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Foi há 60 Anos O Colégio Militar no Brasil em 1959

Guararapes

“Nós somos as nossas memórias” José Luis Borges

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“Guararapes” - ainda hoje a palavra evoca na minha memória as primeiras sensações: um calor quente e húmido, opressivo; o paladar daquela espécie de melão “sensaborão” que era a papaia; a excitação de pôr os pés pela primeira vez em solo brasileiro.

Guararapes era e é o nome do aeroporto do Recife onde o “nosso” DC-7C da Panair fez escala após um vôo de sete horas desde Lisboa. Nesses tempos andar de avião era privilégio só de alguns. As “aeromoças” gozavam ainda de um estatuto de semi-deusas – um misto de cortesia com um imaginário de liberdade sexual ainda inexistente na nossa juventude. Por isso os mais “engatatões” fizeram questão em passar grande parte do tempo na parte de trás da cabine, em pé junto à área de serviço, na ilusão que estavam conquistando grandes avanços.

O calor era como digo basto incomodativo e totalmente incompatível com as nossas fardas castanhas do uniforme “de passeio” . Salvava-nos apenas o nosso orgulho no Colégio, que justificava o sacrifício, a vaidade de darmos nas vistas e, claro, o facto de realmente não termos alternativa.

O Colégio Militar do Rio de Janeiro ficava algures no Bairro da Tijuca (em duas viagens subsequentes nunca consegui realmente perceber onde é que tínhamos ficado). Aí dormíamos e aí comíamos sempre que não tínhamos convite que servisse de alternativa. O menu era invariavelmente feijoada, com arroz e farinha de pau, que rapidamente aprendemos a detestar.

E não me esqueço — da primeira vez que uns amigos de juventude dos meus Pais, residentes no Rio, me convidaram (a mim, ao Beja e a um terceiro que não me recordo quem era) para almoçar em casa deles num fim de semana — da dificuldade que tive em diplomaticamente os dissuadir de nos servirem feijoada, por ser o prato típico brasileiro. Acho que a dona da casa ficou um tanto desapontada, mas lá consegui safar-nos.

Chocou-nos a violência a que não íamos habituados de Portugal. Um dos

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primeiros episódios que nos marcou foi-nos relatado por um de nós: alguém que tinha sido morto em plena via pública, e cujo cadáver os passantes ignoravam seguindo o seu caminho. Nos transportes públicos, achámos curiosa a distinção entre os “ónibus” e as “lotações” . Enquanto os primeiros tinham um percurso regular à maneira dos nossos autocarros, as lotações (mais baratas) paravam sempre que algum “cliente” precisasse de entrar e iam adaptando o seu trajecto às necessidades dos passageiros. Os condutores, esses não faziam qualquer cerimónia em parar a “lotação” , e sair para dar um dedo de conversa com qualquer amigo com quem se cruzassem. Não faço ideia quanto tempo este sistema tenha subsistido, mas em 1959 era assim…

A notícia da nossa visita rapidamente se espalhou na comunidade portuguesa, na sua maior parte constituída por emigrantes saudosos de Portugal, e desejosos de reviver em nós as suas terras que tinham abandonado. Éramos por isso convidados com frequência para Clubes portugueses. Na minha memória destacam-se dois.

A Casa de Vila da Feira recebeu-nos com uma sentida ovação à chegada, a qual nos deixou completamente boquiabertos — claro que nenhum de nós se tinha nunca sentido tão importante, e que não percebíamos ainda que tal eram apenas os efeitos da saudade numa comunidade sedenta de rever em nós o “seu” Portugal deixado para trás. Após essa recepção inicial, alguns de nós fizeram dali o seu local preferido de convívio fora dos programas oficiais — e a isso não eram alheias as atenções dos “brotinhos” que se digladiavam para ter as nossas atenções.

O segundo foi para mim o Real Clube Português de Leitura. Bastante mais formal do que o anterior e com mais estatuto social ofereceu-nos um baile de recepção a todos os títulos notável, e com uma afluência feminina que nos deixou de boca aberta. Nesses momentos mais “notáveis” fazíamos questão de envergar o uniforme número um, com granadeiras e cinturões completamente fora do protocolo, para devidamente impressionar as garotas.

Ponto alto foi também assistir a um jogo no famoso Estádio do Maracanã. Não me recordo quem jogava,

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mas penso que era o Fluminense contra o Botafogo. O que me lembro lindamente, eu que não sou conhecido por ser um grande fã de futebol, foi o entusiasmo contagiante e a sensação de fazer parte de algo maior do que nós.

O Colégio Militar do Rio, em si, tinha muitos pontos em contacto com o nosso. Devo dizer no entanto que me pareceu notar um espírito menos solidário entre os alunos, que eu atribuí nessa altura a dois factores: haver um número significativo de alunos externos; e haver um grande número de colégios militares por esse Brasil adiante — ou seja, nenhum deles era único. No entanto, estabeleceu-se um grupo de alunos brasileiros que nos acompanhavam para todo o lado e com os quais estabelecemos alguns laços de amizade.

Estas memórias não ficariam completas sem mencionar as inúmeras cerimónias militares — desfiles, visitas a unidades da Marinha, Exército e Força Aérea e à Academia das Agulhas Negras, homenagens em monumentos a heróis do Brasil — as quais preencheram uma parte muito considerável do nosso tempo.

O hino brasileiro (música e letra) ainda hoje o consigo cantar, tantas vezes o repetimos. Começa assim: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas, de um povo heróico o grito retumbante…”

Foi sobretudo marcante a nossa participação no grande desfile do aniversário do Brasil, no dia 7 de Setembro de 1959.

Abria o desfile a nossa representação, por ser o nosso Colégio Militar a Unidade Militar mais antiga presente no desfile. Não nos esqueçamos que quando o Brasil se tornou independente em 1822 já o nosso Colégio tinha 19 anos de existência — ou seja a nossa antiguidade no desfile era maior do que antiguidade do próprio Brasil !…

Vitor Manuel Oliveira Santos 365/1949

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