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Mensagens, cifras e desabafos

Quando cheguei ao Lugenda, ali entre Marrupa e Mecula, em Fevereiro de 1965, já lá estavam o furriel Dias e sete ou oito militares, que haviam avançado umas três semanas mais cedo e já haviam montado um pavilhão, edifício com estrutura metálica pré-fabricada e cobertura e paredes de chapa zincada. Servia para tudo: armazém, refeitório, dormitório, e o mais que fosse preciso. Eu, por mim, levava indicações claras: a ponte era grande, mais de quatrocentos metros de comprido, a tecnologia disponível não era espantosa (a começar pelo director de obra, eu, que seguira quase directamente do Técnico para o meio de África!), era de esperar que a obra demorasse uns dois ou três anos. Que me instalasse!

Passadas mais duas ou três semanas chegou o sargento Teixeira, com mais uns sete ou oito militares. E aí estava a equipa completa!

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Havia no local uma cantina, uma daquelas lojas que vendem de tudo, dum português de Oliveira de Azeméis. Deu-nos bastante apoio, ele conhecia a zona, era bom caçador. Ainda estive aboletado em casa dele, durante um bom par de semanas.

Mapa do Norte de Moçambique.

Como o rio ia muito alto, as margens alagadas, os trabalhos pouco podiam progredir. Deu para nos instalarmos: fizemos uma casa para os graduados, um coberto para refeitório, instalações sanitárias, cozinha, um galinheiro, semeámos uma horta e fizemos os primeiros preparativos para começar os trabalhos. Definir o alinhamento, fazer umas mar- cas de implantação de pilares, arranjar um local para explorar uma pedreira e coisas do género.

Estivemos uns dois meses autenticamente “ao Deus dará” . Nem vedação tínhamos; fizemos uma espécie de paliçada com ramos espetados no chão, em duas filas paralelas, só para mar-

Mensagens, cifras e desabafos

car limites; e comunicações, nada, só o rádio de pilhas que dava para ouvir os relatos de futebol nas ondas curtas da Emissora Nacional e a música e os anúncios de Lourenço Marques! Se os “turras” lá tivessem ido chatear só daí a quinze dias é que se dava pela nossa falta !!! Mas, como à frente se saberá, não foram!!

Mas as coisas foram-se compondo. Chegaram uns rolos de arame farpado – fez-se uma vedação – e depois, oh maravilha: UM RÁDIO . É certo que era um grande matacão, um rádio militar, acho que era verde, parecia que tinha vindo directamente do desembarque da Normandia. Mas teria que dar para contactar o (resto do) mundo.

O rádio era, mais ou menos, uma coisa o género do apresentado nas fotos da página seguinte.

Para o instalar e pôr a funcionar tivemos o apoio do alferes de Marrupa que era responsável pela transmissões. Era um tipo porreiro; não vou dizer o nome mas tinha uma alcunha do género “segredinhos” , condizente com a sua função de responsável pelas transmissões e pelas mensagens cifradas.

Foi uma boa ajuda: deu-nos as suas indicações de como montar a antena e a sua orientação; o horário em que devíamos entrar em linha; as designações secretas dos vários postos e unidades daquela zona, impossíveis de entender por estranhos (já lá vão mais de cinquenta anos, mas ainda hoje fico espantado com a imaginação: o quartel de Marrupa, sede do batalhão, era “Olimpo” ; o comandante do batalhão era “Zeus” ; o meu posto, ali no rio Lugenda, era o “Barco” , quem poderia imaginar uma coisa destas?!!). E explicou-nos que, como a sede da minha companhia estava em Vila Cabral, a uns quatrocentos quilómetros, e o meu rádio não tinha esse alcance, o batalhão teria que ser repetidor. Recomendou que para me referir a coisas de que necessitasse e que o inimigo não deveria, de forma nenhuma entender, estabelecia-se um conjunto secreto de palavras de código: se eu precisasse de cimento, pediria farinha; para gasóleo pedia azeite; para arame, spagheti! Tudo inimaginável para o inimigo!

....

E, quando ninguém estava a ver, passou-me secretamente para a mão, o “livro de código” . Um caderninho de capa vermelha, meia dúzia de folhas, com os segredos necessários para ler uma mensagem cifrada. Era trabalhoso, não muito difícil, mas exigia atenção e paciência. Explicou-me que a mensagem cifrada seria transmitida como uma grande sucessão de letras, sem qualquer sentido aparente. O decifrador – que teria que ser, exclusivamente, eu – devia separar essa sucessão de letras em grupos de oito, colocá-las em linhas seguidas e, depois, seguir uma lista de instruções que constavam do livrinho vermelho e que mandava reordenar as letras, por exemplo, “segunda letra da primeira linha, quarta letra da segunda linha, terceira da quinta, sexta da quarta, .....etc ...etc.” Recomendou que era preciso não perder nenhuma letra, na recepção; seguir escrupulosamente as indicações do livrinho no posicionamento das letras; e, por fim, mais difícil, quase impossível, perceber onde se dividiam as palavras !!!! E olhava para mim aparentando grandes dúvidas de que eu fosse capaz! Não gostei muito, mas ajudou bastante e fiquei reconhecido.

Lá no meu grupo havia um cabo, o Ramos, estucador, tipo esperto que pa - recia capaz, e interessado, para ser o telegrafista mor. Aceitou e cumpriu. Todos os dias, duas vezes por dia, ligava o rádio na hora aprazada, recebia as mensagens que chegavam do Olimpo e transmitia o que se lhe indicava como necessidades do Barco.

Nem toda a gente saberá mas, de vez em quando, os “turras” , que também tinham rádios, entravam nas conversas que as nossas tropas trocavam. Genericamente teciam comentários a propósito das nossas mãezinhas e da sua profissão, insistiam em sugerir alguns locais da sua anatomia para onde podíamos ir, faziam ameaças terríveis, etc. Lá, no Lugenda, só os ouvimos três ou quatro vezes, sempre com esta mesma lenga-lenga. Mas uma vez, já lá estávamos havia uns meses, a obra ia-se fazendo, perguntou-me o “segredinhos” se eu tinha ouvido uns comentários em que os “turras” se tinham referido a mim. “Não, não sei de nada; estás a gozar comigo?”; “não, a sério, há dias entraram numa nossa conversa e disseram: digam ao alferes do Lugenda que vá trabalhando na ponte, esteja à vontade, nós não o vamos chatear, até o ajudamos; ele está a trabalhar para nós!!!”; “que grandes sacanas!” , pensei na altura. Mas a verdade, se bem nunca tenha sabido ao certo, ao certo, se esta conversa era verdade ou gozo do “segredinhos” , é que nunca me chatearam ... e o futuro confirmou que tinham razão no que diziam !!!

A vida foi correndo, o Ramos ia fazendo os seus pedidos cifrados, pedia farinha, azeite e spagheti, tudo corria bem e –palavra de honra – íamos sempre recebendo o que, de facto, pretendíamos!

(Nota: contaram-me, não sei se é verdade, que na antiga Índia Portuguesa se usavam códigos parecidos com os que referi acima. Para granadas de mão, pediam-se batatas; para granadas de morteiro, chouriços; para munições de espingarda, grão de bico. E que quando o exército indiano avançou para a invasão, uma guarnição mal armada enviou um rádio pedindo, urgentemente, batatas, chouriços e grão de bico. E disseram-me que a logística funcionou às mil maravilhas: no dia seguinte chegou a esse posto uma camioneta com .... batatas, chouriços e grão de bico !!! Verdade? Não sei, contaram-me!).

Uma tarde, ao chegar da obra estava o Ramos nervoso à minha espera; tinha chegado uma mensagem ininteligível, “não percebo nada disto, só letras sem sentido, o gajo estará grosso?”; “deixa lá Ramos, vai descansar, eu agora trato”. Era, evidentemente, uma mensagem cifrada, comecei a tratar. Parecia fácil, as letras em grupos de oito, colocá-las em linhas seguidas e, depois, seguir as instruções do livrinho vermelho, a segunda letra da primeira linha, quarta letra da segunda, terceira da quinta, sexta da quarta, .....etc. Um quarto de hora, observei, tristemente, o resultado: fagersia

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