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Mensagens, cifras e desabafos
by AAACM
toajused slabnure. “Que é isto? Enganei-me em qualquer sítio, vou recomeçar” : a mesma coisa e duas, três vezes, sempre a mesma coisa. O Ramos, se calhar perdeu alguma letra, estaria com atenção? ”Oh meu alferes, foi mesmo assim, o gajo até repetiu mais do que uma vez”. “Tá bem, deixa lá”. Com certeza que se perdeu uma letra. E agora? .... ah, já sei: faz de conta que falta a primeira letra; então meto aí um espaço e começo com a segunda, deve dar qualquer coisa inteligível (até para mim)” Não deu; “talvez fosse a segunda letra a perdida. Meto aí um espaço” Nada. E a coisa foi continuando, sem qualquer sucesso. Só coisas do género: z-ghlou rtloipsa vetcsima. “Chiça, já é meia noite, vou-me deitar... mas ... e se é mesmo urgente? Faltará a quarta?” ou a quinta?; ou a sexta?. Pelas três da manhã sucumbi. “Vou dormir... mas ... e se há um ataque dos turras? Que se lixem os turras !!! Vou dormir“ e fui.
Na manhã seguinte levantei-me cedo, mal dormido (mesmo sem ataque dos turras), chamei o sargento Teixeira, contei-lhe o sucedido, “não estou sossegado, vou a Marrupa, não vá isto ser urgente mesmo. Continuamos o trabalho normalmente, sem alarmes, mas ponha aí uma malta armada, só pelo sim pelo não. Eu levo o camião, faz de conta que vou só às compras, levo três soldados armados “para ajudar a carregar”” , lá fui.
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Ao chegar a Marrupa mandei os soldados à cantina com a lista das compras e fui directo ter com o alferes “segredinhos” “O que estás aqui a fazer?” perguntou quando me viu, “não viste a mensagem de ontem?”; ”Ver vi, mas não consegui decifrá-la!“; “não conseguiste decifrá-la???!!!“
E juro que ouvi um sussurro baixinho, baixinho, “e estes engenheiros que têm a mania que são espertos, se calhar não conseguiu foi reagrupar as palavras!”.
“Não, não consegui, diz lá o que era a mensagem, porque é que foi cifrada?” O “segredinhos” não estava disposto a perder a oportunidade; ali em Marrupa não havia muito que fazer, era uma pasmaceira; fazê-lo perder aquela chance de gozar comigo durante um bocado seria quase desumano. E ele queria mesmo aproveitar. “Não, não digo”; não te digo a mensagem, vou-te ensinar a decifrar”. A cena estava a aproximar-se perigosamente dos meus limites; comecei a pensar que o tipo tinha a cara demasiado normal, a precisar duns retoques; mas verdade é que eu não tinha conseguido ler a malfadada mensagem.
Ele estava divertido e a desfrutar. Arvorou um ar paternalista, de mestre-escola, “mostra-me a mensagem que recebeste,...... não, não faltam letras, ...... não conseguiste ler porquê, bastava seguir as instruções, que diabo, não é assim tão difícil, não sei como conseguiste tirar um curso, ...... conseguiste mesmo?”
“Bem, deixa lá, não te chateies, eu ensino-te, vais ver que aprendes. Vamos a ver; senta-te aí, pega em papel e lápis escreve as letras toooodas da mensagem, sem esquecer nenhuma. Vá lá, falta pouco, não te distraias, como vês não é muito difícil, já está; agora pega no livro da cifra, abre-o e segue ..... oh pá, não é esse, é o outro” ; “qual outro?”
“O outro, pá, esse já foi revogado, já está desactualizado, agora é o outro”; “Qual Outro?”
“Já te disse, pá, o azul; esse de capa vermelha já está fora de uso; agora é o outro, o azul”; “QUAL OUTRO? “
“Eh pá, não me digas que não te mandei o outro...” “QUAL OUTRO???”
(acalmem-se as almas sensíveis, sobreviveu!! Intacto!).
Deu-me um caderno azul, consegui organizar a mensagem em grupos de oito e depois fiz o reagrupamento (o “segredinhos” estava abismado por eu ser capaz):
“detectados grupos em movimento nessa área; possíveis inimigos; deve reforçar guarda quer de dia quer de noite e aumentar medidas defensivas; reporte situações anómalas.”
Li, reli e fiquei sem saber se havia de rir ou de chorar (claro que a opção certa era a segunda, a primeira era mera hipótese académica!).
Reforçar a guarda!!?? Medidas defensivas??!! Estávamos lá um alferes, dois sargentos e uns 15 praças. Todos envolvidos na obra da ponte. Durante o dia íamos todos “lá para baixo” trabalhar; ao fim do dia, chegávamos “cá acima” jantávamos e, pelas 10 e meia, 11 da noite, leitinho, xixi, cama, apaga a luz e toca a dormir. Amanhã há mais!
Reforçar a guarda? Qual guarda?
Claro que com um aviso daqueles, tinha que passar a haver guarda. Anoitecia cedo e depressa, como é nos trópicos. Para fazer turnos de três horas, eram quatro turnos por noite. Mas, naquelas condições, era imprudente andar um guarda sozinho. Era fácil levar uma “naifada” , nem perceber, não dar o alerta. Dois por turno, quatro turnos por noite, ia ser dia sim, dia não. Mas tinha que ser e com todos. Chamei o sargento: “Temos que organizar isto; têm que ser oito por noite, dia sim dia não; nós três também temos que entrar na escala; como na obra os carpinteiros, os pedreiros, etc., fazem mais falta, ponha-me na escala das 2 às 5. Eu depois descanso quando puder” . E assim foi.
Custou um pouco, mas valeu a pena. A experiência humana foi espantosa.
Mensagens, cifras e desabafos
Talvez seja necessário ter passado por uma situação destas e saber o que é uma noite do mato africano para perceber o que quero dizer.
Aqueles rapazes estavam havia mais de ano e meio no mato. A mais de 10.000 km de tudo o que lhes interessava. Havia mais de ano e meio que viviam permanentemente juntos, dormiam na mesma camarata, comiam no mesmo refeitório, trabalhavam na mesma obra, gerara-se entre eles uma grande amizade, estariam dispostos a lutar e – se assim fosse – a morrer uns pelos outros. Mas faltava-lhes, nem que fosse só por um bocadinho, a mínima espécie de privacidade. Estavam sempre exageradamente juntos. A única privacidade de que realmente dispunham era a possibilidade de se calarem. Por isso, ainda que francamente amigos, desabafavam pouco. Receavam que, depois de um desabafo, um copito a mais podia gerar uma piada, a malta gozar com eles, podia azedar tudo; por isso calavam-se, poucas ou nenhumas confidências, cada um aguenta a sua parte. E, ainda por cima, tal desabafo podia parecer uma fraqueza, e não, tudo menos isso, aquela rapaziada não queria que lhes chamassem piegas que, de facto, não eram.
E as noites, lá no Lugenda, entre as 2 e as 5 da manhã, eram mágicas.
Havia noites escuríssimas, noites de lua nova, estávamos num local um pouco elevado, de dia avistavam-se cinquenta quilómetros mas à noite, nesses cinquenta quilómetros não havia uma lâmpada, não havia uma fogueira, às quatro da manhã não havia uma candeia acesa, reinava uma escuridão total; só no céu sem nuvens é que luziam milhares de estrelas, parecia que todas as estrelas do universo ali tinham sido postas, ali, no céu do
Lugenda, um céu maravilhoso, cravejado, e que de lá de cima todos os luzeiros nos observavam, que cada estrela seguia cada um dos passos que dávamos enquanto rondávamos.
E, noutras ocasiões, noites iluminadas, noites de lua cheia, uma lua enorme, brilhante, um sol nocturno, enquanto andávamos na ronda projectava no chão as nossas sombras; e ao longe, a cinquenta quilómetros de distância, claramente se podiam ver – ver, de facto, não era só adivinharem-se – os contornos da serra de Mecula. E mediam-se cinquenta quilómetros de árvores pardas, sem qualquer outra luz que não fosse o pálido reflexo da Lua que brilhava.
E noites de trovoada, faíscas brutais que riscavam o céu de ponta a ponta, que iluminavam a noite e assustavam; depois um trovão tremendo, que nos fazia encolher; mas outras vezes, não sei porquê, ao grande clarão não se seguia o trovão, só se ouvia o silvo da faísca, como se um golpe de espada cortasse o céu; e logo um silêncio deprimente, que parecia mais aterrador ainda que o trovão.
E sempre, sempre, qualquer que fosse a Lua ou o clima, os ruídos do mato, o “cantar” dos insectos, um ou outro ronco longínquo, o piar de uma ave, vento que sopra, folhas que se agitam, ruídos que já conhecíamos, a que já nos habituáramos, que estavam lá sempre mas sempre nos agitavam um pouco por parecer, sempre, que encerravam um mistério qualquer da noite sem luzes, africana, do Lugenda.
E àqueles rapazes, havia tanto tempo no mato, tão longe de tudo o que era a sua vida, aquelas noites africanas tinham o efeito de um feitiço; sentia-se, quase se via o que lhes ia na alma; tudo tão distante, há tanto tempo; tantas perguntas, tantas dúvidas, tantas angústias escondiam; aguentavam, mas sentia-se que estavam perto dos seus limites. Aquele seu silêncio voluntário e prudente era devastador, não estariam muito longe de ceder. Eu não queria invadir a sua intimidade, mas sentia que podia dar uma ajuda nos já poucos meses que faltavam e lançava-lhes uma pergunta simples, um “tens tido notícias de casa?” Era o suficiente; o coração abria-se-lhes, a língua libertava-se. Acho que sentiam que comigo não estavam sujeitos a brincadeiras, que eu não lhes ia chamar piegas. E falavam. Falavam. Durante uma hora falavam. E eu, sinceramente, era bom ouvinte, não os interrompia, não fazia perguntas, não dava conselhos, só ouvia.
Que histórias contavam? Ora, nada de muito especial. Tudo histórias normais, tudo histórias parecidas com tantas outras que já todos ouvimos: a minha miúda deixou-me por outro lá da terra; o gajo abusou da minha irmã, se o apanhasse aqui matava-o; há quase um mês que não recebo aerograma, se calhar há azar lá em casa; os meus pais zangaram-se, já viu meu alferes, e agora cada um para seu lado, nem sei como vou fazer quando lá chegar; tenho uma filha que nasceu já depois de eu ter embarcado para aqui, nunca a vi, já falta pouco mas.... e se ela não gosta de mim, se a mãe não me deixa vê-la; e por aí fora.
Eram só histórias de rapaziada comum, nada parecia de especial, mas cada uma era uma história muito especial, porque cada uma daquelas histórias era a história de cada um daqueles rapazes. Falavam, eu ouvia e sentia que, quando às cinco horas chegavam os outros dois que nos iam render e podíamos ir dormir um bocado, eles parecia que iam um pouco mais aliviados, que lhes tinha feito bem terem sido capazes de falar um bocado.
E eu? Nessas noites mágicas do Lugenda também desabafava com eles?
Não, claro que não, era o que faltava, ..... para depois me chamarem piegas ??!!!!
Porque é que de noite é escuro?
Antonio Rafael Passarinho Franco Preto 67/1950