Trevas Luz

Copyright2008 por Paulo César Medeiros Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Capa: Clói Polastro e Seilane Chenk Polastro

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Diagramação: Manoel Menezes Impressão e acabamento: Reproset

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) MEDEIROS, Paulo César.

DAS TREVAS DO ESPIRITISMO PARA A LUZ DE DEUS/Paulo César Medeiros – Curitiba: A. D. SANTOS EDITORA, 2008. 120 p.

ISBN – 9788574590162-9 1. Salvação do homem – Soteriologia

2. Seres imateriais CDD – 234 235

1ª Edição: Setembro / 2008 – 2.000 exemplares.

Proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios a não ser em citações breves, com indicação da fonte.

Edição e Distribuição:

P REFÁCIO Este não é mais um livro do testemunho de um ex-macumbeiro, médium ou pai-de-santo. Também não é um livro para se ler despretensiosamente, como entretenimento ou uma rápida olhadela no consultório médico. Ele é um apelo à meditação sobre a realidade do mundo sobrenatural e do poder das trevas na vida das pessoas. É um alerta a tantos que se esquivam do conhecimento de um mundo invisível, povoado por criaturas das trevas, infernais em suas ações no mundo visível das formas. Essa realidade é tangente e carece um exame profundo, destituído de paixões. É o que oferece o autor ao falar um pouco daquilo que viveu, sentiu e testemunhou.

Expressivo número de leitores pode ser simpatizante das múltiplas formas de espiritismo ou até mesmo adeptos e praticantes de heranças religiosas da África como meio de expressão do sagrado transcendente. Evidentemente, muitos poderão analisar o texto à luz da cultura dominante em seus conhecimentos sobre o assunto e caminhar em direção contrária ao que expõe o autor. Isso acontecerá em conseqüência de sermos um país rico em manifestações de vários tipos de religiosidade, onde há liberdade total de expressão, mostrando as riquezas da ritualística, caracterização folclórica e, alguns, ainda arraigados num primitivismo que parece destoar das concepções da era digital, das conquistas espaciais e da tecnologia em que nada é impossível. iii

A religião pode ser verdadeira para seus praticantes.

Alguns podem estar altamente comprometidos com suas práticas e defendê-las quando pensam estar sendo atacados por eventuais desconhecedores de seus meandros. É natural e até compreensível que seja assim, mas isso não anula, absolutamente, o fato de que existem erros de culto, existem manifestações do diabo em diversos rituais que levam ao transe ou estados alterados de consciência. Não se pode negar, sob pena da emissão de um atestado de ignorância, os malefícios das práticas do ocultismo para a saúde psicológica dos que se deixam levar pelas experiências no âmbito do inconsciente.

A ciência não recomenda a prática de atos, religiosos ou não, que extrapolam os limites do físico e penetram nos insondáveis mistérios do esoterismo como as experiências fora do corpo, estar em dois lugares ao mesmo tempo, viagem astral, clarividência, ver e ouvir espectros do sobrenatural e outros menos comuns, mas igualmente prejudiciais à mente e à saúde psicológica. Os próprios líderes de centros espíritas e locais que trabalham com a sensibilidade de pessoas especialmente dotadas, recomendam evitar-se permanência prolongada em transe e atenção aos limites que um médium pode suportar ante o desgaste natural do corpo em situações de estresse fora do normal.

Além da atitude reservada da ciência médica, e o bom senso que deve orientar todo ser humano, a Bíblia, que é o livro de prática e conduta de todo cristão autêntico, proíbe a consulta aos espíritos dos mortos e práticas do ocultismo em geral. É fato que observadores de religiões animistas, ocultistas e paranormais, distorcem textos bíblicos para justificaiv

rem suas práticas e legitimá-las, garantindo encontrar apoio e indicações para seus desatinos.

Eu li o livro, vi nele o registro de uma experiência única, tanto no âmbito do sobrenatural quanto na vida cotidiana do autor, sob constante pressão, oriunda da longa exposição aos malefícios da prática do ocultismo. Íntimo conhecedor dos cultos afros e das diversas formas de espiritismo eu compreendi o drama do escritor, vivi seus momentos de pura angústia e incertezas. Por isso, não recomendo a adesão de pessoas nesse sistema folclórico-religioso, embasado na posse do corpo pelas entidades do mundo subjetivo. Essa religiosidade é incapaz de satisfazer seus praticantes porque não tem consistência e nem alicerce firmado na razão lógica da fé, atributo humano que deve ser depositado naquilo que a consciência aceita como verdade, sem inquietações, sobressaltos, dúvidas e temores.

A liberdade individual é um tesouro para o ser humano providenciado pelo Criador quando permitiu o privilégio do discernimento entre o bem e o mal e, acima de tudo, sabedoria e força para decidir pelo melhor. Pense nisso.

Boa leitura.

S.V. Milton Jornalista, pesquisador e escritor

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Í NDICE INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1. RUMO ÀS TREVAS DO DESCONHECIDO . . . . . . . . . . . . 5 2. HORROR: EU COMIA MEUS PRÓPRIOS CABELOS . . . . 15 3. A MARCA MALDITA DO DIABO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 4. DESENVOLVENDO O “SANTO” . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 5. MERGULHANDO NAS TREVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 6. LOUVORES À MÃE DAS ÁGUAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 7. FALANGES DO INFERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 8. AS LINHAS: DIREITA E ESQUERDA . . . . . . . . . . . . . . . . 49 9. NO INFERNO DA DÚVIDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 10. EXU ME ARROCHA MAIS E MAIS . . . . . . . . . . . . . . . . 63 11. JESUS ME TIROU DO INFERNO . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 12. “ELE” VEIO PESSOALMENTE... . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 13. A NOVA VIDA EM CRISTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 14. TRAGÉDIA EM FAMÍLIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 15. DAS TREVAS PARA A LUZ: EPÍLOGO . . . . . . . . . . . . . 99 16. O QUE VOCÊ LEU... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 17. O QUE HÁ PARA LER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

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I NTRODUÇÃO O autor de Hebreus escreveu em sua preciosa carta: “A palavra de Deus é viva e eficaz e mais penetrante que espada alguma de dois gumes. Penetra até a divisão da alma e do espírito e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração” (4,12). O texto não diz se o autor era militar, mas revela que era conhecedor do poder mortífero dessa arma, uma comparação sublime, perfeitamente adequada e sem nenhuma sombra de dúvida, inspirada pela sabedoria divina.

A espada de dois gumes era tremendamente eficaz para ataque e defesa. Seu aço mortal cortava nos golpes à direita e à esquerda sem a necessidade de virar a espada durante a luta. A vantagem dava ao soldado maior destreza no seu manejo, o que, não raramente, salvava a sua vida ante a fúria do atacante desesperado para conservar a própria existência.

Quando começou a ser usada, era a arma da tropa de elite dos imperadores romanos, garantindo a supremacia da sua guarda pessoal, composta por exímios lutadores que sabiam aproveitar a vantagem de ter em mãos uma arma insuperável no combate corpo-a-corpo.

Os dois gumes afiados facilitavam a penetração da lâmina no corpo do inimigo. Dependendo da força do golpe, poderia dividir a pessoa ao meio, separando a coluna vertebral e rompendo a medula. A morte dividia alma e espírito e do corpo, alusão perfeita do autor de Hebreus. A palavra de Deus, comparada a essa terrível arma, traz à mente uma 1

compreensão da certeza do crente ter em mãos uma espada idêntica, eficiente na defesa dos valores espirituais contra os assaltos das hostes malignas, assombrosamente ameaçadoras da integridade física, moral e espiritual dos soldados de Cristo. É o que se entende ao longo do texto deste livro pela exposição à apreciação de três implicações na luta do exército cristão contra o poder das trevas: 1. Não é uma luta convencional contra a carne e o sangue. O embate trava-se nas regiões celestiais invisíveis. É uma luta renhida e sem tréguas. Luz e trevas se engalfinham com dois objetivos opostos: um lado quer salvar, trazer à luz o ignorante; o outro quer reter o impenitente na escuridão, sem conhecimento da verdade libertadora de Jesus. Se não conseguir, seu desejo é matar e destruir, conforme a sua natureza má e corrompida.

2. Embora persistente e lutando com ousadia de fazer inveja aos mais bravos generais, a luta de Satanás e seus anjos é um esforço perdido. Deus conhece o momento em que dirá: chega! E o fará, mesmo que ele se insurja contra suas determinações, a batalha está ganha e o diabo e seu exército derrotados sem contemplação.

3. Jesus é o supremo general de todas as batalhas. Ninguém que entre em suas hostes para pelejar na eterna luta do bem contra o mal, ficará à mercê de qualquer outro poder porque ele será sempre inferior, o mais fraco, incapaz de sair-se vencedor. Prova disso são os testemunhos narrados na Bíblia Sagrada e as 2

milhares de experiências ao longo da história. São batalhões de pessoas que saíram do lodo, de uma aparente derrota para a vitória em todas as dimensões, levando-as a proclamarem através dos séculos passados e futuros que Jesus é o Senhor.

Com esse objetivo, às vezes uso termos contundentes, não me perdendo em volteios para expressar-me, nem poupar exortações aos que se comportam indignamente na seara do Mestre. Tudo na defesa de uma verdade mais comum do que possamos imaginar, mostra que o diabo não age somente nos centros espíritas e outros antros do pecado, mas ele, à miúde, está nas igrejas trabalhando na vida de crentes desavisados e usa os incautos para realizar seus propósitos sujos, degradando o evangelho, separando irmãos, rachando igrejas, colocando em cabeças ocas pensamentos inadequados aos verdadeiros servidores do Reino. É bom alertar que as referências constantes ao “espiritismo” visam uma generalização da prática em seus vários segmentos, sem a preocupação de classificá-los conforme suas características e diferenciação. Isso não se faz necessário quando a preocupação maior é com a autenticidade do testemunho. Dispensa-se também qualquer compromisso a respeito de conhecimentos doutrinários das diversas variantes do espiritismo que visa à revelação de atos praticados por mim e o que presenciei em mais de uma década de atuação como médium e líder em terreiros de umbanda e outras formas de animismo.

Não pretendo, também, considerar nuances das práticas ritualísticas e cerimoniais, censurar, ofender ou atacar adeptos dos cultos afros. Meu testemunho é estritamente 3

pessoal e refere-se ao que vi e senti na sua experiência no exercício da mediunidade. Deve-se levar em conta, ainda, minha sinceridade ao reconhecer que não estava bem naquele ambiente e que as intermediações entre os mundos, visível e invisível, para os espíritos expressarem-se e agir no mundo físico, não trouxe ganhos de maturidade e conhecimento espiritual capazes de despertar-me para a verdade do evangelho, abrindo-me os olhos para a perniciosidade daquelas práticas, longe de satisfazerem as ansiedades que me afligiram durante o tempo em que estive na ativa.

Leia, comente, apresente-o a amigos. Este livro é uma autêntica espada de dois gumes.

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1 R UMO ÀS T REVAS DO D ESCONHECIDO u era um menino como outro qualquer. A diferença é que, aos onze anos, em 1966, iniciei uma caminhada em que a dor e o sofrimento me acompanharam numa experiência que poucos viveram. Ainda criança senti toda intensidade de uma prática que me traumatizou, transformando-me numa pessoa tímida, insegura e infeliz. Entrei na puberdade mas não tive a oportunidade de sonhar, aproveitar os folguedos próprios da mocidade alegre, sem o peso da carga que eu levava sobre meus ombros, pois servia aos espíritos num terreiro de umbanda.

O encontro com o poder das trevas aconteceu numa cidade do interior de Santa Catarina. Eu estava com cinco anos, e ouvia dos adultos que o Natal estava próximo. “Ah! Em breve o Papai Noel iria chegar. E isso queria dizer brinquedos”!

Meu pai trabalhava no porto de Itajaí/SC. As coisas não iam tão bem. Às vezes papai, ia para o mar, pescar, e

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com isso trazia alguns trocados para ajudar na receita de casa.

Mamãe se preocupava por demais com isso. Como seria a nossa vida se acontece algo com ele no mar?

Eu ouvia histórias de experiências difíceis com papai em alto mar. Certa feita, quando no meio de uma tempestade em alto mar, viu alguma coisa, que lhe incomodou muito.

Ele não teve dúvidas, direcionou o barco naquela direção, e deparou-se com dois homens pescadores que estavam à deriva há horas e com certeza morreriam afogados. Papai conseguiu levá-los salvos para terra. Poderia ter sido ele.

Nós éramos quatro irmãos: Cleonice era casada, Méri, Júlio César, e eu. O nome de meu irmão e o meu saíram das telas do cinema. Meu irmão ganhou o nome de um imperador romano, Júlio César e eu, nome de dois personagens.

O meu primeiro nome saiu de um ator do rádio e da televisão, Paulo Gracindo, e o César do imperador romano para combinar com o do meu irmão.

Com todas as dificuldades que nossa família passava, dava para nos manter. Minha irmã casada vivia de trabalhar de casa em casa como diarista, pois se casara com um homem que era alcoólatra. Ela tinha que trabalhar nas casas dos outros e meus pais a ajudavam com o pouco que podiam para que ela mantivesse a si e seus filhos. Lembro-me vagamente de meu sobrinho. Ele jogava bola comigo. Às vezes eu o via de uniforme, e não era da escola, era um uniforme cáqui, de escoteiro. Ele ia a muitos acampamentos. Era um menino educado e estudioso.

Como já disse, meu pai trabalhava no porto e sua vida não era nada fácil. Empilhava sacos e mais sacos, ora de fei6

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jão, ora de cimento. Faziam pilhas para que o guindaste levasse para o interior dos navios. Mamãe conta que ele chegava em casa cansadíssimo. Eu tinha apenas cinco anos, minha vida era brincar, comer e dormir. Penso hoje que, cada dia para meus pais era uma tremenda luta para manter a família.

A rotina prosseguia, até que um dia foi diferente.

Amanheceu como de costume. Meu irmão saíra com o grupo de escoteiros para um acampamento próximo a uma lagoa perto do mar, próximo de Camboriú. O Natal estava próximo. Mamãe colocou uma lata grande, dessas que guardam arroz, sobre a cadeira para que eu pudesse alcançar a mesa. Hum! Que delícia! Eu gostava muito de pão picado dentro da caneca misturado ao café com leite. Com todas as dificuldades de uma família pobre, o vento era de calmaria.

Acabei de tomar o café da manhã e fui brincar. Tudo parecia em paz.

De um momento para outro, do horizonte começou a soprar um vento tempestuoso sobre nossa familia. Era à tardinha e o tempo estava nublado. De repente, pessoas entravam e saíam de nossa casa. Lembro-me de alguém me abraçando e me beijando com lágrimas nos olhos. Era um entra e sai como nunca tinha visto. Eu estava sentado em uma cadeira ao lado da porta de entrada, assustadíssimo, olhando uma verdadeira multidão que se amontoava em frente da nossa casa. Eram choros e pessoas desmaiando.

Estava eu ali sem saber o que acontecia. Depois de várias horas, vi meu pai rompendo a sala com o corpo nu nos braços. Era de meu irmão Júlio César, de 12 anos, morto.

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O pranto e o desespero tomaram conta da minha casa e da minha família.

Eu estava acuado. Tinha só cinco anos. Chorava sem saber o motivo. O que estava acontecendo? Minha mãe desmaiada. Meu pai colocou meu irmão sobre a cama e perdeu os sentidos caindo ao chão. Havia descontrole emocional.

Minhas irmãs estavam desesperadas! Hoje penso que ali ninguém raciocinava. A dor era muito grande, pois meu irmão de 12 anos apenas, morrera afogado. O que acontecera?

Anos mais tarde ouvi a história: o grupo de escoteiros foi acampar próximo a uma praia onde havia uma grande lagoa que dava pro mar. O Chefe dos escoteiros deixou todos os meninos sozinhos naquele lugar e foi até a cidade.

Eles viram um bote de madeira e trataram de entrar e remar pro meio da lagoa pra depois retornarem nadando pra terra.

Meu irmão não sabia nadar.

Muitos meninos subiram na borda do barco em competição e mergurgulharam na lagoa.

Com a força que fizeram, o barco emborcou e meu irmão caiu na água se afogou. Foi meu pai que mergulhou para tirar do fundo do mar o filho morto que estava enroscado em galhos.

Hoje paro para pensar na dor que meu pai sentiu naquele dia. Olhando no fundo do mar e vendo o seu filho tão jovem, com uma vida toda pela frente, inerte, sem vida, morto...

Não foi sem razão que eles ficaram arrasados, desmaiando e sendo acudidos por parentes e vizinhos que cercavam a nossa casa.

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O ventinho suave que soprava no horizonte era o mesmo que cresceu colocando todos nós no epicentro do furacão. Dali em diante nossa família, não seria a mesma.

Não fazia muito tempo, alguns meses apenas, que meus pais haviam perdido a caçulinha, ela estava doente e não suportou a doença, vindo a falecer. Agora era a vez de meu irmão com mais ou menos 12 anos. Dois filhos em poucos meses!

Júlio César era um bom menino, respeitador educado, tudo que uma família esperava de um filho.

Depois que o turbilhão havia passado, seqüelas apareceram. Minha mãe estava doente, depressiva. Perguntavam para mim: – Paulinho onde está o Júlio César?

Eu apontava com o dedinho de menino de 5 anos para o céu, pois foi assim que me ensinaram. Na minha concepção de um menino de 5 anos, o céu era aquele azul com nuvens. O sentimento de perda é algo que somente pode sentir quem já passou por tamanha experiência de dor.

Minha mãe, nunca mais veria o rosto de seu filhinho! Tudo acabou. Era sofrimento por demais! Dois filhos num período de apenas quatro meses!

Minha mãe começou a ir cada vez mais à igreja. Promessas foram feitas. Meu pai fez uma promessa a Aparecida por ter encontrado meu irmão no fundo da lagoa.

Nossa família viajou de Itajaí até Curitiba, onde nos hospedamos na casa de uma tia no bairro das Oficinas, e depois fomos de trem para São Paulo para pagarmos a promessa.

Eu tentava entender tudo aquilo. Minha mãe adoeceu e vivia no médico. A doença não era conhecida, mas era 9

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depressão profunda. Ela não tinha forças para se restabelecer. Até que os médicos deram a idéia de ela engravidar, assim direcionaria suas expectativas para o nenê que viria.

E dito e feito. Mamãe estava grávida. Logo nasceu uma menina a quem deram o nome de Heliete.

O próprio metabolismo e a gravidez, as mudanças hormonais e a espera de uma nova vida deram vida a minha mãe. E ainda tinha outros filhos. Aos cinco anos estava na hora de eu ser alfabetizado. Comecei a freqüentar a escola.

O primeiro ano foi perdido. Chorei mais do que aprendi.

Era uma tortura para meus pais e minhas irmãs.

Cada dia um era incumbido de me levar à escola. Ora meu pai, ora minha irmã Méri que me colocava no bagageiro da bicicleta e me levavam. Enchiam minha mochila com jujubas, suspiro, amendoins. Eu comia quase tudo até chegar na escola. Quando via para onde eles me levavam, caía num tremendo choro, me desesperava. Era como se eu estivesse sendo levado para o matadouro. Eu chorava e acabava voltando com meu pai ou minha irmã que choravam junto comigo. Era o medo de nunca mais vê-los. O medo de desaparecer como desapareceu de repente de nossa casa meu irmão Júlio César.

Reprovei no primeiro ano. O segundo ano melhorou.

Era o sentimento de perda que estava pairando sobre nossa casa, onde havia um grande vazio pela perda. Um dos irmãos de meu pai começou a aparecer mais vezes para trazer alívio.

Ele era da umbanda. Quando entrou em nosso lar, foi quando tudo começou... Com a história de que iriam se contatar com o filho amado, meus pais foram envolvidos ainda quando morávamos no interior de Santa Catarina. Eles esta10

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vam com seus corações doloridos tentando entender o desaparecimento súbito do filho. Meus pais estavam desarmados!

Receber em meu corpo tenro entidades do mundo sobrenatural como os exus foi uma herança maldita que meus pais me legaram por influência de um de meus tios. Ele era experiente praticante do umbandismo em todas as suas implicações. Os rituais de encorporação, sob a frenética batucada dos tambores, aconteciam em nossa casa. Eu não entendia toda aquela movimentação, sacolejos de corpos, rodopios estonteantes, feições crispadas que me davam medo. Corria para a cama, mas o rufar dos tambores não me dava trégua, minha mente flutuava sem conseguir desligar-me daquelas cenas que pareciam sombras dançantes na parede, ameaçadoras, sem piedade da minha fraqueza pueril.

Depois da metade dos anos sessenta, já residindo na capital paranaense, percebi que meus pais haviam mergulhado profundamente nas águas escuras e revoltas do espiritismo afro. Eles se tornaram escravos do satanismo e enveredaram por caminhos onde o retrocesso só é possível pela misericórdia de Deus. Foi nessa época que senti minha vida mudar. Era o começo de uma saga de terreiro em terreiro acompanhando meus pais em longas caminhadas pelos bairros da cidade. Os rituais aconteciam às sextas-feiras, ao cair da tarde quando chegavam os participantes e assistentes das sessões.

Recordo que, durante o trajeto de casa ao centro, possuído pelo medo, sentia meu coração bater acelerado no peito, cheio de dúvidas e indagações sem respostas. Não compreendia toda aquela cerimônia, fitava a gira de encor11

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poração com olhos arregalados, pessoas num estertor que pareciam morrer, relutavam em ceder seus corpos aos espíritos intrusos, ávidos pela posse sem compaixão do seu “cavalo”, sob o ritmo frenético da batucada. Sentia tristeza ao contemplar o espetáculo deprimente daquela orgia sagrada e consagrada aos deuses, à base de cachaça, vinho, champanhe e outras bebidas conforme as linhas dos orixás.

Os charutos eram acesos no mesmo ritmo em que os copos eram esvaziados e dançavam nos cantos das bocas em risos escancarados enquanto as cinzas rolavam para o chão. Reparava nas cusparadas, nem sempre certeiras, nas caixinhas de areia enquanto os médiuns, transfigurados pela posse corpórea, prosseguiam altaneiros naquele festim do além.

Toda aquela magia da manifestação do mundo sobrenatural ao som visceral dos atabaques, me arrepiava num frenesi que não compreendia. Só queria fugir daquele lugar, correr até me faltar o fôlego e só parar bem distante de tudo aquilo.

A falta de entendimento aumentava o medo. Em minha crença em formação concebia a idéia de que os espíritos eram mandados por Deus para operarem entre os homens. Pensava que talvez fossem anjos. Jamais poderia imaginar tratar-se de entidades decaídas, resultado da rebelião contra o Altíssimo nas regiões celestiais. Os questionamentos sem respostas sucediam-se enquanto o tempo passava e eu, vendo e ouvindo o que ia se tornando familiar. Ia me acostumando àquele mundo, ao cheiro forte de incenso, às cores vivas do altar com seus “santos”, os colares nos pescoços dos médiuns, oscilando ao impulso da ginga e toda parafernália do cerimonial.

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Vivendo sob a influência total daquele ambiente, respirando o ar inebriante da fumaça aspergida pelos charutos e incenso, sugestionado pela batucada dos tambores, não tardou a que me tornasse apto a receber em mim a encorporação daqueles mesmos espíritos que acostumei a observar com olhos arregalados, misto de espanto e fascínio. Passei a sentir a presença sobrenatural no terreiro. Entidades mexiam comigo, meu corpo estremecia, sentia-me tonto e não conseguia dominar braços e pernas, como se estivessem entorpecidos por um poderoso analgésico. Os comentários entre os mais experientes davam conta de que eu seria um bom médium. Entretanto, acompanhar tudo aquilo era um suplício para mim. Sentia-me cansado e, não raramente, dormia sob os bancos. Mesmo assim, mensageiros de Satanás vinham como anjos de luz e foram me envolvendo, minando a minha resistência.

Para meu desespero e piorar ainda mais a situação, meu tio vinha visitar-nos, ficava dias em nossa casa promovendo sessões de espiritismo. Pessoas de toda vizinhança vinham fazer consultas. A fumaça cinza azulada da pólvora subia aos borbotões para o telhado quando alguém recebia o descarrego no centro do círculo. Eu via rostos, alguns conhecidos e outros, nem tanto. Vagas lembranças ficaram gravadas no meu cérebro de menino, quase adolescente. Ainda hoje, perdidas nas brumas do tempo, recordo fisionomias que insistem na memória, como um quadro vívido, recém pintado.

Havia um senhor, proprietário de uma mercearia, que não perdia as sessões em nossa pequena sala. Era um homem calmo, parecia até um pouco indolente, mas ambicioso a ponto de pretender riquezas através do beneplácito 13

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dos deuses da umbanda. Sua família era exemplar, seu negócio era próspero e sua esposa, amável, perfeita anfitriã, que me servia suco de abacaxi quando ia visitá-la. Aquele senhor, a despeito da suposta proteção dos orixás, foi perdendo o que tinha, seu negócio fracassou e ele acabou sem nada num prazo relativamente curto.

Ninguém entendia o que havia acontecido, mas eu ouvi meu pai comentando com mamãe que meu tio estava afundando aquele comerciante. Era muito dinheiro despendido por ele no pagamento dos trabalhos e as despesas que exigiam iam além da conta. Os “espíritos” levaram tudo dele, mas nada deram em troca.

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