se orientando no sentido de que a responsabilidade civil do Estado por omissão também está fundamentada no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, ou seja, configurado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a omissão do Poder Público em impedir a sua ocorrência –quando tinha a obrigação legal específica de fazê-lo – surge a obrigação de indenizar, independentemente de prova da culpa na conduta administrativa, consoante os seguintes precedentes: […] Deveras, é fundamental ressaltar que, não obstante o Estado responda de forma objetiva também pelas suas omissões, o nexo de causalidade entre essas omissões e os danos sofridos pelos particulares só restará caracterizado quando o Poder Público ostentar o dever legal específico de agir para impedir o evento danoso, não se desincumbindo dessa obrigação legal.

Entendimento em sentido contrário significaria a adoção da teoria do

risco integral, repudiada pela Constituição Federal, como já mencionado acima.”115. (g.n.)

112 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit. 113 BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1979. v. II, p. 487; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 966-971; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 652; GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 990; FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 176; STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: RT, 2004. p. 963. apud OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Op. cit. 114 CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 37; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 231. 115 RE 841526, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, j. 30/03/2016, Repercussão geral. Disponível em <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=310025651&ext=.pdf>. Acesso em: 15/06/2019.

Em se tratando de omissões genéricas, a responsabilidade extracontratual segue, em regra, a teoria da culpa administrativa (subjetiva). Nas palavras do mestre Bandeira de Mello:

“A responsabilidade estatal por ato omissivo é sempre responsabilidade por ato ilícito. E, sendo responsabilidade por ilícito, é necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (embora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imprudência ou imperícia (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que constituía em dada obrigação”116 .

Nesse contexto, imprescindível a demonstração da denominada culpa anônima. Isto porque não se pode atribuir à Poder Público responsabilidade por todo e qualquer ilícito ocorrido em seu território, sob pena de torná-lo um garantidor universal, e adotar a teoria do risco integral, afinal os recursos públicos são voltados para atender a necessidade de toda a coletividade. Assim, o Estado apenas responderá – subjetivamente – quando demonstrada a culpa genérica relativa à ausência de medidas para evitar o dano e tal omissão se revele a causa direta e imediata do dano sofrido. Logo, a omissão genérica reside nas hipóteses em que não se pode exigir uma atuação específica da Administração. Diferente é a situação em que o Estado se encontra na posição de garante, o que ocorre nos casos em que a pessoa/bem estiver sob sua guarda direta, havendo o dever específico e individualizado de agir. Nesse sentido, a omissão específica equivale, em verdade, a uma ação, em virtude do dever específico de agir numa dada situação, atraindo a incidência do parágrafo 6º do art. 37 da Constituição da República, e, por conseguinte, a aplicação da responsabilidade objetiva. A omissão específica se dá quando o Estado se encontra na condição de garante (guardião) e, por omissão, cria situação propícia para a ocorrência do evento em situação que tem o dever de agir para impedir o dano àquele que se encontra sob sua custódia. Ou seja, estando o Estado na posição de garante, sua omissão passa a erigir-se como verdadeira causa do dano, já que há o dever específico de cuidado para evitá-lo. Ademais, somente será possível responsabilizar o Estado nos casos de omissão específica, quando demonstradas a previsibilidade e a evitabilidade do dano.

116 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit.

Em outras palavras, a responsabilidade restará configurada nas hipóteses em que o Estado tem a possibilidade de prever e de evitar o dano, mas permanece omisso117 . Exemplos clássicos de omissão específica são os relativos a alunos nas dependências das escolas públicas, pacientes internados em hospitais públicos e presidiários sob a custódia estatal em estabelecimentos prisionais, respondendo o Estado sempre que restar demonstrada sua omissão específica em virtude de um dever individualizado de agir. É exatamente sobre a responsabilidade civil que envolve os presidiários e a superpopulação carcerária, tendo como base o Recurso Extraordinário 580.252/MS, que iremos tratar no capítulo seguinte. Contudo, por sua importância no que pertine à temática em análise, antes de adentrá-la, faz-se mister tecer comentários acerca do dano moral.

3.4 Dano Moral

Como é notório, para que haja reparação, é necessário comprovar o dano sofrido por alguém. Em regra, não há responsabilidade civil sem dano, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial. Sendo o dano extrapatrimonial, sua tutela compensatória se concretiza através da indenização por dano moral, o qual ganhou notoriedade, sobretudo, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que prevê em seu art. 5º, incisos V e X, o seguinte:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Dano moral, segundo a melhor doutrina, nada mais é do que a violação a direitos da personalidade. Em última análise, é a violação da própria dignidade humana. Pode ser conceituado, ainda, como uma lesão a interesse existencial

117 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Op. cit.

concretamente merecedor de tutela. Qualquer ofensa a um bem jurídico de personalidade é séria e, se objetivamente constatada, caracterizará o dano moral118 . Diversamente do dano material que é ressarcido, o dano moral é reparado. Enquanto no ressarcimento é possível o retorno ao estado anterior, ao status quo, na reparação, essa volta ao estágio anterior é absolutamente impossível. Com efeito, para a reparação do dano moral, não há que se estabelecer um valor para a dor ou sofrimento, mas sim um meio para atenuar, em parte, as consequências do prejuízo imaterial. Não há, portanto, uma finalidade de acréscimo patrimonial para a vítima, mas sim de compensação pelos males suportados119 . A reparação, nesses casos, será compensatória, não ressarcitória. Atualmente, vem ganhando destaque no ordenamento pátrio e estrangeiro a ideia de “desmonetarizar” a responsabilidade civil. Em outras palavras, busca-se outros meios e modos para reparar da vítima, além do pagamento em pecúnia, os quais, na maior parte dos casos, satisfazem de forma mais plena os anseios daquela120 . Na doutrina pátria a ideia da compensação in natura foi evidenciada nos termos do Enunciado n. 589, aprovado na VII Jornada de Direito Civil (2015): “A compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retração pública ou outro meio”. Quanto à natureza jurídica da indenização por danos morais, a doutrina e jurisprudência divergem, não existindo unanimidade a respeito, surgindo três correntes na atualidade, esposadas na doutrina de Tartuce da seguinte maneira121:  1.ª Corrente: A indenização por danos morais tem o mero intuito reparatório ou compensatório, sem qualquer caráter disciplinador ou pedagógico. Essa tese encontra-se superada na jurisprudência, pois a indenização deve ser encarada como mais do que uma mera reparação.

118 FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil – Volume Único. – 2. ed. rev, atual. e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2018. 119 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. – 8. ed. rev, atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. 120 SCHREIBER, Andersom. Novos paradigmas da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: São Paulo: Atlas, 2007. apud FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Op. cit. 121 TARTUCE, Flávio. Op. cit.

 2.ª Corrente: A indenização tem um caráter punitivo ou disciplinador, tese adotada nos Estados Unidos da América, com o conceito de punitive damages. Essa corrente não vinha sendo bem aceita pela nossa jurisprudência, que identificava perigos na sua aplicação. Entretanto, nos últimos tempos, tem crescido o número de adeptos a essa teoria.

 3.ª Corrente: A indenização por dano moral está revestida de um caráter principal reparatório e de um caráter pedagógico ou disciplinador acessório, visando a coibir novas condutas. Mas esse caráter acessório somente existirá se estiver acompanhado do principal. Essa tese ainda tem prevalecido na jurisprudência nacional.

Independentemente da natureza jurídica, certo é que o intuito reparatório deve estar sempre presente, sendo o caráter disciplinador de natureza meramente acessória. Por fim, o Superior Tribunal de Justiça entende que, nos casos de lesão a valores fundamentais protegidos pela Constituição Federal, o dano moral dispensa a prova (in re ipsa), presumindo-se o prejuízo. Vejamos:

“sempre que demonstrada a ocorrência de ofensa injusta à dignidade da pessoa humana, dispensa-se a comprovação de dor e sofrimento para configuração de dano moral. Segundo doutrina e jurisprudência do STJ, onde se vislumbra a violação de um direito fundamental, assim eleito pela CF, também se alcançará, por consequência, uma inevitável violação da dignidade do ser humano. A compensação nesse caso independe da demonstração da dor, traduzindo-se, pois, em consequência in re ipsa, intrínseca à própria conduta que injustamente atinja a dignidade do ser humano. Aliás, cumpre ressaltar que essas sensações (dor e sofrimento), que costumeiramente estão atreladas à experiência das vítimas de danos morais, não se traduzem no próprio dano, mas têm nele sua causa direta”122 .

O dano moral caminha atrelado à dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela da pessoa humana, esculpida no art. 1º, inciso III, da CRFB, corolário de todos os direitos da personalidade. Sendo assim, violada a integridade física e psíquica daqueles que estão sob a custódia do Estado, e por conseguinte, reconhecida a lesão aos direitos fundamentais

122 REsp 1.292.141/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.12.2012, publicado no seu Informativo n. 513. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/SearchBRS?b=INFJ&tipo=informativo&livre=@COD=%270513%27>. Acesso em: 20/05/2019.

do preso, patente a obrigação do ente estatal de ressarcir os danos causados, inclusive, morais.